Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
96/18.6GAVCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HORÁCIO CORREIA PINTO
Descritores: OFENSAS Á INTEGRIDADE FÍSICA
ANIMAIS PERIGOSOS
Nº do Documento: RP2020092496/18.6GAVCD-A.P1
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As ofensas à integridade física negligentes causadas por animal perigoso, ou potencialmente perigoso, por descuido do seu proprietário, de onde não resultem lesões graves, são punidas, a título de contra-ordenação, pelo artigo 38.º, n.º 1, r), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, e não como crime p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal.
II - O legislador quis criar um diploma específico (o Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro), criando dois tipos de crime, um doloso e outro negligente (este em caso de lesões graves) e um tipo de contra-ordenação negligente (este em caso de lesões não graves), diferenciados de qualquer tipo omissivo impróprio previsto no Código Penal (cuja aplicação será afastada como norma geral perante uma norma especial).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 96/18.9GAVCD-A.P1
Tribunal da Relação do Porto - 2ª Secção Criminal
Relatório.
No processo acima identificado, por despacho de pronúncia com data de 14 de Outubro de 2019, o tribunal a quo decidiu pronunciar os arguidos B… e C…, pela prática de um crime ofensa à integridade física por negligência, previsto pelos artºs 148 nº 1 e 15 alª a), ambos, do CP.
Inconformados com a decisão vieram os arguidos interpor recurso, deduzindo a final as seguintes conclusões:
1. O Douto Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação da lei e subsequente aplicação ao caso concreto, assim pronunciando os arguidos.
2. A questão trazida ao presente recurso é uma questão jurídica: a Douta Decisão Instrutória entendeu que os factos tidos pelo Ministério Público como suficientemente indiciados e descritos no despacho de arquivamento consubstanciam o crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto pelo artigo 148, nº 1 do C.P. e não apenas a contra-ordenação prevista pelo artigo 38, nº 1 alínea r) do D/L 315/2009 de 29.10.
3. Os factos dos autos foram praticados na vigência do D/L 315/2009 de 29/10, que aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.
4. E de acordo com o supra referido diploma legal, os factos que são objecto deste processo integram a prática de uma contra-ordenação e não de um crime.
5. O comportamento imputado aos arguidos surge, expressamente, previsto nesta disposição, incluído na mencionada Secção III desse Capítulo, definido como negligente e, objectivamente, com resultado que exclui ofensas tipificadas como graves, sendo punido como contra-ordenação.
6. Com a entrada em vigor do D/L 315/2009 de 29/10, o legislador criou um espaço que poderá ser punido com mais ou menos severidade, como crime ou como contra-ordenação, tendo em conta os resultados do comportamento do animal, retirando do âmbito criminal estes comportamentos.
7. Ainda que, os artigos 34 e 38, nº 1 alínea r) do D/L 315/2009 de 29.10, tenham ambos aptidão para serem aplicados aos factos narrados no despacho de pronúncia, a norma especial (artº 38, nº 1, alínea r)) tem de prevalecer sobre a norma comum (artº34), dado que contém elementos especiais, isto é, independentemente de que a última seja uma norma de aplicação subsidiária e, assim, destinada apenas a colmatar lacunas do diploma, todos ou alguns dos seus elementos constitutivos são reduzidos na sua amplitude por uma caracterização específica.
8. A não ser assim, haveria uma duplicação da punição do mesmo facto, em violação do princípio "ne bis in idem", dado que, no caso, não se trata de que a mesma infracção constitua crime e contra-ordenação, em que o agente seria punido apenas pelo crime (artº 36, nº 3, do Dec. Lei nºs 315/2009), mas sim de erigir à categoria de crime, comportamento que expressamente é tipificado como contra-ordenação.
9. O Dec. Lei 315/2009 de 29.10 prevê que a distinção entre crime e contra-ordenação se opera relativamente ao resultado verificado, consoante se esteja, ou não, em presença de ofensas graves.
10. Todos os elementos interpretativos confluem, pois, para que os factos narrados na decisão instrutória não constituem crime, tal como decidido.
11. Pelo que, bem se andou ao ordenar o arquivamento do inquérito e em ordenar a comunicação dos factos à autoridade administrativa competente para o processo contra-ordenacional, com a extracção de certidão para instauração de eventual processo contra-ordenacional.
12. Deve, assim, a mesma ser alterada e os arguidos não pronunciados, remetendo-se certidão dos autos para a entidade competente para apreciar de uma eventual contra- ordenação.

O recurso foi regularmente admitido.
O MP respondeu a fls 27/36 e concluiu com os seguintes argumentos:
Pela nossa parte, entendemos que a razão está na tese defendida pelo assistente. Vejamos em síntese porquê.
O D/L nº 315/2009, de 29/10 pretendeu inequivocamente ser mais responsabilizante para com os detentores de animais perigosos ou potencialmente perigosos.
E fê-lo, no que aqui mais releva, por duas vias:
- por um lado, tornando público o crime de ofensa à integridade física grave (por negligência), por via do texto do artº 33 do diploma, assim se afastando do regime semi-público que decorreria da aplicação do artº 148 nºs 3 e 4 do Código Penal;
- por outro lado, fazendo emergir uma contra-ordenação, no caso de ofensas não graves (por negligência), por via do artº 38 nº1 r).
Sublinhemos este ponto: este artº 38/1 r), fazendo emergir uma contra-ordenação, não representa qualquer degradação da punição prevista; representa, ao contrário, a previsão de um novo caminho sancionatório.
O que sucede é que uma mesma conduta, de ofensa não grave, passa a constituir simultaneamente o crime de ofensa à integridade física por negligência previsto pelo art. 148/1 do Código Penal e a apontada contra-ordenação, ocorrendo portanto o que já acontece em múltiplas outras situações, nomeadamente em relação aos crimes de ofensa à integridade física ou de condução perigosa de veículo rodoviário que se traduzam também, como é comum, na violação de normas estradais, situação que o próprio legislador prevê no artº 20 do D/L. nº 433/82, de 27/10.
O tal reforço responsabilizante e punitivo que deriva da criação nesta matéria da apontada contra-ordenação resulta da circunstância de que o sistema legal intervirá em situações em que antes não interviria, dada a natureza semi-pública do crime de ofensa à integridade física por negligência.
Terá entendido o legislador (e na nossa óptica bem, permitamo-nos acrescentar), que quando um animal perigoso ou potencialmente perigoso agride um terceiro, há um interesse público no tratamento do caso que vai além do importante mas restrito interesse individual do concreto lesado e que por razões de circunstância ou opção pessoal pode não chegar a apresentar queixa; recorde-se que, na eventual ausência de queixa, nada seria feito, bem podendo pois suceder que o animal voltasse a agredir terceiro (no essencial no sentido que defendemos vide o Acórdão da RP de 10/05/2017, relatado por Maria Luísa Arantes).
Acrescente-se por fim que a solução oposta, que passaria por considerar que a ofensa não grave deixa de ser crime e passaria a ser apenas contra-ordenação levar-nos-ia a um resultado interpretativo muito difícil de sustentar, que seria este: a pretensa descriminalização estava prevista pelo D/L nº 315/2009, de 29/10, que apenas estabelece, segundo o seu artº 1º, o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, o que significa que as ofensas não graves provocadas por animais perigosos ou potencialmente perigosos, de acordo com os critérios legais, não seriam crime, mas já o seriam, à luz do artº 148 do Código Penal, as ofensas não graves provocadas por animais que estivessem fora desses conceitos de animais perigosos ou potencialmente perigosos, o que seria verdadeiramente ilógico.
E nem se objecte argumentando que essa falta de lógica seria colmatável considerando-se que o legislador dissera menos que o que pretendia, já que o seu intuito seria descriminalizar as ofensas negligentes não graves, sejam elas provocadas por animais perigosos, potencialmente perigosos ou quaisquer outros; estamos todavia em crer que essa leitura estaria a ir longe demais ante, sublinhe-se, o silêncio do legislador, posto que este em lado algum aludiu a um qualquer propósito descriminalizador. A seguir-se esse entendimento, estar-se-ia, num primeiro momento, a identificar um propósito descriminalizador na lei que esta em lado algum afirmou e que até surgiria ao arrepio do que tudo indica ter sido o intuito de reforço responsabilizador dos detentores de animais, e depois, tão ou mais grave ainda, estar-se-ia a dar a esse propósito descriminalizador um alcance mais lato ainda do que o que poderia derivar do âmbito de aplicação da norma, e apenas para salvar a face de uma interpretação que nos parece originariamente incorrecta.
Em suma, serão os arguidos objecto de um despacho de pronúncia, pelos factos que o Ministério Público considerara suficientemente indiciados no despacho de encerramento do inquérito, que transcreveremos.
Os arguidos não se conformaram com o despacho que os pronunciou pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p e p pelo artº 148, nº 1 do Cód. Penal e dele vieram apresentar o presente recurso.
Em síntese, pugnam que com a entrada em vigor do DL nº 315/2009, de 29 de Outubro, os factos pelos quais os arguidos se mostram suficientemente indiciados integram a prática de uma contra-ordenação prevista no artº 38, nº 1, r) e não do crime pelo qual foram pronunciados- o crime de ofensa à integridade física por negligência, p e p pelo artº 148 do Cód. Penal.
Salvo melhor opinião, entendemos que nunca foi objectivo do legislador revogar o disposto no artº 148 do Cód. Penal, por ter consagrado o novo regime de ofensas à integridade física negligentes no artº 33 do Decreto-Lei em análise.
Segundo Conde Fernandes, na anotação a esta norma, no Comentário das Leis Penais Extravagantes, 2º Volume, página 318, “o legislador quis apenas implementar um regime especial para as ofensas graves, provocadas por um animal a que deu azo uma conduta negligente; manteve-se a graduação punitiva; inovou-se quanto à natureza procedimental pública da promoção penal”.
Assim, quando ocorra uma ofensa à integridade física simples por negligência, a conduta é punível a título de crime pelo artº 148, nº 1 do CP, excluindo-se a contra-ordenação prevista no artº 38, nº 1, r), do DL nº 315/2009, de 29 de Outubro, embora podendo ser-lhe aplicadas as sanções acessórias previstas para a infracção criminal ou para a infracção contra-ordenacional (conforme dispõe o artº 36, nº 3).
Segundo este autor, a defesa da descriminação da ofensa simples à integridade física por negligência não respeita a ratio legis e a mens legislatoris.
Este entendimento - a não descriminalização - tem sido defendido pelo Tribunal da Relação do Porto, conforme acórdão citado no despacho recorrido e no Acórdão de 01-06-2014, proferido no Processo 444/08.0GEGDM.
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso e confirmado o despacho de pronúncia.
O assistente respondeu e apresentou as suas conclusões:
1. O douto tribunal fez uma correcta interpretação da lei e subsequente aplicação do caso concreto, pronunciando os arguidos,
2. A questão em causa é unicamente jurídica e de direito, que se prende em saber se as ofensas em causa, de natureza não grave, foram colocadas fora do âmbito de abrangência do artº 148/1 do Código Penal, por via de uma alegada descriminalização operada em resultado da entrada em vigor do D/L nº 315/2009, de 29/10 ou, diversamente, este diploma não consubstancia qualquer descriminalização, nessa medida mantendo-se as ofensas não graves sob a cobertura daquele artº 148/1 do CP?
3. O problema em discussão prende-se especificamente com o preceituado pelo artº 38/1 r) do D/L nº 315/2009, de 29/10, que nos diz que constitui contra-ordenação a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.
4. Salvo melhor entendimento, é nossa opinião que a conduta dos arguidos é crime e contra-ordenação, actuando esta última apenas nos casos em que não tenha sido apresentada queixa-crime.
5. O D/L nº 315/2009, de 29/10 visa responsabilizar os detentores de animais perigosos ou potencialmente perigosos, e fê-lo de duas formas:
6. Afastando o regime semipúblico do crime de ofensas a integridade física grave por aplicação do artº 148/3 e 4 do CP, tornando público o crime de ofensa a integridade física grave (por negligência), por via do texto do artº 33 do diploma – D/L nº 315/2009, de 29/10,
7. Por outro lado, fazendo surgir uma contra-ordenação, no caso de ofensas não graves (por negligencia), por via do artº 38/1 r).
8. De ressalvar que a contra-ordenação prevista no artº 38/1 r) não tem como intuito descriminalizar, traduz-se sim num novo caminho sancionatório, ou seja,
9. Para condutas que se traduzirão em ofensas não graves passam a constituir simultaneamente o crime de ofensa a integridade física por negligência previsto pelo artº 148/1 e a apontada contra-ordenação.
10. A ofensa à integridade física negligente (animal), é punida pelo artº 33, é lex specialis face ao artº 148 nº3, do CP, cuja principal diferença que traz é a natureza procedimental pública da infracção."
11. Segundo Plácido Conde Fernandes, as ofensas simples passam a ter dois regimes, crime semipúblico e, subsidiariamente contra- ordenação.
12. A contra-ordenção prevista na alínea r) do artº 38 nº1 al/r, não representa alguma descriminalização, antes se sancionando aqui a ofensa a integridade física simples, sem queixa, mantendo-se a ofensa à integridade física simples, com queixa na previsão.
13. Em suma não restam quaisquer duvidas que a contra-ordenação prevista pelo artº 38 nº1 al. r) do D/L 315/2009, cuja violação constitui elemento do crime de ofensas à integridade física, é consumida por este artº 20 do D/L 433/82, de 27/10.
14. Pelo que bem andou o Mº juiz a quo ao pronunciar os arguidos pela prática de um crime de ofensa a integridade física por negligência, previsto pelos artºs 148/1 e 15 do CP.
nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso.

Já neste tribunal o Senhor Procurador Geral-Adjunto elaborou parecer e reiterou os argumentos aduzidos na resposta, acrescentando com o disposto no artº 20 do RGCO – D/L nº 433/82 de 27/10. Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra ordenação, será o agente punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias para a contra-ordenação.
Esta é a interpretação legal mais razoável, seguida actualmente pela jurisprudência.

Cumpriu-se o artº 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta à apreciação do mérito.
Mantém-se a regularidade da instância.
Da fundamentação.
O despacho recorrido.
No despacho de encerramento do Inquérito o Ministério Público considerou indiciados os seguintes factos:
A) Os arguidos B… e C… são casados entre si e proprietários de um canídeo da raça Pastor Alemão, de nome D….
B) No dia 1 de Fevereiro de 2018, pelas 18h40, os arguidos encontravam-se no interior da sua habitação, sita na Rua…, nº …, …, …. - … Vila do Conde.
C) O animal encontrava-se na parte exterior dessa habitação.
D) Sucede que, de forma não concretamente apurada, o animal conseguiu sair da propriedade dos arguidos e fugir para a rua no momento em que o menor E…, de 7 anos de idade, se dirigia a pé, acompanhado de sua mãe, para a sua residência, sita na mesma rua.
E) Nesse momento, o cão aproximou-se da criança e atirou-a para o chão, fazendo com que a mesma embatesse com a cabeça no chão, tendo-lhe de seguida desferido uma dentada na região torácica do lado esquerdo.
F) O arguido, ao aperceber-se do sucedido, prestou auxílio ao menor, tendo providenciado pelo transporte do mesmo ao Centro Hospitalar F….
G) Nada nem ninguém determinou a prática dos factos descritos, a não ser a falta de cuidado dos arguidos que não evitaram, como podiam e deviam, a presença do animal na via pública, não adoptando os cuidados que lhes eram exigíveis para que o mesmo não fugisse do interior da sua residência, admitindo como possível que o animal nessas condições pudesse ofender a integridade física de alguma pessoa, como veio a suceder.
H) Em consequência directa e necessária da conduta do cão dos arguidos, o ofendido sofreu no crânio duas escoriações arredondadas, com crosta, infracentimétricas, na região parietoccipital esquerda; na face: escoriação vertical na face mucosa do lábio superior esquerdo com 0,5 centímetros de comprimento; no tórax, junto à auréola esquerda, cicatriz hipocrómica em forma de y verticalizado, com 3,5 por 3 centímetros de maiores dimensões, com ligeiro endurecimento no seu terço mais lateral, não aderindo aos planos profundos e sem repuxamento ou quelóide; lateralmente, ao nível da linha axilar anterior apresenta outra cicatriz com 3 por 0,6 centímetros de maiores dimensões, com ligeiro quelóide.
I) As indicadas lesões demandaram oito dias para a consolidação médico-legal.
J) Do evento resultaram para o ofendido, em termos de consequências permanentes, duas cicatrizes: uma na região perimamilar esquerda e outra ao nível da linha axilar anterior esquerda, que não desfiguram gravemente o ofendido nem interferem com a sua capacidade formativa/geral.

Nesta fase – seja no requerimento de abertura de instrução, seja na marcha desta, seja em sede de debate instrutório - não se mostram postos em crise tais factos; e de resto, considerada a natureza indiciária da abordagem da prova própria da Instrução, afigura-se-nos que é razoável a leitura que o Ministério Público fez da prova disponível [cfr. fls. 3 a 5 (auto de notícia), 16 a 18, 29 a 32, 54, 55 e 68 (documentação clínica), 24 a 26 e 70 a 72 (relatórios periciais), 41, 42, 43, 45 a 49 e 87 (documentação relativa ao animal), 60 e 61 (depoimento da mãe do ofendido) e 85/86 e 135/136 (declarações dos Arguidos)].
Por outro lado, também não se mostra questionado que as lesões sofridas pelo ofendido resultem do comportamento do pastor alemão de nome D…, que se terá escapado para a rua, onde atacou o ofendido, e que essa fuga deriva de uma falha no cumprimento, pelos detentores do animal, dos deveres de vigilância sobre o mesmo, deveres esses que passavam naturalmente por garantir que o dito animal não saísse do perímetro da habitação para a via pública, aí deparando-se com terceiros a quem poderia agredir, como agrediu.
E por fim, também ninguém nos autos põe em crise que a conduta dos arguidos integre originariamente a previsão típica do artº 148/1 do Código Penal [considerado o conceito geral de negligência contido no artº 15/a) do Código Penal].
O que em bom rigor neste momento se encontra em discussão é apenas um aspecto, estritamente jurídico, que é este: as ofensas em causa, de natureza não grave, foram colocadas fora do âmbito de abrangência do artº 148/1 do Código Penal, por via de uma alegada descriminalização operada em resultado da entrada em vigor do D/L nº 315/2009, de 29/10? Ou, diversamente, este diploma não consubstancia qualquer descriminalização, nessa medida mantendo-se as ofensas não graves sob a cobertura daquele artº 148/1?
Vejamos.
O D/L nº 315/2009, de 29/10 regula a detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia (artº 1), estabelecendo os específicos deveres de cuidado que incidem sobre os detentores de animais perigosos e potencialmente perigosos.
Aí se encontram, sob o seu artº 3, diversas definições legais para efeitos desse diploma, interessando-nos aqui as de:
- “detentor” - qualquer pessoa singular, maior de 16 anos, sobre a qual recai o dever de vigilância de um animal perigoso ou potencialmente perigoso para efeitos de criação, reprodução, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais, ou que o tenha sob a sua guarda, mesmo que a título temporário.
- “animal perigoso” - qualquer animal que se encontre numa das seguintes condições:
i.tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa;
ii. tenha ferido gravemente ou morto um outro animal fora da esfera de bens imóveis que constituem a propriedade do detentor;
iii. tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, que tem um carácter e comportamento agressivos;
iv. tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais, devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica.
- “animal potencialmente perigoso” - qualquer animal que, devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças que venham a ser incluídas em Portaria do Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas.
A Portaria em causa, publicada ainda na vigência do anterior D/L nº 312/2003, de 17/12, é a nº 422/2004 de 24/4, que define em anexo as seguintes raças perigosas: I) Cão de Fila Brasileiro. II) Dogue Argentino. III) Pit Bull Terrier. IV) Rottweiller. V) Staffordshire Terrier Americano. VI ) Staffordshire Bull Terrier. VII) Tosa Inu , bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças ali referidas.
Conjugando o que nos diz o artº 3 do D/L 315/2009, de 29/10 com o que se encontra explicitado na citada Portaria, há dois tipos de animais aqui a considerar:
- os «perigosos», a saber, os que cumpram algum dos requisitos da alínea b) do artº 3, o que não se encontra verificado no caso [embora a referência que consta a fls. 25 vº a uma agressão anterior, não explorada nos autos, possa sugerir o preenchimento da hipótese típica do artº 3º b) i) do D/L nº 315/2009, de 29/10;
- e os «potencialmente perigosos», a saber, os que devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possam causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, sendo que aqui o legislador dá-nos um ponto de apoio acrescido enunciando, a título exemplificativo, raças de cães a considerar.
No caso concreto o que temos é um animal da raça Pastor Alemão, que pelo seu porte e pelo tamanho e força da sua mandíbula integra-se plenamente no conceito de animal potencialmente perigoso, como a realidade aliás veio infelizmente a demonstrar.
E o problema em discussão prende-se especificamente com o preceituado pelo artº 38/1 r) do D/L nº 316/2009, de 29/10, que nos diz que constitui contra-ordenação a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.
A lógica acolhida pelo despacho de encerramento do Inquérito é esta no essencial: ao ter dito que uma ofensa por negligência não grave constitui contra-ordenação, pretendeu o legislador afastar essa ofensa do âmbito criminal, sendo que estamos aqui diante uma norma especial, que deve prevalecer sobre o regime geral em que se traduz o artº 148 do Código Penal.
Por sua vez, o assistente defende solução diversa: a conduta é crime e contra-ordenação, actuando esta apenas nos casos em que não tenha sido apresentada queixa.
Ambas as soluções têm pontos de apoio publicados, que aliás são citados no despacho de encerramento do inquérito e no requerimento de abertura de instrução.
Pela nossa parte, entendemos que a razão está na tese defendida pelo assistente. Vejamos em síntese porquê.
O D/L nº 315/2009, de 29/10 pretendeu inequivocamente ser mais responsabilizante para com os detentores de animais perigosos ou potencialmente perigosos.
E fê-lo, no que aqui mais releva, por duas vias:
- por um lado, tornando público o crime de ofensa à integridade física grave (por negligência), por via do texto do artº 33 do diploma, assim se afastando do regime semi-público que decorreria da aplicação do artº 148/3 e 4 do Código Penal;
- por outro lado, fazendo emergir uma contra-ordenação, no caso de ofensas não graves (por negligência), por via do artº 38/1 r).
Sublinhemos este ponto: este artº 38/1 r), fazendo emergir uma contra-ordenação, não representa qualquer degradação da punição prevista; representa, ao contrário, a previsão de um novo caminho sancionatório.
O que sucede é que uma mesma conduta, de ofensa não grave, passa a constituir simultaneamente o crime de ofensa à integridade física por negligência previsto pelo artº 148/1 do Código Penal e a apontada contra-ordenação, ocorrendo portanto o que já acontece em múltiplas outras situações, nomeadamente em relação aos crimes de ofensa à integridade física ou de condução perigosa de veículo rodoviário que se traduzam também, como é comum, na violação de normas estradais, situação que o próprio legislador prevê no artº 20 do D/L nº 433/82, de 27/10.
O tal reforço responsabilizante e punitivo que deriva da criação nesta matéria da apontada contra-ordenação resulta da circunstância de que o sistema legal intervirá em situações em que antes não interviria, dada a natureza semi-pública do crime de ofensa à integridade física por negligência.
Terá entendido o legislador (e na nossa óptica bem, permitamo-nos acrescentar), que quando um animal perigoso ou potencialmente perigoso agride um terceiro, há um interesse público no tratamento do caso que vai além do importante mas restrito interesse individual do concreto lesado e que por razões de circunstância ou opção pessoal pode não chegar a apresentar queixa; recorde-se que, na eventual ausência de queixa, nada seria feito, bem podendo pois suceder que o animal voltasse a agredir terceiro (no essencial no sentido que defendemos vide o Acórdão da RP de 10/05/2017, relatado pela Desembargadora Maria Luísa Arantes).
Acrescente-se por fim que a solução oposta, que passaria por considerar que a ofensa não grave deixa de ser crime e passaria a ser apenas contra-ordenação levar-nos-ia a um resultado interpretativo muito difícil de sustentar, que seria este: a pretensa descriminalização estava prevista pelo D/L nº 315/2009, de 29/10, que apenas estabelece, segundo o seu artº 1, o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, o que significa que as ofensas não graves provocadas por animais perigosos ou potencialmente perigosos, de acordo com os critérios legais, não seriam crime, mas já o seriam, à luz do artº 148 do Código Penal, as ofensas não graves provocadas por animais que estivessem fora desses conceitos de animais perigosos ou potencialmente perigosos, o que seria verdadeiramente ilógico.
E nem se objecte argumentando que essa falta de lógica seria colmatável considerando-se que o legislador dissera menos que o que pretendia, já que o seu intuito seria descriminalizar as ofensas negligentes não graves, sejam elas provocadas por animais perigosos, potencialmente perigosos ou quaisquer outros; estamos todavia em crer que essa leitura estaria a ir longe demais ante, sublinhe-se, o silêncio do legislador, posto que este em lado algum aludiu a um qualquer propósito de descriminalizar. A seguir-se esse entendimento, estar-se-ia, num primeiro momento, a identificar um propósito de descriminalizar a lei, que esta em lado algum afirmou e que até surgiria ao arrepio do que tudo indica ter sido o intuito de reforço responsabilizador dos detentores de animais, e depois, tão ou mais grave ainda, estar-se-ia a dar a esse propósito de descriminalizar, um alcance mais lato ainda do que o que poderia derivar do âmbito de aplicação da norma, e apenas para salvar a face de uma interpretação que nos parece originariamente incorrecta.
Em suma, serão os arguidos objecto de um despacho de pronúncia, pelos factos que o Ministério Público considerara suficientemente indiciados no despacho de encerramento do Inquérito, que transcreveremos.
Pelo que antecede, decidimos pronunciar os arguidos:
B…, casado, filho de G… e de H…, nascido a ../07/1961, natural de …, titular do cartão de cidadão nº ………. e com domicílio na Rua…, nº …, …, Vila do Conde, e C…, casada, aposentada, nascida a ../02/1965, natural do …, titular do bilhete de identidade nº ……. e com domicílio na Rua…, nº …, …, Vila do Conde.
Para julgamento em tribunal constituído em estrutura singular, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto pelos artºs 148/1 e 15/a) do Código Penal, pelos seguintes factos:
1) Os arguidos B… e C… são casados entre si e proprietários de um canídeo da raça Pastor Alemão, de nome D….
2) No dia 1 de Fevereiro de 2018, pelas 18h40, os arguidos encontravam-se no interior da sua habitação, sita na Rua…, nº …, …, …. - … Vila do Conde.
3) O animal encontrava-se na parte exterior dessa habitação.
4) Sucede que, de forma não concretamente apurada, o animal conseguiu sair da propriedade dos arguidos e fugir para a rua no momento em que o menor E…, de 7 anos de idade, se dirigia a pé, acompanhado de sua mãe, para a sua residência, sita na mesma rua.
5) Nesse momento, o cão aproximou-se da criança e atirou-a para o chão, fazendo com que a mesma embatesse com a cabeça no chão, tendo-lhe de seguida desferido uma dentada na região torácica do lado esquerdo.
6) O arguido, ao aperceber-se do sucedido, prestou auxílio ao menor, tendo providenciado pelo transporte do mesmo ao Centro Hospitalar F….
7) Nada nem ninguém determinou a prática dos factos descritos, a não ser a falta de cuidado dos arguidos, que não evitaram, como podiam e deviam, a presença do animal na via pública, não adoptando os cuidados que lhes eram exigíveis para que o mesmo não fugisse do interior da sua residência, admitindo como possível que o animal nessas condições pudesse ofender a integridade física de alguma pessoa, como veio a suceder.
8) Em consequência directa e necessária da conduta do cão dos arguidos, o ofendido sofreu no crânio duas escoriações arredondadas, com crosta, infracentímétricas, na região parietoccipital esquerda; na face: escoriação vertical na face mucosa do lábio superior esquerdo com 0,5 centímetros de comprimento; no tórax, junto à auréola esquerda, cicatriz hipocrómica em forma de y verticalizado, com 3,5 por 3 centímetros de maiores dimensões, com ligeiro endurecimento no seu terço mais lateral, não aderindo aos planos profundos e sem repuxamento ou quelóide; lateralmente, ao nível da linha axilar anterior apresenta outra cicatriz com 3 por 0,6 centímetros de maiores dimensões, com ligeiro quelóide.
9) As indicadas lesões demandaram oito dias para a consolidação médico-legal.
10) Do evento resultaram para o ofendido, em termos de consequências permanentes, duas cicatrizes: uma na região perimamilar esquerda e outra ao nível da linha axilar anterior esquerda, que não desfiguram gravemente o ofendido nem interferirem com a sua capacidade formativa/geral.
Prova:
Documental: fls. 16 a 18, 29 a 32, 54, 55 e 68 (documentação clínica) e fls. 41, 42, 43, 45 a 49 e 87 (documentação relativa ao animal);
Pericial: fls. 24 a 26 e 70 a 72;
Testemunhal: I…, identificada a fls. 60.
Da apreciação de mérito.
Pelas conclusões define-se o objecto do recurso (a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina com a formulação de conclusões) – artº 412 nº 1 do CPP.
Impugna-se a decisão de direito proferida no despacho de pronúncia que entendeu que os factos indiciados – mordedura de um cão por descuido no exercício da sua vigilância – integram um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido nos termos do artºs 148 nº 1 e 15 alª a) ambos do CPP.
A discussão de direito gira em torno da integração da conduta do dono(s) do cão, ao não exercer(em) devidamente acção de vigilância (não proceder com cuidado) – não representar como possível a realização de um determinado facto - de forma a impedir a produção do dano (sem se conformar com essa realização). Esta conduta constitui um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido no artº 148 nº 1 do CP ou uma mera contra-ordenação nos termos do artº 38 nº 1, alª r) do D/L nº 315/2009 de 29/10 (?).
O recorrente defende que a conduta integra uma contra-ordenação pelos seguintes motivos:
a) Os factos foram praticados na vigência do D/L 315/2009 de 29/10, que aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia. Estes factos são contra-ordenação e não crime.
b) A norma especial (artº 38, nº 1, alínea r) do D/L 315/2009) tem de prevalecer sobre a norma comum (artº 148 nº 1 do CP ex vi artº 34 do citado D/L), por apresentar elementos especiais, isto é, independentemente de que a última seja uma norma de aplicação subsidiária e, assim, destinada apenas a colmatar lacunas do diploma, todos ou alguns dos seus elementos constitutivos são reduzidos na sua amplitude por uma caracterização específica.
c) A não ser assim haveria uma duplicação do mesmo facto, com a consequente violação do princípio ne bis in idem…
d) O presente diploma – D/L nº 315/2009 de 29/10 prevê a distinção entre crime e contra-ordenação com base no resultado verificado, consoante as lesões são graves ou não.
e) Todos os elementos interpretativos levam a que a conduta sob análise seja avaliada como contra-ordenação.
O recorrente veicula alguma jurisprudência que trata estas condutas negligentes não graves como contra-ordenação, face à entrada em vigor do D/L nº 315/ 2009 de 29/10.
O presente caso é delicado pelo facto de o legislador introduzir alguma confusão na disciplina de condutas negligentes, por falta de dever de cuidado, quando o CP não olvidou genericamente de as disciplinar.
Vejamos o que dizem os diferentes diplomas.
O CP disciplina a ofensa à integridade física por negligência nos termos do artº 148 nº 1 – quem, por negligência, ofender o corpo ou saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um (1) ano ou com pena de multa até 120 dias. Por sua vez o D/L nº 315/2009 de 29/10 aprovou o regime jurídico da detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia. No seu preâmbulo o legislador é claro ao dizer: pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos (D/L nº 312/2003 de 17 de Dezembro e D/L nº 313/2003 de 17 de Dezembro) legais conclui-se, no entanto, que a punição como contra-ordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime.
Este diploma foi elaborado no uso de autorização legislativa concedida pela Lei nº 82/2009 de 21 de Agosto, enquanto a norma prevista no artº 148 nº 1 do CP tem agora uma nova redacção, por força da revisão da versão originária do código, elaborada pelo D/L nº 48/95 de 15 de Março.
Apesar da subsistência do normativo previsto no CP (artº 148 nº 1), cuja abrangência compreende um sem número de condutas negligentes simples, o legislador, no artº 33 do D/L 315/2009 de 29/10, decidiu também disciplinar especialmente esta matéria como crime – ofensa à integridade física negligentes – quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que animal ofenda o corpo ou saúde de outra pessoa causando-lhes ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 (dois) anos ou com pena de multa até 240 dias. O legislador deste diploma cria um crime de ofensas negligentes graves à integridade física, por falta de dever de cuidado ou vigilância sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos, com a mesma moldura abstracta que o crime de ofensa à integridade física grave previsto no artº 148 nº 3 do CP. O procedimento criminal depende sempre de queixa – ofensas simples ou graves. Nesta comparação o novo diploma estabelece dois requisitos: a ausência de um dever de cuidado e vigilância sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos e que a lesão causada configure ofensa grave à integridade física. A regra do artº 34 deste D/L (aplicação subsidiária) é tabelar e figura em quase todos os diplomas: em tudo o que não esteja expressamente previsto na presente secção são aplicáveis as normas constantes do CP, remissão transversal quer para a sua parte geral, quer para a sua parte especial. Acontece que, está quase tudo expressamente previsto neste diploma sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos, incluindo a recriação de um tipo legal próprio com uma moldura penal abstracta em tudo idêntica à do CP – as ofensas negligentes graves, produzidas por animais … são punidas com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Este diploma (315/2009) reitera no artº 36 nº 3, o disposto no artº 20 do RG das contra-ordenações e coimas (D/L nº 244/95 de 14 de Setembro) – quando a mesma infracção constitua crime e contra-ordenação, o agente é punido apenas pelo crime, podendo-lhe ser aplicadas as sanções acessórias previstas para a infracção criminal ou para a infracção contra-ordenacional (concurso de infracções).
O legislador reafirma princípios observados para qualquer concurso aparente ou normativo: consumpção imperfeita.
Esta situação só ocorre quando o facto típico é o mesmo, ou seja, quando o bem jurídico tutelado pelas normas em concurso é idêntico. O presente diploma é demasiado parcimonioso para que subsistam dúvidas e trata claramente determinadas condutas (ausência de dever de cuidado) como crime ou contra-ordenação. Por isso no seu artº 38 nº 1, alª r) prescreve, sem margem para dúvidas: a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas corporais à integridade física que não sejam consideradas graves, constitui contra-ordenação punível com coima de 750,00€ a 5.000,00€ (pessoa singular).
O presente diploma entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010.
A norma do artº 148 nº 1 do CP foi elaborada com a publicação do CP e posteriormente revista, reportando-se a um vasto leque de situações omissivas, pelo que não tem sentido aventar qualquer descriminalização (voltaremos a esta matéria) já que o legislador, com o novo diploma, pretendeu autonomizar a ausência de dever de cuidado sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos. Este diploma funciona como lei especial, distinguindo muito bem o que é crime do que é contra-ordenação, tudo depende do resultado, do tipo de lesão sobre o bem jurídico em discussão: integridade física.
Julgar que o disposto no artº 34 do citado diploma remete para o CP aplicação subsidiária), no sentido de disciplinar esta matéria com recurso ao artº 148 nº 1 do CP, é ir longe de mais, dizer o que legislador não quis, caso contrário não criava um tipo legal como o previsto no artº 33 (ofensas à integridade física negligentes), por contraposição ao do artº 32 (ofensas à integridade física dolosas). Aliás, se o artº 148 nº 1 do CP estivesse sempre de reserva para situações como esta e similares, nunca uma relação jurídica, por falta de vigilância com produção de ofensas não graves, integraria o normativo da contra-ordenação. De facto não tem sentido remeter condutas desta natureza (especiais) para o regime comum, uma vez que o legislador especial quis disciplinar esta matéria e para isso criou tipologias concretas e diferenciadas – artºs 32, 33 e 38 nº 1, alª r), todos do D/L nº 315/2009 de 29/10.
A ideia de que a classificação como crime ou contra-ordenação possa ficar à mercê de um critério formal – exercício do direito de queixa – é inconsistente e contraria todo o diploma especial – D/L 315/2009 de 29/10. A prevalência sobre o regime comum (artº 148 nº 1 do CP) deve ser encarada naturalmente, onde a vontade do legislador é expressa e inequívoca. O âmbito de aplicação das normas – regime geral e especial - é diverso, em alguns casos distinto. O D/L 315/2009 de 29/10 cobre todas as relações jurídico- penais desta natureza: dolosas (artº 32), negligentes (artº 33) e contra-ordenacionais (artº 38 nº 1, alª r), funcionando como um regime completo (auto-suficiente) para regular a detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia. Estas normas são especiais e disciplinam matéria muito concreta, cujo objecto acima definimos. As normas crime em confronto: artº 148 nº1 do CP e artº 33 do D/L 315/2009 de 29/10 têm por objecto relações jurídicas diferentes. O artº 148 nº1 do CP compreende um indeterminado número de condutas negligentes (omissões) que possam ofender o corpo ou a saúde. Inclui violação de um dever objectivo de cuidado generalizado, concretamente a diligência necessária para evitar a realização deste tipo legal de crime. Em ambos os artigos previstos CP e D/L, estamos perante um tipo de ilícito negligente. O crime de omissão imprópria descreve aquelas duas tipologias, onde a violação do dever objectivo de cuidado derivou de o garante não ter representado a sua posição, mais concretamente, não se ter apercebido correctamente da situação típica. Apesar de tudo, a amplitude das tipologias é bem diferente: no artº 148 nº1 do CP estamos perante a não observância geral de um dever de cuidado, enquanto no artº 33 do D/L nº 315/2009 de 29/10 o recorte tipológico descreve um dever de vigilância sobre animais, perigosos ou potencialmente perigosos, que produziram lesões, ofensas graves à integridade física. O tipo de culpa negligente é idêntico, manifestado num descuido ou leviandade face ao dever jurídico-penal mas, a sua concretização – descrição fáctica dos elementos do tipo – é distinta.
Não podemos deixar de expressar três aspectos que consideramos importantes em abono da tese proposta. Em primeiro lugar a criação de um diploma especial para disciplinar estas concretas matérias resultado de condutas omissivas – dever de vigilância sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos. Em segundo lugar, resultado da elaboração desta lei especial, o princípio da aplicação da lei mais favorável, com as consequentes hipóteses de descriminalização. Por último o recurso ao direito de mera ordenação social, com a criação de contra-ordenações, com propósito de satisfazer três ordens diferentes de objectivos: retirar do direito penal um largo número de infracções de nula ou duvidosa relevância ético-social, remetendo-as para o quadro do direito administrativo; a necessidade que essas infracções não fossem ameaçadas com penas criminais, mas com advertências sociais, sanções ordenativas ou coimas … e por último, a necessidade de revestir o processamento destas infracções, de especificidades que permitissem a aplicação das sanções pelos agentes administrativos encarregados da fiscalização e controlo das respectivas actividades. Neste sentido J. Figueiredo Dias – Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, fls 158.
A opção do legislador ao criar um diploma especial foi retirar estas matérias do quadro de aplicação do artº 148 do CP, como também teve em vista, ao criar uma contra-ordenação, afirmar uma distinção material, optando por sancionar a conduta apenas com uma coima. O princípio da subsidiariedade do direito penal vai até onde pode ir, porque é inegável a ampla autonomia do direito de mera ordenação social em categorias como: âmbito de vigência da lei contra-ordenacional; responsabilização de pessoas colectivas; culpa; erro e autoria. Obra citada, fls 164.
Em jeito de conclusão dizer ainda que a descriminalização e violação do princípio ne bis in idem merecem interpretação no quadro da lei especial. Efectivamente o artº 148 do CP não é descriminalizado porque a previsão da norma é muito ampla e vai para além do dever de vigilância de animais … O mesmo se diga quanto ao princípio ne bis in idem, já que claramente não está em causa. Os arguidos não vão ser julgados mais de que uma vez pelo mesmo crime porque a isso se opõe a lei especial que trata esta matéria como contra-ordenação, o que vale dizer que não há concurso aparente (consumpção) e no limite sempre funcionaria o disposto no artº 29 nº 5 da CRP…
Julgamos que esta é a melhor interpretação teleológica das normas em confronto, o que de resto é reforçado por interpretações históricas e literais dos preceitos concorrentes.
Por tudo, previsão da contra-ordenação (artº 38 nº 1, alª r do D/L 315/2009) é bem diferente. Refere-se à inobservância de deveres de cuidado e vigilância sobre animais … quando causam ofensas não graves à integridade física.
Posto isto, sabemos que os arguidos tinham o dever de vigiar o cão de modo a evitar eventuais lesões em terceiros, criando um risco não permitido. A produção do resultado deveu-se a falta de cuidado dos arguidos, que não evitaram, como podiam e deviam, a presença do animal na via pública, não adoptando os cuidados que lhes eram exigíveis para que o mesmo não fugisse do interior da sua residência, admitindo como possível que o animal nessas condições pudesse ofender a integridade física de alguma pessoa, como veio a suceder.
Resulta do despacho de pronúncia, suportado no exame medico-forense que o ofendido sofreu no crânio duas escoriações arredondadas … e as indicadas lesões demandaram oito dias para a consolidação médico-legal. Do evento resultaram para o ofendido, em termos de consequências permanentes, duas cicatrizes: uma na região peri-mamilar esquerda e outra ao nível da linha axilar anterior esquerda, que não desfiguram gravemente o ofendido nem interferirem com a sua capacidade formativa/geral.
A ausência de vigilância determinou o resultado: ofensa à integridade física porém, considerada como lesão não grave. Esta conduta integra o disposto no artº 38 nº 1, alª r) do D/L 315/2009 de 29/10.
Apesar desta conclusão vale a pena fazer um bosquejo sobre a marcha do processo e ver como a jurisprudência vem tratando esta matéria, não esquecendo o contributo da doutrina em termos de sucessão e interpretação de leis, com dominância do princípio da especialidade.
O tribunal, em momentos distintos, proferiu decisões diversas: em sede de inquérito o MP entendeu que os factos indiciados integram apenas a prática de uma contra-ordenação, o que levou ao arquivamento dos autos por ausência de responsabilidade criminal. Não obstante ordenou-se a extracção de certidões para serem enviadas à autoridade administrativa (Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária) para implementar o processo contra-ordenacional. O assistente requereu abertura de instrução por considerar que a prova indiciária constitui substrato bastante para ser proferida pronúncia-crime dos arguidos B… e C….
Nos termos do despacho recorrido o tribunal pronunciou os citados arguidos, deduzindo uma verdadeira acusação, onde lhes imputou a responsabilidade pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência – artº 148 nº 1 e 15 alª a), ambos, do CPP.
De facto há um amplo apoio interpretativo e jurisprudencial para que esta conduta seja integrada no crime de ofensas à integridade física por negligência. A ofensa à integridade física por negligência causada por um cão potencialmente perigoso, por descuido do seu proprietário, de onde não resultaram lesões graves, em que tenha existido queixa do ofendido, vem sendo punida pelo crime previsto pelo artº 148 nº 1 do CP, ficando excluída a punição da conduta a título de contra-ordenação, prevista no artº 38 nº 1, alª r) do D/L nº 315/209 de 29/10 – Processo nº 114/17.8AVRM.G1 do TRG – 10/02/2020 – Relator: Desembargador Armando Azevedo.
O mesmo se pode dizer do Acórdão da RP, com data de 10/10/2007, no processo nº 0743233, que trata precisamente de um cão pastor alemão protagonista de agressão a outra pessoa com produção de ferimentos. Aqui, seguindo-se o mesmo raciocínio, perante omissão imprópria, a falta de cuidado é manifesta, pois os donos tinham que admitir a possibilidade de o animal causar danos indesejados, nomeadamente ferimentos nas pessoas. Estando em causa ofensas corporais simples, e não graves, causadas pelo cão do arguido, que não teve cuidado em o vigiar, como lhe competia, e tendo o assistente apresentado queixa, existe crime de ofensas corporais simples por negligência. Apesar de esta ser a corrente jurisprudencial dominante, há alguns acórdãos que perfilham a integração da conduta como contra-ordenação – Acórdão do TRE, de 05/06/2012, no processo nº 193/10.9GACTX. in www.dgsi.pt, bem como o Acórdão do TRL, de 11/07/2018, no processo 73/16.4PHLRS-3, Relatora Adelina Barradas de Oliveira.a não observância de deveres de cuidado ou vigilância, que der azo a que um animal ofenda o corpo ou saúde de outra pessoa, causando-lhe ofensas à integridade física, que não sejam consideradas graves, integra a conduta prevista no artº 38 alª r) do D/L 315/2009 de 29/10.
Em nossa opinião, alguma doutrina e jurisprudência controversas encaminham-se para admitir um concurso de normas (concurso aparente ou normativo), sem que expressamente derroguem a norma prevista no artº 148/1 do CP. Desde que apresentada queixa, estabelece-se uma situação de concurso aparente entre o crime e a contra-ordenação, devendo o arguido ser punido a título de crime, esgotando-se o desvalor da contra-ordenação. O artº 36/3 do mesmo diploma é claro, pois quando o agente é punido simultaneamente a título de crime e contra-ordenação, prevalece o crime, podendo ser aplicadas sanções acessórias previstas para a violação destas normas. No presente caso a conduta é punida a título de crime e contra-ordenação porém como houve queixa deverá ser sempre punida como crime. Nesta senda vai também o Acórdão do TRP, de 10/05/2017, no processo nº 124/4.GBOAZ.P1, in www.dgsi.ptconstitui crime de ofensa corporal simples por negligência p. e p. pelo artº 148 nº 1 do CP as ofensas causadas por um cão de raça Rotweiler, cujo detentor não teve o cuidado de vigiar, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, pois caso não tivesse procedido desta forma estaríamos perante uma simples contra-ordenação, prevista pelo artº 38, nº 1, alª r) do D/L 325/2009, o que bem se compreende.
Estamos perante um crime de omissão imprópria. O resultado típico imputa-se ao arguido por não ter sabido evitar a sua produção, como se o tivesse produzido por acção, pois não era imprevisível o resultado, exigindo-se uma actuação diferente, com a diligência necessária para evitar a produção deste facto.
A ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida pelo artº 148/1 do CP, excluindo a contra-ordenação, prevista no artº 38/1, alª r), por subsidiariedade, ex vi artº 36/3, ambos do D/L nº 315/209 de 29/10.
No presente caso o que está em causa é uma ofensa simples à integridade física, considerada como não grave, causada por um cão potencialmente perigoso, consequência de descuido do dono. O caso mereceu queixa-crime mas esta circunstância não determina a qualificação da conduta. Este é apenas um critério formal (externo) inconsistente, perante o recorte das diferentes tipologias de crime e do tratamento autónomo destas matérias como contra-ordenação, desde que integrem o disposto no artº 38 nº 1, alª r) do D/L 315/2009 de 29/10.
Em jeito de conclusão podemos dizer que o artº 20 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas e o artº 36 nº 3 do D/L nº 315/2009 de 29/09 prevêem a hipótese de o mesmo facto constituir crime e contra-ordenação (concurso aparente), com a solução de que o agente será sempre punido a título de crime. A sucessão de leis no tempo pode ajudar à compreensão deste pretenso concurso.
O CP disciplinou a ofensa (simples) à integridade física por negligência de forma generalista, como falta de dever de cuidado, segundo o critério do artº 15 do CP. Aqui cabem inúmeras condutas omissivas, o que nos leva a falar de tipos abertos ou tipos omissivos impróprios, de que ao tipos negligentes são um bom exemplo – J. Figueiredo Dias – Direito Penal (Tomo I) Parte Geral – Coimbra Editora - fls 290. Já o diploma 315/2009 de 29/10 teve propósito claro de criar um regime jurídico quanto à detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia. Esta matéria – tipo de ilícito nos crimes de omissão – precisa o dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito de domínio próprio. O fundamento material geral residirá em que a comunidade tem de poder confiar em quem exerce um poder de disposição sobre um âmbito de domínio ou sobre lugar determinado, que se encontram acessíveis a outras pessoas, deve também dominar os riscos que para estas podem resultar de estados ou situações perigosas. Exemplo: os donos de animais perigosos … devem fiscalizá-los … Seguramente este caso de relações jurídicas tipificadas tem como pressuposto o dever de vigilância e o consequente dever de actuação no sentido de eliminação ou minimização do perigo J. Figueiredo Dias, Obra Citada, fls 946/947. Doutrina consequente (dever de garante no controlo das fontes de perigo) com Jescheck/Weigend – Tratado de Derecho Penal – Parte General – Editora Comares – fls 675 (§ 59, 4, alª b). Veja-se ainda (dever de vigilância de coisas perigosas e do próprio âmbito de domínio) Claus Roxin – Derecho Penal – Parte Especial – Editora Thomson Reuters - Tomo II, §32, nº 108, fls 885.
O que nos parece óbvio é afirmar que o legislador quis criar um diploma específico para disciplinar estas matérias, legislando o regime jurídico previsto no citado D/L 315/2009. Criou dois tipos distintos: um doloso e outo negligente, diferenciados de qualquer outro tipo omissivo impróprio previsto no CP. Por outo lado as teses do concurso, com prevalência para o crime, esvaziam de sentido a contra-ordenação prevista no artº 38 nº 1, al r) do citado D/L, regime que nunca seria aplicado, ao arrepio da vontade do legislador.
O critério formal/externo, centrado no exercício de queixa, como elemento diferenciador, para sancionar a conduta como crime, é no mínimo atrevido, por controverso. Se tivermos queixa podemos ter crime, caso contrário, a autoridade administrativa tratará a matéria como contravenção. O que define estas condutas como ofensas à integridade física dolosas; ofensas à integridade física negligentes e contra-ordenação são os distintos elementos materiais do tipo, muito bem vincados nas normas previstas nos artºs 32, 33 e 38 nº1 alª r) todos do D/L 315/2009 de 29/10.
Não sufragamos o despacho recorrido pelas razões acima invocadas. O arquivamento dos autos é a decisão mais consentânea com a legislação vigente, sem prejuízo da comunicação dos factos à autoridade administrativa, tudo como melhor descreve o despacho elaborado em inquérito pelo MP.

Nos termos e fundamentos expostos, acordam os juízes que integram esta 2ª Secção Criminal do TRP, em julgar procedente o recurso interposto pelos arguidos B… e C… e, consequentemente, ordenar a substituição do despacho recorrido (despacho de pronúncia), por outro que confirme o arquivamento.

Sem tributação.
Registe e notifique.

Nos termos dos D/L nº 10-A/2020 e D/L nº 20/2020 de 1 de Maio – artºs 3 (aditamento ao artº 15-A daquele D/L) e 6 – a assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal colectivo, nos termos previstos no nº 1 do artº 153 do CPP, aprovado pela lei nº 41/2013, de 26 de Junho, na sua redacção actual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.
Nestes termos atesto o voto do Juiz Desembargador Adjunto em conformidade com a decisão.

Porto, 24 de Setembro de 2020
Horácio Correia Pinto.
Moreira Ramos.