Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2573/21.5T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
QUESTÃO PRÉVIA
PARTILHA DE BENS DE DISSOLVIDO CASAMENTO
CRÉDITOS ENTRE CÔNJUGES
CRÉDITOS DE COMPENSAÇÃO
Nº do Documento: RP202210272573/21.5T8VNG.P1
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A remissão para o momento da partilha dos bens do casal, prescrita no art.º 1697º do CC, reporta-se apenas aos créditos nascidos na pendência do casamento, denominados créditos de compensação.
II - Os créditos nascidos no período entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal já integram créditos entre cônjuges, não sujeitos ao regime dos créditos de compensação nem ao art.º 1697º do CC, nem ao diferimento de exigibilidade aí consignado.
III - Esses créditos entre cônjuges podem ser objeto do processo de prestação de contas, independentemente de ainda não ter sido instaurado o processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal.
IV - Instaurado processo de prestação espontânea de contas, e tendo o Réu contestado a obrigação (impugnando a natureza de bem comum do imóvel), suscita-se uma questão prévia, de índole de direito material, competindo ao juiz 2 hipóteses procedimentais para o seu conhecimento: (i) considerando que a temática pode ser resolvida sumariamente, observa a via incidental prevista no art.º 294º e 295º do CPC; (ii) considerando a complexidade da matéria de facto e ponderando a melhor garantia dos direitos das partes, manda seguir os termos do processo comum.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2573/21.5T8VNG.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. AA interpôs ação de prestação espontânea de contas contra BB, pedindo:
a) seja declarado que as contas que a Autora apresenta relativamente ao período que vai de 01/06/2014 até 06/04/2021 e relativas à administração do imóvel comum do dissolvido casal, sejam consideradas válidas e aprovadas, apresentando as mesmas um saldo devedor ou negativo de 43.051,60€;
b) e o Réu, em consequência, seja condenado a pagar à Autora, ½ do valor desse saldo negativo, ou seja, a quantia de 21.525,80€, ou do saldo que nos autos se venha a apurar e fixar como saldo devedor a favor desta, ½ que corresponde à quota parte que o Requerido possui no património comum do extinto casal.
Em resumo, fundamentou o seu pedido alegando ter sido casada com o Réu, casamento entretanto dissolvido por divórcio em 07/07/2015, tendo a separação de facto ocorrido em 01/06/2014; ainda não foi efetuada a partilha do património comum do casal; o Réu tem solicitado à Autora que lhe preste contas relativas à administração do imóvel que integra o património comum e no qual a Autora ainda vive com os filhos.
Em contestação, para além de impugnação motivada (designadamente que o referido imóvel não é um bem comum), o Réu suscitou o erro na forma de processo, a manifesta improcedência dos pedidos, o abuso de direito e impugnou o valor dado à ação.
Ouvida para o efeito, a Autora respondeu às exceções, sustentando a respetiva improcedência.
Terminados os articulados, a M.mª Juíza proferi despacho, em 21/09/2021 em que, para além de outras considerações, escreveu:
«A prestação de contas relativas a uma pretensa administração pelo ex-cônjuge dos bens comuns, pressupõe, precisamente, a natureza comum dos bens em causa. (…)
Das posições assumidas pelas partes nos autos decorre que a natureza do bem imóvel (bem próprio ou comum) se encontra controvertida. E, como resulta do exposto supra, a solução de tal questão, nesta fase, é imperativa para que possam prosseguir os autos. Isto porque, apenas no caso de o bem imóvel em causa ter a natureza de bem comum, é que a autora terá obrigação de prestar contas quanto à administração feita desde a data do divórcio, podendo fazê-lo espontaneamente.
Nos termos do disposto no artigo 942.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, «Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; (…).
Impõe-se, assim, produzir prova com vista à determinação da natureza do bem imóvel em causa.».
Posto o que, agendou os diversos meios de prova a produzir.
Por despacho datado de 27/10/2021, a M.mª Juíza pronunciou-se ainda sobre outros meios de prova.
Por despacho datado de 31/03/2022, a M.mª Juíza ordenou a notificação das partes, ao abrigo do art.º 3º nº 3 do CPC, do seguinte:
«Após estudo prévio com vista ao conhecimento das exceções invocadas nos autos, o tribunal deparou-se com a possibilidade de surgir uma questão nova relativamente à qual as partes ainda não foram notificadas para se pronunciarem.
Tal questão reporta-se à possibilidade de se verificar a exceção de uso indevido da ação de prestação de contas quando as partes não estão de acordo quanto à natureza própria ou comum do bem imóvel administrado pela autora, questão essa que carece de ser discutida previamente noutra sede que não o processo de prestação de contas».
Em resposta a esse convite, a Autora arguiu a nulidade do despacho.
A M.mª Juíza proferiu então despacho em que julgou improcedente a invocada nulidade.
Na mesma data, proferiu sentença em que decretou a absolvição da instância do Réu da instância, por considerar procedente a exceção dilatória inominada do uso indevido do processo.

2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1- Em 08.04.2021 a Autora instaurou acção especial de prestação espontânea de contas contra o Réu, com base na administração de imóvel comum do extinto casal, mormente da casa de morada de família constituída por prédio urbano sito em ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial sob o artigo ...44, adquirido na constância do casamento com recurso a crédito hipotecário concedido pelo Banco 1... S.A. no montante de 300.000,00€ e que se destinou ao pagamento integral do preço de aquisição desse imóvel, imóvel que ficou a constar no processo de divórcio por mútuo consentimento da relação especificada dos bens comuns do casal, elaborada pelo Réu e assinada por ambos os ex-cônjuges, tendo sido atribuído à Autora o uso da referida casa de morada de família, sem qualquer contrapartida ou condição;
2- O Réu apresentou contestação a 14.05.2021, invocando diversas excepções, mormente o erro na forma do processo, alegando que o processo de prestação de contas não é o meio próprio “para conhecimento/definição/reconhecimento dos créditos e débitos cuja aprovação vem peticionada pela A. (…)”, discutindo ainda a natureza do bem imóvel, alegando que é bem próprio da Autora, pelo que, no entendimento do Réu, não cabe no âmbito da acção de prestação de contas a discussão sobre a natureza comum ou própria do imóvel e que não existe a obrigação de prestação de contas;
3- A Autora respondeu, quanto à excepção de erro na forma de processo (e às demais excepções invocadas na contestação), reafirmando que os “presentes autos seguem já os termos do processo comum declarativo, até porque na prestação espontânea de contas está em causa o exercício de um direito e um dever e não o cumprimento de uma obrigação” e que os factos que o Réu alega como suposto fundamento para a propriedade exclusiva do bem imóvel objecto dos autos ou já estão confessados ou não são susceptíveis de prova testemunhal ou absolutamente irrelevantes para a definição da propriedade comum do imóvel;
4- Findos os articulados o Tribunal recorrido proferiu despacho a 21 de Setembro de 2021 em que se debruçou sobre o objecto do processo, sumariou as pretensões da Autora e a oposição do Réu e decidiu quanto às questões levantadas, pronunciando-se expressamente da seguinte forma:
-“Até que se proceda à partilha, o ex-cônjuge que fique a administrar bens comuns do dissolvido casal, estará obrigado a prestar contas dessa administração desde a data de produção de efeitos do divórcio (cf. artigo 1789º, nº 1, do Código Civil);
- Das posições assumidas pelas partes nos autos decorre que a natureza do bem imóvel (bem próprio ou comum) se encontra controvertida. E, como resulta do exposto supra, a solução de tal questão, nesta fase, é imperativa para que possam prosseguir os autos. Isto porque, apenas no caso de o bem imóvel em causa ter a natureza de bem comum, é que a autora terá obrigação de prestar contas quanto à administração feita desde a data do divórcio, podendo fazê-lo espontaneamente.
- Nos termos do disposto no artigo 942º, nº 3, do Código de Processo Civil, «Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294º e 295º; (...)».
- Impõe-se, assim, produzir prova com vista à determinação da natureza do bem imóvel.”
5- Em face disso, o Tribunal designou dia para a tomada de declarações das partes, depoimento de parte e inquirição de testemunhas a fim de decidir “a natureza do bem imóvel (bem próprio ou comum)” em causa;
6- Nem a Autora nem o Réu impugnaram tal despacho nem se opuseram à possibilidade da decisão de tal questão ser decidida incidentalmente nestes autos.
7- Por requerimentos datados de 13.10.2021 e 11.02.2022 a Autora foi alertando o Tribunal, sempre sem resposta, para o facto de estarem já assentes os factos necessários à decisão incidental da natureza comum do imóvel e de não ser admissível prova testemunhal quanto a alguns dos factos alegados pelo Réu, por contrários ao conteúdo de documentos autênticos.
8- O Tribunal a quo admitiu e rejeitou meios de prova em despacho de 27 de Outubro de 2021 tendo demorada e detalhadamente tomado posição quanto ao objecto de depoimento de parte da Autora e restringindo significativamente o objecto proposto pelo Réu para o mesmo alegando: “os demais configuram matéria conclusiva, assente, de direito, cuja prova carece de documento ou irrelevantes para a questão a decidir no âmbito da fase declarativa da presente ação especial de prestação de contas.”;
9- Por despacho de 02.03.2022, o Tribunal determinou que “face aos elementos constantes dos autos consideramos desnecessária a referida produção de prova testemunhal, cabendo em primeira linha tomar posição quanto à matéria de excepção que se encontra controvertida” dando sem efeito a diligência de inquirição de testemunhas;
10- Contudo, por douto despacho de 31.03.2022 o Tribunal entende que:
“deparou-se com a possibilidade de surgir uma questão nova relativamente à qual as partes ainda não foram notificadas para se pronunciarem. Tal questão reporta-se à possibilidade de se verificar a excepção de uso indevido da acção de prestação de contas quando as partes não estão de acordo quanto à natureza própria ou comum do bem imóvel administrado pela autora, questão essa que carece de ser discutida noutra sede que não o processo de prestação de contas”.
11- Nesse seguimento, a Autora arguiu a nulidade do despacho, quer por falta de fundamentação, quer pela não indicação da solução de direito sobre a qual quer o Tribunal que as partes se pronunciem e respectivos fundamentos, quer, ainda, por violação do princípio das decisões surpresa;
12- Por douta sentença de 02.06.2022, o Tribunal julga improcedente a nulidade arguida e julga procedente a excepção dilatória inominada do uso indevida do processo e, consequentemente, absolve o Réu da instância;
13- Ora, contra o antes decidido, o Tribunal a quo vem dizer que afinal não se pode admitir a fase declarativa do processo por si antes referida e que não se pode discutir neste processo, nem incidentalmente nem sob a forma de processo comum declarativo, a natureza comum ou própria do imóvel administrado pela Autora para que marcara diligência.
14- Mais, o Tribunal a quo não se sentiu vinculado pelos despachos anteriores e decidiu como se nada antes tivesse sido já decidido nos autos, em violação do caso julgado formal das suas próprias decisões a que nenhuma das partes se opôs.
15- Com efeito, o Tribunal “a quo”, com decisão fundamentada de 21.09.2021, concluiu que- “Até que se proceda à partilha, o ex-cônjuge que fique a administrar bens comuns do dissolvido casal, estará obrigado a prestar contas dessa administração desde a data de produção de efeitos do divórcio (cf. artigo 1789º, nº 1, do Código Civil);
Das posições assumidas pelas partes nos autos decorre que a natureza do bem imóvel (bem próprio ou comum) se encontra controvertida. E, como resulta do exposto supra, a solução de tal questão, nesta fase, é imperativa para que possam prosseguir os autos. Isto porque, apenas no caso de o bem imóvel em causa ter a natureza de bem comum, é que a autora terá obrigação de prestar contas quanto à administração feita desde a data do divórcio, podendo fazê-lo espontaneamente. (sublinhado nosso);
16- Em face disso, o Tribunal marcou diligência de produção de prova para 21.03.2022 a fim de apurar, em sede declarativa incidental, a natureza comum (ou própria) do imóvel, tendo assim produzido um despacho com valor de sentença;
17- Reitera-se, dessa decisão não houve interposição de recurso por nenhuma das partes, não obstante tal ser possível, pelo que se formou caso julgado formal (artigos 580º, 581º e 620º do C. P. Civil), com força obrigatória dentro do processo;
18- Esgotou-se com a marcação da diligência para a decisão da questão da propriedade do imóvel e a admissão de meios de prova a produzir na “fase declarativa”, assim apelidada pelo próprio tribunal, o poder jurisdicional sobre tal questão (artigo 613º do CPC), uma vez que se não tratam de despachos de mero expediente ou proferidos no uso de um poder discricionário;
19- O Tribunal na sentença de que se recorre invoca a ocorrência daquilo a que chama de excepção inominada de “uso indevido do processo” e absolve o Réu da instância com base em duas ordens de razões: 1) Autora pretende exercer o direito à compensação; 2) A questão da natureza comum do bem não pode ser discutida neste processo especial;
20- Ora, tratam-se exactamente das mesmas razões com base nas quais o Réu invocara ocorrer erro na forma de processo.
21- Sucede que tal excepção de erro na forma de processo não podia proceder como tal pois, como bem afirma o Tribunal na decisão recorrida, citando anotação ao Código de Processo Civil de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa “a idoneidade da forma de processo, que deve ser indicada na petição inicial, afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida (aqui trata- se, não de uma inadequação da forma do processo, mas sim de uma situação de eventual improcedência da ação), ocorrendo o erro e a correspondente nulidade quando o autor usa uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão” (sublinhado nosso).
22- O que Tribunal defende, na decisão em recurso é que a Autora “usa uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão” o que o Código de Processo Civil e todos os autores (até os citados na decisão recorrida), e jurisprudência chamam de erro na forma de processo, sobre o que já houve pronúncia.
23- O rebaptismo da questão processual decidenda não muda a sua natureza e está vedado ao Tribunal, sendo inadmissíveis novas nomenclaturas, voltar a conhecer com outro nome o que já foi decidido e violar o caso julgado formal.
24- Aliás, o Tribunal limita-se a afirmar que:
α) “a análise quanto à existência da obrigação de prestar contas não pode pretender a discussão de assuntos que extravasem o que está intimamente ligado com a prestação de contas (designadamente, e a título de exemplo, saber se aquele a quem se pede as contas administra ou não o bem) e que sejam próprias de outras formas processuais”;
d) “a discussão relativa à propriedade do bem administrado abriria a porta a isso mesmo, ao pretender discutir, neste local, aquilo que é próprio de um processo de inventário ou até de uma ação de processo comum”
e) “No caso dos autos, não é a administração do bem que se discute, mas sim a sua natureza própria ou comum”
25- Ora, a alegação de que se administra um bem comum é causa de pedir essencial e bastante a que se proponha acção de prestação de contas.
26- Nos autos, de acordo com o exercício do direito impulsionado pela Autora, é incorrecto dizer-se que se discuta a administração do bem ou a sua natureza comum.
27- Discute-se nestes autos a obrigação de prestar contas.
28- Ora, o tribunal a quo já havia decidido em 21 de Setembro de 2021 e em 27-10-2021, que na fase declarativa deste processo especial devem ser apreciadas as questões prévias ou que alegadamente obstem ao prosseguimento dos autos para a fase posterior.
29- O que o Tribunal recorrido fez foi correr em sentido inverso ao caminho pretendido pelo legislador e onerar a Autora, que só quer prestar espontaneamente as contas que o Réu lhe tem pedido, com a propositura de três acções: 1) uma para descobrir o que o Réu lhe oporia; 2) outra para vir discutir nos meios comuns o que o Réu já lhe opôs; 3) e finalmente a terceira e última para conseguir o seu desiderato: prestar contas.
30- O Tribunal tem competência cível, em que se insere a causa de pedir da acção e o processo pode seguir a forma comum para decisão de tal questão se tal for julgado necessário.
31- O legislador pretende e fornece todos os meios para que a causa de pedir da prestação de contas, quando seja posta em causa a obrigação / direito à sua prestação, seja decidida num único processo.
32- Já na decisão de que se recorre, s.d.r., o Tribunal confunde mérito com um pressuposto processual - que denomina de “uso indevido do processo” -, concluindo por uma decisão de absolvição da instância.
33- Contudo, não deixa de fazer duas incursões em matéria que se prende com o mérito da pretensão da Autora, nomeadamente o Tribunal afirma, em sincronia com o Réu, que a Autora pretende é a compensação de créditos, pretensão que só pode exercer em processo especial de inventário.
34- Para tanto convoca doutrina que não tem qualquer relação com o objecto da presente acção de prestação de contas.
35- Nestes autos está em causa o apuramento das receitas e despesas decorrentes da administração de bens comuns após o divórcio, sendo que as despesas se traduzem no pagamento, pela Autora, de obrigações fiscais e bancárias, de seguros e de obras de conservação e as receitas com o recebimento pela Autora do rendimento gerado pela produção de electricidade no imóvel.
36- Por via de cada pagamento que faz com dinheiro seu de encargos relacionados com o imóvel comum (IMI, seguros, despesas com manutenção, etc.), a Autora adquire um crédito sobre o Réu na parte que a ele cabia saldar e por cada recebimento de rendimento gerado pelo imóvel torna-se devedora daquele em igual proporção.
37- O Réu, como foi alegado nos autos, exigiu repetidamente a prestação de contas da Autora relativamente aos rendimentos gerados no imóvel e pretendendo que tudo aquilo que contribuíram os cônjuges para que ambos e os filhos de ambos pudessem gozar do conforto de uma habitação durante 15 anos de casamento era obrigação apenas da Autora, cabendo a esta o dever de custear e a ele apenas cabia o direito de usufruir.
38- A Autora tem o direito de vir, por via deste processo especial de prestação de contas, cumprir judicial e espontaneamente o que o Réu tem vindo a exigir;
39- Ao contrário do que o Tribunal afirma, o crédito da Autora não é exigível por via da compensação sobre o património comum.
40- A distinção que o tribunal tinha que analisar e convocar não era entre créditos entre os cônjuges e créditos compensatórios, mas entre créditos anteriores ou posteriores ao divórcio. Os primeiros vêm a sua exigibilidade relegada para a partilha, os segundos não.
41- Os débitos que a Autora tem pago são comuns por respeitarem a bem comum, mas não estão sujeitos ao regime de comunhão que vigorou durante o casamento.
42- As dívidas comuns que a Autora pagou com património próprio durante o casamento não são objecto desta acção.
43- Não é no processo de inventário que se decidem os créditos relativos ao período entre o divórcio e a partilha cujo regime patrimonial depois da cessação do casamento é outro.
44- Mas decidindo o Tribunal uma alegada mera questão de excepção, não sendo de mérito o seu conhecimento, é manifesta a impropriedade como se pronuncia sobre a questão de mérito.
45- E apesar de dizer que não pode conhecer da questão, avança para o seu conhecimento e, neste processo, chega a afirmar o que nem o Réu afirma, o que representa uma decisão ilegítima e que deve ser revogada por indevida pronúncia e extra vel ultra petita partium.
46- O Réu declarou em escritura pública, perante a Conservatória do Registo Predial, a Autoridade Tributária (onde o imóvel está inscrito em nome do Réu) e perante o Conservador do Registo Civil que decretou o divórcio que o bem era comum.
47- Não pode o Tribunal a quo impedir a Autora de prestar contas da administração de um bem comum para o que o Tribunal tem competência e obrigação de decidir.
48- Em suma a sentença em crise viola o caso julgado formal e os princípios do direito de acção supra enunciados, faz uma errada aplicação e interpretação dos artigos 3º, 580º, 581º, 620º, 941º, 942º e 946º do C. P. Civil e o artigo 1697º do C. Civil, violando por isso a lei processual e substantiva indicada, pelo que deve ser revogada.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e a sentença proferida ser revogada e substituída por decisão que determine o prosseguimento dos autos para prestação de contas, fazendo-se, assim, a costumada, JUSTIÇA.»

3. O Réu contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Tratando-se de uma decisão de absolvição da instância, de índole estritamente jurídica, a sentença não elencou matéria de facto.
Vale aqui o ritualismo processual exposto no relatório deste acórdão.

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, é a seguinte a QUESTÃO A DECIDIR: qual o regime aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuges entre a dissolução do casamento e a partilha do património comum do casal.
A questão decidenda impõe a abordagem de diversos aspetos, como se segue.
5.1. “Créditos de compensação” versus “créditos entre cônjuges” e qual o regime aplicável no período entre a dissolução do casamento e a partilha
A sentença ora em crise concluiu pela absolvição da instância do Réu, com fundamento numa “exceção dilatória inominada do uso indevido do processo”. No essencial, foram utilizados dois argumentos para o efeito, que aqui importa escalpelizar.
Assim, num primeiro argumento, considerou-se ser de distinguir entre créditos entre cônjuges e créditos compensatórios; que no caso estaríamos perante um crédito compensatório e, sendo assim, ele só seria exigível “em sede de partilha do património comum, onde à Autora assistiria o direito de ver o valor da sua meação aumentar no valor que ora reclama, importando concluir que o processo de prestação de contas não é o meio processual adequado para o efeito. Na verdade, a utilização do processo especial de prestação de contas para a liquidação de uma dívida que, sendo da responsabilidade do Réu, tem de ser retirada da sua meação nos bens comuns, não pode ser feita nesta sede.” [1]
Sob a epígrafe “compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal”, preceitua o nº 1 do art.º 1697º do Código Civil (CC): Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.
Efetivamente, discute-se na doutrina e jurisprudência a diferença entre ambos esses tipos de créditos, sendo consensual a ideia de que os créditos compensatórios se reportam à transferência de dinheiros entre o património próprio de cada um dos cônjuges e o património comum, enquanto que os créditos entre cônjuges seriam os derivados de outros negócios jurídicos.
«Estes créditos [entre cônjuges] nascem de factos específicos que não se relacionam com o curso normal das transferências de valores entre patrimónios, com a tal conta-corrente de financiamentos que os créditos de compensação pretendem encerrar com justiça. Esses créditos são, neste sentido, autónomos e excecionais. (…) Parece preferível designar por compensações, pura e simplesmente, todas as operações que visem restabelecer um desequilíbrio entre patrimónios que se operou para satisfazer certos interesses – o interesse dos credores, o interesse de qualificar um bem como próprio apesar de se ter usado dinheiro comum na sua aquisição, etc. todas estas operações seriam compensações, embora a lei estabeleça regimes diferentes para a sua efetivação, como no art.º 1697º CCiv. Reservar-se-ia a expressão “créditos entre cônjuges” para designar os vínculos nascidos por outras razões – negócios jurídicos entre cônjuges, responsabilidade civil entre eles.» [2]
«A compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime de comunhão. A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra. (…)
Por definição, uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre os patrimónios próprios, haverá um crédito entre cônjuges, e não uma compensação. Tal distinção releva, na medida em que o regime jurídico é diferente sobretudo ao nível do seu cálculo, avaliação e exigibilidade, estando as compensações sujeitas a um regime particular, ao passo que os créditos entre cônjuges submetem-se ao regime geral do Direito das Obrigações.» [3]
Ou seja, resulta daqui claramente que a denominada técnica das compensações tem um âmbito muito específico: trata-se de um mecanismo de correção (a operar quando o casamento termina por divórcio) da disparidade que tenha existido na contribuição dos cônjuges, durante o casamento, a efetuar em sede de partilha. [4]
«De facto, o art.º 1697º, n.ºs 1 e 2, refere expressamente o “momento da partilha”. As razões da proibição da partilha dos bens comuns antes de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges prendem-se com a ideia da proteção de um património comum especialmente afetado às necessidades da vida familiar. Têm a ver, além disso, com a própria natureza deste património comum, regulado pela lei como um património coletivo, tendo os cônjuges apenas direito a uma meação, em regra, só concretizável após a dissolução do casamento. Faz sentido, portanto, que a liquidação da comunhão ocorra somente no momento da dissolução da mesma e que só nessa altura se concretize o direito de cada um dos cônjuges sobre os bens que fazem parte da comunhão.
Com efeito, é na natureza jurídica do património comum que, para nós, reside o fundamento do diferimento das compensações para o momento da partilha. Entendendo o património comum como um património de afetação especial, como um património coletivo, de mão comum não pode permitir-se a exigibilidade das compensações no decurso da comunhão, ainda que tal solução eliminasse os problemas de atualização dos valores que a exigibilidade diferida depara.
A não exigibilidade imediata encontra o seu fundamento na própria natureza jurídica da comunhão. Por isso, só nos regimes de comunhão, onde existem verdadeiras compensações stricto sensu, estas se diferem para o momento da liquidação e partilha.» [5]
Sucede que nos presentes autos, a prestação de contas que se pretende concretizar, as transferências de dinheiros entre os patrimónios, os movimentos de receitas-despesas, não ocorreram durante o casamento, mas já após a sua dissolução, reportando-se a um período em que tinham terminado as relações patrimoniais entre os cônjuges (art.º 1688º do CC).
E esta nuance faz toda a diferença na solução jurídica do caso.
Aqui estamos no período transitório entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal.
Ora, no que toca a esse período, por já não existir comunhão de vida, deixa de se justificar o regime das relações patrimoniais conjugais e o recurso à técnica das compensações.
Os Autores que vimos referindo estão de acordo nesse ponto, divergindo apenas sobre a qualificação da natureza jurídica dessa indivisão pós-comunhão: (compropriedade, universalidade em titularidade indivisa, etc.).
«Outro problema que aqui pretendemos analisar é o de saber como regular as dívidas contraídas entre o momento da dissolução do regime de bens e a efetiva partilha do mesmo, ou seja, continuarão a aplicar-se as regras do regime de bens (muito embora o casamento tenha já sido dissolvido) ou aplicar-se-ão as regras gerais de qualquer indivisão como se não tivesse existido qualquer regime de bens entre os cônjuges. (…)
Pelas dívidas já contraídas (art. 1690.º, n.º 2) será de aplicar o regime da responsabilidade por dívidas do casal já analisado. As dívidas a contrair depois da dissolução não deverão sujeitar-se a tal regime que apenas regula as relações patrimoniais entre cônjuges e não entre ex-cônjuges. Então como regulá-las? (…)
A indivisão que permanece entre a dissolução do regime de bens e a partilha dos bens comuns tem uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal. (…)
Como referimos, as regras da responsabilidade por dívidas regem as relações entre cônjuges e não entre ex-cônjuges. (…)
De facto, ainda que os ex-cônjuges não possam dispor livremente dos bens comuns depois da dissolução do casamento mas antes da partilha da comunhão, pode qualquer um deles dispor dos seus bens próprios desde a propositura da ação (altura em que os efeitos se produzem entre os cônjuges – art.º 1689.º). O que significa que deixa de aplicar-se as regras da administração e disposição dos bens do casal, mantendo-se apenas em relação aos bens comuns pela ainda existência de um património comum. (…)
Não é esse o nosso problema: aqui a questão é a das dívidas contraídas depois da dissolução e antes da liquidação e partilha da comunhão. (…)
Caso contrário, se a dívida apenas surgiu depois da propositura da ação, a dívida será própria do cônjuge que a contraiu, não se tratando já de uma compensação mas de créditos entre cônjuges. De facto, se a dívida foi contraída pela requerida depois da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, aquela será própria desta. Se o requerente a pagou surge um crédito entre os cônjuges que, nada tendo que ver com o património comum, não integra obviamente o passivo da relação de bens. Portanto, a confusão da Relação de Lisboa pode levar a resultados injustos pela confusão entre compensações e créditos. Com efeito, se se trata efetivamente de uma compensação, o pagamento efetuado pelo requerido depois da propositura da ação, mas necessariamente por dívida contraída no decurso da comunhão, deve integrar o passivo da relação de bens e não ser objeto de ação autónoma de prestação de contas (ou de enriquecimento sem causa), solução apenas defensável se há créditos entre cônjuges por pagamento de dívidas próprias.» [6] (destaques nossos)
Assim sendo, dado que as contas que aqui se pretende apresentar se reportam ao período pós-divórcio/separação de facto, estamos perante um crédito entre cônjuges, não sujeito ao regime dos créditos de compensação previsto no art.º 1697º do CC, nem ao diferimento de exigibilidade aí consignado para o momento da partilha.

Mas, ainda que se entendesse estarmos perante um crédito de compensação, consideramos que não existiria obstáculo à presente prestação de contas.
Na verdade, o problema da exigibilidade do crédito apenas no momento da partilha em nada colide com a prestação das contas, tendo-se confundido uma questão substantiva com outra de índole processual.
A Autora efetuou 2 pedidos: que as contas que prestou sejam consideradas válidas e aprovadas; e que o Réu seja condenado a pagar-lhe o saldo que se verifica a seu favor.
Sucede que, como expressamente resulta do art.º 941º do CPC, a “condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se” não é obrigatória no processo de prestação de contas, tratando-se antes de uma questão eventual, não é considerado essencial ao objeto desse processo especial.
Então, tendo esse pedido sido feito, nada impede que se julgue a parte atinente às contas, litígio que divide as partes e pode ficar desde já decidido.
Quanto ao pedido de condenação no saldo, duas opções se mostrariam abertas, conforme a perspetiva: ou a improcedência desse pedido, com fundamento no art.º 1697º do CC; ou a condenação nos termos do art.º 610º do CPC, ou seja, o pagamento a efetuar no momento da partilha.
A não ser assim, iríamos chegar a uma solução idêntica, mas com muito mais delongas temporais, repetição de processos e maiores custos para as partes. Estando as partes em litígio, diz-nos a experiência que essa questão das contas tem toda a virtualidade de vir a ser suscitada no inventário, obrigando a ser então aí proposta a ação de prestação de contas para se poder operar a partilha.
«III – Sendo caso de a prestação de contas preceder o processo de inventário, devem os autos daquela ser apensados ao deste, logo que interposto, e nos termos do artigo 211º, nº 2, do CPC.» [7]

5.2. Da obrigação de prestação de contas por um ex-cônjuge
Vinga aqui a mesma linha de argumentação que qualquer dos cônjuges pode praticar atos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal.
Já a dispensa de prestar contas consignada no art.º 1681º do CC só existe na pendência do casamento. Dissolvido este e cessadas as relações patrimoniais conjugais, passa a vigorar o regime normal de quem administra bens alheios.
Essa mesma diferenciação vem sendo feita na jurisprudência:
«II – O cônjuge administrador dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge está isento da obrigação de prestar contas da sua administração.
III – Após a dissolução do casamento por divórcio, o ex-cônjuge que detenha a posse de bens comuns e deles colha os seus frutos ou utilidades é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge desde a data da propositura da ação de divórcio.» – acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de 21/05/2020, processo nº 1852/19.6T8OER.L1-2, Relator Nelson Borges Carneiro.
«Havendo necessidade de prestação de contas pelo cônjuge que administre bens comuns, tal só poderá ser requerido pelo outro após a dissolução do casamento, uma vez que na pendência da sociedade conjugal não há lugar a tal procedimento.
O cabeça de casal, em inventário subsequente a divórcio para separação de meações, está sujeito à obrigação de, anualmente, prestar contas da sua administração, já que a dissolução do matrimónio produz vários efeitos, nomeadamente patrimoniais, os quais retroagem à data da propositura da ação de divórcio.» – acórdão do TRL, de 05/06/2018, processo nº 503/14.0TMFUN-D.L1-7, Relator José Capacete.
«1 - Nos termos do art. 1681 nº 1 do CCivil, o cônjuge administrador só tem de prestar contas da administração que realize dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge, depois de dissolvido o casamento ou da separação de pessoas e bens.
a) - Nascendo a obrigação de prestação de contas a partir do decretamento do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, a mesma retroage os seus efeitos à data da entrada em juízo do requerimento apresentado nesse mesmo processo, conforme resulta do disposto no artigo 1795º-A do Código Civil, que remete para o artigo 1789 do CCivil.» – acórdão do STJ, de 08/04/2021, processo nº 5577/18.1T8LSB.L2.S1, Relator Manuel Capelo.
«IV. No caso, não consta da sentença de divórcio a antecipação dos efeitos patrimoniais reportados à data da separação de facto entre os cônjuges, nos termos do nº 2 do art. 1789º do CC, de modo que a prestação de contas referentes à administração de bem comum do casal apenas pode abarcar o período posterior à data da instauração da ação de divórcio.» – acórdão do STJ, de 11/04/2019, processo nº 3185/12.0YXLSB-F.L1.S1, Relator Abrantes Geraldes.
«I - Dissolvido o casamento por divórcio, o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os seus frutos ou utilidades é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde data da propositura da ação de divórcio.» – acórdão do STJ, de 25/03/2004, processo nº 04A364, Relator Azevedo Ramos.
«V - A situação de um dos ex-cônjuges deter, após a dissolução do casamento, a posse e a administração de bens comuns ou compropriedade de ambos é suscetível de gerar a obrigação de prestar contas ao outro cônjuge, pelos frutos (rendas, juros) ou utilidades que deles colher.» – acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 10/01/2022, processo nº 194/19.1T8VGS.P1, Relatora Eugénia Cunha.
«VI - Essa dispensa da obrigação de prestação de contas vigora durante a constância do casamento, até ao trânsito em julgado da sentença que decretar o divórcio.
VII - Só após a dissolução do casamento pelo divórcio, o ex-cônjuge administrador é obrigado a prestar contas ao outro, desde a data da propositura da acção ou da data da cessação da coabitação que for declarada na sentença que o decretar, transitada em julgado.» – acórdão do TRP, de 24/01/2017, processo nº 2832/14.3TBVNG.P2, Relator Fernando Samões.
«I - A dispensa da obrigação de prestar contas pelo Réu administrador no que respeita aos rendimentos dos bens alheios e simultaneamente próprios de cada um dos cônjuges, vigora durante a constância do casamento a até ao trânsito em julgado da sentença que decretar o divórcio.
II - Dissolvido o casamento pelo divórcio, o ex-cônjuge administrador é obrigado a prestar contas ao outro cônjuge desde a data da propositura da acção, retroagindo-se, a esta data, os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução do casamento, ou da data em que for declarada cessada a coabitação.» – acórdão do TRP, de 03/07/2014, processo nº 2063/12.7TJPRT.P1, Relatora Teresa Santos.
«II - Dissolvido o casamento por divórcio, o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os seus frutos ou utilidades é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde a data da propositura da ação de divórcio (art. 1789º, n.º 1, do Código Civil), já que, para efeitos patrimoniais, o cônjuge é havido como divorciado a partir daquela data.» – acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30/04/2022, processo nº 624/09.0TMBRG-C.G1, Relator Alcides Rodrigues.
Assim, também por aqui não vislumbramos qualquer impedimento ao prosseguimento da ação.

5.3. Do processo de prestação de contas e da (im)possibilidade de nele se conhecer da questão controvertida bem comum/bem próprio
Num segundo argumento, considerou-se na sentença recorrida que é controvertida nos autos a natureza comum do imóvel que gerou as despesas e as receitas que a Autora vem espontaneamente apresentar; escalpelizando-se se a questão da natureza comum, ou própria, do imóvel poderia ser tratada em sede de processo de prestação de contas, concluiu-se que não. A discussão sobre a natureza de bem comum ou bem próprio do imóvel constituiria uma “questão prévia”, que extravasa o âmbito dum processo de prestação de contas, antes competindo a “um processo de inventário ou até de uma ação de processo comum”.
Efetivamente, a Autora alegou ter sido casada com o Réu, sob o regime de comunhão de adquiridos, casamento esse que foi dissolvido por divórcio em 07/07/2015; Autora e Réu estavam separados desde 01/06/2014 e até ao momento não efetuaram partilha dos bens comuns, do qual faz parte o imóvel que era a residência familiar e no qual a Autora se encontra agora a viver com os filhos.
Na contestação, o Réu impugnou essa natureza comum, invocando que o imóvel foi comprado com dinheiros próprios da Autora (advindos da indemnização por expropriação de um imóvel de que era proprietária no estado de solteira), tratando-se assim de um bem próprio.
Notificada para responder, a Autora impugnou essa versão e mais invocou que, o imóvel é comum, não por força do regime de bens que vigorou no casamento, mas por força da sua aquisição titulada, já que o imóvel foi adquirido por ambos, outorgando escritura pública de compra e venda.
Está, pois, em causa, a natureza de bem comum, ou bem próprio, do imóvel.
Iniciando então a nossa abordagem, relembram-se os ensinamentos do mestre Alberto dos Reis: «(…), é necessário não confundir a questão de forma com a questão de fundo, a questão de direito substancial com a de direito processual.
A questão de direito substancial desenha-se assim: tem o réu a obrigação de prestar contas (contas exigidas), está o autor sujeito à obrigação de prestar contas (contas espontâneas?).
A questão de direito processual põe-se nestes termos: admitindo que existe a obrigação de prestar contas, qual o processo a empregar para a prestação? (…)
Se o réu está ou não obrigado a prestar contas, é questão de direito substancial, e portanto de mérito da causa; é questão a decidir segundo as disposições da lei civil (,,,)».[8]
Como resulta dos artigos 941º e seguintes do CPC, o processo de prestação de contas pode assumir duas modalidades: a espontânea e a forçada ou provocada.
No caso, trata-se de uma prestação de contas espontânea por quem se arroga o dever de as prestar. Porém, de acordo com o nº 2 do art.º 946º do CPC, a prestação espontânea segue os mesmos termos da prestação forçada “devendo considerar-se referido ao autor o que aí se estabelece quanto ao réu, e inversamente”. (linha que aqui deverá ser atendida, no que se segue)
Extrai-se ainda deste regime processual que o processo para prestação provocada de contas pode comportar duas fases distintas:
Ø Numa primeira fase, e se contestada a obrigação de prestar contas, trata-se de apurar apenas se essa obrigação existe ou não.
Ø Numa segunda fase, e pressupondo-se que na primeira fase se concluiu pela positiva, é que irá ter lugar a prestação de contas propriamente dita.
Naturalmente que só haverá obrigação de prestar contas se estivermos perante um bem comum. Assim, será essencial decidir essa questão em primeiro lugar.
Trata-se de uma questão de direito substantivo, mas que nada impede que seja aqui conhecida pois que, processualmente se permite que, se contestada a obrigação de prestar contas, se deve apurar se essa obrigação existe ou não (art.º 942º nº 3 do CPC).
Trata-se daquilo que os Autores chamam de questão prévia e prejudicial.
«O réu pode dizer (…) não se constituiu entre mim e o autor a relação jurídica que ele invoca (…)
Como bem se compreende, tal alegação assume o caráter de questão prévia e prejudicial. Enquanto não for decidida não pode o processo avançar; e se for julgada em sentido favorável ao réu, a ação morre. (…)
Se o juiz o resolve a favor do autor, isto é, se decide que o réu está obrigado a prestar contas, o processo segue para o efeito de as contas serem prestadas;» [9]
E, como bem alerta este Autor, essa questão prévia pode envolver meras questões de direito, mas também questões de facto, a necessitar de julgamento com produção de prova.
Donde resulta que nada impede que aqui se discuta a natureza de bem próprio ou comum do imóvel.
Daí que não possamos concordar com a sentença recorrida, na parte em que considera que a discussão relativa à propriedade do bem administrado é questão própria “de um processo de inventário ou até de uma ação de processo comum”.
Oferece-se-nos exatamente a hipótese contrária, ou seja, resulta da experiência judiciária muito raros serem os casos em que se resolvem problemas de propriedade num inventário; com fundamento em complexidade da matéria de facto, o normal é serem as partes remetidas para os meios comuns.
Quanto ao processo comum, é problema que hoje não se põe, tendo-o o legislador resolvido na alteração ao CPC operada em 1995. [10] Como resulta do nº 3 do art.º 942º do CPC, “Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa”.
Assim, hoje o juiz depara-se com 2 hipóteses procedimentais para o conhecimento dessa questão prévia:
· considerando que a temática pode ser resolvida sumariamente, observa a via incidental prevista no art.º 294º e 295º do CPC;
· considerando a complexidade da matéria de facto e ponderando a melhor garantia dos direitos das partes, manda seguir o processo comum.
Donde, dizendo a lei claramente que a obrigação de prestar contas pode ser contestada [11] ─ abrindo-se então uma questão prévia que terá de ser decidida no processo de prestação de contas, seja por via incidental ou de processo comum ─, não haja necessidade de remeter/obrigar as partes a ir instaurar uma outra ação comum para obter decisão que aqui compete. A economia de meios e de custos assim o impõe, tendo sido esse o objetivo confessado do legislador nas alterações introduzidas em 1995: “abandonou-se a solução consistente na suspensão da instância e consequente remessa para os meios comuns, privilegiando-se a decisão no âmbito do próprio processo de prestação de contas, sem prejuízo do necessário rigor”.
Concluindo, a decisão recorrida não pode manter-se.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, no provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a sentença recorrida, ordenando o prosseguimento dos autos.

Custas do recurso a cargo do Réu, face ao decaimento.

Porto, 27 de outubro de 2022
Isabel Silva
João Venade
António Carneiro da Silva
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[1] Para melhor entendimento, deixa-se consignado que na decisão ora em crise se começou por conhecer da exceção de erro na forma de processo, que se julgou improcedente. Tal matéria não foi objeto de recurso.
[2] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 432-433.
[3] Cristina Dias, “Responsabilidade por dívidas e compensação entre patrimónios”, Revista Eletrónica de Direito, junho 2020 – n.º 2 (vol. 22), pág. 24, e nota 28, disponível em https://cije.up.pt/client/files/0000000001/2-cristina-dias_1606.pdf
[4] Esse mecanismo encontra-se bem explicitado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), de 08/11/2001, processo nº 4931/10.1TBLRA.C1, Relator Henrique Antunes, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «XIII - Na fase da liquidação da comunhão cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum. XIV - Uma vez apurada a existência de compensação a efetuar à comunhão, procede-se ao seu pagamento através da imputação do seu valor atualizado na meação do cônjuge devedor, que assim receberá menos nos bens comuns, ou, na falta destes, mediante bens próprios do cônjuge devedor de forma a completar a massa comum.»
[5] Cristina Dias, “Responsabilidade …”, pág. 25, nota 31.
[6] Cristina Dias, “DO REGIME DA RESPONSABILIDADE (PESSOAL E PATRIMONIAL) POR DÍVIDAS DOS CÔNJUGES (PROBLEMAS, CRÍTICAS E SUGESTÕES)”, tese de doutoramento, 2007, pág. 682 e seguintes, disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/8132
[7] Acórdão do TRL, de 18/01/2011, processo nº 431/06.2TMLSB-O.L1-7, Relator Luís Lameiras.
[8] Alberto dos Reis, “Processos Especiais”, vol. I, reimpressão, Coimbra Editora, 1982, pág. 305.
[9] Alberto dos Reis, obra citada, pág. 325. O Autor dá vários exemplos de situações concretas, comentando decisões judiciais, em que se teve/teria de ter decidido problemas da relação jurídica subjacente (cf. págs. 309 a 313).
No mesmo sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, “Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas”, 2ª edição, 2021, Almedina, pág. 184-185; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 2ª edição, 2022, Almedina, em anotação ao art.º 942º.
[10] Sobre as razões da opção legislativa, diz-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro: «A manutenção da prestação de contas como processo especial encontra justificação no princípio da economia processual e na especificidade dos fins de tal processo. Na verdade, comportando a prestação de contas uma fase essencialmente declarativa e uma fase de cariz executivo, a recondução à tramitação do processo comum poderia acarretar a necessidade de propositura de duas ações sucessivas, com os inerentes custos. (…)
Na linha do propósito de clarificação que inspira esta revisão, é de assinalar, em sede de processo especial de prestação de contas, a consagração expressa dos poderes de indagação oficiosa do tribunal, cujos poderes de direção são genericamente reforçados.
No tocante à contestação da obrigação de prestar contas, aduzida pelo réu, abandonou-se a solução consistente na suspensão da instância e consequente remessa para os meios comuns, privilegiando-se a decisão no âmbito do próprio processo de prestação de contas, sem prejuízo do necessário rigor. Assim, prevê-se que, na impossibilidade de a questão ser decidida de forma sumária, o juiz determine que se sigam os termos subsequentes do processo comum, o qual, recorde-se, está concebido de forma particularmente flexível, designadamente no tocante à possibilidade de o juiz adequar a tramitação a finalidades específicas.»
[11] Importando uma questão de direito substantivo, que pode abranger as várias áreas do Direito, como assinalam os Autores citados.