Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
225/22.8PTAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: AMNISTIA
PERDÃO
LEI ESPECIAL
EXCEPCIONALIDADE
ÂMBITO DE APLICAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
CRITÉRIOS
LIMITES
Nº do Documento: RP20240228225/22.8PTAVR.P1
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Sendo a amnistia e o perdão uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.
II – A jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentando que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que elas não consintam, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.
III – Assim, não pode deixar de ter-se presente os critérios a atender na interpretação das normas legais, na previsão do artigo 9º do Código Civil, de cujos parâmetros resulta que a função do decisor não é puramente mecânica, mas antes deve desenvolver um esforço de interpretação normativa para a sua correcta aplicação ao caso concreto, uma vez que, se a interpretação das normas legais deve sempre de ter em conta o seu teor literal, a mesma não pode cingir-se à letra da lei, devendo o intérprete ter presentes todos aqueles factores ali presentes e partir do pressuposto que o legislador consagrou a solução mais acertada.
IV – De tudo isto dimana que é naturalmente relevante o elemento literal da norma, mas não pode deixar de efectuar-se a sua conjugação com os demais preceitos do diploma e de ter-se em conta o seu contexto sistemático, teleológico e histórico.
V – Ora, a amnistia e o perdão, sendo ambos uma forma de clemência, têm sentido e efeitos diferentes, pois que a primeira extingue o procedimento criminal, “apagando” o crime, e o segundo extingue a pena, no todo ou em parte.
VI – Por outro lado, a amnistia prefere sempre à aplicação do perdão, aplicando-se, no entanto, também a casos em que já tenha havido condenação, fazendo, nesse caso, cessar a execução da pena e os seus efeitos, o que significa que a amnistia, reportando-se ao crime, aplica-se a não condenados e a condenados, ao passo que o perdão, incidindo sobre a pena, só pode aplicar-se a condenados.
VII – Significa isto que o que releva para a exclusão do perdão e da amnistia é o tipo de crime e não o estado do procedimento penal, designadamente se houve ou não condenação com trânsito em julgado da respectiva sentença.
VIII – O que vale por dizer que as excepções consagradas no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, particularmente quanto aos beneficiários da amnistia relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal, abrange não só os condenados por esse tipo de crime, mas também os ainda não condenados, ou seja, aqueles que tenham a qualidade de arguidos ou suspeitos em procedimento criminal por tal tipo de ilícito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 225/22.8PTAVR.P1

I


Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Nos presentes autos de Processo Comum Singular n.º 225/22.8PTAVR, do Juízo Local Criminal de Aveiro – Juiz 2, nos quais foi deduzida acusação contra o arguido AA, pela prática, em 06-10-2022, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, foi proferido despacho, em 12-10-2023, pelo qual se decidiu considerar tal crime amnistiado, nos termos da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, julgando-se extinto o respectivo procedimento criminal (ref.ªs 128146231 e 129424380).


*

Descontente com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, tendo apresentado a respectiva motivação, com conclusões, as quais se sintetizam na seguinte questão:

- Aplicação ao crime imputado ao arguido da amnistia prevista no artigo 4.º Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, invocando o recorrente que o despacho recorrido procedeu a incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea d) – ii), da mesma Lei, ao considerar que somente é excluída a aplicação daquela medida a “condenados”, não operando tal exclusão relativamente aos “não condenados” (ref.ª 15331554). 


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Admitido o recurso, foi apresentada resposta pelo arguido AA, o qual, em síntese, referiu não assistir razão ao recorrente, pois que a norma em causa é aplicável à situação dos autos, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão proferida (ref.ª 15536339).

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Remetidos os autos a este Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, referindo, em síntese, aderir à pretensão da Exm.ª Magistrada recorrente, pois que estão excluídos da aplicação da amnistia os condenados e os não condenados, não tendo sido devidamente interpretada a norma em causa, em conjugação com as demais da mesma Lei, não sendo, por isso, o referido crime amnistiável, pelo que o recurso merece provimento, devendo ser revogada a decisão recorrida e determinado o prosseguimento dos autos (ref.ª 17684877).

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Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.

II

As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, acima sintetizadas, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).

Não se descortinando questões de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se os argumentos apresentados pelo recorrente, para o que importa ter presente o despacho recorrido, o qual é do seguinte teor:

“O tribunal é o competente.


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No mais, compulsados os autos, verifica-se que se encontra o aqui arguido AA acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Cód. Penal.

Os factos remontam ao dia 6 de Outubro de 2022 e o arguido nasceu no dia 9 de Maio de 1998, o que significa que o arguido contava com 24 anos de idade à data dos factos.

Ora, no dia 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, de tal diploma legal, “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.

Não há dúvida que neste caso, tanto a data dos factos como a idade do aqui arguido nessa data se encontram abrangidos por esta norma.

Por seu turno, o artigo 4.º dessa mesma Lei n.º 38-A/2023 estatui que “São amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”.

Neste caso, o crime supra aludido do qual o aqui arguido se encontra acusado é punível em abstracto justamente com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, pelo que se entende que estão preenchidos também os respectivos requisitos previstos no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023 supra citado.

Por seu turno, é certo que o artigo 7.º, n.º 1, al. d), da mesma Lei n.º 38-A/2023, estabelece ainda que “Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal.” (sublinhado nosso).

No entanto, entendemos que esta norma não exclui a aplicação da amnistia que está aqui em causa, em face do emprego do termo “condenados”, o qual leva a concluir que apenas se excluem aqueles que já hajam sido verdadeiramente “condenados” pela prática do correspondente crime, não se excluindo aqueles que não o tenham (ainda) sido, como é o caso do aqui arguido. Aliás, mesmo ao longo de todo esse mesmo n.º 1 e praticamente todas as suas correspondentes alíneas, bem como no n.º 2 desta mesma norma legal, o legislador persiste em excluir das medidas daquela lei apenas aqueles que se encontrem já “condenados” pelos tipos de crime que aí se referem, não se excluindo, portanto, aqueles que não se encontrem (ainda) como tal.

Quando muito, poderá questionar-se que razão verdadeiramente válida terá tido o legislador em apenas excluir da amnistia aqui em causa os “condenados” pela prática de determinados crimes, e não todos os agentes ou arguidos pela prática dos mesmos, o que na verdade não se mostra facilmente apreensível. Contudo, poderá ainda assim argumentar-se, porventura, no sentido de que a condição de “condenado” implica a existência de uma sentença condenatória já proferida por um Tribunal e assente e firmada na ordem jurídica como tal, enquanto que em processos que se encontrem ainda pendentes, essa declaração por parte de um Tribunal ainda não existe, podendo qualquer imputado agente ou arguido do crime ser ainda absolvido, o que tornará, portanto, mais aceitável e admissível que possa ser amnistiado, como aqui sucede.

Enfim, aqui chegados, de referir ainda que, nos termos do disposto no artigo 127.º, n.º 1, e 128.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, a amnistia extingue a responsabilidade e o procedimento criminal, assim como, em caso de condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.

Assim, por todo o exposto, e em face da amnistia que entendemos ser aqui operante, julga-se extinto o procedimento criminal que impendia contra o arguido AA por força dos presentes autos.

Sem custas.

Oportunamente e após trânsito, arquivem-se os autos.” (ref.ª 129424380).


*

Vejamos.

Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP).

Relativamente ao recurso de direito, como é o caso, a lei impõe que sejam indicadas, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).

Os recursos constituem um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou vícios nelas contidos, através da sua análise por outro órgão jurisdicional, representando, assim, um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).

Resulta dos presentes autos que o arguido AA foi acusado, por despacho de 06-07-2023, tendo por base factos alegadamente ocorridos 06-10-2022, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (ref.ª 128146231).

E resulta também que o arguido nasceu em ../../1998, pelo que à data de tais factos tinha 24 anos de idade.

A dita Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, veio estabelecer “um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.” (art. 1.º).

Relativamente ao seu âmbito de aplicação, estabeleceu-se que “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.” (n.º 1 do art. 2.º).

No seu artigo 4.º refere-se que “São amnistiadas as infracções cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.”

Por sua vez, no artigo 7.º, com a epígrafe “Exceções”, estabelece-se o seguinte, para o que agora releva:

1- Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(…)

b) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:

(…)

ii) Crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal;

(…).”

Resulta manifesto que os factos dos presentes autos, dizendo-se terem sido praticados em 06-10-2022, bem como a idade do arguido, nascido em ../../1998, estão abrangidos pelo referido n.º 1 do artigo 2.º.

Por sua vez, sendo o crime imputado punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (art. 292.º, n.º 1, do C. Penal), tal pena abstracta cai dentro do âmbito estabelecido no referido 4.º da dita Lei n.º 38-A/2023.

A questão é se o crime pelo qual o arguido foi acusado está (como sustente o recorrente) ou não (como se decidiu no despacho recorrido) excluído da aplicação da amnistia, atento o disposto no transcrito artigo 7.º, n.º 1, alínea d) – ii), da mesma Lei.

Sendo a amnistia e o perdão uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação. Ademais, a amnistia e o perdão não constituem um direito dos cidadãos, representando, sim, uma medida de clemência, por natureza excepcional e de âmbito limitado.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentando que, como providências de exceção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que elas não consintam, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.[1]

Assim, não pode deixar de ter-se presente os critérios a atender na interpretação das normas legais, dispondo, a tal respeito, o artigo 9.º do Código Civil o seguinte:

1 – A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da norma o intérprete presumirá que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

Estes parâmetros por que deve guiar-se a interpretação das leis levam a afirmar que a função do decisor não é puramente mecânica, mas antes deve desenvolver um esforço de interpretação normativa para a sua correcta aplicação ao caso concreto.

Efectivamente, se a interpretação das normas legais deve sempre de ter em conta o seu teor literal, a mesma não pode cingir-se à letra da lei, devendo o intérprete ter presentes todos aqueles factores e partir do pressuposto que o legislador consagrou a solução mais acertada.

É naturalmente relevante o elemento literal da norma, mas não pode deixar de efectuar-se a sua conjugação com os demais preceitos do diploma e de ter-se em conta o seu contexto sistemático, teleológico e histórico, como também refere a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu Parecer.

A respeito desta disposição do compêndio substantivo civil, referem Pires de Lima e Antunes Varela poder dizer-se que “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3.”[2]

A amnistia e o perdão, sendo ambos uma forma de clemência, têm sentido e efeitos diferentes, pois que a primeira extingue o procedimento criminal, “apagando” o crime, e o segundo extingue a pena, no todo ou em parte (art. 128.º, n.ºs 2 e 3, do C. Penal).

Por outro lado, a amnistia prefere sempre à aplicação do perdão, aplicando-se, no entanto, também a casos em que já tenha havido condenação, fazendo, nesse caso, cessar a execução da pena e os seus efeitos (n.º 2 do mesmo art. 128.º).

Ou seja, a amnistia, reportando-se ao crime, aplica-se a não condenados e a condenados, ao passo que o perdão, incidindo sobre a pena, só pode aplicar-se a condenados.

Apesar da diferente natureza desses dois institutos, a verdade é que o artigo 7.º da dita Lei n.º 38-A/2023, onde se enunciam os crimes que são excluídos da sua aplicação, refere-se no seu n.º 1, de forma indiscriminada, ao perdão e à amnistia, mas depois reporta-se, sucessivamente, nas suas alíneas a) a j), aos “condenados”.

O elenco das excepções é feito, na generalidade desses casos, em função dos crimes em causa, tendo em conta o bem jurídico protegido e os elementos constitutivos dos respectivos tipos de crime (cfr. als. a) a f) desse n.º 1 do art. 7.º).

É sabido que a palavra condenado tem um sentido diferente de arguido, pois que aquela se reporta à pessoa a quem foi aplicada uma pena, por sentença já transitada em julgado, e esta se refere à pessoa contra quem corre um procedimento criminal, tendo sido constituída como tal ou assumido ex lege essa qualidade (arts. 57.º e 58.º do CPP). E há ainda a condição de suspeito, cuja definição consta do artigo 1.º, alínea e), do mesmo Código.

É verdade que o perdão, atenta o seu referido efeito, somente pode, como já dito, ser aplicado a condenados, mas a amnistia tanto pode ser aplicada a suspeitos ou arguidos como a condenados, pois que, conforme referido, tem como efeito a extinção do procedimento criminal ou a cessação da execução da pena e dos seus efeitos, no caso de já ter havido condenação com trânsito em julgado.

E se a referida diferente natureza de tais institutos - amnistia e perdão - e dos seus efeitos são claros à face da lei, cremos que o legislador não teve em conta essa realidade na redacção dada ao referido artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023.

E cremos também que isso sucedeu pelo facto de, entre os inúmeros crimes enunciados nessas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 7.º, raros serem os casos de crimes cuja moldura penal abstracta cabe dentro do limite estabelecido no artigo 4.º da dita Lei n.º 38-A/2023, como é precisamente o crime de condução de veículo em estado em embriaguez, aqui em causa (art. 292.º, n.º 1, do C. Penal), incluído na referida alínea d) – ii) desse artigo 7.º.  

Apesar da moldura aplicável, se a Lei exclui da aplicação do perdão e da amnistia os “condenados” pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, poder-se-á dizer que já poderão beneficiar da amnistia os suspeitos e os arguidos em procedimento criminal por tal tipo de crime?

Julgamos que a resposta tem de ser negativa e a argumentação do despacho recorrido para concluir pela afirmativa não pode aceitar-se.

Com efeito, importa, desde logo, ter em conta que o critério que norteou a exclusão da amnistia e do perdão a certos tipos de crime (enunciados no referido art. 7.º) tem a ver com a relevância social dos bens jurídicos protegidos pelas respectivas normas incriminadoras, não se afigurando que tenha estado presente na opção do legislador o facto de já ter havido ou não condenação do agente de tais crimes. Na verdade, a lesão do bem jurídico pode ter ocorrido independentemente de não estar demonstrado através da condenação.

Depois, fazer depender a exclusão da aplicação do perdão e da amnistia da prévia condenação do agente poderia redundar em flagrantes injustiças relativas, com afronta ao princípio da igualdade constitucionalmente consagrado (n.º 1 do art. 13.º da CRP).

Para tal bastaria que, tendo cometido o mesmo tipo de crime – no caso condução de veículo em estado de embriaguez – em momento anterior às “00:00 horas de 19 de junho de 2023” e ambos os agentes estando em condições e beneficiar da amnistia, por se encontrarem na faixa etária “entre os 16 e os 30 anos de idade”, um deles tenha sido imediatamente julgado, transitando a respectiva sentença condenatória, e o outro tenha visto o processo arrastar-se, por vicissitudes várias, não tendo sequer ainda sido submetido a julgamento.

E a situação poderia ser ainda mais gritantemente injusta no caso de um crime praticado em co-autoria, em que um dos agentes foi julgado e condenado, sendo que o outro, por ter fugido à acção da justiça e ser desconhecido o seu paradeiro, veio a ser declarado contumaz, não tendo ainda havido sequer julgamento.

Seria aceitável, em qualquer um dos exemplos, um dos agentes do crime beneficiar da amnistia ou perdão e o outro não ser abrangido por tais medidas de clemência?

Como refere a Exm.ª Magistrada do Ministério Público na motivação, o legislador não terá feito uma boa escolha ao empregar o termo “condenados” de forma indiscriminada, pois que, limitando-nos à literalidade da norma, situações de facto iguais poderiam conduzir a resultados diferentes em virtude de vicissitudes processuais, criando flagrantes injustiças materiais.

Daí que o entendimento da decisão recorrida, ao considerar que as excepções do artigo 7.º se aplicam somente aos “condenados” e já não aos “não condenados” - suspeitos ou arguidos -, podendo, relativamente a estes, o crime ser amnistiado, desde que preenchidos os pressupostos do artigo 2.º, n.º 1, e 4.º, não possa ser acolhido.

A interpretação da norma em causa (art. 7.º) não pode restringir-se ao seu teor literal, sendo também de levar em conta a unidade do sistema jurídico, presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, daí que, embora se refira apenas a “condenados”, a alínea d) do seu n.º 1 inclui também os arguidos e suspeitos desse tipo de crimes, ou seja, tal norma abrange os “condenados” e os “não condenados”.

Também em anteriores leis de amnistia as excepções aos benefícios do “perdão” foram sempre enunciadas relativamente aos “condenados”, conforme se verifica pelo disposto nos artigos 9.º, n.º 3, da Lei n.º 15/94, de 11-05, e 2.º, n.º 2, da Lei n.º 29/99, de 12-05, tendo o legislador mantido essa mesma técnica legislativa do referido artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, mas agora referindo-se aos benefícios “do perdão e da amnistia”, criando, dessa forma, uma incongruência nessa norma ao aludir depois somente a “condenados”, quando alguns dos crimes enunciados nas várias alíneas do seu n.º 1 têm uma moldura penal abrangida pelo seu artigo 4.º, sendo, por isso, abstractamente, susceptíveis de ser amnistiados.

Em bom rigor, relativamente a tais tipos de crimes - com moldura penal abrangida pelo art. 4.º - o legislador deveria ter aludidos também a arguidos e suspeitos. Mas não o tendo feito, cabe ao julgador levar em conta os critérios atinentes à interpretação das leis consagrados no referido artigo 9.º do Código Civil.

O que releva para a exclusão do perdão e da amnistia é, pois, o tipo de crime e não o estado do procedimento penal, designadamente se houve ou não condenação com trânsito em julgado da respectiva sentença.

Em síntese, as excepções consagradas no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, particularmente quanto aos beneficiários da amnistia relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal, abrange não só os condenados por esse tipo de crime, mas também os ainda não condenados, ou seja, aqueles que tenham a qualidade de arguidos ou suspeitos em procedimento criminal por tal tipo de ilícito.

Impõe-se, assim, a procedência do recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine o normal prosseguimento dos autos, nos termos dos artigos 311.º e seguintes do CPP.


III

Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro a determinar a subsequente tramitação dos autos.

Sem custas.

Notifique.


*

Porto, 28-02-2024.
Raul Cordeiro
(relator)
Paula Cristina Jorge Pires
(1.ª adjunta)
Maria dos Prazeres Silva
(2.ª adjunta)

________________
[1] Vejam-se, designadamente, os Acs. do STJ de 11-06-1987, TJ n.º 31, pág. 30; de 16-01-1990, BMJ 393.º, pág. 262; de 21-07-1987 – Proc. 039119, in www.dgsi.pt, bem como os Acs. da RP de 22-02-1995 – Proc. 9410809, e de 29-03-2000 – Proc. 0040247, e ainda os Acs. do STA de 17-02-1999 – Proc. 023675, e de 08-06-1995 – Proc. 037923, todos estes disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] In Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, págs. 58 e 59.