Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1573/16.1PIPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: ACUSAÇÃO DOMINANTE
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
Nº do Documento: RP201902151573/16.1PIPRT-B.P1
Data do Acordão: 02/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS Nº8/2019, FLS.89-96)
Área Temática: .
Sumário: I – Um dos princípios que enforma o nosso direito processual, civil e penal, é o da preclusão, o que significa que, uma vez praticado determinado acto, ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão).
II – Apesar disso, a dedução de uma segunda acusação no mesmo processo em tudo igual à primeira, excepto quanto ao número de crimes da mesma natureza imputados, constituirá uma mera alteração não substancial de factos, devendo esta segunda acusação ser recebida e será com base nela que deverão conformar-se os ulteriores termos do processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n º 1573/16.PIPRT-B.P1

Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa
Adjunta: Élia São Pedro

Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
O M.P. a fls. 209 e ss, não se conformando com despacho proferido em processo singular do Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal do Porto-J6, que nos autos à margem referenciados decidiu na parte que ora interessa:

Vi a posição das partes e o visto do MP.
Assim, tendo os arguidos se oposto, perante a alteração substancial dos factos comunicada, não dando o seu acordo a que, no julgamento, o processo prossiga por esses mesmos factos, os quais não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo, apenas será de ter em conta a acusação de fls.129vº-130, a qual delimita o objecto do processo.
Nestes termos, o Tribunal é competente e não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou quaisquer outras questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Para a audiência de julgamento, pelos factos constantes da pronúncia/acusação pública de fls. 129vº-130, que aqui se dá por reproduzida, quer quanto aos factos imputados ao(à/s) arguido(a/s)
B…; C…; quer quanto à qualificação jurídico-penal, designo o dia 09.10.2018, pelas 9h15, neste Tribunal.
Em caso de adiamento, nos termos e para os efeitos prevenidos no art. 312,n.º 2, do C.P.P., designo, desde já, o dia 17.10.2018, pelas 9h15, neste Tribunal, sempre sem prejuízo do prevenido no n.º 4, do art. 312º, do C.P.P.
Medidas de coacção: não ocorrendo, em concreto, o condicionalismo previsto nas als. a), b) e c) do art. 204º do C.P.P., julga-se adequada às exigências cautelares e proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada, que o(a/s) arguido(a/s) aguarde(m) os ulteriores termos do processo mediante T.I.R., nos termos dos art. 193º e 196º, ambos do C.P.P, já prestado, veio recorrer nos termos que ali constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição)

“1 - Comparando ambas as acusações proferidas nos autos, concluímos que, naquelas, constam os mesmos factos que são imputados aos dois arguidos e não uma alteração substancial de factos, pois a factualidade que os levará àquela imputação jurídica consta manifestamente do teor das duas acusações, ocorrendo a nosso ver apenas um lapso de escrita quanto à indicação do número de crimes em que cada um dos arguidos incorreu com a prática dos factos descritos de igual forma em ambas as acusações públicas.

2 - Depois acresce que apesar da acusação pública de fls. 153 e 154 ter sido notificada aos arguidos em 20.02.2018, nenhum deles veio invocar qualquer irregularidade ou nulidade ou sequer requereu a abertura de instrução, nos prazos legais, pelo que, qualquer irregularidade ou nulidade relativa da acusação se mostra neste momento sanada.

3 - com efeito, as circunstâncias que geram a nulidade da acusação, encontram-se previstas no artº 283º nº3, do Código de Processo Penal e os vícios da acusação pública são nulidades relativas, dependentes por isso de arguição no prazo legal previsto para as nulidades relativas a contar da notificação do acto aos intervenientes processuais, mais concretamente, nos termos previstos no artº 120.°, n,º 1, 2 do Código de Processo Penal, sob pena de se terem de considerar sanadas.

4 - Os factos descritos, nomeadamente, as circunstâncias de tempo, lugar e modo descritos e as normas legais aplicáveis em ambas as acusações são exatamente os mesmos e foram notificadas aos arguidos, apenas se verificando o lapso da indicação de um crime e não dois crimes como deveria constar.

5- Nenhuma irregularidade ou nulidade relativa que a acusação pudesse enfermar foi invocada pelos arguidos após a notificação do segundo despacho de acusação pública que lhes foi regularmente notificado, pelo que se concluirá que a ter ocorrido qualquer nulidade a mesma está sanada.

6 - Não está em causa, salvo o devido respeito qualquer alteração substancial de factos da acusação pública, mas antes uma questão de nulidade, em nosso modesto entender já sanada, por nada ter sido invocado pelos arguidos nos prazo legalmente previsto para o efeito, ou seja, no prazo de cinco dias contados a partir da sua notificação aos arguidos em 20.02.2018, nem sequer terem os arguidos requerido a abertura de instrução a colocarem causa a nova acusação de fls. 153 e 154 àqueles notificada nos autos.

7 - Uma vez que ficou sanada a eventual ou hipotética nulidade, apenas a segunda acusação de fls. 153 e 154, pode delimitar o objecto do processo e não a acusação de fls. 129 e 130 que o despacho recorrido considerou ser a que delimitava o objecto do processo.

8 - Concluímos, assim, que o Douto Despacho recorrido é ilegal e viola frontalmente o previsto no artº 120º e 123.°, ambos do Código de Processo do Penal, bem como, enfermará de nulidade insanável, nos termos do disposto no art," 119.° alínea b), do Código de Processo Penal, ao impedir o exercício da acção penal - cf. Acórdão da Relação do Porto de 08.03.2017.

9 - A decisão recorrida enferma de nulidade insanável, a qual se invoca e deve ser oficiosamente declarada, por a mesma traduzir um impedimento à promoção do processo pelo ministério público, nos termos do artº 48.° do Código de Processo Penal.

10 - Não pode o Mm.º Juiz de Julgamento escolher a acusação que delimita o objecto do processo e omitir receber a acusação que o MP deduziu contra os arguidos a colmatar uma deficiência que não foi posta em causa pelos arguidos e nenhuma vicissitude foi conhecida na fase de instrução após se ter encerrado o inquérito, por não ter sequer sido requerida, pelo que, esse último acto do inquérito cuja nulidade não foi reconhecida, terá que ser a que delimita o objecto do processo, sob pena de ocorrer a verificação de uma nulidade insanável, nos termos do disposto no art," 119º nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, o que se invoca, em relação ao primeiro parágrafo do douto despacho recorrido da Mm.a Juiz a quo.

11 - Ou seja, como os arguidos não invocaram qualquer nulidade ou irregularidade da acusação que lhes foi notificada, está sanado o vicio, tendo que ser recebida a acusação proferida a fls. 153 e 154, pugnando-se pois pela procedência do presente recurso, com a consequente revogação do primeiro· parágrafo do douto despacho da Mm.a Juiz a quo que não recebeu acusação, na qual se imputavam, a prática por cada um dos arguidos, em autoria material, dois crimes de ofensa à integridade simples, p. e. p., pelo art," 143.° n.º1, do Código Penal.

12 - O despacho recorrido, no seu primeiro parágrafo enferma de nulidade insanável, nos termos do disposto no artº 119.° n,º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, bem como de falta de fundamentação, pelo que, pugnamos pela revogação do douto despacho recorrido do Tribunal a quo, naquele seu primeiro parágrafo que, não considerou no despacho de recebimento da acusação previsto no art. 311.°, do Código de Processo Penal, a acusação de fls. 153 e 154 que imputa aos arguidos a prática, por cada um deles, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p., pelo art," 143.° n.º 1, do Código Penal e consequentemente que, seja revogado e determinado a sua substituição por outro que imponha o recebimento da acusação datada de 19.02.2018 - fls. 153 e 154 - onde se imputam aos arguidos a prática, por cada um deles, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p.-pelo art. 143.0 nº 1, do Código Penal.

A este recurso respondeu o arguido B... a fls. 15 e ss, pugnando pela sua improcedência, concluindo:

“1.° - O Ministério Público por Despacho datado de 19.02.2018, a fls. 153 e 154 dos autos, vem nos termos do disposto nos arts. 380.° do código de Processo Penal, 249.° do Código Civil e 666.° do Código de processo Civil, proceder à retificação do texto da acusação constante a fls. 129;

2.° - Da retificação resultou o aumento número de crimes imputados a cada um dos arguidos, passando de um crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art. 143.° do Código Penal, para dois crimes.

3.° - A Meritíssima Juiz "a quo" entende que o primeiro despacho de retificação do Ministério Público no qual considera findo o inquérito e deduz acusação representa um acto decisório que não pode ser repetido, e que a alteração introduzida com o aumento do número de crimes imputados, não consubstanciara uma mera retificação, mas sim uma alteração substancial dos factos, conforme resulta dos arts 359.° e art. 1.° alínea f) do Código de Processo Penal.

4.° - O entendimento sufragado pela Meritíssimo Juiz "a quo", é, s.m.o., aquele que melhor se coaduna com o Princípios que norteia o Processo penal, designadamente o Princípio da Preclusão.

5.° - No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11.05.2016, em que era relator Maria da Graça Santos Silva, sob o proc. n.º 88/1 0.6JAPDL.L 1-3, decidiu-se uma questão análoga à dos autos, no qual foi considerado que não é possível proceder à substituição de uma acusação por outra por importar a violação do princípio da preclusão.

6.° - Este princípio tem aplicação no âmbito do direito processual, seja ele civil ou penal - e aplica-se, quer aos atos dos Juízes, quer aos atas petitórios e contestatórios das partes /intervenientes processuais, quer aos atos decisórios dos Magistrados do Ministério Público, os quais, nos termos dos arts. 380.°, n.º 3 e 97.°, nº 3, do Código de Processo Penal, só podem ser corrigidos nos casos e termos previstos no nº1 daquele primeiro normativo.

7.° - Tal significa que, uma vez proferida a acusação (ou qualquer despacho do MP no âmbito do inquérito), seja qual for o tratamento que lhe tenha sido dado (isto é, tenha sido notificado, ou não) está precludida a possibilidade de o MP renovar a prática do acto. O acto praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado.

8.° - Pelo exposto, a acusação proferida a fls. 129-130 é a acusação deste processo, sendo aquela que a pretendeu substituir um ato juridicamente inexistente.

Termos em que:

Se requer a V.Exa. que o Recurso interposto pelo Ministério Público seja julgado improcedente, devendo a acusação proferida a fls. 153 e 154, por importar uma alteração substancial dos factos e não uma mera retificação, ser considerada inexistente, por violar o princípio da preclusão previsto no art. 380.° do Código do Processo Penal.”

Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a folhas 47e ss, pugnou pela procedência do recurso.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

Inexistem tias vícios.

Matéria de Direito.

As questões colocadas pelo recorrente são a discordância com o não recebimento da segunda acusação deduzida e bem assim com a alteração da qualificação jurídica efetuada pelo despacho recorrido

Existência de duas acusações, sendo que a segunda se destinou a corrigir alegado lapso de escrita quanto ao número de crimes.

Lapso material

Princípio da preclusão.

Alteração substancial de factos.

Eventual irregularidade/nulidade sanada.

Do enquadramento dos factos relevantes para a decisão.

1. Nos autos por despacho proferido pelo Ministério Público datado de 23.11.2107 foi deduzida acusação contra os arguidos B… e C…:

No dia 30.08.2016 cerca das 18 horas, na rua …, nº…, nesta comarca, os arguidos que são vizinhos dos ofendidos D… e o E…, dirigiram-se à fracção onde os mesmos residem situada no rés-do-chão direito e desferiram vários pontapés na porta de entrada.

Quando a ofendida D… abriu a referida porta, os arguidos agarraram a ofendida, puxaram - na e o arguido agarrou-lhe o dedo polegar da mão direita e torceu-o, provocando-lhe ambos os arguidos, dores e ferimentos, resultado que representaram como consequência directa da sua actuação.

Quando o ofendido E…, marido da ofendida D… foi em socorro da esposa, o arguido desferiu-lhe um soco e a arguida empunhando uma tesoura desferiu-lhe com ela uma pancada nas costas, provocando-lhe ambos os arguidos dores e ferimentos resultado que representaram como consequência directa da sua actuação.

Pelo exposto, cometeram cada um dos arguidos, em autoria material e na forma consumada:

- um crime de ofensa à integridade física, p. e p., pelo art. 143º nº 1, do C.Penal.

2.O presente despacho de acusação foi notificado aos arguidos por carta datada de 28 de Novembro de 2017.

3. Posteriormente, invocando-se o disposto no art. 380º nº 1, do Código de Processo Penal, 249.° do Código Civil e art. 666.° do CPC, o ministério Público procede à retificação da acusação constante de fls. 129 verso e 130, uma vez que, fez constar por manifesto lapso de escrita que os arguidos cometeram um crime de quando queria dizer que, cada um dos arguidos, cometeram cada um, em autoria material, dois crimes de ofensa à integridade física, p, e p., pelo art,? 143.° do Código Penal.

4. Então, o Ministério Público elabora novo despacho integral reproduzindo os mesmos factos, mas agora com a indicação do número de crimes transpostos nos factos descritos na acusação de fls.153 a 154.

5. Com efeito, por despacho de acusação proferido pelo Ministério Público datado de 19 de Fevereiro de 2018, foi deduzida em processo comum singular, no uso do disposto no art.16º nº3 do Código de Processo Penal, contra B… e C…, pelos seguintes factos:

No dia 30.08.2016 cerca das 18 horas, na Rua …, nº …, nesta comarca, os arguidos que são vizinhos da ofendida D…, dirigiram-se à fracção onde a mesma reside situada no rés-do-chão direito e desferiram vários pontapés na porta de entrada. Quando a ofendida Maria Amélia Fonseca Silva abriu a referida porta, os arguidos agarraram-na, puxaram-na e o arguido agarrou-lhe o dedo polegar da mão direita e torceu-o, provocando-lhe dores e ferimentos, resultado que representou como consequência directa da sua actuação.

Quando o ofendido E…, marido da ofendida D… foi em seu socorro o arguido desferiu-lhe um soco e a arguida empunhando uma tesoura desferiu-lhe com ela uma pancada nas costas, provocando-lhe dores e ferimentos resultado que representou como consequência directa da sua actuação.

Pelo exposto, cometeram cada um dos arguidos, em autoria material e na forma consumada:

- dois crimes de ofensa à integridade física, p. e p., pelo art, 143º nº1, do Código Penal.

6.O presente despacho de acusação foi notificado aos arguidos a 20.02.2018.

7.Em 17.04.18 o Mmº juiz profere o seguinte despacho: “Autue como processo comum com intervenção de Tribunal Singular.

O despacho do Ministério Público no qual considera findo o inquérito e deduz acusação representa um acto decisório que não pode ser repetido, por com a sua prolação se ter esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respetivo objecto, independentemente de a acusação conter ou não deficiências que possam comprometer o seu êxito.

A acusação de fls. 153-154 não consiste numa mera rectificação de um erro material, antes configura uma alteração substâncial dos factos vertidos na acusação de fls. 129-130, conforme resulta do disposto no art. 359° e art. 1°, al. f), ambos do CPP.

Os factos não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

Assim, antes de mais, notifique os arguidos nos termos e para os efeitos do nº 3 do art. 359° do CPP.

DN

Porto, 17.04.2018 “

8. Os arguidos pronunciaram-se no sentido do decidido pelo juiz a quo.

Conhecendo.

Dispõe o artigo 380º

1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:

a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;

b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.

3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º.”

O art. 380º do CPP prevê um processo de correção de sentença extensível aos atos decisórios do art. 97º, neles se incluindo decisões do M.P. quando os vícios de que enferma não constituem nulidade, embora não se tenha observado integralmente o disposto no art. 374º e ainda quando a sentença/ato decisório contiver lapso, obscuridade ou ambiguidade, cuja modificação não importe modificação essencial.

Para Maia Gonçalves a modificação essencial afere-se em relação ao que estava no pensamento do tribunal decidir, mas que não ficou escrito, aqui se incluindo os erros de escrita, sendo ainda necessário que o erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade resulte dos próprios termos da decisão, para assim se poder controlar o exercício, pelo tribunal do poder de correção, a fim de se concluir que o erro para poder ser corrigido pela entidade decisória, foi patente, evidente, indiscutível, captável pela imediação, ver Ac. STJ de 18.01.2007, Proc.3510/06-5ª.

Temos, pois que a retificação não é possível quando a alteração pretendida conflituar não só com o sentido do seu texto como do próprio pensamento do decisor.

A correção de sentença e de despachos judiciais e do M.P. é sempre possível em nome dos princípios da economia e celeridade processual, desde que não estejamos perante novas decisões, designadamente sobre o mérito, mas perante simples aperfeiçoamento do decidido num quadro meramente retificativo, não podendo integrar nulidades insanáveis e desde que não importem alterações substanciais, pois proferida decisão está esgotado o poder jurisdicional.

Dito de outro modo, só cabem no art. 380º os erros e contradições que não tenham relevância para caber no art. 410º, n º 2 do CPP.

Ora analisado o conteúdo da primeira acusação e o da segunda, pode constar-se que a única alteração da primeira para a segunda é a imputação a cada um dos arguidos não de um mas de dois crimes de ofensas à integridade física simples.

Pode constatar- e que os factos são exatamente os mesmos, não foram “bulidos”, nele estando presentes todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime em questão. De igual forma não se mexeu na competência do tribunal.

Resulta evidente analisado o pensamento exarado no testo da primeira acusação que as premissas não tiveram a conclusão adequada, a imputação de dois crimes a cada um dos arguidos e que tal deveu-se manifesto lapso do M.P. que dando conta solicitou a sua correção. E tal correção não implica modificação essencial da primeira acusação, na medida em que estão retratados todos os factos que poderão implicar eventual condenação dos arguidos pela prática de dois crimes e não de um só. Não há aqui nenhuma alteração substancial como veremos mais a baixo.

Ao contrário do acórdão da Relação de Lisboa de 11.05.16, não ocorre nos presentes autos situação similar na medida em que ali a segunda acusação implicou invocação de novos factos que acresceram aos anteriores e ainda a modificação da competência do tribunal, o que não é manifestamente o caso dos autos.

Um dos princípios que enforma o nosso direito processual, civil e penal, é o da preclusão. Significa ele, entre o mais) que uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão). Este princípio tem um campo de aplicação muito amplo, quer em processo civil quer em processo penal e aplica-se, nomeadamente, a todos os atos petitórios e contestatórios das partes (por exemplo, apresentação de queixa, dedução de acusação particular, dedução de instrução, pedido de indemnização civil, contestação crime e contestação cível). Mas aplica-se também aos atos do Magistrados. Tal resulta, diretamente, do disposto no artº 613º/CPC, aplicável em processo penal, por força do qual proferida sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado, intra e extra processual). Tal norma é aplicável aos simples despachos decisórios intercalares - o que fundamenta a figura do caso julgado formal e material (artºs 619º a 621º, do CPC, aplicável ao CPP, ex vi artº 4º). Proferida a sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade do Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correção de lapsos materiais (artº 614º/CPC) e, no âmbito CPP, daqueles a que se refere o artº 380º/CPP.

Ora, o disposto no artº 380º/ 1 e 2 aplica-se, como determina o nº 3, aos atos decisórios previstos no artº 97º/CPP, o que quer dizer que se aplica aos atos decisórios do Juiz e do Ministério Público (artº 97º/3, do CPP). Tal significa que, no que ao caso releva, uma vez proferida a acusação (ou qualquer despacho do MP no âmbito do inquérito), seja qual for o tratamento que lhe tenha sido dado (isto é, tenham eles sido notificados, ou não) está precludida a possibilidade de o MP renovar a prática do ato. O ato praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado, tenha ele sido vertido em papel ou em sistema informatizado – sendo que é inadmissível que ambas as vertentes não sejam rigorosamente coincidentes. Salvo ocorrência de situação que justifique aplicação do art. 380º do CPP, não sendo, pois, um princípio absoluto.

A atuação do M.P. nestes autos não atropela o princípio do processo justo (tal como pugna o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), no qual se alicerça do princípio da lealdade processual que, na dimensão da atuação do Ministério Público, é uma exigência do processo democrático (que tem inerente o exame público sobre a atuação dos agentes da justiça).

Assim e em suma, face à opção inicial do acusador, é evidente que a única qualificação jurídica admissível passa pela imputação de dois crimes de ofensa à integridade física do art. 143º, n º 1 do C.P. já que os factos constantes da acusação permitem legitimamente a imputação de dois crimes (com reporte a cada um dos arguidos).

Em face do exposto o juiz a quo devia ter admitido a correção da acusação nos termos sugeridos pelo M.P.

Mais, importa inda considerar que a interpretação feita pelo juiz a quo segundo a qual a referida imputação implicava uma alteração substancial dos factos invocando o disposto no art. 359º do CPP não pode ser sufragada.

Conforme já decidido em Ac. TRP de 13-02-2008 desta 1ª secção: “I - Se os factos descritos na acusação foram aí qualificados como 1 crime de lenocínio simples, em julgamento, se se entender que esses mesmos factos constituem 6 crimes dessa natureza, o procedimento a seguir é o previsto no art. 358º, nº 3, do Código de Processo Penal e não o do art. 359º do mesmo código. II - No crime de lenocínio simples pune-se uma actividade, uma profissão, e não a corrupção da vontade livre, pelo que comete um só crime quem, na execução da mesma resolução, favorece a prostituição de várias mulheres.”

Passo, ainda a transcrever “De acordo com o art. 1º al. f) do CPP considera-se alteração substancial dos factos, aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Havia alguma controvérsia sobre a qualificação da modificação do objecto do processo, traduzida na alteração da qualificação jurídica que implicasse uma modificação do limite máximo da pena – cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 2000, pág. 382 e seguintes.
Tal controvérsia veio todavia a ser resolvida pelo Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 27 de Janeiro de 1993 – DR I Série-A, de 10 de Março, fixando jurisprudência no sentido de que “(…) não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”.
Também a Lei 59/98, de 25 de Agosto, aditou ao art. 358 do CPP o actual n.º 3, equiparando a alteração da qualificação jurídica a uma alteração não substancial de factos.
Deste modo, não há hoje razão para dúvidas, quando subsista apenas uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. Uma alteração desse tipo, se não envolver modificação das regras de competência, implica apenas o dever de o juiz comunicar a referida alteração ao arguido, nos termos do art. 358º, 1 do CPP – cfr. MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, 13ª Edição, 2002, pág. 695.
No presente caso, não houve qualquer alteração dos factos descritos na acusação.

Os factos com base nos quais os arguidos foram condenados são exactamente os mesmos que constavam da acusação.
Como foi referido pela M.ª Juiz Presidente, no decurso da audiência, “todos os factos que se deram como provados já constavam da acusação, pelo que estamos apenas perante uma alteração da qualificação jurídica desses mesmos factos, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 358º do C. P. Penal, a que se dá agora cumprimento.”
Não houve assim qualquer alteração substancial dos factos (impondo o cumprimento do art. 359º CPP), mas apenas uma diversa qualificação jurídica dos mesmos, a qual, nos termos do citado art. 358º, 3 do CPP, equivale a uma alteração não substancial.”
Portanto, ainda que se admitisse a impossibilidade de correção, sempre o juiz a quo, após a produção da prova, teria de dar cumprimento ao disposto no art. 358º, n º 3 do CPP, a fim de alterar qualificação jurídica, já que os factos esses mantinham-se os mesmos, embora integrando a prática de dois crimes.
Ver ainda Ac. TRC de 8-10-2008, CJ, 2008, T4, pág.52: segundo o qual “ A alteração da qualificação jurídica dos factos não altera o objecto do processo.”
E ainda Ac. TRP de 8-07-2015:” …III. Representa uma alteração de qualificação jurídica, sujeita ao regime do artigo 358º do Código de Processo Penal, a qualificação dos factos descritos na acusação e na pronúncia como tantos crimes de tráfico de pessoas quanto o número de vítimas, quando nestas eram qualificados com um único crime.”

Ainda a respeito:
Ac. STJ de 20-02-2003: “I. Para que possa licitamente proceder-se à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, importa que pelo tribunal seja observado previamente o regime do artigo 358º, n.º 3, do Código de Processo Penal. II. No artigo 359º do mesmo Código englobam-se três hipóteses distintas:
-alteração de facto ou factos descrito na acusação;
-revelação de um crime conexo cometido pela mesma ação ou omissão ou por outra ação ou omissão cometida em unidade de tempo e lugar ou revelação de uma circunstância agravante;
- revelação de um facto novo.”
Temos assim que o artigo 359º do mesmo Código contempla a alteração dos factos em razão do acrescentamento ou amputação de um elemento do facto que implique que o facto novo resultante da alteração constitui um outro tipo legal de crime, a descoberta de um outro evento, ou a violação de uma outra norma incriminadora e ainda a descoberta de uma nova circunstância que agrave a pena aplicável ou a descoberta de um crime inteiramente distinto.
Não é manifestamente o caso dos autos.
Sendo certo que os arguidos têm que defender-se dos factos que lhe são imputados, não podendo ser surpreendidos com factos novos, diferentes daqueles que lhe foram imputados na acusação, a verdade é que a retificação nem sequer «alarga» o objeto do processo, não o faz perder a sua identidade (não se passa a um diferente objeto do processo, que assim se mantêm, pois os factos permanecem os mesmos e é a mesma pena em abstrato, pelo que não houve alteração substancial.
Em suma representa uma alteração de qualificação jurídica, sujeita ao regime do artigo 358º do Código de Processo Penal, a qualificação dos factos descritos na acusação como tantos crimes de ofensas à integridade física quanto o número de vítimas, quando nesta eram qualificados com um único crime.
A alteração será substancial quando:
- “tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso …” E quando há crime diverso?
Desde logo quando a norma legal aplicável é diferente da constante da acusação, só que neste caso, desde que não estejamos perante uma mera alteração da qualificação jurídica (pois não constitui alteração substancial dos factos), pelo que têm de estar em causa os factos.
E os factos criminosos são diversos se:

Da … adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo” – razão da intervenção do direito penal: proteção de bens jurídicos;
Da … adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objeto de um diferente e distinto juízo de valoração social;
Da … a adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade. “O arguido não teve oportunidade de se defender dos “novos factos”, não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos.” in Ac. R. P. 23/5/2007 cit. – porque ultrapassam o objeto de discussão/conhecimento do tribunal traduzido nos factos constantes da acusação, alegados pela defesa e resultantes da discussão da causa – artº 339º 4 CPP - ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Ou seja a adição ou modificação dos novos factos faz com que a pena aplicável seja superior á pena prevista pelos factos constante da acusação».
Nos termos e para os efeitos do artº1º, al. f) do CPP, a noção de crime diverso pode reportar-se ao mesmo tipo legal, desde que existam elementos diferenciadores essenciais em relação aos factos descritos na acusação ou na pronúncia que determinem uma diminuição das garantias de defesa.
A fim de prevenir prejuízos graves para a preparação da defesa, deve entender-se que equivale à imputação de um «crime diverso» a alteração factual que consistir no acrescentamento, aos factos descritos na acusação ou pronúncia, de um facto novo, sem o qual o arguido não poderia ser criminalmente condenado.
O instituto procedimental da alteração de factos [cfr. artigo 1.º n.º 1 alínea f) do CPP] tem por escopo assegurar as garantias de defesa do arguido, prevenindo um julgamento e uma condenação com base em materialidade de facto diversa daquela que, oportunamente, maxime, na acusação, lhe tenha sido comunicada - artigo 32.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Ora, de tudo isso cientes, no caso vertente, não poderá falar-se em imputação de crime diverso (independentemente da dificuldade ainda reinante no tocante à sua definição), nem em agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pois que os dois crimes imputados têm a mesma moldura dos que já vinham imputados na acusação, reconduzindo-se a situação a uma mera questão de “afinação” da qualificação jurídica dos factos acusados, alteração que, embora, em tese, pudesse consubstanciar uma alteração não substancial dos factos a que alude expressamente o nº 3, do artigo 358º, arreda-nos da aplicação do formalismo estatuído no seu nº 1, pois que aqui claramente está em causa é a correção de um lapso manifesto.
De todo o modo, a referida duplicação incriminatória não encaixa no crime mais grave, nem é crime diverso, logo não é alteração substancial, pelo que, nada obstaria ao recebimento de uma tal peça acusação do Ministério Público, pois que tal não belisca sequer o preceituado no artigo 358º, nº 3, do Código de Processo, normativo que, por via disso, e nestas específicas circunstâncias, não era imperioso cumprir.
E, tal como decorre já abundantemente da jurisprudência supra assinalada, mas em reforço, não se diga que existe aqui alguma surpresa ou prejuízo para a defesa, uma vez que é consabido que “…a ratio dos mecanismos previstos naqueles normativos legais (leia-se, dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal) tem a ver com a identidade do processo penal fixada na acusação, visando que ninguém seja condenado por factos ou incriminações com que não podia razoavelmente contar e dos quais não teve oportunidade de se defender.
O que aqui não sucede, manifestamente.
A este propósito remete-se para douto Ac. R. P. 23/5/2007 in www.dgsi.pt, desta 1ª secção.
Também não é de sufragar a ideia de que os factos constantes da acusação não são autonomizáveis em relação ao objeto do processo.
Analisando de perto a acusação nela pode-se constatar e diferenciar de forma clara os factos atinentes às vítimas, as condutas de cada um dos arguidos, assim com as suas intenções.
Significa isto que a acusação contem a descrição dos factos de que os arguidos são acusados, efetuada descriminada e precisamente com relação a cada um dos atos constitutivos do crime, nela estando mencionados todos os elementos da infração e quais os factos que os arguidos realizaram, sendo perante este quadro e esta factualidade que o mesmos arguidos devem elaborar a sua estratégia de defesa.
Sendo que a retificação em nada coloca em causa as garantias de defesa dos arguidos.
Última palavra a propósito da questão da nulidade/irregularidade.
A eventual nulidade a considerar-se a propósito da segunda acusação teria que subsumir-se numa das alíneas do art.283º n º 3 do CPP. Não parecendo ser o caso dos autos.
O M.P. parece pretender que a admitir-se alguma nulidade com a segunda acusação que corrigiu a primeira, a mesma mostra-se sanada.
Todavia esta situação não está expressamente prevista como nulidade tendo em conta a regra instituída no artigo 118º, nºs. 1 e 2, logo configuraria uma mera irregularidade já que o referido artigo 283º, nº 3 não a qualifica como simples nulidade e que, por outro lado, a mesma não consta do elenco das nulidades insanáveis a que alude o artigo 119º, há de estar submetida à necessidade de arguição nos termos consignados no artigo 123º, todos os preceitos citados do Código de Processo Penal.
Daqui decorre que deveria ter sido arguida uma tal irregularidade no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.
Ora, não tendo os arguidos, invocado naquele prazo a alegada irregularidade, caso existisse, estaria há muito sanada, atendendo à data da notificação de 20.02.2018.

Decisão.

Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo M.P, revogando-se o despacho da 1ª instância, devendo aceitar-se a retificação efetuada pelo M.P. subjacente à “segunda” acusação, a qual conformará os ulteriores termos do processo.
Sem custas.
Notifique

Porto, 15 de fevereiro de 2019.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Paulo Costa
Élia São Pedro