Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MOREIRA RAMOS | ||
Descritores: | ANTECEDENTES CRIMINAIS CRIME FISCAL CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP20121017425/10.3IDPRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 10/17/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC. PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A indagação dos antecedentes criminais só pode ser feita após a deliberação e votação sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa, e caso se vislumbre uma condenação. II - A notificação a que alude o art.º 105º, n.º 4, do RGIT não tem de conter nem as concretas quantias em dívida, nem o montante dos juros e eventuais coimas | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 425/10.3 IDPRT.P1 Tribunal da Relação do Porto (2ª Secção Criminal – 4ª Secção Judicial) Origem: Tribunal Judicial de V. N. de Gaia (4º Juízo Criminal) Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I – Relatório: No processo supra identificado, por sentença datada de 20/12/2011, depositada na mesma data, e no que ora importa salientar, decidiu-se: – condenar o arguido B….., como autor, sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, p. e p. pelo art.º 105º, nºs. 1, 2 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de três anos de prisão; – condenar a arguida “C…., L.da”, como autora, sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, p. e p. pelo art.º 105º, nºs. 1, 2 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de quinhentos dias de multa, à taxa diária de quinze euros. Inconformados com a sobredita decisão, vieram os arguidos B…. e “C….., Lda.”, conjuntamente, interpor recurso da mesma nos termos constantes de fls. 471 a 503 dos autos, aqui tidos como especificados. Na motivação apresentada formularam as seguintes conclusões (transcrição): 1ª – A sentença Sub Júdice, julgou como provados os antecedentes criminais do arguido, e estribada neste segmento fáctico, retira consequências, plasmadas na ponderação e determinação da pena aplicável ao arguido. 2ª – Por sua vez, a Acusação Pública deduzida pelo Ministério Público, omite qualquer menção aos antecedentes criminais do arguido ou à sua atividade criminosa, como circunstância agravante da prática do crime pelo que foi condenado. 3ª – Neste contexto, este dissenso entre Acusação e Sentença, no que a este facto respeita, impõe a verificação de alteração substancial dos factos. 4ª – Esta alteração substancial dos factos, não permite a prolação de sentença condenatória, como sucedeu in casu. 5ª – Logo, a sentença, aqui em juízo, padece de vício de nulidade, razão pela qual deve ser revogada. 6ª – A previsão legal consagrado no Art. 105.º N.º 4 AL. A E B estabelece condições objetivas de punibilidade, do crime de abuso de confiança fiscal. 7ª – Na verdade e concretamente a alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redação introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma condição objetiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. 8ª – Em consequência, tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT). 9ª – esta notificação constitui A condição objetiva de punibilidade, pois constitui um elemento da norma, situado fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a ação antijurídica tenha consequências penais. 10ª – A introdução legislativa destas condições objetivas de punibilidade visa duas funções: uma função de delimitação ou da redução da relevância penal de determinados comportamentos e, simultaneamente, uma função de garantia ligada ao respeito pelo princípio da legalidade. 11ª – O Tribunal julgou como provado que o Serviço de Finanças procedeu à notificação do arguido para no prazo de 30 dias (fls. 85) proceder ao pagamento do imposto em causa. 12ª – Sucede que, dissecando este documento, verificamos que a notificação efetuada pelo Serviço de Finanças não liquida o montante de juros em dívida. 13ª – Ou seja, o Arguido desconhecia o montante global em dívida tributária. 14ª – A subtração desta informação, impede que o arguido se encontre devidamente habilitado para efetuar o pagamento do tributo em causa. 15ª – Os elementos teleológico e histórico desta norma apontam no sentido de uma interpretação segundo a qual o legislador terá pretendido descriminalizar o facto nos casos em que, tendo havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, este vem a ser efetuado após intimação da Administração para que o “indivíduo” regularize a sua situação tributária. 16ª – Pretendeu-se alcançar tal objetivo fazendo surgir para Administração Fiscal a obrigação de notificar o contribuinte em mora (e não em falta de declaração) e para este a condição do pagamento do montante em falta como condição de não acionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal. 17ª – O legislador concede ao contribuinte a possibilidade de se eximir da punição pelo pagamento. 18ª – Contudo, a notificação em causa nos presentes autos não respeita este fim, na medida em que dela não consta a correta liquidação do tributo em causa. 19ª – Esta incompletude implica a não verificação de condição objetiva de punibilidade e, como tal, não pode o arguido ser condenado pela prática deste crime. 20ª – A sentença aqui em apreço aplicou o art.º 105.º do RGIT para condenar cada um dos arguidos, como autores materiais, de um crime de abuso de confiança fiscal. 21ª – Esta norma penal afasta-se da norma equivalente existente na última versão do RJIFNA, redação introduzida pelo Dec-lei n.º 394/93 de 24/11 ao dispensar a apropriação como elemento típico. 22ª – Ao dispensar a apropriação como elemento distintivo que até à sua entrada em vigor marcava a fronteira entre o ilícito criminal e o ilícito contraordenacional, o RGIT não só afasta o crime de abuso de confiança do previsto na lei comum como faz sobrepor a uma mesma conduta tanto a comissão de um crime (art. 105.º) como a de uma contraordenação (art. 114.º), ainda que aquele só seja punível decorridos mais de 90 dias a contar da data em que a prestação deveria ser entregue. 23ª – A redação do art. 105.°, n.° 1 e, 4.° do RGIT eleva a dignidade penal o que anteriormente qualifica como de mero ilícito de natureza administrativa. 24ª – Deste modo e à semelhança do que sucede com o tipo de ilícito previsto no referido art. 105.°, no 1, do RGIT, também o art. 114.° do RGIT estabelece como preponderante o elemento de “não entrega” no âmbito da consumação deste ilícito de mera ordenação social. 25ª – Deste modo e também à semelhança do que sucede com o tipo criminal, no âmbito desta contraordenação não se pode deixar de entender que a mesma possui a natureza de um ilícito omissivo puro, no que respeita aos termos da respetiva consumação. 26ª – O único elemento distintivo relevante, reporta-se ao referido prazo de 90 dias, pois a lei considera que a “não entrega” da prestação tributária decorrido este prazo passa a preencher o tipo de crime previsto no referido art. 105.°, n° 1. 27ª – Analisando os preceitos constitucionais plasmados nos rts. 18.°, n.° 2 e 13.° da Constituição da República Portuguesa e compulsados os elementos típicos dos citados arts. 105.°, n° 1 e 114.°, n° 1, do RGIT, efetivamente nada permite distinguir as correspondentes normas legais, designadamente em termos do elemento axiológico-socialmente relevante, que justifica a previsão legal constante daquele art. 105.°, n° 1, conferindo-lhe dignidade penal. 28ª – A identidade e similitude entre o tipo criminal previsto no art. 105.° do, e a facti species contraordenacional, constante do art. 1 14.°, e a indistinção do bem jurídico tutelado, por ambos os normativos, fere de inconstitucionalidade material o art. 105.º do RGIT. 29ª – A sentença violou a redação do art. 105.º n.º 4 do RGIT. O Ministério Público veio responder nos termos que constam de fls. 547 a 551 dos autos, aqui tidos como reproduzidos, concluindo no sentido de que deveria negar-se provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida. O recurso foi regularmente admitido[1] (cfr. fls.609 dos autos). Nesta instância, a Ex.ma PGA emitiu o parecer junto a fls. 560 dos autos, aqui tido como renovado, através do qual subscreveu a anotada resposta. No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada foi aduzido. Após exame preliminar, foram colhidos os vistos e realizada a conferência, cumprindo agora decidir, pois que nada obsta a tal. II – FUNDAMENTAÇÃO: a) a decisão recorrida: No que ora importa destacar, a sentença recorrida é do teor seguinte (transcrição): Discutida a causa, resultou provada a seguinte matéria de facto: A arguida “C…. Lda”, contribuinte nº 501.189.416, com sede Rua …, Apartado …, …., nesta comarca de Vila Nova de Gaia é uma sociedade por quotas que tem como objeto social a execução de empreitadas, obras públicas e exploração de pedreiras efetuando, por isso, inúmeras transações sujeitas a tributação. Na sua qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais mostra-se enquadrada para efeitos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade mensal. O arguido B…. (doravante B1) é sócio gerente daquela sociedade desde a sua constituição até aos presentes dias, pelo que foi sempre, de facto e de direito, o seu legal representante e responsável pela sua gestão e administração. Dirigia, por isso, também no ano de 2005, toda atividade da sociedade arguida competindo-lhe, em exclusivo, tomar todas as decisões relativas à gestão comercial e financeira daquela, incluindo as obrigações para com o Fisco. Ora, com o início da supra referida atividade devidamente declarado às Finanças, a sociedade arguida vinculou-se às inerentes obrigações fiscais, nomeadamente, às de entregar à Administração Tributária as quantias liquidadas e recebidas dos clientes a título de IVA nas transações efetuadas. De tais obrigações fiscais tinha perfeito conhecimento o arguido B1..... que bem sabia que, por via do exercício daquela atividade e de acordo com as normas vigentes em matéria tributária, estava legalmente obrigado a entregar ao Estado/Fazenda Nacional, nos prazos fixados na lei, as quantias liquidadas e recebidas a título de tal imposto (IVA). Todavia, por alturas de fevereiro de 2005 e à revelia de todos os imperativos legais, decidiu abster-se de entregar à Administração Tributária as quantias recebidas dos clientes a título de IVA e delas se apropriar, montantes que sabia pertencerem ao Estado e que a este deveria entregar nos prazos fixados na lei. E foi assim que no período entre fevereiro e dezembro de 2005 (inclusive), na sua qualidade de legal representante da sociedade arguida, no desenvolvimento da atividade desta e, pese embora tenha enviado aos Serviços de Administração do IVA as competentes declarações periódicas de IVA a que estava obrigado, não as fez acompanhar dos correspondentes meios de pagamento do imposto nelas apurado e, ao invés, os integrou na sociedade arguida, utilizando tais montantes de IVA, na quantia global de € 157.790,01 (cento e cinquenta e sete mil, setecentos e noventa euros e um cêntimo), como se fossem da sociedade arguida. Com efeito, durante o ano de 2005 e nos períodos abaixo referidos, o arguido B1....., como legal representante da sociedade arguida, no exercício da atividade daquela e em seu nome e no seu interesse, efetuou transações sobre as quais liquidou IVA, que recebeu dos clientes da arguida, nos meses e nos montantes a seguir referidos mas que, todavia, não entregou à Administração Tributária nos prazos legais, os integrando na sociedade arguida. Fevereiro de 2005 € 50.892,34 Abril de 2005 € 19.636,54 Maio de 2005 € 25.369,71 Novembro 2005 € 19.880,49 Dezembro de 2005 € 42.010,93 TOTAL € 157,790,01 Tais montantes de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), que perfazem a quantia total de € 157,790,01 (cento e cinquenta e sete mil, setecentos e noventa euros e um cêntimos) foram, efetivamente, recebidos dos clientes da sociedade arguida (nomeadamente das firmas “D….., Lda”, E…. Lda”, F…., Lda”, “G…., Lda”, “H….” etc”). O arguido B1..... sabia que tais importâncias que recebeu dos clientes da sociedade arguida a título de IVA, não lhe pertenciam a si ou àquela, mas sim ao Estado, e que as deveria entregar, simultaneamente com as declarações periódicas, nas quais apurou sempre imposto a entregar ao Estado, nos competentes Serviços de Cobrança do IVA, ou noutro local autorizado, dentro dos respetivos prazos, bem sabendo, pois, que as deveria ter entregue até ao dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam as respetivas operações. Não obstante, aproveitando-se das facilidades que lhe advinham do exercício das funções de gerente que desempenhava na sociedade arguida e agindo com o propósito de as integrar no acervo patrimonial daquela, o arguido não entregou as aludidas quantias de IVA em qualquer um dos Serviços de Administração do IVA, ou noutro local autorizado, dentro dos respetivos prazos legais de entrega, nem nos 90 dias seguintes ao termo daqueles prazos, nem no prazo de 30 (trinta) dias após ter sido notificado para o efeito (fls. 85) e, ao invés, fazendo-as da sociedade arguida, diluindo-as nos meios financeiros daquela. O arguido B1..... estava perfeitamente consciente das obrigações que sobre ele impendiam de entregar nos Serviços de Administração do IVA, simultaneamente com as respetivas declarações periódicas, os montantes daquele imposto. Atuou por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, atuando em nome e no interesse coletivo daquela e sob um quadro volitivo único e subsistente que se propagou às sucessivas e contínuas omissões prestativas e, ao não entregar aqueles montantes recebidos a título de IVA, fê-lo com o propósito conseguido de obter proveitos económicos indevidos, a que não tinha qualquer direito e que consistiram naquelas quantias de IVA, que não foram por si suportadas, mas sim cobradas aos clientes da sociedade arguida. Agiu ainda com o intuito de causar o correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou pois, ao não entregar à Administração Fiscal aqueles montantes de IVA diminuiu as receitas tributárias e, por via disso, lesou o erário público da Fazenda Nacional no supradito montante total de € 157,790,01 (cento e cinquenta e sete mil, setecentos e noventa euros e um cêntimos) correspondente ao IVA que não entrou nos cofres do Estado (e de forma indireta a generalidade dos contribuintes cumpridores), ofendendo, desse modo, o regular funcionamento do sistema fiscal e, consequentemente, os interesses de ordem pública que o mesmo deve satisfazer, impedindo ainda a realização da justiça fiscal. O arguido B1..... agiu, pois, deliberada, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. A dita sociedade já não se encontra a laborar. A dita sociedade foi declarada insolvente por sentença registada em 23-12-2010, estando em fase de liquidação. Não são conhecidos antecedentes criminais à sociedade arguida. O arguido é industrial, sendo gerente de outra sociedade, “I….., L.da”, com o mesmo objeto de atividade. Vive em casa de familiares. É casado, sendo que a sua mulher está reformada. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 4228/96.8TAPRT, do 4.º juízo do Tribunal Judicial de Penafiel, o arguido foi em 26-03-2001 condenado na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de Esc. 1 000$00 (mil escudos), pela prática em 22-04-1996 de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. b), do C.P. . No âmbito do Processo Comum Singular n.º 3590/96.7JAPRT, da 1.ª secção, do 1.º juízo criminal do Porto, o arguido foi em 11-12-2001 condenado na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de Esc. 400$00 (quatrocentos escudos), pela prática em 26-09-1995 de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.º 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de novembro. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 761/99.8TAVNG, do 4.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 13-01-2003 condenado na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros), pela prática em 30-10-1998 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos arts. 24.º, n.º 1 e n.º 5 e 27.º-B do RJIFNA, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 01-07-2003. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 1037/03.3TAVNG, do 3.º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 26-11-2003 condenado na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 7 (sete euros), pela prática em 09-05-2002 de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º do C.P, já declarada extinta. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 74/99.5IDPRT, do 2.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 21-06-2004 condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 (três) anos, com a condição de pagar ao Estado a quantia e € 172 316, 93 e legais acréscimos, pela prática em abril de 1996 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 5, do RGIT, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 06-07-2004. Posteriormente, foi requerida a abertura da audiência ao abrigo do disposto no art.º 371.º-A do C.P.P., tendo-se sido aplicada uma pena, em 29-04-2009, de 15 (quinze) meses de prisão, suspensa na sua execução, com a condição de pagar ao Estado a quantia e € 25 631, 80 e legais acréscimos, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 19-05-2009. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 144/01.1IDPRT, do 4.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 04-04-2006 condenado na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, a condição de pagar ao Estado a quantia e € 101 600, 98 e legais acréscimos, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 24.º do RJIFNA, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 27-06-2006. Posteriormente, foi requerida a abertura da audiência ao abrigo do disposto no art.º 371.º-A do C.P.P., tendo-se sido aplicada uma pena, em 28-05-2010, de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução, com a condição de pagar ao Estado as prestações tributárias e legais acréscimos, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 17-06-2010. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 113/02.4IDPRT, do 2.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 07-11-2006 condenado na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos com a condição de pagar ao Estado a quantia e € 1 313 521, 32 e legais acréscimos, pela prática em 01-02-1999 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 24.º do RJIFNA, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 22-11-2006. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 4192/04.1TAVNG, do 2.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 23-11-2006 condenado na pena de 2 (dois) anos, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, com a condição de pagar à Segurança Social a quantia de € 290 992, 64 e legais acréscimos, pela prática em 01-07-2000 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo art.º 107.º do RGIT, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 19-12-2006. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 1768/07.9TAVNG, do 1.º juízo do Tribunal Judicial de Valongo, o arguido foi em 22-06-2008 condenado na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, pela prática de 15-09-2008 de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º do C.P., tendo a sentença transitada em julgado em 15-09-2008. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 78/06.3IDPRT, do 3.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 12-11-2008 condenado na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, com a condição de pagar ao Estado a quantia e € 716 737, 50 e legais acréscimos, pela prática em 01-01-2003 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105 do RGIT, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 19-01-2009. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 295/07.9GCOVR, do juízo de instância criminal de Ovar (juiz 2), da comarca do Baixo Vouga, o arguido foi em 17-11-2008 condenado na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 50 (cinquenta euros), pela prática em 02-06-2007 de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 2, do C.P., já declarada extinta. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 388/08.5IDPRT, do 3.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 20-01-2011 condenado na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática em 2007 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 5, do RGIT, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 21-02-2011. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 15222/09.0IDPRT, do 2.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, o arguido foi em 07-06-2011 condenado na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, substituída por 480 (quatrocentas e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática em 15-08-2006 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º, n.º 1 a 3 e n.º 5, do RIGT, tendo a respetiva sentença transitado em julgado em 27-06-2011. * Com interesse para a decisão e relativos ao período considerado na acusação, não se provaram quaisquer factos alegados para além ou em contradição com os que foram dados como assentes, nomeadamente, que o arguido se tenha apropriado para si próprio das quantias em causa. * O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada da prova produzida, designadamente, nas declarações do arguido, que de forma livre, espontânea, sem coação, integral e sem reservas admitiu os factos demonstrados, dando conta das suas condições socioeconómicas. Foi ainda valorado o acervo documental junto aos autos, nomeadamente as declarações enviadas pela própria sociedade arguida, os balancetes gerais e acumulados, o extrato de conta de clientes e a certidão permanente referente à dita sociedade. Quanto aos antecedentes criminais foram valorados os C.R.C. juntos aos autos. *** Sendo esta a matéria de facto provada, cumpre efetuar o seu enquadramento jurídico-penal. Os crimes fiscais visam proteger o património fiscal do Estado e os valores de verdade e lealdade fiscal (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da, in “O crime de fraude fiscal no novo Direito Penal Tributário Português”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6 (1996), n.º 1, pág. 86 e segs.). Na verdade, os crimes fiscais são estruturados em torno do perigo ou do dano, referentes às receitas fiscais do Estado, causados pela violação de deveres de colaboração do contribuinte respeitantes à obrigação tributária principal que foram instituídos para proteger o erário público (cfr. DIAS, Augusto Silva, in “Crimes e contraordenações fiscais”, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 445 e segs.). Face ao disposto no art.º 106.º da C.R.Portuguesa constata-se que o dever de pagar impostos assume a natureza de um dever de cidadania. Na verdade, constitui um dever ético de todo o cidadão contribuir para a formação de um património público que torne possível a realização das políticas distributivas, corretoras de desigualdades e assimetrias sociais, tendo em vista a constituição de uma sociedade mais justa e melhor ordenada. Comete o crime de abuso de confiança fiscal quem, não entregar à Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação deduzida nos termos da lei (cfr. art.º 105.º, n.º 1, do RGIT), prestação tributária que tenha sido recebida (cfr. art.º 105.º, n.º 2, do RGIT), prestação parafiscal que possa ser entregue autonomamente (cfr. art.º 105.º, n.º 3, do RGIT), que estava legalmente obrigado a entregar ou a liquidar, desde que decorram mais de 90 (noventa) dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e a prestação comunicada à Administração Tributária através da correspondente declaração, não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 (trinta) dias após notificação para o efeito. Enquanto no abuso de confiança comum do art.º 205.º do C.P. se exige a apropriação ilegítima da coisa móvel que tenha sido entregue ao agente do crime por título não translativo da propriedade, o abuso de confiança fiscal basta-se com a não entrega total ou parcial de prestação tributária ou parafiscal. Filia-se o dito crime na figura de abuso de confiança criado pelo Código Francês de 1791, e absorveu o essencial da doutrina sobre o abuso de confiança, designadamente a lição de Eduardo Correia (Ver. Dir. Est. Soc., VII, n.º 1, pág. 62), transposto para o C.P. e que se pode desenhar como a ilegítima apropriação de coisa móvel que foi entregue por título não translativo de propriedade. A não entrega total ou parcial da prestação tributária ou equiparada traduz-se num apropriar-se, num fazer sua coisa alheia. Mas diversamente do furto – em que a apropriação acompanha a posse ou detenção da coisa – aqui a apropriação sucede a essa posse ou detenção. Inicialmente o agente obtém, validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus. Então deixa de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer. Aqui a inversão do título resulta da não entrega a que o agente estava legalmente adstrito, elemento que releva ainda para a determinação do momento da consumação. Entende-se que, para o crime de abuso de confiança comum, que a inversão do título de posse, em princípio, surge com o ato de apropriação, na ideia de que o momento da consumação é o da negativa de restituição, ainda que verdadeiramente tenha sido outro, quando o agente, devidamente solicitado, se recusa a devolver a coisa possuída ou detida em nome alheio e não se determinou um ato material anterior iniludivelmente indicativo da arbitrária apropriação. No que se refere ao abuso de confiança fiscal esse momento deve ser situado, por força, do disposto no n.º 2, do art.º 5.º, do RGIT na “data em que termine o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários”, funcionando o mencionado decurso de 90 (noventa) dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação do n.º 4, como condição de punibilidade. O crime de abuso de confiança supõe uma entrega válida de coisa móvel, no caso de prestação tributária ou equiparada, entrega feita por título não translativo de propriedade (que não implique transferência de propriedade – cfr. art.º 1316 do C.C.) e que não se justifique a apropriação, antes se constituindo a obrigação de afetação a um uso ou fim determinado, ou de restituição, no caso de abuso de confiança fiscal na entrega à Administração Tributária. Para que se verifique este elemento basta que o agente esteja investido de um poder sobre a coisa que lhe dê a possibilidade de o desencaminhar ou dissipar, não sendo necessário um prévio ato material de entrega do objeto. Como elementos subjetivos, o crime exige o dolo, isto é, o conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo), por parte do agente, de não entregar à administração tributária, demonstrando com a sua execução, uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico penal (elemento emocional) (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa, in Direito Penal, Lições da cadeira de Direito Penal (3.º ano), 1996, pág. 268/9), verificando-se, deste modo, a chamada congruência entre o elemento subjetivo e os elementos objetivos do crime. Perscrutando a matéria de facto considerada assente constatamos que o arguido, nas datas referidas, no desenvolvimento da atividade que exercia, não entregou as ditas prestações à Administração Tributária, nem no período de 90 dias contados a partir da data em que o deveria ter feito, nem após os trinta dias da notificação que para o efeito lhe foi efetuada, fazendo-as da dita sociedade que representava, afetando-as ao exercício da atividade por esta levada a cabo. Ora, apurou-se que, num dos períodos considerados, a dita sociedade, através do arguido que agiu no interesse e em nome daquela, não entregou nos Cofres do Estado quantia que é superior a € 50 000. Ora, para efeitos do disposto nos números 1 a 6 do art.º 105.º do RGIT, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. Uma análise da redação deste preceito legal permite concluir que a qualificação do crime em apreço só ocorre quando de alguma declaração a apresentar à administração tributária deva constar um valor superior a € 50 000 ou, por outras palavras, no RGIT o valor global não entregue à administração fiscal, resultante da soma dos valores das diversas declarações, nunca pode ser tomado em consideração para o efeito da qualificação do crime de abuso de confiança fiscal, independentemente de se considerar verificada uma única resolução criminosa (cfr. Ac. da Rel. do Porto, de 27 de abril de 2005, com o número convencional JTRP00037994; Ac. Da Rel. Do Porto, de 26 de abril de 2006, com o número convencional JTRP00039098, todos in www.dgsi.pt). Ora, assim sendo, é imputável ao arguido a prática, como autor imediato e sob a forma consumada, de um de crime de abuso de confiança fiscal qualificado, p. e p. pelo art.º 105.º, n.º 1 e n.º 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias. Segundo o disposto no art.º 7.º, n.º 1, do RGIT, “as pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infrações previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse coletivo”. Ora, tendo-se apurado que o arguido B1..... era o gerente da sociedade arguida, e que atuou, nessa qualidade, em nome e no interesse desta, deve a sociedade arguida ser criminalmente responsabilizada, a tal não obstando o facto de o arguido ser também individualmente responsabilizado, face ao disposto no art.º 7.º, n.º 4, do RGIT, bem como o facto de aquela ter sido declarada insolvente, dado que mantém a personalidade jurídica (cfr. Ac. da Rel. do Porto, de 12 de setembro de 2007, com o n.º convencional JTRP00040535, in www.dgsi.pt). * Realizado pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar. O dito crime, quando o valor da prestação tributária for superior a € 50 000 (cinquenta mil euros), é punido com uma pena de prisão de um ano a cinco anos e, no caso das pessoas coletivas, com uma pena de multa de 240 a 1 200 dias de multa à razão diária de € 5 a € 5 000 (cfr. arts. 12.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, 15.º e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias). Nos termos dos arts. 71.º do C.P. e 13.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, a determinação da medida da pena tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo a função desempenhada por cada um destes critérios definida de acordo com a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico, sendo certo que deverá ser considerado, sempre que possível, o prejuízo sofrido pelo Estado. Deste modo, a prevenção geral de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar. Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva. Ora, dentro desses limites cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente. Assim, importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para exigências preventivas. Ora, não se poderá esquecer que o ilícito em causa, sobretudo pela frequência inquietante que atinge no nosso país e, em especial, na área desta comarca e à aparente convicção de uma certa impunidade que lhe está associada, gera na comunidade um forte sentimento demandando uma solene punição do agente a fim de ser recuperada a confiança na vigência e validade da norma violada. Milita contra o arguido o facto de a criminalidade em causa ser causadora de forte danosidade, a modalidade intensa de dolo, que se mostra direto e o valor global em causa. Milita ainda contra si o seu comportamento anterior e posterior aos factos aqui em apreço, funcionando os antecedentes criminais, pautados pela prática de crimes da mesma natureza, funcionam como índice de culpa mais grave. Por outro lado, o arguido continua a ser legal representante de uma outra sociedade com o mesmo objeto, havendo o perigo de continuação da atividade criminosa. Milita a seu favor a relativa autocensura de que deu conta ao confessar os factos, bem como a sua boa inserção. Tudo ponderado julgo adequado fixar ao arguido a pena de 3 (três) anos de prisão. A idade do arguido e o seu comportamento criminal anterior, pautado pela prática de crimes, muitos dos quais da mesma natureza ao aqui em causa, permitem concluir que a tutela dos bens jurídicos em causa, a estabilização das expectativas da comunidade na validade e vigência da norma violada e as exigências de socialização que o caso denota não se bastam com a ameaça da pena de prisão, sendo certo que o arguido já deu mostras de tal ser insuficiente e inadequado para o dissuadir da prática futura de crimes semelhantes, pois a sua aplicação no passado pela prática do mesmo crime não o impediu de voltar a cometer o mesmo crime. Assim, optar por uma pena não detentiva seria criar no arguido um mau sentimento de impunidade (cfr. art.º 50.º do C.P.). No que concerne à sociedade arguida, atenta a sua situação atual, julgo adequado fixar a multa de 500 (quinhentos) dias de multa à taxa diária de € 15 (quinze euros). * b) apreciação do mérito:Antes de mais, convirá recordar que, conforme jurisprudência pacífica[2], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, e apenas relativamente às sentenças/acórdãos, da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal[3]. Anote-se, em sede de conclusões, que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar. De resto, é vulgar constatar a existente confusão entre os argumentos utilizados e as concretas questões a apreciar, realidades bem diversas e de que nos dá conta imensa jurisprudência publicitada. Neste contexto, e em face daquilo que se apreende das conclusões trazidas à discussão pelos recorrentes, importa saber: 1 – se a sentença é nula mercê de ocorrida alteração substancial dos factos; 2 – se “in casu” não se verifica a condição objetiva de punibilidade atinente à correta liquidação do imposto, impeditiva da condenação dos arguidos; 3 – se o artigo 105º é materialmente inconstitucional. Vejamos, pois. 1 – da nulidade sentença: Neste capítulo, alegam os recorrentes que foram dados como provados na sentença os antecedentes criminais do arguido e daí foram retiradas consequências ao nível da ponderação e determinação da pena aplicável ao arguido, quando é certo que a acusação omite qualquer menção aos antecedentes criminais do arguido ou à sua atividade criminosa como circunstância agravante da prática do crime pelo qual foi condenado, pelo que, sustentam, existe alteração substancial dos factos que não permitiria a prolação de sentença condenatória, a qual por isso, padece do vício de nulidade, devendo ser revogada. O Ministério Público ripostou anotando que o recorrente não foi condenado por factos diversos, nem foi condenado como reincidente, pois que disso não vinha acusado, pelo que não poderão deixar de ser considerados os seus registas antecedentes criminais. Concluiu, pois, pela inexistência da invocada nulidade. Esta tese foi subscrita no aludido parecer. Apreciando. Cremos que o naufrágio deste aspeto da tese recursiva é tão evidente que nos dispensaremos de grandes considerandos. Na verdade, se nem sempre tem sido fácil definir aquilo que constituem factos diversos da acusação, em face da disciplina contida na alínea f), do artigo 1º, do Código de Processo Penal, o que, atentas as ocorridas e consabidas divergências, tem gerado uma enorme discussão, ainda persistente[4], não é menos líquido que esta tese aqui trazida à discussão está completamente arredada dessas dificuldades interpretativas, o que, de resto, é demonstrado pela própria dissertação que os recorrentes aqui trouxeram, uma vez que, e apesar das variadas citações doutrinárias e jurisprudenciais ali contidas, curiosamente, ou talvez não, nenhuma delas aborda este concreto aspeto. E compreende-se um tal ostracismo. Na verdade, quando muito, e apenas caso se pretendesse acrescentar os antecedentes, como suporte duma constatada reincidência não acusada, estaríamos perante uma alteração não substancial de factos, tal como os define o artigo 358º, do Código de Processo Penal, não por via do mero acrescento dos antecedentes criminais, ou da parte que ali interessaria, “a se”, mas, isso sim, porque a reincidência carece ainda da alegação de factos (pressuposto material) que possam suportar, caso se demonstrem, que um determinado arguido, podendo tomar outro rumo, optou pela reiteração delituosa, homótropa ou polítropa. Ou seja, aqui existem factos novos condizentes com a disciplina contida no artigo 358º, do Código de Processo Penal[5]. Mas, e afora o sobredito caso de uma eventual reincidência, nenhuma alteração factual existe, mormente substancial, já que a indagação dos antecedentes criminais só pode ser feita, caso se vislumbre uma condenação, num momento posterior, atenta a implantada “cesure”, regime processual que, embora mitigado, tem assento no artigo 369º, nº 1, do Código de Processo Penal. E se é certo que a falta destes elementos poderá configurar uma insuficiência da matéria de facto para a decisão condenatória, também é verdade que tal não significa que essas informações tenham que ser tidas em conta juntamente com as provas atinentes aos factos referentes ao crime imputado, mas apenas que, na sistematização da sentença, elas aparecem enquadradas na matéria de facto, a que normativamente pertencem[6]. Neste contexto, sem esquecer nunca que o paradigma aqui em apreço é o que decorre do artigo 1º, al. f), do Código de Processo Penal, e que, para além do já exposto, a consideração dos documentados antecedentes criminais não implicou a imputação de crime diverso, nem a agravação dos limites da pena a aplicar, cremos demonstrado que inexiste a propugnada nulidade, pois que nenhuma alteração de factos, mormente substancial, existiu, pelo que este aspeto do recurso há de improceder. 2 – da inverificação da condição objetiva de punibilidade: Alegam os recorrentes, em síntese, que a notificação efetuada pelas Finanças, que consta de fls. 85 dos autos, por não liquidar o montante dos juros, não satisfaz a condição objetiva de punibilidade a que alude o artigo 105º, do RGIT, na redação introduzida pela Lei 53-A/2006, aqui aplicável nos termos do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, pelo que, atenta a sua inverificação, não pode o arguido ser condenado pela prática deste crime. Respondeu o Ministério Público anotando que carece de razão o invocado, porquanto o arguido terá sido notificado a fls. 82 a 86, onde constava o valor em dívida, cujo quadro foi atualizado conforme melhor se refere a fls. 118 e 128 e, mesmo considerando que foi apenas notificado da quantia mencionada no quadro de fls. 86, não tendo sido notificado da atualização posterior, o certo é que aquele nem sequer aquela quantia regularizou, além de que não foi por causa da informação incompleta que não regularizou a sua situação, tanto mais que, após a dedução da acusação, de onde consta o valor total, sempre o poderia ter feito, embora tal acarretasse consequências diversas, atento o tipo de ilícito em causa. Em consonância, concluiu que também esta alegação deveria cair por terra, tese que, conforme se anotou antes, mereceu o aval que consta do elaborado parecer. Apreciando. Existe total sintonia nos autos quanto à referenciada condição objetiva de punibilidade, à sua aplicabilidade no caso vertente e aos decorrentes efeitos legais, o que nos dispensa quaisquer comentários sobre tais aspetos. A divergência acontece apenas no tocante ao teor da notificação que foi efetuada, e cuja realização e respetivo formalismo, ainda que algo singular, não é aqui sequer questionado, já que, na tese dos recorrentes, ali não consta a liquidação dos juros, o que o impedia de regularizar a situação tributária. Reitere-se, pois, que a única questão aqui trazida é a da falta da liquidação dos juros, sendo apenas esse, por imperativo legal, o estrito objeto deste capítulo do recurso. Ora bem. É pacífico que da sobredita notificação, e quadro anexo (cfr. fls. 85 e 86 dos autos), não constam os concretos juros em dívida, tal como não consta o valor da coima aplicável, aspeto este que, como se viu, não incomodou os recorrentes. Cremos, porém, que nenhuma razão lhes assiste. Na verdade, e cientes de que nos incumbe o especial dever de contribuir para a uniformidade das decisões, em prol da certeza e da segurança do Direito, dever que deve estar especialmente presente quando é reclamado pela dimensão social que as questões em discussão encerram, tal com o sucede “in casu”, atento o subjacente impacto económico-financeiro, estamos de acordo com o constatado sentir da jurisprudência publicitada que, já com alguma relevância maioritária, dá inequívoca conta de que notificação a que alude o artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, ou não tem que conter as concretas quantias em dívida, ou então, deverá ter apenas a menção à prestação tributária em dívida, bastando-se com a mera menção genérica quanto aos juros e eventuais coimas[7]. Atenta a subjacente argumentação contida em tais decisões, em grande parte comum, e para cuja leitura se remete, estamos convictos do acerto de qualquer das duas apontadas soluções, decorrendo de ambas o inelutável naufrágio da tese preconizada pelos recorrentes. Cumpre-nos adiantar que iremos patrocinar um tal naufrágio, aderindo à argumentação que se mostra refletida naquela primeira tese, a que sustenta que a mencionada notificação não tem que conter sequer as concretas quantias em dívida, uma vez que estamos convictos de que, além da sua total sintonia com o próprio texto legal, é a que melhor acolhe a “ratio” legislativa aqui presente. Na verdade, perpassa pelos vários arestos citados, que propugnam esta solução, a ideia comum de que o legislador consagrou no Relatório do Orçamento Geral do Estado para 2007 a diferença entre o sujeito passivo que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regulariza a situação tributária em prazo a conceder, e aquele que não cumpre a obrigação declarativa, com clara intenção de ocultação dos factos, destinando-se a notificação apenas aos primeiros, ou seja, aos que reconhecendo a existência da dívida, apenas não fizeram acompanhar a respetiva declaração do meio de pagamento. Trata-se de um facto indesmentível e que, além de anunciado, veio efetivamente a obter consagração no respetivo texto legal, uma vez que, mercê da alteração decorrente da publicação da sobredita Lei nº 53-A/06, de 29/12 (cfr. o seu artigo 95º), o artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, passou a prever, no que aqui importa, que os factos em apreço só são puníveis se “A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o feito” (transcrição da al. b), com destacados a cheio da nossa autoria). Está, assim, dado o primeiro passo interpretativo, uma vez que, é consabido, uma boa interpretação há de ter o mínimo acolhimento na letra da lei (cfr. artigo 9º, nºs. 1 e 2, do Código Civil), ou, nas palavras de Ferrara, “A interpretação literal é o primeiro estádio da interpretação. Efetivamente, o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais”[8]. Por outro lado, sempre neste avanço interpretativo, ponderando, agora, a interpretação lógica ou racional, “…que remonta ao espírito da disposição, inferindo-o dos fatores racionais que a inspiraram, da génese histórica que a prende a leis anteriores, da conexão que a enlaça às outras normas e de todo o sistema”[9], e seguindo aquele mesmo relatório, no qual se alude à pretendida agilização da atuação administrativa e à necessidade de evitar a proliferação de inquéritos, cremos que, tal como se anotou no Acórdão do STJ nº 6/08, de 09/04[10], citando Costa Andrade e Susana Aires, “Os elementos teleológico e histórico convergem, assim, em abono de uma interpretação segundo a qual o legislador terá pretendido descriminalizar o facto nos casos em que, tendo havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, este vem a ser efetuado após intimação da Administração para que o «indivíduo» regularize a sua situação tributária”. Ora, embora consabido que não se trata de uma verdadeira descriminalização, pois que, como também se anotou naquele “vinculativo” aresto, o legislador assumiu o propósito de manter o recorte do ilícito, resultando daquela alteração legal uma condição exógena ao tipo e dali fluindo que “…foi uma intenção publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objetivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva”, o certo é que é inequívoco que a aludida condição só se verificará se vier a ser pago, no prazo de trinta dias contados da notificação para o efeito, o montante declarado pelo próprio devedor tributário, acrescido dos juros e coima eventualmente aplicável. Assim sendo, não faz sentido voltar a lembrar (notificar) o devedor do montante em dívida, já que foi ele próprio quem o declarou[11]. Por outro lado, e tal como vem explicitado nos vários acórdãos citados, fácil será para o devedor saber em quanto importam os juros, dependentes de uma mera operação aritmética, bem como a eventual coima aplicável, bastando, para tanto, dirigir-se a uma Repartição de Finanças e/ou Loja do Cidadão, onde lhe serão facultados tais acrescidos montantes, anotando-se até que o cálculo dos juros fica desatualizado por cada dia que passa, pelo que não faria sentido notificar de um determinado montante de juros antecipadamente já ultrapassado. De resto, esta iniciativa do devedor tributário, a de proceder ao pagamento daquilo que, consabidamente, sabe que está em mora, o que implicará que, na altura própria, seja efetuada a correspondente liquidação dos adicionais, é o único ónus que a lei lhe impõe caso pretenda beneficiar de tal “benesse” adicional. Claro está que, tal como sublinhava Leonor Esteves naquela aresto citado, “…é evidente que, no caso de sentirem dificuldades em obter as informações necessárias …, sempre poderão transmiti-las ao tribunal, que não deixará de providenciar para que daí não resulte prejuízo para aqueles que só não efetuem o pagamento atempado devido a falhas que não sejam da sua responsabilidade”. Quando menos, e parafraseando agora Lígia Figueiredo, no acórdão citado, através da consideração de um justo impedimento, a aplicar até se os respetivos serviços não derem uma resposta atempada, impeditiva do pagamento naquele prazo especial/adicional. Flui de todo o exposto que a pretensão dos recorrentes, a atinente à omissão da liquidação dos juros na notificação efectuada, deverá improceder. 3 – da inconstitucional do artigo 105º do RGIT: Neste derradeiro capítulo, alega o recorrente que o artigo 105º do RGIT, aqui aplicado, ao dispensar a apropriação como elemento típico, afasta-se da norma equivalente existente na última versão do RJIFNA, na redação introduzida pelo Dec-lei n.º 394/93, de 24/11, e que ao dispensar um tal elemento distintivo, que até então marcava a fronteira entre o ilícito criminal e o ilícito contraordenacional, o RGIT não só afasta o crime de abuso de confiança do previsto na lei comum, como faz sobrepor a uma mesma conduta tanto a comissão de um crime (artigo 105º), como a de uma contraordenação (artigo 114º), ainda que aquele só seja punível decorridos mais de 90 dias a contar da data em que a prestação deveria ser entregue, o que significa que eleva a dignidade penal o que anteriormente qualifica como de mero ilícito de natureza administrativa, uma vez que também o artigo 114°, do RGIT, estabelece como preponderante o elemento de “não entrega” no âmbito da consumação deste ilícito de mera ordenação social, o que lhe confere também a natureza de um ilícito omissivo puro, reportando-se o único elemento distintivo relevante ao referido prazo de 90 dias. E daí que, acrescenta, analisando os preceitos plasmados nos artigos 18°, n° 2 e 13°, da Constituição da República Portuguesa, e compulsados os elementos típicos dos citados artigos 105°, n° 1 e 114°, n° 1, ambos do RGIT, nada permite distinguir as correspondentes normas legais, designadamente em termos do elemento axiológico-socialmente relevante que justifica a previsão legal constante daquele artigo 105°, n° 1, conferindo-lhe dignidade penal, pelo que, conclui, a identidade e similitude entre os dois referidos tipos, o criminal e o contraordenacional, e a indistinção do bem jurídico tutelado por ambos os normativos, fere de inconstitucionalidade material o artigo 105º, do RGIT. O Ministério Público ripostou, nos moldes que constam da anotada resposta, ulteriormente subscrita no referenciado parecer, através da qual, sublinhando que os recorrentes se limitaram a alegar uma inconstitucionalidade que, contudo, não demonstram, sustentou que a criminalização da não entrega dolosa daquilo que se recebeu a título não translativo da propriedade, mesmo sem a prova da inversão do título da posse, não corresponde a qualquer medida discriminatória, desnecessária ou excessiva, suscetível de vilar o disposto no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, e que não seria exato falar da coincidência apontada por aqueles, uma vez que o artigo 114º do RGIT contempla apenas as condutas negligentes ou dolosas não consideradas criminosas, aqui se incluindo as situações de não entrega da prestação sem ultrapassar o prazo de 90 dias, bem como as que ultrapassem esse prazo, mas não constituam crime, a saber, as situações de não recebimento ou dedução da prestação por atuação dolosa ou negligente do agente passivo da relação tributária, as situações de pagamento do imposto por forma diferente da devida e outras situações e modos de entrega melhor descritos no nº 5 do citado preceito. Concluiu, em consonância, pela inexistência da pretendida inconstitucionalidade. Apreciando. Cremos que, também aqui, nenhuma razão assiste aos recorrentes[12]. Na verdade, não se questiona a salientada evolução sofrida pelos dois tipos aqui em disputa, o que constituiu uma alteração sensível do paradigma cessante, cujo elemento distintivo radicava, de facto, na existência, ou não, de uma apropriação indevida da prestação tributária, sendo que apenas no primeiro caso estaríamos perante o referenciado crime. Apesar disso, cremos que esta aproximação conceptual, atualmente estribada apenas na simples não entrega da prestação tributária deduzida, não encerra um tamanho afastamento da anterior apropriação indevida, além de que mantém um diversificado campo de aplicação, e que os recorrentes se encarregaram de anotar também, ambos motivos que afastam a pretendida inconstitucionalidade material. Na verdade, convém recordar que a génese de todas as receitas fiscais é a sustentabilidade do próprio Estado e, em certos casos, a da própria Segurança Social, atualmente com autonomia, o que ontologicamente legitima a punibilidade dos incumpridores Cientes desse relevante interesse a proteger, o património do Estado (lato sensu), o legislador entendeu que só as prestações superiores a sete mil e quinhentos euros teriam a necessária relevância penal e que a negligência teria apenas assento em sede contraordenacional. O que, só por esta via, afastaria a pretendida ilegalidade/inconstitucionalidade, já que, e salvo melhor opinião, esta divergência de regimes consubstancia precisamente a não punição do excesso, concretizando uma adequada proporcionalidade. E mais do que isso, a inclusão daquele montante como limite inferior constitui até um avanço relativamente ao regime anterior, pois que configura uma clara despenalização de tais condutas (passou a caber na previsão do artigo 114º, nº 3, do RGIT, a única situação que em sede contraordenacional admite o efetivo recebimento ou retenção da prestação). Afastada ficaria, assim, a violação do invocado artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa. A par, aquele avanço parece comprometer, só por si, a ilação de que foi elevada a dignidade penal aquilo que antes tinha natureza administrativa. Mas esta tese é contrariada ainda pela diferente abrangência dos dois tipos em disputa, o que, naturalmente, lhes confere uma natureza também diferente, mas não tão substancialmente diferente da época da referenciada apropriação. De facto, e pese embora o “desaparecimento”[13] da apropriação de outrora, a diferença do campo de aplicação de ambos os sobreditos normativos não radica apenas na mera não entrega de prestações de diferente valor, em prazos diferentes, ou com atitudes negligentes. Na verdade, contrariamente ao que invocavam os recorrentes, e constituía o núcleo que sustentava a propugnada inconstitucionalidade, não poderá afirmar-se que a apontada alteração legal, que atualmente enforma o RGIT, elevou a dignidade penal o que anteriormente era qualificado como de mero ilícito de natureza administrativa, uma vez que, e para além dos mencionados aspetos diferenciadores, continua a existir uma diferença entre o crime e a contraordenação sensivelmente idêntica, sendo um claro exemplo disso o próprio IVA. De facto, enquanto o artigo 105º, nº 1, do RGIT, fala na não entrega de prestação tributária deduzida e que legalmente era obrigatório entregar, o artigo 114º, nº 1, do mesmo diploma, já fala apenas na não entrega da prestação tributária deduzida. O que, e salvo sempre o devido respeito, nos remete para duas realidades diferentes, uma vez que, e no caso do IVA, por exemplo, nos leva a tratar como crime apenas a não entrega do IVA faturado, mas efetivamente recebido, e como contraordenação o IVA apenas faturado, mas nunca recebido. E isto porque, decorre do Código do IVA, a simples emissão de uma fatura implica a liquidação do IVA correspondente. E tudo isto é corroborado pelo que demais se prevê em ambos os preceitos aqui em discussão, atenta a diversa definição de prestação tributária (já vimos que a única exceção é a que consta do nº 3 do artigo 114º, e que tem a ver com a sobredita despenalização). Cremos devidamente explicitadas as referenciadas diferenças, o que faz soçobrar a tese dos recorrentes, uma vez que nos faz perceber que aquilo que enforma o ilícito criminal em questão não é a mera omissão da entrega da prestação, mas, isso sim, a não entrega daquilo que, no caso do IVA, foi efetivamente recebido ou, no caso doutros impostos, daquilo que foi efetivamente gerado no seio da atividade de um dado agente económico e que, por isso, foi introduzido no respetivo circuito económico-financeiro, mas que, contrariamente ao legalmente estatuído, foi utilizado para fins diversos. O que vale por dizer que mantém plena atualidade a sustentação de que “a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, radica em dar-se a valores licitamente recebidos um destino diferente daquele a que se está vinculado, bastando para a perfeição do crime a simples não entrega do imposto retido”[14]. Não se vislumbra, pois, que o artigo 105º, nºs. 1 e 4, do RGIT, absorva matéria que anteriormente era qualificada como de mero ilícito de natureza administrativa e que, por esse motivo, seja materialmente inconstitucional. Por tal razão, também não se descortina que tenham sido preteridos ou violados os apontados preceitos, aqui se incluindo o avocado princípio “ne bis in idem”, pois que, atenta a constatada diversidade de campos de aplicação, não existirá uma plúrima punição da mesma conduta[15]. Improcede, pois, também este aspeto do recurso. * III – DISPOSITIVO:Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes desta Relação acordam em julgar improcedente o recurso interposto, conjuntamente, pelos arguidos B….. e “C….., Lda.” e, em consequência, manter a decisão recorrida. Fixa-se em quatro UC´s a taxa de justiça devida por cada um dos recorrentes (cfr. artigos 513º, nºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8º, nº 5 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais). Notifique. * Porto, 17/10/2012[16].Relator: António José Moreira Ramos Adjunta: Maria Dolores S. Sousa ___________________ [1] Anote-se que ali se admitiu o recurso conjuntamente interposto, apesar de, por pressentido lapso, se aludir apenas ao arguido, e não a ambos os recorrentes. [2] Vide, entre muitos outros, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”. [3] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95. [4] De qualquer modo, e em matéria de interpretação do conceito de alteração substancial de factos, cremos bastante elucidativo o Acórdão deste TRP, datado de 06/10/2010, relatado por Luís Teixeira, a consultar http://www.dgsi.pt, para cuja leitura se remete. [5] Quanto aos requisitos exigidos para a indagação da reincidência, consequências atinentes à falta ou deficiente alegação da reincidência, equivalente à falta ou insuficiência de factos, seu suprimento, e tendencial necessidade do ulterior cumprimento do artigo 358º, do Código de Processo Penal, vide os Acórdãos deste TRP, um datado de 21/02/07, relatado por Maria do Carmo Silva Dias, e outro datado de 15/12/2010, relatado por Ernesto Nascimento, ambos a consultar in http://www.dgsi.pt. [6] Neste sentido, vide o Acórdão do STJ, datado de 13/02/2008, relatado por Maia Costa, aqui seguido, Apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora 2008, pág. 774. [7] Neste sentido, e por se tratar do mais recente, vide o Acórdão datado de 11/01/2012, relatado por Artur Oliveira, no qual se citam, em defesa da mesma tese, os seguintes arestos deste TRP: Ac. de 24/09/08 (relatora Leonor Esteves), Ac. de 14/01/09 (relator Luís Ramos), Ac. de 06/01/2010 (relator Jorge Gonçalves), Ac. de 03/11/2010 (relatora Lígia Figueiredo) e Ac. de 23/11/011 (relatora Élia São Pedro), todos a consultar in http://www.dgsi.pt, sublinhando-se que destes, apenas o relatado por Lígia Figueiredo preconiza a exigência daquela genérica menção dos juros e coimas. Em sentido contrário, vide o Ac. deste TRP, datado de 11/03/09, relatado por Ernesto Nascimento. Quanto à verificação da condição de punibilidade na específica situação em que exista uma disparidade de valores, v.g, os constantes da notificação e os considerados na decisão, e além do supra citado Acórdão deste TRP, relatado por Jorge Gonçalves, vide também o Acórdão do TRG, datado de 0/05/2011, relatado por Fernando Chaves. [8] Citação da Obra do Professor da Universidade de Pisa Francesco Ferrara, intitulada “Interpretação e Aplicação das Leis”, traduzida pelo Professor Manuel de Andrade e inserida na obra deste último denominada “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, 3ª Edição, Arménio Salvado-Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pág. 139, obras que temos como paradigmáticas nesta matéria. [9] Citação de Francesco Ferrara, Ob. Cit., págs. 140 e 141. [10] Aresto publicado no DR, 1ª série, nº 94, de 15/05/08, que fixou jurisprudência quanto a este tipo de ilícito, considerando a notificação aqui em apreço uma condição objetiva de punibilidade aplicável aos factos anteriores à vigência da referenciada lei do orçamento. [11] De resto, se conjugarmos o espírito da disposição em questão com a sua génese histórica, constatamos que a intenção do legislador foi apenas a de arrecadar receitas fiscais do passado de acordo com o que havia sido transmitido pelos próprios contribuintes, com a premência que então lhe era imposta pela tentativa de equilíbrio orçamental (estimado) entre receitas e despesas, e daí que criasse essa notificação especial apenas para lhes lembrar que, excecionalmente, seriam “apagadas” as consequências penais daí decorrentes, caso pagassem o que deviam, mais os tais acréscimos; depois, pensadamente, ou não, permaneceu para o futuro, o que não seria imperioso, ao menos com aquele estrito teor da norma em questão. [12] A situação seria mais delicada se estivesse em causa o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, atenta a similitude existente entre o teor do artigo 107º, nº 1, do RGIT, e o artigo 42º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/09, de 19/09, que entrou em vigor apenas em 01/01/2011, por força da Lei nº 119/09, de 30/12, tal como era sublinhado no voto de vencido aposto pelo primitivo relator do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2010, de 14/07/2010. [13] No acórdão do STJ proferido a 18/02/2010, relatado por Souto Moura, a consultar in http://www.dgsi.pt, sustentou-se que “A eliminação do elemento apropriação do art. 107.º do RGIT não fez mais do que clarificar o entendimento da lei, enveredando pela interpretação do art. 27.º-B do RJIFNA, nos termos da qual, aquele segmento não constituía um elemento típico do crime, com verdadeira autonomia (cf. v.g. Ac. do STJ de 26-01-2000, Proc. n.º 815/99 - 3.ª). A expressão final “do mesmo se apropriando”, que se via na previsão do art. 27.º-B do RJIFNA, constituía a síntese conclusiva do comportamento antes descrito (…)”, o que nos permite questionar se aqui existiu um verdadeiro “desaparecimento” ao nível dos elementos do tipo. [14] Vide Simas Santos/Lopes de Sousa in, Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, 2001, p. 587 ss., apud Ac. do STJ, de 21/12/06, in http://www.dgsi.pt. [15] E caso existisse uma eventual coincidência, esta seria ultrapassada através da previsão ínsita no artigo 20º, do RGCO, aprovado pelo DL nº 433/82, de 27/10, onde se estipula que “se o facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação”. [16] Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico, convertido pelo Lince, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal). |