Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2/18.0PFGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ESCUTAS TELEFÓNICAS
MEIO DE RECOLHA DE PROVA
MEIO DE PROVA
PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO REO"
PROVA INDIRECTA
PROVA INDICIÁRIA
PROVA POR PRESUNÇÕES
CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES DE MENOR GRAVIDADE
PRESSUPOSTOS
BANDO
CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES
CONCEITO
OBJECTOS DO CRIME
PERDA DE OBJECTOS A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: RP202304192/18.0PFGDM.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: 14 RECURSOS; NEGADO PROVIMENTO 2 RECURSOS; PARCIALMENTE PROVIDOS 2 RECURSOS; TOTALMENTE PROVADOS
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – As escutas telefónicas, desde que efetuadas de acordo com as exigências legais, são meio legitimo de obtenção de prova e a transcrição das escutas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, e mesmo que constituam o único meio de prova, o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção, desde que segura, sem preterição do princípio “in dubio pro reo”.
II – Encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial
III – O tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes.
IV – Protegendo o crime de tráfico de estupefacientes, de forma imediata, a saúde pública, não pode deixar de reconhecer-se a existência de uma óbvia relação de proporcionalidade direta entre o volume de droga traficado e suas caraterísticas e a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido.
V – Não há nenhum critério absoluto para que possamos determinar a elevada compensação financeira, bem como o elevado número de pessoas a que se refere o artigoº 24.º da lei da droga, devendo tais conceitos serem preenchidos casuisticamente.
VI – O conceito de “bando”, circunstância agravante prevista na alínea j), integra uma situação de atuação ilícita intermédia entre a simples comparticipação criminosa e a associação criminosa, mais grave do que as situações de mera participação criminosa, embora menos censurável do que aquelas em que existe uma perfeita e definida "associação criminosa", integrando aquelas condutas em que, pelo menos, dois agentes atuam de forma voluntária e concertada, em colaboração mútua, com uma incipiente estruturação de funções, mas sem que possa já considerar-se como existente uma organização perfeitamente caracterizada, com níveis e hierarquias de comando e com uma certa divisão e especialização de funções de cada uma das suas componentes ou aderentes, como sucede na associação criminosa.
VII – Embora a lei não estabeleça nenhum critério rígido a seguir na determinação da medida concreta da pena única dentro da moldura do concurso, a prática jurisprudencial vai no sentido de, em casos que não fogem à normalidade, fazer acrescer à pena parcelar mais grave 1/3 das demais, oscilando para mais ou para menos consoante as específicas circunstâncias do caso e a personalidade do agente, bem como com o número de crimes, por forma a não se alcançarem penas excessivamente longas.
VIII – Do regime contido no artigo 35.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/1, não resulta a perda de qualquer objeto que haja servido para a prática do crime independentemente das circunstâncias dessa utilização, pois que a sua aplicação pressupõe uma ponderação concreta, que inclui um juízo sobre a essencialidade do objeto na prática da infração e sobre a causalidade e a proporcionalidade da perda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2/18.0PFGDM.P1

Apreciando os fundamentos dos recursos.
Bairro... – arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ.

I) Recurso do arguido AA.
a) Nulidade do acórdão (artigos 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) e 374.º, n.º 2, do CPP).
Considera o recorrente que, da leitura da motivação da decisão de facto constante da decisão recorrida, não se torna percetível por que forma o tribunal a quo chegou a uma concreta decisão quanto à factualidade controvertida – invocando que o tribunal, para além de ter valorado prova proibida, baseou-se fundamentalmente na sua convicção, sem suporte probatório -, encontrando-se a decisão insuficientemente fundamentada.
Decorre do disposto no n.º 2, do art.º 374.º do CPP – que regula os requisitos da sentença – que ao relatório segue-se a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [1], “A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).”.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.[2]
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01).
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
Contudo, e como se adverte no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2/10/2018 [3], “A lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.”
Por fim, importa salientar que “O exame crítico exigido pela lei não se basta com a apreciação das provas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada. Do juiz exige-se muito mais que análises fragmentárias, parcelares e descontextualizadas do material probatório que tem à sua disposição. O que o legislador pressupõe é um juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do seu conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que tem ao seu dispor, analisando e valorando as provas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.” [4].
Na formulação do acórdão deste TRP de 7/6/2017 [5], o exame crítico dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento “só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu.”.
No presente caso, resulta claramente da leitura da decisão recorrida que inexiste ausência ou, sequer, insuficiência da fundamentação, encontrando-se enunciados, especificadamente, os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, permitindo a fundamentação compreender de forma suficientemente clara e precisa – e com a amplitude adequada à complexidade da causa - os motivos e a construção do percurso lógico da decisão, segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum, não se restringindo a uma adesão acrítica da prova, cumprindo-se, desta forma, o ónus imposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.
A discordância do recorrente quanto à forma como o tribunal valorou a prova – abundante, de resto, como se depreende da leitura da extensa fundamentação do acórdão recorrido – de modo nenhum se confunde com a patologia invocada que, claramente, não se verifica no presente caso e, por isso, em nada contende com a validade formal da decisão de que nos ocupamos.
*
Dispõe também o artigo 379.º, n.º 1, na sua alínea c), que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Deste modo, a sentença é nula, designadamente, quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre factos concretos da acusação, da pronúncia ou da contestação que sejam relevantes para a boa decisão da causa.
Considera o recorrente que o tribunal de primeira instância não se pronunciou, como devia, sobre a “questão do dinheiro apreendido”, incorrendo, por isso, na nulidade apontada.
Vejamos se lhe assiste razão.
Importa, sobre esta matéria, desde já observar que tem sido entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores que só se verifica omissão de pronúncia quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não as simples razões, argumentos, opiniões, motivos ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respetivas posições. [6].
Analisada a decisão recorrida, verificamos que nela, efetivamente, o tribunal a quo debruçou-se sobre a questão da proveniência e titularidade do dinheiro encontrado na residência do arguido e que veio a ser apreendido, afirmando que lhe pertencia e provinha do negócio de tráfico de estupefacientes a que ele se dedicava (cf. o ponto 139) da matéria de facto provada).
É certo que a fundamentação da convicção do tribunal quanto à proveniência ilícita e à titularidade das quantias monetárias apreendidas (para além dos outros objetos) não é prolixa, mas, ainda assim, suficiente e perfeitamente adequada, permitindo compreender com clareza e precisão os motivos e a construção do percurso lógico da decisão (cf. páginas 15.309, 15.349, 15.433 verso a 15.435 verso).
Improcede, assim, na totalidade o presente fundamento do recurso, não se verificando a nulidade do acórdão recorrido por inexistência de fundamentação ou omissão de pronúncia.
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b) Contradição insanável da fundamentação (art.º 410.º, n.º 2, b) do CPP) e impugnação da matéria de facto – em particular, a invocada violação do princípio da livre apreciação da prova.

Defende o recorrente que o tribunal de primeira instância incorreu no vício de contradição insanável da fundamentação, no que concerne à matéria de facto constante dos pontos 84) e 197). Invoca, para além disso, que a matéria de facto integrante dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito por que foi condenado foi incorretamente julgada, inexistindo qualquer prova objetiva e concludente da sua participação na execução do crime de tráfico de estupefacientes em apreço, baseando-se unicamente o tribunal em meios de prova inválidos e em meras presunções para fundamentar a sua convicção, tendo, por isso, sido violado o princípio da livre apreciação da prova.
Vejamos se lhe assiste razão.
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cfr. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
A impugnação da matéria de facto baseada no chamado recurso de «revista ampliada» reconduz-se às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [7].
O vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, abrange, na verdade, dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [8].
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Efetuada esta exposição introdutória analisemos, em concreto, as razões de discordância explanadas pelo recorrente em relação à decisão recorrida.
O ponto 84) da matéria de facto provada tem o seguinte teor: “O arguido AA tinha um papel muito ativo na rede, ocupando uma posição hierarquicamente superior, mas não concretamente determinada, dando ordens aos seus membros e estando presente de forma assídua nas atividades de venda no ..., conferindo as contas diárias e chegando a proceder igualmente à venda de estupefacientes”.
O ponto 197) tem a seguinte redação: “No dia 07-11-2019 o arguido KK acompanhou os arguidos AA e JJ na viagem efetuada ao Algarve e Espanha, sendo que no regresso, já na zona do Porto, o arguido LL foi abordado pela autoridade policial, tendo na sua posse a quantia monetária de €20.000,00, vários telemóveis e vários cartões de operadoras móveis”.
Ora, analisada a decisão recorrida não descortinamos qualquer contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, muito menos insanável, sendo certo que o vício em causa não se confunde com a diversa perspetiva do recorrente em relação á apreciação da prova efetuada pelo tribunal.
Relativamente à factualidade constante do ponto 84), é evidente que não se verifica qualquer contradição insanável da fundamentação, explicitando o tribunal, de forma cristalina, por que motivo ficou convencido de que o arguido AA ocupava uma posição hierarquicamente superior - já que emanava ordens que eram acatadas pelos restantes membros do grupo -, muito embora não pudesse afirmar com certeza que figurava como o segundo elemento com mais poder no grupo, imediatamente a seguir ao respetivo líder (o arguido LL) – cf. fls. 15.349/15.350.
De resto, a circunstância de o tribunal não conseguir precisar qual a concreta posição hierárquica ocupada pelo recorrente no seio do grupo (se figurava em segunda, terceira ou quarta posição) nada tem de contraditório com a afirmação de que detinha um cargo com poder e autoridade e, por isso, assumia uma posição hierarquicamente superior.
No que concerne ao ponto 197) da matéria de facto provada, argumenta o recorrente que do texto do acórdão “retira-se uma contradição entre a factualidade provada e a prova produzida”, acrescentando que tal matéria foi amplamente discutida na audiência de discussão e julgamento, tendo sido reconhecido que o recorrente não se deslocou ao Algarve na companhia dos demais, pelo que o tribunal terá incorrido num lapso.
Contudo, mais uma vez o recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que a divergência assinalada não se afigura patente pela simples leitura da decisão recorrida.
Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso.
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Relativamente à modalidade de impugnação (ampla) a que alude o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão. [9]
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Além disso, não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas imponham a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Como bem se expende no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 [10], “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.[11].

Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que sem sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [12]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [13].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [14] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
O arguido AA anuncia, no recurso, pretender impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal de primeira instância. Contudo, é manifesto que não foi observado o ónus de impugnação especificada, não tendo o recorrente procedido à indicação das concretas razões da sua discordância relativamente aos pontos de facto impugnados – cuja identidade desconhecemos, uma vez que não se encontram individualizados -, por referência às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP), o que preclude a possibilidade de sindicar a matéria de facto sob a perspetiva da impugnação ampla [15], sem prejuízo, porém, da possibilidade de análise da decisão sobre a matéria de facto no âmbito da revista alargada a que alude o art.º 410.º, n.º 2, do CPP. Com efeito, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”, sendo patente a partir da leitura da decisão recorrida, pode consubstanciar um “erro notório na apreciação da prova”, vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
O “erro notório na apreciação da prova” refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[16]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [17].
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No presente caso, o tribunal a quo explicitou claramente e de forma perfeitamente lógica na decisão recorrida as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [18] de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido dolosamente.
Especificamente sobre a participação do recorrente AA, o tipo de funções por ele desempenhadas e posição hierárquica ocupada escreveu-se no acórdão recorrido, designadamente, o seguinte (fls. 15.349/15.350):
«Quanto ao arguido AA a sua participação na atividade de tráfico é inequívoca, havendo muitas referências nas variadíssimas escutas constantes dos autos (conversas dos arguidos LL, HH, DD, EE, BB, etc indicadas na acusação e que aqui se dão por reproduzidas) da presença do AA na Banca ....
Tal facto também foi percecionado pelos agentes investigadores, sendo o relatório de vigilância de 09/03/2020 (fls. 3310, volume 11) um elemento fulcral da participação do arguido AA nessa rede, pois que revelou um enorme à vontade na entrada na banca de venda e além disso, saiu do local numa trotinete que tinha acabado de ser trocada por estupefaciente e com um saco na mão, que não trazia quando entrou na banca, o que nos leva a concluir que transportava algo que estava dentro do ..., havendo uma grande probabilidade de ser dinheiro resultante dessas vendas. Tal facilidade na entrada e saída da banca foi visualizada em 26, 27 e 30 de Março de 2020, conforme se pode constatar dos respetivos relatórios de vigilâncias de fls. 8000 e sgs.. Também a enorme quantidade de dinheiro que lhe foi apreendida em sua casa é mais um elemento a comprovar a atividade delituosa do AA, o mesmo se passando na apreensão efetuada em 13/03/2020.
Já quanto à função que exercia, os elementos que possuímos não são tão avassaladores para podermos retirar idêntica conclusão como aquela que foi formulada no libelo acusatório. Na verdade e para além das célebres conversas do arguido HH com a MM em que este contava tudo o que se passava na banca e em que chegou a referir que o AA o tinha despedido (sessão 04015, fls. 2058 vol. 7), mas que o LL o voltou a admitir e noutras conversas em que o HH se referia ao AA como alguém que também mandava na banca, de alguém que lhe vendeu estupefaciente e lhe passou a perna (sessão 12998 anexo 38) ou então das conversas em que contou do alegado negócio que correu mal em Espanha e do que se passou a seguir em Portugal, com roubos agressões e facadas (AA teria sido esfaqueado numa perna) e de uma conversa entre o NN e o OO em que o primeiro se mostra muito agastado com o arguido AA, não temos qualquer outro elemento que nos indique com clareza quais as funções que aquele efetivamente desempenhava e o seu grau na hierarquia, ao contrário do arguido LL e de outros arguidos cuja atividade a seguir analisaremos.
Para os agentes investigadores o AA era o número 2, mas da prova produzida não podemos concluir tal facto, apenas se sabendo que o arguido AA tinha uma participação ativa no processo de venda, embora não se saiba exatamente qual. Que era alguém com poder naquele grupo não restam dúvidas, pelas conversas escutadas (aqui se incluindo as mensagens enviadas via facebook), pelo acesso mais direto e por outras vias de comunicação ao LL (falava com ele através de aplicações especiais), pelo livre acesso à zona de venda, etc. Já a sua posição concreta – se era o número dois na hierarquia, amigo de confiança do LL, segurança, negociador, facilitador de contatos com consumidores ou vendedores, etc, é algo que não se logrou apurar, pelo que à mingua de elementos probatórios, apenas podemos dar como assente que o AA participava no negócio da venda (pelos argumentos já aduzidos e que a seguir enunciaremos igualmente quando nos referirmos aos concretos episódios de tráfico) e que era alguém com poder dentro da hierarquia pois emanava ordens que eram acatadas pelos restantes membros. Esclareça-se também que o facto do arguido AA ter despedido o HH ou estar presente no encerramento da banca, como resulta da conversa de 26/05/2020 do EE com a sua companheira em nada nos esclarecem, pois que o despedimento poderia advir de motu próprio ou limitar-se a cumprir uma ordem do LL, enquanto que o facto de estar no encerramento da banca pode ser interpretado de várias formas – era simples transportador, segurança, fazia a contabilidade, era efetivamente o dono do negócio, etc.
A conversa com a testemunha PP a dizer que tinha estupefaciente (fls. 462 do anexo B) e a conversa com a sua companheira a falar de milhares de euros de negócios com Albaneses (fls. 468) também são indícios de que o AA tinha poder naquele grupo e até podia ser líder (liderança bi-partida), mas a segurança necessária ao processo penal não nos permite concluir com a certeza devida quais as exatas funções do arguido AA naquele grupo, pelo que apenas concluiremos pela sua efetiva participação e por uma posição importante no seio do mesmo, nada mais podendo concluir.»

Na verdade, o recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que o tribunal não incorreu em “erro notório na apreciação da prova”. Com efeito, de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
É verdade que o tribunal “a quo” valorou o conteúdo de conversas mantidas entre outros intervenientes, objeto de escutas telefónicas, dando conta da presença do arguido AA na Banca ... e corroborando a sua participação na atividade de tráfico de estupefacientes investigada e julgada nos autos.
Contudo, e diversamente do que defende o recorrente, não só a prova em que se apoiou o tribunal para fundar a sua convicção não se restringe a esses elementos, resultando claramente da leitura da decisão recorrida que foi igualmente tida em conta diversa prova documental de outra natureza (relatórios de vigilâncias levadas a cabo pela entidade policial e transcrições de escutas que tinham por alvo o próprio arguido) e prova testemunhal, como também a valoração daquele meio de prova não configura um procedimento proibido pela nossa lei processual penal ou constitucional.[19]
Como é assinalado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3/3/2021 (Nuno Pires Salpico, in www.dgsi.pt), reproduzindo o acórdão de 1/6/2016, proferido por este tribunal, no processo n.º 1345/10.7JAPRT.P1, as escutas telefónicas, desde que efetuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova e a transcrição das escutas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127.° do Código de Processo Penal. Mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção. A escuta, legalmente permitida e validamente efetuada, é um meio de prova autónomo apto a provar o conteúdo da própria conversação intercetada e registada.
Concluindo: as escutas telefónicas são um meio de obtenção da prova, mas as conversações recolhidas através dessas interceções constituem um meio de prova; transcrito e inserido no processo, o conteúdo das gravações passa a constitui prova documental, submetida ao princípio da livre apreciação da prova: as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art.º 127º do Código de Processo Penal).
A aferição indiciária/probatória (consoante a fase do processo) que as conversações transcritas possam ter, enquanto meio de prova (e não como meio de obtenção de prova), dependerá do seu conteúdo e contextos, da colocação dos sujeitos no espaço e no tempo e na interação que tenham entre si, articulados com a conduta delitual que lhes esteja imputada nos autos. A interpretação do conteúdo das conversações telefónicas é estritamente norteada pelas regras da lógica, segundo as normas da experiência comum, numa abordagem marcadamente normativa e conservadora de aferição probatória (como, aliás, sucede com os restantes meios de prova).
Como também é observado no mencionado acórdão do TRP, de 3/3/2021, embora possam assumir, por si só, ou não, um relevo auto-suficiente, a relevância do impacto indiciário das transcrições das escutas tem sido discutido na Jurisprudência, podendo em determinadas circunstâncias ter um valor indiciário acrescido, ou nenhum.
A jurisprudência tem expresso orientações matizadas, oscilando entre a que defende serem as conversações telefónicas aptas a ser valoradas pelo tribunal, em confronto com os demais elementos de prova, constituindo premissas atendíveis na prova indireta (o cotejo das conversações transcritas com outros meios de prova, sobretudo quando através dessas conversações se contextualiza um acontecimento comprovado por vigilâncias coevas ou a seguir realizadas, ou mesmo quando se relacionam com factos ocorridos alguns dias depois; ou quando na sequência histórica das escutas os interlocutores fazem alusão a entregas de estupefaciente ocorridas recentemente à data).

No entanto, a relevância probatória/indiciária das conversações telefónicas e de SMS transcritos, com mais frequência do que se possa imaginar, pode ter uma importância autónoma, podendo até afirmar-se que, em determinado contexto, constitui prova direta (na classificação entre provas diretas e indiretas), entendida esta como o meio de prova que corporiza expressamente o iter típico do crime cometido pelo agente.
Neste conspecto há a ponderar a relevância das conversações transcritas, face à dimensão típica dos delitos em discussão. Em crimes onde a tutela penal é antecipada a uma gama alargada de atos, como é o caso do delito de tráfico de estupefacientes (que noutros crimes seriam atos preparatórios), essas conversações adquirem uma relevância acrescida como meio de prova, não só para comportamentos típicos de detenção; disponibilidade de estupefaciente para venda, assim como o seu transporte. Também determinadas conversações transcritas podem constituir meio de prova direto, e não de mero recurso indireto ou de sustentação de presunções, concretamente quando os interlocutores discorrem sobre o concreto plano de atuação conjunta em coautoria, prévio à execução do crime que cometem adiante; no caso das conversações que evidenciam o dolo dos agentes interlocutores, sendo que esse facto subjetivo é de extrema importância para a integração típica dos delitos (no caso, por exemplo, de detenção de estupefaciente apreendido, discutindo-se se o agente visava o consumo ou a venda).
No presente caso, não só as escutas telefónicas foram validamente obtidas, como também se afigura manifesto, perante a leitura da decisão recorrida, que o tribunal a quo valorou o conteúdo das conversações transcritas, não de forma isolada, mas em conjugação com os demais meios de prova analisados, atribuindo-lhe, portanto, um valor meramente indiciário quanto à demonstração dos factos imputados ao arguido/recorrente.
É de notar, para além disso, que este meio de prova, mesmo quando resulte da interceção de conversações mantidas entre outros intervenientes, mas com referência ao arguido/recorrente, não se confunde, obviamente, com os “depoimentos indiretos”, cuja possibilidade de valoração pelo tribunal, como meio de prova, encontra-se regulada no art.º 129.º do CPP.
Também as conclusões extraídas pelo tribunal a quo a partir da globalidade da prova, criticadas pelo recorrente – para além das constantes do ponto 84), já analisado, e dos pontos 123) e 139), as contidas nos pontos 313) a 316), isto é, os factos relacionados com o dolo do arguido -, não merecem qualquer censura, já que se encontram apoiadas em raciocínios indutivos lógicos e congruentes com as regras da experiência comum.
Neste âmbito, importa desde logo salientar que o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além da dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.
Na verdade, “como todos os juízos históricos, o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidades sobre a verdade ou falsidade de certas proposições. Quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a «certeza subjetiva» da veracidade da correspondente afirmação de facto” (Margarida Lima Rego, “Decisões em ambiente de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais”, Revista Julgar, n.º 21, Set/Dez de 2013, p. 121).
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [20].
Além disso, encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.
De resto, a associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objetivos e regras objetivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.[21]
Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[22]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração da autoria dos crimes imputados ao arguido/recorrente, da verificação do dolo na respetiva execução[23] e, para além disso, da proveniência ilícita da quantia monetária apreendida na sua residência.[24]
Deste modo, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio da livre apreciação da prova e, ainda, pelo princípio in dubio pro reo [25] (sendo certo que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [26], inexistindo, portanto, erro notório na apreciação da prova.[27]
Como se observa no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 [28], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto […]”.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto no que tange ao recorrente AA.
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c) Dosimetria da pena.
O recorrente discorda da concreta dosimetria da pena de prisão determinada pelo tribunal de primeira instância, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
O crime de tráfico de estupefacientes cometido pelo arguido/recorrente é punido com pena de prisão com o limite mínimo de 5 e máximo de 15 anos (cf. o art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22/1).
Como é sabido, a pena visa finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena [29].
O parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados estabelecendo, em concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar, não satisfazendo a pena a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas - hipótese em que a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração”.
Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária.
Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização [30].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71.º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [31].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente [32].
Importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
E, coincidentemente, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/06/2015 (disponível em www.dgsi.pt): “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”.
A propósito da determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente AA, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
“- a ilicitude do facto, é média, já tendo em conta que estamos perante um crime de tráfico de estupefacientes qualificado, bem como tendo em conta que o arguido ocupa uma posição de relevo e liderança dentro do grupo.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
-a prevenção especial faz-se sentir com alguma força, pois que não obstante o arguido ter antecedentes criminais não muito relevantes, certo é que a sua personalidade evidenciada nos factos que aqui praticou, nos fazem temer pela continuação da atividade criminosa.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido AA a pena de 6 anos de prisão.”.
Verificamos, assim, analisada a decisão recorrida, que todos os fatores relevantes foram atendidos, sendo certo que o tribunal a quo ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial, que decorrem da circunstância de o recorrente apresentar antecedentes criminais (embora pela prática de ilícitos de natureza diversa) e uma trajetória de vida caraterizada pela desinserção socioprofissional; teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
É de notar que a ilicitude do crime de tráfico de estupefacientes praticado pelo recorrente é acentuada, considerando a quantidade e natureza dos produtos estupefacientes transacionados (nomeadamente, cocaína e heroína, estupefacientes de elevada toxicidade), o caráter de habitualidade da atividade de tráfico, a sua reiteração ao longo do tempo e o grau de sofisticação revelado (com recurso a diversos “colaboradores” e locais para guardar dinheiro e droga), circunstâncias estas que, associadas à posição hierárquica por ele ocupada na estrutura do grupo (próxima do líder), exasperam as exigências preventivas, para além de revelarem um grau de culpa elevado.
Consideramos, assim, que na medida concreta em que foi fixada, a pena de prisão mostra-se ajustada à medida da necessidade de prevenção geral - assegurando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada [33] – e especial – sobretudo na sua vertente negativa, de dissuasão ou intimidação -, mostrando-se preservado o limite consentido pela culpa (elevada) do recorrente.
Em conclusão, não vislumbramos qualquer excesso ou desproporção da medida concreta da pena de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
Com efeito, a premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada, decorrente da específica danosidade social do tipo de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) justifica a aplicação da pena de prisão na medida determinada pelo tribunal.[34]
Fixada em medida inferior, tal pena – fixada num quantum ainda próximo do limite mínimo da moldura abstrata - seria desajustada ao grau de ilicitude do comportamento do recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
Improcede, deste modo, na totalidade, o recurso do arguido AA.
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II) Recurso do arguido EE.
a) Impugnação da matéria de facto.
Sustenta o recorrente EE que a matéria de facto que o tribunal considerou provada, e que aponta para o seu envolvimento na rede de tráfico de estupefacientes montada no Bairro..., foi incorretamente julgada, devendo transitar para o elenco dos factos não provados.
Acrescenta que, a ser condenado, apenas poderia sê-lo pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, considerando a quantidade de estupefaciente encontrada na sua residência e que foi apreendida.
A propósito da apreciação dos elementos de prova quanto à participação do arguido EE na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida no Bairro..., sob a liderança de LL, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
“No que concerne à arguida QQ e ao arguido EE, a sua função já foi analisada aquando da fundamentação da liderança do arguido LL e do contrato de arrendamento em questão, pelo que a demos por reproduzida.[35]
A acrescentar temos que não foi feita qualquer prova adicional quanto a uma linha de venda autónoma, resultando dos telefonemas e conversas mediante aplicações sociais, a que alude a acusação, que a arguida QQ conhecia perfeitamente o funcionamento da banca e que por isso deu informação à sua amiga QQ do modo de funcionamento (isso também resulta do depoimento da testemunha QQ e da arguida QQ).
Já em relação ao arguido EE a sua presença constante na banca, as constantes alusões à sua presença por parte do arguido HH em conversas que mantinha com terceiros, as conversas que manteve designadamente:
- ALVO:109213060 Sessões (20032), Pag.3356 - Vol.11
- ALVO:111049040 Sessões (11166), Pag.3364 - Vol.11
Cf. Relatório Pericial de Análise do objeto n.º 78, contante de fls. 395 a 425 do ANEXO B.
- ALVO:111049040 Sessões (03693), Pag.2988 - Vol.10
– ALVO:111049040 Sessões (05248, 05255, 05266, 05268, 05269, 05271, 05283), Pag.3069 - Vol.10
- ALVO:111049040 Sessões (10044,10046), Pag.3363 - Vol.11
- Alvo 111049040-EE “RR”, Sessão 11532 ALVO:113360050 Sessões (09289,09291,09292)
bem como estupefaciente e dinheiro apreendidos em casa deste arguido (vide auto de busca de pág. 4320 e sgs. e exame toxicológico ao produto estupefaciente apreendido – relatório do exame Nº 202002809 –NTX, Documento 2020-08-07 Pag.7413 e teste rápido n.º 17969/2020) analisados à luz do senso comum e dentro do quadro fático que sempre aludimos, fazem-nos concluir que este arguido além de “estar na casa” colaborava ativamente no negócio de compra e venda de estupefaciente, fazendo vendas quando era preciso, guardando estupefaciente como o fez em diversas situações, guardando dinheiro quando não era seguro o seu transporte e providenciando pela segurança da banca e acompanhando o líder e outros elementos de banca nas deslocações e noutras atividades relacionadas com o negócio. Esclareça-se finalmente que as conversas mantidas em 06/02, 16/03 e 11/06, todas do ano de 2020 apenas comprovam o envolvimento do arguido EE na rede de tráfico de estupefacientes, nada nos apontando para que tivesse uma linha particular de venda, pelo que não a demos como assente.”
O recorrente, sem observância do ónus de impugnação especificada legalmente imposto, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos no acórdão recorrido, sendo da análise conjugada dos meios de prova analisados (e, com particular relevo, a prova documental contida no processo) - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
Verifica-se, ainda, que os elementos de prova que o recorrente indica para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal (fundamentalmente, as suas próprias declarações, manifestamente inverosímeis) não impõem, efetivamente, decisão diversa da recorrida, resultando claramente do conjunto da prova apreciada pelo tribunal, tal como se encontra enunciada na decisão recorrida, que o recorrente desempenhava funções na Banca ..., sob a direção e liderança do arguido LL, competindo-lhe, designadamente, guardar produto estupefaciente e dinheiro na casa do rés do chão do n.º ... do Bairro..., procedendo a entregas quando necessário e conservando na sua posse a chave que permitia o acesso à casa “blindada” situada imediatamente por cima (no 1º andar), onde se concretizavam as vendas de produto estupefaciente aos consumidores (cf. os pontos 89 e 90 da matéria de facto provada).
Em suma, resulta claramente do texto da sentença recorrida que o tribunal a quo efetuou um rigoroso e exaustivo exame crítico das provas, descrevendo quais as declarações/depoimentos que lhe mereceram credibilidade ou não, e expondo as respetivas razões lógicas e de ciência de forma clara e conforme com as regras da experiência.
Da análise dos elementos de prova de que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, expressamente referidos na motivação, não resulta que o tribunal tenha apreciado arbitrariamente a prova produzida ou que tenha incorrido em qualquer erro lógico – bem pelo contrário.
Na verdade, o que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
Nenhuma censura merece, assim, a firme convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida (tal como se encontra explanada na decisão recorrida), aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo [36] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao recorrente, nem tal dúvida se evidencia perante a prova produzida) [37].
Resta-nos, deste modo, confirmar integralmente a decisão da matéria de facto contida no acórdão recorrido quanto ao arguido EE.
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b) Convolação para o crime de tráfico de menor gravidade.

Baseando-se na premissa de que os factos que lhe foram imputados, integradores da prática de um crime de tráfico de estupefacientes no âmbito da atividade desenvolvida no Bairro..., não resultam demonstrados, conclui o recorrente que o seu comportamento deverá ser integrado na previsão do tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º do DL n.º 15793, de 22/1, podendo unicamente ser-lhe assacada responsabilidade pela detenção do produto estupefaciente (haxixe, com o peso de 79,89 gramas) que veio a ser encontrado na sua residência.
É evidente, porém, que não lhe assiste razão, desde logo porque a premissa em que assentou o seu raciocínio não se verifica.
Com efeito, e diversamente do que sustenta o recorrente, a sua participação na atividade de tráfico desenvolvida no Bairro..., nos moldes já antes explicitados, resultou claramente demonstrada, e de modo algum pode ser caraterizada como sendo de “menor gravidade”.
O tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes, como é assinalado no acórdão do STJ de 13/9/2018 [38].
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”.
Em conclusão, não só não ficou demonstrado que o recorrente limitou-se a deter aquela quantidade de produto estupefaciente, como também a sua contribuição para o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes prosseguida no Bairro..., considerando a relevância das tarefas que lhe estavam atribuídas e a sua execução prolongada no tempo, impedem a integração da sua conduta no tipo privilegiado contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.[39]
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso.
*
c) Dosimetria da pena de prisão e pena de substituição (suspensão da execução da pena de prisão).
Discorda o recorrente da pena concreta que lhe foi aplicada – 5 anos e 6 meses de prisão -, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
A propósito da determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente EE, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21/24 não é muito elevada atenta a posição mais baixa, em termos hierárquicos que o arguido desempenhava no seio do grupo ..., embora não nos podemos esquecer da importância da sua função.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com grande incidência sendo inúmeros os antecedentes criminais do arguido, estando em período de liberdade condicional quando praticou os factos aqui em causa.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido EE a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.»

A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.
A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[40]
Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).
A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Além disso, importa, mais uma vez, salientar que, também nesta matéria, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas.
No presente caso, nenhuma desproporção encontramos na medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente – já muito próxima do limite mínimo abstratamente aplicável -, quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
Com efeito, e como fez notar o tribunal de primeira instância, o facto de o recorrente contar com diversas condenações prévias em penas de prisão e de ter cometido o presente ilícito no decurso do período de liberdade condicional que lhe havia sido concedida, configura um circunstancialismo que exaspera as exigências preventivas, para além de revelar um grau de culpa elevado.
Consideramos, assim, que na medida concreta em que foi fixada, a pena de prisão mostra-se ajustada à medida da necessidade de prevenção geral - assegurando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada [41] – e especial – sobretudo na sua vertente negativa, de dissuasão ou intimidação -, mostrando-se preservado o limite consentido pela culpa (elevada) do recorrente.
A pena concreta de prisão aplicada ao recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução (art.º 50.º do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso que, deste modo, improcede na totalidade.
*
III) Recurso do arguido FF.
a) Nulidade do acórdão.
Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, na sua alínea c), que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Considera o recorrente que o tribunal de primeira instância não ponderou, como devia, a aplicação de uma pena de multa a título principal pelo crime de detenção de arma proibida, incorrendo, por isso, na nulidade apontada.
Mas não lhe assiste razão, resultando claramente do teor do acórdão que o tribunal de primeira instância ponderou a possibilidade de aplicação de tal pena não detentiva, tendo concluído pela sua inadequação.
Com efeito, a propósito desta questão escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (fls. 15.436 verso - segue transcrição): “Ainda antes de procedermos á analise e aplicação casuística das penas, há que prestar um esclarecimento que se prende com o facto de alguns arguidos estarem igualmente acusados da pratica de crimes puníveis com pena de multa e de prisão, designadamente pela prática de crimes de detenção e arma proibida e condução sem habilitação legal. Ora, em todas essas situações, os arguidos vão igualmente ser condenados em pena de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, não fazendo sentido aplicar pena de multa e prisão, antes fazendo mais sentido, face essencialmente às necessidades de prevenção especial, aplicar uma pena única de prisão a esses arguidos.”.
A fundamentação contida na decisão recorrida, embora parca, ainda se mostra suficiente para assegurar a exigência de apreciação da viabilidade de aplicação de pena não detentiva, tarefa que constitui um poder/dever do tribunal, no sentido de evitar, tanto quanto possível, a aplicação da pena de prisão.
Improcede, assim, o presente fundamento do recurso, não padecendo o acórdão recorrido da nulidade invocada.
*
b) Contradição insanável da fundamentação e a questão dos “factos genéricos”.
Defende o recorrente que o tribunal de primeira instância incorreu no vício de contradição insanável da fundamentação, no que concerne à matéria de facto constante dos pontos 87) e 94). Invoca, para além disso, que “deve ser dado como não escrito, pois configura facto genérico, porque não se individualiza onde quando e a quem e as circunstâncias concretas, tanto mais que ao recorrente só lhe imputam duas concretas situações”.
Comecemos por analisar a questão da “contradição insanável da fundamentação” invocada pelo recorrente.
Como já tivemos oportunidade de referir a propósito da análise dos fundamentos do recurso do arguido AA, o vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, abrange, na verdade, dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [42].
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Ora, o ponto 87) da matéria de facto provada tem o seguinte teor: “O arguido OO, procedia ao transporte do estupefaciente das casas de recuo para a banca de venda, tendo tal tarefa sido desempenhada pelo arguido DD pelo menos no dia 11/03/2020.”.
Já o ponto 94) tem a seguinte redação: “O arguido FF guardou, pelo menos por 2 ocasiões, estupefaciente em sua casa, entregando o estupefaciente aos outros arguidos para procederem à venda direta aos consumidores.”.
Analisada a decisão recorrida não descortinamos qualquer contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, muito menos insanável.
O recorrente também não apresenta qualquer contributo válido para a demonstração da ocorrência do referido vício decisório, já que não aponta qualquer contradição intrínseca entre os factos descritos nos aludidos pontos da matéria de facto provada, entre eles e os factos não provados ou, ainda, entre aqueles factos e a fundamentação da decisão.
A circunstância de existirem diversos intervenientes no grupo partilhando funções idênticas, como sugere o conteúdo da aludida matéria de facto tida por provada pelo tribunal a quo, não só nada tem de anómalo no contexto duma atividade de tráfico de estupefacientes, como também de modo algum se confunde com a patologia extrema na confeção da decisão em que radica o vício decisório em questão.
Como bem se refere no acórdão recorrido (cf. fls. 15.315), “[…] este tipo de negócio é muito dinâmico, havendo sempre uma constante troca de posições e de tarefas dentro de uma organização, sendo também muito normal, até para despistar a policia, a constante mudança de casas de recuo e de operadores, pelo que não há qualquer contradição quando por vezes dizemos que a função do arguido era uma e logo a seguir foi outra, bem como quanto identificamos vários arguidos como desempenhando a mesma função”.
Inexistindo qualquer contradição da fundamentação, vejamos, agora, a questão dos “factos genéricos” invocada pelo recorrente.
Dispõe o art.º 283.º n.º 3, alínea b), do CPP que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
O facto genérico é um “não-facto”, excluído, por isso, da apreciação dos tribunais, não devendo constar do elenco dos factos provados e não provados. Nesta problemática, só são suscetíveis de imputação processual, com aptidão para serem judicialmente apreciados, factos que possam ser discutidos com respeito pelos princípios do contraditório e da legalidade.
Na discussão desta questão, a jurisprudência tem sentido, com preocupação, a importância do contraditório, sustentando, por exemplo, este TRP, no acórdão datado de 30/9/2015 (in www.dgsi.pt) que “As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas”.
Contudo, e como justamente é observado no acórdão deste TRP de 10/3/2022 [43], a dimensão do problema assume alguma complexidade que cabe discutir, particularmente no que diz respeito aos factos que se reportam a condutas reiteradas no tempo, se atomisticamente não é possível a reconstituição das datas em que ocorreu a sucessão de cada um dos eventos delituais.
Importa, então, assinalar, por um lado, que a norma constante do art.º 283.º, nº 3, alínea b) do CPP, traduz um juízo de suficiência (para a imputação jurídica e para o exercício do contraditório). Com efeito, o disposto nesse preceito impõe, quanto aos factos imputados em acusação, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética (…) incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.”
A própria lei admite, assim, a possibilidade de situações em que a definição temporal da ocorrência dos factos não seja totalmente precisa, sem afetação da validade do despacho de acusação.
Por outro lado, quando a imputação se concretiza numa sucessão repetida de atos durante certo período de tempo (que pode ser de vários anos), o processo de identificação do facto pela defesa encontra-se facilitado, dado que é essa atividade plural que está em questão, restando apurar se a verificação dos atos ocorreu à razão de “x” número de vezes por ano, ou “y” número de vezes por mês. A repetição e a frequência das condutas e suas réplicas integram a ontologia do facto e enriquece o processo de identificação do mesmo.
Diversamente, quando se trata de um só acontecimento ou ato delitual imputado sem data precisa, a individualização e a sua singularidade ôntica, exige maior esforço de concretização. Aqui a necessidade de singularização é maior, pois a irrepetibilidade do episódio é total.
Aliás, a atividade delitual nos delitos de tráfico de estupefacientes, em situações de trato sucessivo, ou a pluralidade de abusos sexuais verificados num determinado período de tempo, comungam dos mesmos princípios agora analisados, onde a singularidade dos factos apurados reside na reiteração e pluralidade apuradas, bastando, para a sua identificação, que os referidos comportamentos hajam sido suficientemente descritos na sua ontologia e com a localização no referido período temporal, como é observado no acórdão do TRP de 10/3/2022, já mencionado.
Portanto, satisfeitos os critérios da singularidade do facto, que permitem a sua identificação pela defesa, obviamente que não ocorre a violação do art.º 32º, nº 1, da C.R.P. e art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Deste modo, e em conclusão, se concordamos com o recorrente quando assinala a circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes não se poder fundar em descrições factuais vagas e genéricas, sem o mínimo de concretização espácio-temporal,[44] resulta claramente da leitura da decisão recorrida que essa exigência foi observada no acórdão recorrido. Na verdade, o tribunal a quo descreve, na medida do possível, as circunstâncias de tempo e de lugar em que os comportamentos do arguido/recorrente ocorreram, mostrando-se o ponto 94) complementado pelo teor do ponto 124), alínea o), o qual enuncia a atividade especificamente desenvolvida pelo recorrente, em concertação com outros elementos do grupo, e por referência a datas concretas (25, 26, 27, 28/2/2020 e 1/3/2020).
Deste modo, consideramos que a descrição factual efetuada pelo tribunal a quo contém precisão suficiente para garantir o exercício pelo arguido/recorrente do direito de defesa e do contraditório (ínsito naquele), assegurando, ainda, a possibilidade da sua relevância jurídico-penal, nenhuma razão existindo para que se considerem como “não escritos” os factos constantes do ponto 94) da factualidade provada.
*
c) Convolação para o crime de tráfico de menor gravidade.
Pretende o recorrente FF que a sua conduta seja enquadrada no âmbito do tipo de ilícito de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, argumentando que “a sua intervenção aparece em dois momentos concretos, sendo que a sua função era de guarda dos estupefacientes (“dolo menor”) e que, para além disso, o produto estupefaciente apreendido era de “pequena quantidade”, não disseminada, não tendo afetado, em concreto, a saúde pública”.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [45]).
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”. Ainda que se verifique um conjunto de circunstâncias que apontem para uma imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída – o que acontecerá, tipicamente, se o tráfico for de carácter muito rudimentar, se a quantidade traficada não for muito elevada, se a modalidade ou as circunstâncias da ação não forem altamente desvaliosas, se o tráfico não for efetuado por estrutura organizada ou se essa estrutura for incipiente -, o comportamento do agente não deverá, em princípio, ser integrado no art.º 25.º, mas antes no tipo matricial do art.º 21.º, se ocorrer alguma das circunstâncias mencionadas no art.º 24.º (potencialmente suscetíveis de integração dos factos no tipo agravado aqui previsto) [46].
É manifesto, porém, que no presente caso não estamos perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, tendo o arguido/recorrente desempenhado funções relevantes para o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes liderada pelo arguido LL e para cuja prossecução também contribuiu de forma decisiva, designadamente procedendo à guarda de produtos estupefacientes e subsequente entrega a outros elementos do grupo, que os faziam chegar aos consumidores.
Como é salientado no acórdão recorrido (cf. fls. 15.422), em moldes com os quais concordamos, a colaboração do arguido FF com a denominada “Banca ...” não era pontual, mas permanente (embora com uma interrupção temporal, como ali se assinala), pelo que o arguido era membro efetivo do grupo que se dedicava à venda de produtos estupefacientes em larga escala, distribuindo tais produtos (alguns dos quais, de elevada toxicidade) em grandes quantidades e por número significativo de consumidores (só no período compreendido entre 5/6/2020 e 8/7/2020, as vendas de estupefacientes atingiram quase um milhão de euros), desempenhando o recorrente as específicas funções que lhe foram atribuídas com clara noção do seu contributo para a prossecução dos objetivos gerais do grupo.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, inexistindo motivos válidos para integrar o comportamento do recorrente no âmbito do tipo de tráfico de estupefacientes de menor gravidade ou, sequer, do tipo de tráfico de estupefacientes matricial, previsto e punido pelo art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22/1.[47]
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d) Dosimetria das penas.

Discorda o recorrente das penas concretas que lhe foram aplicadas pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado e de detenção de arma proibida, reputando-as de desproporcionadas e excessivas.
O crime de tráfico de estupefacientes agravado é, como vimos, punido com pena de 5 a 15 anos de prisão, correspondendo ao crime de detenção de arma proibida pena de prisão de 1 a 5 anos.
A propósito da determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente FF, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º/24.º é média/diminuta, pois a sua intervenção no grupo é menor. Não obstante foi detido na posse de uma quantidade assinalável de heroína. Já em relação às armas a ilicitude é elevada, tendo em conta que o arguido tinha várias armas.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com pouca intensidade, atenta a ausência de antecedentes criminais do arguido.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem nas sociedades, sendo que a proliferação de armas é algo que urge ser combatido. Já em relação ás armas a sua posse já é perigosa, sendo que a circunstância do arguido se dedicar a uma atividade como a do tráfico de estupefacientes aumenta em muito a possibilidade da sua efetiva utilização.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido FF a pena de 5 anos e 3 meses pela prática do crime de tráfico de estupefacientes e a pena de 1 ano e 3 meses pelo crime de detenção de arma proibida.»
Damos aqui por reproduzidas as considerações teóricas anteriormente desenvolvidas a propósito da operação de determinação da medida concreta da pena. E importa, mais uma vez, fazer notar que, também nesta matéria, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas.
No presente caso, nenhuma desproporção encontramos na medida concreta das penas de prisão aplicadas ao recorrente – ambas muito próximas dos limites mínimos abstratamente aplicáveis -, quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
Com efeito, e como fez notar o tribunal de primeira instância, embora as exigências de prevenção especial não fossem significativas, dada a ausência de antecedentes criminais do recorrente, não pode deixar de ser valorada a perigosidade acrescida da detenção de armas proibidas em conexão com o crime de tráfico de estupefacientes e, por essa via, o caráter acentuado das exigências de prevenção geral.
A circunstância de não ter ficado demonstrado que o arguido/recorrente efetivamente fazia uso das armas (e munições) apreendida (s) nenhuma relevância assume neste contexto, dado que o ilícito em causa configura-se como um crime de perigo abstrato.
Em conclusão, a premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade das normas violadas, decorrente da específica danosidade social dos tipos de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) justifica a aplicação das penas de prisão na medida determinada pelo tribunal.[48]
Do mesmo modo, a pena conjunto do concurso, tendo sido fixada em cinco anos e seis meses de prisão no âmbito de uma moldura abstrata que oscila entre o limite mínimo de cinco anos e três meses e o máximo de seis anos e nove meses, mostra-se equilibrada e ajustada às considerações de culpa e prevenção globalmente consideradas.
Improcede, assim, o presente fundamento do recurso.
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e) Declaração de perda do veículo automóvel.
O tribunal de primeira instância declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel de matrícula ..-ZV-.., encontrado na residência do recorrente FF, no qual foi encontrada, no respetivo porta-luvas, uma embalagem contendo heroína, com o peso de 18,20 gramas, destinada a venda na “Banca ...” (cf. ponto 190) dos factos provados).
Estabelece o art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, que “são declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”.
Esta norma configura uma regra especial face à contida no art.º 109.º do CP, o qual determina que só pode haver perdimento a favor do Estado mesmo dos instrumentos de facto ilícito típico, quando os mesmos pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Contudo, e como vem sendo salientado pela jurisprudência dos tribunais superiores, do regime contido no art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 15/93 não resulta a perda de qualquer objeto que haja servido para a prática do crime independentemente das circunstâncias dessa utilização. A aplicação desta norma pressupõe uma ponderação concreta, que inclui um juízo sobre a essencialidade do objeto na prática da infração, sobre a causalidade e a proporcionalidade da perda.[49]
Portanto, a declaração de perda desses objetos utilizados na prática do crime de tráfico de estupefacientes não é automática, antes está sujeita a critérios de causalidade e proporcionalidade. A declaração de perdimento a favor do Estado de veículo automóvel que esteve envolvido na prática de crime de tráfico de estupefacientes só deve ocorrer se e quando o mesmo se revelar essencial à prossecução de tal atividade.
Como é observado no acórdão deste TRP de 14/12/2022 [50], reproduzindo o acórdão do STJ de 2/3/2017, «[o] veículo automóvel destinado ao tráfico de estupefacientes, está constrangido a perdimento quando o mesmo é frequentemente utilizado nas deslocações de venda para diversos locais de tráfico, facilitando os trajetos e os momentos em que se realiza essa atividade, permitindo maior volume de “negócio” decorrente de tráfico.»
No presente caso, não ficou demonstrado que o veículo automóvel em questão fosse utilizado no transporte dos produtos estupefacientes que o recorrente tinha por incumbência guardar, ou sequer que se revelasse essencial para acondicionar e ocultar a droga.
Não resultou apurado, por outro lado, que o veículo em causa constituía uma vantagem obtida a partir da atividade de tráfico de estupefacientes a que se dedicou o recorrente.
Deste modo, consideramos que não se verificam os necessários requisitos legais, razão pela qual se impõe revogar a declaração de perdimento deste veículo, com a consequente procedência parcial do presente recurso.
*
IV) Recurso do arguido HH.
a) “Erro notório na apreciação da prova” e impugnação da matéria de facto.

Sustenta o recorrente HH que “os elementos de prova existentes e elencados no acórdão do tribunal a quo, não permitem considerar tais factos como provados”, designadamente os descritos nos pontos 86), 88), 123), alínea m), 124), alíneas d) e e) e 128), alíneas a) a q), pelo que deverão transitar para o elenco dos factos não provados.
A propósito da apreciação dos elementos de prova quanto à participação do arguido HH na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida no Bairro... (a denominada “Banca ...”), escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«[…] Quanto às restantes posições que os outros arguidos ocupam na estrutura em causa, temos que as mesmas decorrem dos atos praticados e foram visualizados pelos agentes policiais, bem como das escutas constantes dos autos, sendo claro e inequívoco que os mesmos não eram os donos da droga e que recebiam contrapartidas financeiras para exercer tal atividade (conversas do arguido HH e manuscrito encontrado na busca vide fls. 8103 e sgs), pelo que iremos indicar a prova que tivemos em conta para aquela factualidade à medida que analisarmos os factos concretos praticados por cada arguido. Acrescente-se ainda que a maior parte destes arguidos eram toxicodependentes pelo que a sua fiabilidade enquanto trabalhadores ficava muitas vezes comprometida, sendo normal e natural que em determinadas situações uns arguidos substituam outros no exercício de determinadas funções.
Assim as posições ocupadas pelos arguidos NN, HH e OO são bastante claras e decorrem dos factos visualizados pelos agentes policiais, bem como das escutas que a seguir indicaremos, as quais não necessitam de grande análise ou comentários para se perceber a forma de atuar, dando-se igualmente por assente, com base nestes elementos probatórios os atos praticados pelos referidos arguidos nas concretas ações de abertura de banca a que se refere a acusação.
- auto de Apreensão de 46.74 gramas de Haxixe a SS, referente ao Auto de Notícia por Detenção com o NUIPC 25/19.2 PFGDM, Pag.1875 - Vol.7;
- RDE/Vigilância de 2019-11-26, constante a pag.2227 - Vol.8, relativo aos arguidos NN, HH e OO;
- RDE/Vigilância de 2020-01-14, constante a pag.2883 - Vol.10, relativo aos arguidos AA e KK;
- RDE/Vigilância de 2020-02-10, Pag.3022 - Vol.10, relativo aos arguidos NN, HH e OO;
-RDE/Vigilância de 2020-02-11, Pag.3033 - Vol.10, relativo aos arguidos NN, HH e OO;
- RDE/Vigilância de 2020-02-12, Pag.3115 - Vol.10, relativo aos arguidos NN, HH e OO;
- RDE/Vigilância de 2020-03-09, Pag.3310 - Vol.11;
- RDE/Vigilância de 2020-03-11, Pag.3317 - Vol.11;
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ALVO:108433040 Sessões (08399)
ALVO:108433040 Sessões (08471, 08472, 08473, 08475, 08476, 08477, 08478, 08479, 08480, 08481)
ALVO:108433040 Sessões (08535, 08537, 08539, 08541, 08542, 08543)
ALVO:108433040 Sessões (08643, 08644,0 8646, 08647, 08648, 08649, 08651, 08652, 08653, 08654, 08655, 08656)
ALVO:108433040 Sessões (08725,08727)
ALVO:109213060 Sessões (16484)
ALVO:108433040 Sessões (09050,09053,09054)
ALVO:108433040 Sessões (09116,09141)
ALVO:108433040 Sessões (09235,09237)
ALVO:108433040 Sessões (09287,09288,09291,09292)
ALVO:108433040 Sessões (09502,09504)
Destas conversas e das vigilâncias efetuadas pelos agentes policiais é facilmente explicável a conclusão a que chegou a acusação, os agentes investigadores e que foi totalmente confirmada por este Tribunal, sendo inequívoca a coordenação destes arguidos na tarefa de abertura da banca, sendo o modus operandi o típico neste tipo de situações, que já envolvem um movimento considerável. A existência de uma casa de recuo, que vai variando ao logo do tempo, onde se guarda o estupefaciente, o transporte do estupefaciente para o local de venda (arguido OO), a organização do local de venda (arguido HH) e a coordenação entre todos estes movimentos incluindo a definição do local de recuo ou o simples conhecimento do seu local.
No que respeita á atividade do arguido HH, a prova é abundante, sendo que as inúmeras escutas indicadas na acusação e constantes dos anexos 38 e 38 A, as vigilâncias efetuadas nos autos e que constam da acusação, bem como os relatos dos agentes policiais que conduziram as investigações e efetuaram as vigilâncias, permitiram-nos concluir pelas funções e importância daquele arguido na organização. Também os depoimentos das testemunhas TT, UU e VV que confessaram terem-lhe comprado estupefaciente, bem como da testemunha WW que afirmou saber que o HH trabalhava na Banca ... onde auferia pelo menos 100€ foram importantes para darmos como assente a factualidade relativa a este arguido.»

Analisada a fundamentação do recurso constatamos que o recorrente, sem observância do ónus de impugnação especificada legalmente imposto, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos no acórdão recorrido, sendo da análise conjugada dos meios de prova analisados (e, com particular relevo, a prova documental contida no processo) - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
Verifica-se, ainda, que diversamente do que parece sustentar o recorrente, o tribunal a quo não fundou a sua convicção unicamente no conteúdo das interceções telefónicas, mas antes na conjugação de toda a prova produzida, sendo abundantes os elementos probatórios ao seu dispor, incluindo diversas vigilâncias nas quais o arguido HH foi visionado junto à “Banca ...” e depoimentos de testemunhas, que relataram a aquisição de produtos estupefacientes ao recorrente.
Relativamente à questão da valoração das escutas telefónicas, que suscita a discordância do recorrente, já tivemos a oportunidade de salientar por ocasião da análise do recurso do arguido AA (I), que desde que efetuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova e a transcrição das escutas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127.° do Código de Processo Penal. Mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção. A escuta, legalmente permitida e validamente efetuada, é um meio de prova autónomo apto a provar o conteúdo da própria conversação intercetada e registada.
Concluindo: as escutas telefónicas são um meio de obtenção da prova, mas as conversações recolhidas através dessas interceções constituem um meio de prova; transcrito e inserido no processo, o conteúdo das gravações passa a constitui prova documental, submetida ao princípio da livre apreciação da prova: as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art.º 127º do Código de Processo Penal).
Considera, também, o recorrente que o tribunal não poderia considerar provados os factos que incluiu nos pontos 123), 124) e 128), baseando-se unicamente nas interceções telefónicas e nas vigilâncias, já que nestas não é percetível o tipo e quantidade de produto transacionado. Acrescenta que, para além disso, o tribunal assenta fundamentalmente a sua decisão nas convicções manifestadas pelos agentes policiais.
Ora, já neste acórdão tivemos oportunidade de afirmar que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e não raras vezes a prova indireta é a única forma de imputação objetiva de factos que, pela sua natureza ilícita, são cuidadosamente praticados às ocultas. [51] Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Nenhuma reserva nos suscita, por isso, a consideração do tribunal a quo quanto à demonstração da efetiva ocorrência de vendas de produtos estupefacientes (e não de qualquer outra coisa) a partir da visualização de imagens captadas por câmaras, em conjugação com as declarações de um profissional experiente, enunciada no acórdão recorrido (cf. fls. 15.311).[52]
Em suma, resulta claramente do texto do acórdão recorrido que o tribunal a quo efetuou um rigoroso e exaustivo exame crítico das provas, expondo as respetivas razões lógicas e de ciência de forma clara e conforme com as regras da experiência.
Da análise dos elementos de prova de que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, expressamente referidos na motivação, não resulta que o tribunal tenha apreciado arbitrariamente a prova produzida ou que tenha incorrido em qualquer erro lógico – bem pelo contrário.
Na verdade, o que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
Nenhuma censura merece, assim, a firme convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida (tal como se encontra explanada na decisão recorrida), aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo [53] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao recorrente, nem tal dúvida se evidencia perante a prova produzida) [54].
Inexistindo erro de julgamento da matéria de facto ou “erro notório na apreciação da prova”, resta-nos confirmar integralmente a decisão da matéria de facto contida no acórdão recorrido quanto ao arguido HH.
*
b) Verificação das circunstâncias agravantes do crime de tráfico de estupefacientes.
Considera o recorrente que as circunstâncias agravantes do crime de tráfico de estupefacientes previstas nas alíneas b) e c) do art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22/1 não se encontram preenchidas.
O art.º 24.º do DL n.º 15/93 estabelece, nas alíneas b) e c), que as penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:
b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas;
c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória.
Como bem salientou o tribunal a quo no acórdão recorrido, não há nenhum critério absoluto para que possamos determinar a elevada compensação financeira, bem como o elevado número de pessoas a que se refere o art.º 24.º da lei da droga, devendo tais conceitos serem preenchidos casuisticamente. Porém, e mesmo sabendo que nem todos os casos são iguais e que tal preenchimento é muito difícil de harmonizar, deve procurar-se a obtenção de um critério unitário e, nesse sentido, o recurso à jurisprudência, permitindo a comparação com outras decisões e situações idênticas, poderá fornecer indicações relevantes para a solução do problema.
Como é salientado no acórdão do STJ de 11/4/2013 [55], “A avultada compensação remuneratória prevista na al. c) do art.º 24.º do DL 15/93 contenta-se com a expectativa de grandes lucros, ao contrário do que sucede com a distribuição por grande número de pessoas, em que se exige a efetiva realização desse objetivo com a distribuição da droga por um vasto espectro de sujeitos.
Todavia, exige-se que o agente tenha obtido ou que se prepare para obter proventos de uma grandeza que claramente extravase os lucros que normalmente se obtêm ou se tentam obter com o tráfico de produtos estupefacientes, ou seja, que seja de molde a gerar grandes lucros ou a criar expectativas de um enriquecimento do património em grande escala.
Esta agravante supõe a realização de negócios de grande envergadura, quer pelo carácter maciço das operações envolvidas, quer pela sua dimensão ao longo do tempo, em que adquirem relevo as quantidades transacionadas, a dimensão do abastecimento do mercado, o efeito conjugado da oferta e da procura, a complexidade da organização de fornecimento aos revendedores e a distribuição pelos consumidores diretos, o que indicia o envolvimento de grandes quantias e a projeção de grandes lucros”.
Depois de reiterar que a lei não aponta critérios para a concretização desse conceito, assinala o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão datado de 2/10/2013 [56], que a própria natureza clandestina da atividade impossibilita uma análise contabilística de proveitos e custos e consequente apuramento de saldo.
Assim, a sua avaliação, não exigindo a quantificação exata da compensação remuneratória visada pelo agente, deve ser feita através da ponderação global de diversos fatores indiciários, de natureza objetiva, v.g., a qualidade [espécie e grau de pureza] e quantidade de estupefaciente, o tempo de atuação, o nível da organização e da sua logística, a relação do agente com o estupefaciente [grau ou nível de participação], as quantias envolvidas e/ou apreendidas, os valores das transações, as manifestações de desafogo económico do agente, a valorar globalmente e em conjugação com as regras da experiência comum.
Importa ainda salientar que, dentro de uma certa organização de meios dirigida para o tráfico de droga, o lucro obtido ou esperado de cada elemento pode variar e, em regra, varia, em função da sua posição relativa. Por isso, e como é justamente salientado no acórdão recorrido, para a ponderação da ilicitude e consequentemente para a integração de uma conduta no crime de tráfico normal, agravado ou diminuto, há que ter em conta, entre outros fatores, a quantidade e qualidade da droga traficada, os termos em que concretamente esse tráfico foi realizado, a dimensão da atividade e dos lucros obtidos, a relevância que os mesmos possam ter no modo de vida do agente, a relação que este possa ou não ter com o consumo de estupefacientes, o modo de execução e a sua posição no circuito do tráfico, número de destinatários, etc., sendo que a mera colaboração na venda ou na guarda durante períodos de tempo reduzido ou num caso pontual, não pode ser equiparada, em termos de qualificação jurídica, à atuação de alguém que durante períodos de tempo longos vendeu grandes quantidades de estupefaciente, tendo que se estabelecer aqui uma exceção à regra geral da coautoria.
Dito isto, se podemos concluir que o arguido HH estava integrado no grupo liderado pelo LL, grupo este que durante cerca de um ano e um mês vendeu diariamente, de forma organizada e hierarquizada, grandes quantidades de cocaína, heroína e haxixe, gerando lucros avultados para o líder do grupo, temos de reconhecer que quanto ao recorrente HH não ficou demonstrado que este tivesse obtido ou procurasse obter avultada compensação remuneratória.
Na verdade, não só a remuneração obtida pelo recorrente não foi concretamente determinada, como também nada nos autos sugere que o mesmo visasse obter uma compensação com uma ordem de grandeza que se afaste, manifestamente e segundo parâmetros objetivos, das projeções do crime base – sendo certo que, como é assinalado no acórdão recorrido (fls. 15.409 verso), em todas as atividades de tráfico de estupefacientes os agentes procuram obter os ganhos que a atividade lhes possa proporcionar.
Já quanto à circunstância agravante prevista na alínea b), a sua demonstração decorre inequivocamente de todo o circunstancialismo apurado, caraterizador da atividade de tráfico de estupefacientes em apreço. Com efeito, e independentemente da concreta identificação dos adquirentes de produtos estupefacientes, a verdade é que ficou demonstrado que o grupo liderado pelo LL vendeu produtos estupefacientes (cocaína, heroína e haxixe) de forma continuada, pelo menos desde 4/6/2019 até 9/7/2020, sendo certo que só à denominada “Banca ...” afluíam, diariamente, pelo menos dezenas de consumidores/compradores de várias zonas do país (cf. pontos 74, 75 e 78 da matéria de facto provada).
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c) Dosimetria da pena.

Discorda o recorrente HH da pena concreta que lhe foi aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
O crime de tráfico de estupefacientes agravado é, como vimos, punido com pena de 5 a 15 anos de prisão, tendo o tribunal de primeira instância aplicado ao recorrente a pena de 6 anos e 6 meses de prisão, fundamentando a sua decisão nos seguintes moldes (segue transcrição):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21/24 é media, sendo que o arguido apesar de não ser dos lideres do grupo, ocupava uma função importante e estava quase em permanência na referida banca, sendo alguém muito ativo.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz se sentir com grande incidência sendo inúmeros os antecedentes criminais do arguido, tendo já sido condenado em pena de prisão efetiva pela prática de crimes de tráfico de estupefaciente.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido HH a pena de 6 anos e 6 meses de prisão».

Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 [57], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [58].
Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados, estabelecendo o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, a pena não satisfaz a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas - isto é, a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração”.
Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária.
Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização [59].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [60].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [61], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial, valorando adequadamente a insensibilidade do arguido pela reação penal, que se infere dos seus antecedentes criminais (que incluem duas condenações prévias em pena de prisão efetiva por ilícitos idênticos); teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Contudo, a pena concreta afigura-se-nos algo excessiva e desproporcionada,[62] considerando o grau de ilicitude do crime em causa e a dimensão da culpa do recorrente, impondo-se a intervenção corretiva deste tribunal de recurso [63].
Com efeito, reconhecemos que os antecedentes criminais do recorrente são muito significativos - o que configura um circunstancialismo que exaspera as exigências preventivas, para além de revelar um grau de culpa elevado -, e também é certo que o recorrente ocupava uma função importante e estava quase em permanência na referida “Banca ...”, sendo um interveniente muito ativo, mas não podemos olvidar que não era um dos líderes do grupo, como foi reconhecido pelo tribunal de primeira instância.
Parece-nos, assim, que uma pena de 6 anos de prisão é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e necessária – mas também suficiente – para a ressocialização do recorrente [64], não ultrapassando a medida da sua culpa.
Procede, deste modo, ainda que parcialmente, o recurso do arguido HH.
*
V) Recurso do arguido CC.
a) Impugnação da matéria de facto.
Sustenta o recorrente que “não resulta da produção de prova que tenha efetuado uma única venda ou de alguma forma contribuído para o tráfico de estupefacientes”, não ficando demonstrado que integrasse o “bando” liderado pelo LL.
A propósito da apreciação dos elementos de prova quanto à participação do arguido CC na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida no Bairro... (a denominada “Banca ...”), escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«[…] Quanto às restantes posições que os outros arguidos ocupam na estrutura em causa, temos que as mesmas decorrem dos atos praticados e foram visualizados pelos agentes policiais, bem como das escutas constantes dos autos, sendo claro e inequívoco que os mesmos não eram os donos da droga e que recebiam contrapartidas financeiras para exercer tal atividade (conversas do arguido HH e manuscrito encontrado na busca vide fls. 8103 e sgs), pelo que iremos indicar a prova que tivemos em conta para aquela factualidade à medida que analisarmos os factos concretos praticados por cada arguido. Acrescente-se ainda que a maior parte destes arguidos eram toxicodependentes pelo que a sua fiabilidade enquanto trabalhadores ficava muitas vezes comprometida, sendo normal e natural que em determinadas situações uns arguidos substituam outros no exercício de determinadas funções. […]
No que respeita ao arguido CC tivemos em conta a seguinte prova:
RDE /VIGILÂNCIA de 09-03-2020
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 26 DE MARÇO DE 2020;
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 27 DE MARÇO DE 2020;
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 30 DE MARÇO DE 2020;
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 01 DE ABRIL DE 2020)
Escutas:
ALVO:106289050 Sessões (07712)
ALVO:109213060 Sessões (07000,07006)
ALVO:108433040 Sessões (10027)
ALVO:112233040 Sessões (03049).
Concatenando as escutas com as vigilâncias, não tivemos dúvida em concluir da mesma forma que o fez a acusação, que perfilhou a tese dos agentes investigadores de que o arguido era uma espécie de segurança da banca. Isso resulta claramente da posição que o arguido ocupava no local e das escutas que referem o “XX” – alcunha do arguido - como um dos seguranças.».

Analisada a fundamentação do recurso constatamos que o recorrente, embora referenciando segmentos de depoimentos prestados pelas testemunhas, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos no acórdão recorrido, sendo da análise conjugada dos meios de prova analisados (e, com particular relevo, a prova documental contida no processo, conjugada com o depoimento prestado pela testemunha YY,[65] que explicou detalhadamente as funções exercidas pelo recorrente CC no âmbito e por conta do grupo que se dedicava à venda de estupefacientes em larga escala na denominada “Banca ...”) - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
Da análise dos elementos de prova de que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, expressamente referidos na motivação, não resulta que o tribunal tenha apreciado arbitrariamente a prova produzida ou que tenha incorrido em qualquer erro lógico – bem pelo contrário.
Na verdade, o que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
É de notar que, como já tivemos oportunidade de salientar, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e não raras vezes a prova indireta é a única forma de imputação objetiva de factos que, pela sua natureza ilícita, são cuidadosamente praticados às ocultas. [66]
Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Nenhuma reserva nos suscita, por isso, a consideração do tribunal a quo quanto à demonstração das funções especificamente atribuídas ao recorrente – vigilância e segurança da porta do n.º ..., alertando se necessário da presença policial no local, selecionando, encaminhando e coordenando os consumidores na entrada do local de venda (... da Rua ...), auferindo um salário para o efeito,[67] atuando de forma reiterada e concertada, em conjugação de esforços e de intentos com os demais, no desenvolvimento do negócio de compra e venda de estupefacientes, naquele local (cf. pontos 93 e 103) - a partir da visualização de imagens captadas por câmaras de vigilância, em conjugação com as declarações de um profissional experiente e com as interceções telefónicas[68], enunciada no acórdão recorrido.
Quanto aos factos enunciados no ponto 124), alínea s), a sua comprovação decorre do teor dos documentos (autos de notícia e de apreensão), constantes do apenso C (inquérito n.º 298/20.8PWPRT) – contribuindo estes factos para comprovar, entre muitos outros elementos, a ligação do recorrente CC a outros membros do “grupo ...” e, em particular, ao respetivo líder, o arguido LL.
Não merece censura, assim, a firme convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida (tal como se encontra explanada na decisão recorrida), aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo [69] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao recorrente, nem tal dúvida se evidencia perante a prova produzida) [70].
Como se observa no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 [71], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto […]”.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto no que tange ao recorrente CC.
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b) Verificação das circunstâncias agravantes do crime de tráfico de estupefacientes e convolação para o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Considera o recorrente que o seu comportamento não pode ser enquadrado no âmbito do crime de tráfico de estupefacientes agravado e que, a ser condenado, sempre terá de sê-lo por referência a um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
O art.º 24.º do DL n.º 15/93 estabelece, nas alíneas b), c) e j), que as penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:
b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas;
c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória;
j) O agente atuar como membro de bando destinado à prática reiterada dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando.
Relativamente à verificação das circunstâncias agravantes previstas nas alíneas b) e c), damos aqui por reproduzidas as considerações teóricas enunciadas a propósito da análise do recurso do arguido HH (IV).
Dito isto, se podemos concluir, em face da matéria de facto descrita no acórdão recorrido e que temos por definitivamente assente, que o arguido/recorrente CC estava integrado no grupo liderado pelo LL, grupo este que durante cerca de um ano e um mês vendeu diariamente, de forma organizada e hierarquizada, grandes quantidades de cocaína, heroína e haxixe, gerando lucros avultados para o líder do grupo, temos de reconhecer que quanto ao recorrente não ficou demonstrado que este tivesse obtido ou procurasse obter “avultada compensação remuneratória”.
Na verdade, apenas foi possível apurar que o arguido CC recebeu a quantia de € 840, em 18/6/2020, por conta da sua colaboração na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida na Banca ... (cf. o ponto 102), e nada nos autos sugere que o mesmo visasse obter uma compensação com uma ordem de grandeza que se afaste, manifestamente e segundo parâmetros objetivos, das projeções do crime base – sendo certo que, como é assinalado no acórdão recorrido (fls. 15.409 verso), em todas as atividades de tráfico de estupefacientes os agentes procuram obter os ganhos que a atividade lhes possa proporcionar.
Já quanto à circunstância agravante prevista na alínea b), a sua demonstração decorre inequivocamente de todo o circunstancialismo apurado, caraterizador da atividade de tráfico de estupefacientes em apreço. Com efeito, e independentemente da concreta identificação dos adquirentes de produtos estupefacientes, a verdade é que ficou demonstrado que o grupo liderado pelo LL vendeu produtos estupefacientes (cocaína, heroína e haxixe) de forma continuada, pelo menos desde 4/6/2019 até 9/7/2020, sendo certo que só à denominada “Banca ...” afluíam, diariamente, pelo menos dezenas de consumidores/compradores de várias zonas do país (cf. pontos 74, 75 e 78 da matéria de facto provada).
Analisemos, agora, a circunstância agravante prevista na alínea j).
O conceito de “bando” integra uma situação de atuação ilícita intermédia entre a simples comparticipação criminosa e a associação criminosa - mais grave do que as situações de mera participação criminosa, embora menos censurável do que aquelas em que existe uma perfeita e definida "associação criminosa" -, integrando aquelas condutas em que, pelo menos, dois agentes atuam de forma voluntária e concertada, em colaboração mútua, com uma incipiente estruturação de funções, mas sem que se possa já considerar como existente uma organização perfeitamente caracterizada, com níveis e hierarquias de comando e com uma certa divisão e especialização de funções de cada uma das suas componentes ou aderentes, como sucede na associação criminosa [72].
O tribunal de primeira instância excluiu a demonstração do crime de associação criminosa, mas considerou verificada a circunstância qualificativa em causa, escrevendo no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição parcial):
«Para a verificação deste tipo de crime basta que o agente atue com a consciência de participar num grupo, com objetivos definidos, sem que com isso obrigatoriamente conheça todos os membros envolvidos. A atuação em bando, traduz uma atuação com vista à prática reiterada de crimes, em que cada agente não tem consciência e (ou) intenção de pertença a um ente coletivo com personalidade distinta da sua e objetivos próprios – o que afastará a associação criminosa típica – mas em que os diversos “colaboradores”, inseridos numa orgânica ainda incipiente, reconhecem, todavia, a existência de uma liderança de facto a que se subordinam.
Como bem refere Figueiredo Dias, em “as Associações Criminosas, no Código Penal de 1982” os laços que atam aqueles membros não se podem confundir com aqueloutros que unem, por exemplo, os coautores, os cúmplices ou os instigadores, mas, de outra banda também não se podem confundir com os que ligam os membros de uma associação criminosa. Logo, a densidade de relações entre os membros de uma associação criminosa é mais forte do que no bando, sendo que no bando, ao contrário da associação criminosa, não há uma organização funcional, mas sim uma relação sustentada num fim comum que é a prática de crimes. Acresce que, e esta é outra característica que distingue o bando da associação criminosa, esta última assume uma maior fixidez nos seus membros, enquanto que num bando a sua composição varia de forma regular. […]
Por outro lado, a circunstância da agravação prende-se com o facto do bando introduzir uma perigosidade acrescida tanto na execução do furto como no seu resultado.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Relação Lisboa de 06/11/2003, in www.dgsi.pt:
“II - Para efeitos da qualificativa a que alude a alínea j) do artigo 24.º do D.L. n.º 15/93, a noção de «bando» é algo que se distingue da simples coautoria, por um lado, indo além dela, e da associação criminosa, por outro, que não chega a atingir.
III - «Bando» será, assim, uma atuação plural e voluntária com vista à prática de crime ou crimes, em que cada agente não tem consciência e (ou) intenção de pertença a um ente coletivo com personalidade distinta da sua e objetivos próprios - o que permite afastar a figura da associação criminosa típica - mas em que os diversos «colaboratores», inseridos numa orgânica ainda incipiente, reconhecem, todavia, a existência de uma liderança de facto a que se subordinam - o que permite, por seu lado, distinguir a figura da simples coautoria.” […]

No presente caso, perante a factualidade apurada, não temos qualquer dúvida em afirmar, tal como o fez o tribunal de primeira instância, “que os arguidos LL, AA, NN, DD, HH, OO, EE, QQ, GG, ZZ, BB, CC, FF, II e AAA sabiam da pertença do grupo, sabiam das atividades do grupo e exerciam todos uma atividade essencial dentro do grupo de forma a venderem o maior número de estupefacientes possível gerando assim lucros avultados para o líder do grupo, o arguido LL, que depois lhes pagava uma remuneração por tal atuação.”.
A atuação do arguido CC, inserido numa estrutura orgânica relativamente incipiente, mas subordinada à liderança do LL, em colaboração com os demais coarguidos e com propósitos e objetivos comuns, integra inequivocamente a figura do bando, pelo que se encontra preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea j), do art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Resta-nos analisar se o comportamento do recorrente deverá ser considerado de “menor gravidade” e, por isso, enquadrado no âmbito do tipo de ilícito previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [73]).
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”. Ainda que se verifique um conjunto de circunstâncias que apontem para uma imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída – o que acontecerá, tipicamente, se o tráfico for de carácter muito rudimentar, se a quantidade traficada não for muito elevada, se a modalidade ou as circunstâncias da ação não forem altamente desvaliosas, se o tráfico não for efetuado por estrutura organizada ou se essa estrutura for incipiente -, o comportamento do agente não deverá, em princípio, ser integrado no art.º 25.º, mas antes no tipo matricial do art.º 21.º, se ocorrer alguma das circunstâncias mencionadas no art.º 24.º (potencialmente suscetíveis de integração dos factos no tipo agravado aqui previsto) [74].
É manifesto, porém, que no presente caso não estamos perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, tendo o arguido/recorrente desempenhado funções relevantes para o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes liderada pelo arguido LL e para cuja prossecução também contribuiu de forma significativa.
A colaboração do arguido CC com a denominada “Banca ...” não era pontual, mas permanente, pelo que o arguido era membro efetivo do grupo que se dedicava à venda de produtos estupefacientes em larga escala, distribuindo tais produtos (alguns dos quais, de elevada toxicidade, como heroína e cocaína) em grandes quantidades e por número significativo de consumidores (só no período compreendido entre 5/6/2020 e 8/7/2020, as vendas de estupefacientes atingiram quase um milhão de euros), desempenhando o recorrente as específicas funções que lhe foram atribuídas – de vigilância e segurança na porta do n.º ..., selecionando, encaminhando e coordenando o acesso dos consumidores ao local de venda e alertando para a presença policial no local - com clara noção do seu contributo para a prossecução dos objetivos gerais do grupo.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, inexistindo motivos válidos para integrar o comportamento do recorrente no âmbito do tráfico de estupefacientes de menor gravidade ou, sequer, do tipo de tráfico de estupefacientes matricial, previsto e punido pelo art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22/1.[75]
*
c) Dosimetria da pena de prisão e suspensão da respetiva execução.

Discorda o recorrente da pena concreta que lhe foi aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
O crime de tráfico de estupefacientes agravado é, como vimos, punido com pena de 5 a 15 anos de prisão, tendo o tribunal de primeira instância aplicado ao recorrente a pena de 5 anos e 3 meses de prisão, fundamentando a sua decisão (apreciando a situação do recorrente conjuntamente com a do arguido BB) nos seguintes moldes (segue transcrição):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21/24 é média, pois que a sua função de reencaminhar os toxicodependentes e de assegurar não só a segurança do local, mas a boa organização das vendas, é fundamental para que as vendas possam ocorrer e com a magnitude com que existiam.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com pouca intensidade, pois que à data dos factos nenhum dos arguidos tinha antecedentes criminais, sendo que o arguido BB posteriormente foi condenado numa pena de multa pela prática, em 2016, de um crime de ofensas à integridade física. Os seus hábitos aditivos, porém, constituem um fator de risco.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem nas sociedades.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar a estes arguidos a pena de 5 anos e 3 meses de prisão.»

Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 [76], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [77].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [78].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [79], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Apesar de o arguido CC não apresentar antecedentes criminais, não vislumbramos qualquer excesso ou desproporção da medida concreta da pena de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
Com efeito, a premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada, decorrente da específica danosidade social do tipo de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) justifica a aplicação da pena de prisão na medida determinada pelo tribunal.[80]
Fixada em medida inferior, tal pena – fixada já num quantum muito próximo do respetivo limite mínimo da moldura abstrata - seria desajustada ao grau de ilicitude do comportamento do recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
A pena concreta de prisão aplicada ao recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução (art.º 50.º do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso que, deste modo, improcede na totalidade.
*
VI) Recurso do arguido BB.
a) Impugnação da matéria de facto.
Discorda o recorrente BB da decisão tomada pelo tribunal de primeira instância quanto aos factos que lhe foram imputados, particularmente daqueles que integram os pontos 93) e 184), os quais, no seu entender, foram incorretamente julgados e deverão transitar para o elenco dos factos não provados.
Como já neste acórdão tivemos oportunidade de mencionar, relativamente à modalidade de impugnação (ampla) a que alude o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão. [81]
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Além disso, não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas imponham a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Como bem se expende no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 [82], “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. [83].
Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que sem sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [84]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [85].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [86] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Os pontos da matéria de facto que suscitam particular discordância do recorrente têm o seguinte teor:
«93 - Por seu turno, os arguidos BB (desde pelo menos 26/11/2019) e CC exerciam funções de vigilância e segurança na porta do ..., alertando se necessário da presença policial no local, selecionando, encaminhando e coordenando os consumidores na entrada do local de venda (... da Rua ...), auferindo um salário para o efeito.»
«184 - No dia 2020-05-02, o arguido BB comprou ao arguido BBB 3 placas de haxixe por 400€ cada, destinando tal produto à sua revenda.»
A propósito da apreciação da prova quanto à participação do arguido BB na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida no Bairro... (a denominada “Banca ...”), escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«Começando pela venda de estupefacientes na denominada Banca ..., a prova é tão ostensiva que quase não vale a pena enumerá-la. Na verdade, os agentes policiais que efetuaram vigilâncias, que estão plenamente identificadas e relatadas nos autos, os agentes policiais que efetuaram as buscas, principalmente os que se deslocaram à banca propriamente dita e puderam confirmar a existência de portas blindadas e grades no acesso ao ... 1.º andar direito, os inúmeros compradores que confirmaram as transações que lá efetuaram, as centenas de escutas constantes dos autos, sendo que muitas delas são relevantes para percebermos não só o simples facto, mas também a dimensão das vendas deste grupo, as mensagens trocadas, as buscas efetuadas, os produtos e dinheiro apreendidos, o manuscrito com as vendas do último mês (quase 1 milhão de euros), são tudo elementos que nos permitem confirmar a existência de um negócio de tráfico de droga em larga escala, naquele local.
Também a existência de uma organização hierárquica decorre das mais elementares regras de bom-senso, sendo impossível desenvolver qualquer atividade com a escala relatada pelos agentes policiais, sem o mínimo de organização. Acresce que a existência de hierarquia nessa organização e de salários pagos resulta das inúmeras conversas escutadas (surgindo sempre em primeira linha as conversas mantidas pelo arguido HH com a CCC constantes do anexo 38), bem como dos manuscritos encontrados aquando da busca, onde constam notas de valores pagos aos trabalhadores da banca. A veracidade de tais manuscritos, independentemente da autoria dos mesmos, - questão que a seguir abordaremos - não pode nunca ser colocada em causa, pois a simples coincidência dos valores constantes no manuscrito 58 com o dinheiro apreendido nas buscas certifica de forma absoluta a sua veracidade e constitui, sem margem de dúvida, um elemento probatório avassalador da existência de uma organização com hierarquia, funções e salários definidos na denominada Banca ....
Questão diferente e que vamos analisar de forma mais pormenorizada é a de situar o papel de cada um dos arguidos nesse negócio, nomeadamente dos denominados líderes do grupo.
*
[…] Quanto às restantes posições que os outros arguidos ocupam na estrutura em causa, temos que as mesmas decorrem dos atos praticados e foram visualizados pelos agentes policiais, bem como das escutas constantes dos autos, sendo claro e inequívoco que os mesmos não eram os donos da droga e que recebiam contrapartidas financeiras para exercer tal atividade (conversas do arguido HH e manuscrito encontrado na busca vide fls. 8103 e sgs), pelo que iremos indicar a prova que tivemos em conta para aquela factualidade à medida que analisarmos os factos concretos praticados por cada arguido. Acrescente-se ainda que a maior parte destes arguidos eram toxicodependentes pelo que a sua fiabilidade enquanto trabalhadores ficava muitas vezes comprometida, sendo normal e natural que em determinadas situações uns arguidos substituam outros no exercício de determinadas funções.
[…]
Quanto ao arguido BB tivemos em conta os seguintes elementos:
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 26 DE MARÇO DE 2020;
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 27 DE MARÇO DE 2020;
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 30 DE MARÇO DE 2020;
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 01 DE ABRIL DE 2020)
Escutas.
ALVO:113128040 Sessões (02354)
ALVO:109213060 Sessões (09000)
ALVO:112233040 Sessões (03049)
ALVO:112233040 Sessões (06818)
ALVO:113128040 Sessões (00566, 00567, 00568, 00569, 00570, 00571)
PROVA DOCUMENTAL:
Imagens de 2020-09-14, de fls.8103 - Vol.27
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 26 DE MARÇO DE 2020:
RDE/Vigilância2020-03-26 3480 - Vol.12
RDE/Vigilância de 2020-03-26, de fls. 8000 - Vol.27- relatório de analise
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 27 DE MARÇO DE 2020:
RDE/Vigilância de 2020-03-27, de fls.3480 - Vol.12
RDE/Vigilância de 2020-03-27, de fls. 8016 - Vol.27– relatório de análise
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 30 DE MARÇO DE 2020:
RDE/Vigilância de 2020-03-30, de fls.3480 - Vol.12
RDE/Vigilância de 2020-03-30, de fls.8031 - Vol.27 - relatório de análise
VIGILÂNCIA/CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA Banca ... EM 01 DE ABRIL DE 2020:
RDE/Vigilância de 2020-04-01, de fls. 3480 - Vol.12
RDE/Vigilância de 2020-04-01, de fls. 8039 - Vol.27 - relatório de análise
Auto de Busca e Apreensão em Praceta ..., 3ºEsq. Matosinhos, de 2020-07-09, Pag.4930 - Vol.17
Imagens 2020-07-09 Pag.4940 - Vol.17 - Reportagem Fotográfica aos artigos apreendidos durante a busca domiciliária
PROVA PERICIAL:
Exames/Perícias 2020-07-09 Pag.4939 - Vol.17
Teste rápido n.º 17957/2020, dando como resultado POSITIVO estupefaciente Haxixe, com o peso de 4.38 gramas
Exames/Perícias 2020-08-07 Pag.7407 - Vol.25
Exame Toxicológico do LPC ao Estupefaciente Apreendido – relatório do exame Nº 202002806 –NTX
Teve-se ainda em conta o depoimento da testemunha DDD que afirmou que o arguido BB era quem controlava a porta, encaminhando os consumidores.
Ora, perante as conversas escutadas, perante aquilo que foi visualizado pelos agentes policiais e que consta dos relatórios de vigilância supra indicados e perante o relatado por aquela testemunha, não tivemos dúvida em concluir pela participação do arguido naquela organização, exercendo as funções que constam na acusação.
Já em relação às vendas privadas, o Tribunal teve em conta a escuta alvo 113128040, sessão 02354 em que se verifica que estamos perante caso quase único, em que o arguido cedeu estupefaciente a um amigo, não se conseguindo apurar, face às circunstâncias, se houve uma venda ou uma oferta a um amigo.»

Diversamente do que sustenta o recorrente, e à semelhança do que atrás afirmámos a propósito do recurso do arguido CC, a sua participação na atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo na denominada “Banca ...” e, para além disso, a demonstração das funções que lhe estavam especificamente atribuídas – vigilância e segurança da porta do n.º ..., alertando se necessário da presença policial no local, selecionando, encaminhando e coordenando os consumidores na entrada do local de venda (... da Rua ...), atuando de forma reiterada e concertada, em conjugação de esforços e de intentos com os demais, no desenvolvimento do negócio de compra e venda de estupefacientes, naquele local e sob a liderança do arguido LL (cf. pontos 93 e 103) – decorre inequivocamente do conjunto da prova analisada pelo tribunal.
Com efeito, a análise dos relatórios de vigilância constantes dos autos (complementados com o relatório de análise de fls. 8000/8060 – volume 27), conjugados com os depoimentos prestados pelos agentes policiais EEE e YY, não deixam margem para dúvidas quanto à participação do recorrente BB na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida na “Banca ...”, em concertação de esforços com os demais arguidos e sob a chefia do arguido LL.
O depoimento prestado pela testemunha DDD (a cuja audição integral procedemos através do citius media studio), não se afigurando decisivo, constitui mais um elemento no qual o tribunal a quo se apoiou, correlacionando-o com os demais (cf., por exemplo, o teor da interceção telefónica transcrita no Anexo 38-A, alvo 109213060, sessão 09000 – arguido HH identifica o arguido BB/ “FFF” como o “rapazinho da porta”), para fundar a sua convicção.
Na verdade, a testemunha declarou que havia um rapaz (o “GGG” – o recorrente chama-se BB) que “organizava o hall de entrada” do n.º ... sendo que, por vezes, também o via no interior a consumir estupefacientes.
Tal como concluiu o tribunal de primeira instância, a colaboração do arguido BB com a denominada “Banca ...” não era pontual, mas permanente, pelo que o arguido era membro efetivo do grupo que se dedicava à venda de produtos estupefacientes em larga escala, distribuindo tais produtos (alguns dos quais, de elevada toxicidade, como heroína e cocaína) em grandes quantidades e por número significativo de consumidores (só no período compreendido entre 5/6/2020 e 8/7/2020, as vendas de estupefacientes atingiram quase um milhão de euros), desempenhando as específicas funções que lhe foram atribuídas – de vigilância e segurança na porta do n.º ..., selecionando, encaminhando e coordenando o acesso dos consumidores ao local de venda e alertando para a presença policial no local - com clara noção do seu contributo para a prossecução dos objetivos gerais do grupo.
Do mesmo modo se afigura inequívoca a circunstância de o recorrente ter obtido ganhos com a atividade de tráfico de estupefacientes a que se dedicou, em conjugação de esforços com os restantes coarguidos, não só porque tal decorre das mais elementares regras da experiência, como salientou o tribunal de primeira instância no acórdão recorrido, mas também porque encontra apoio na prova documental constante dos autos. Com efeito, o manuscrito apreendido na “Banca ...” faz menção a pagamentos efetuados a diversos intervenientes, designadamente ao arguido BB (ali designado por “HHH” e “III”, sendo o recorrente conhecido pela alcunha de “FFF”) – cf. documento de fls. 8103/8118 (reportagem fotográfica dos apontamentos sobre a venda/apuro do estupefaciente e pagamentos/despesas do negócio, constante do volume 27).
Perante o quadro factual atrás descrito, é evidente que o passo lógico seguinte consistia em ter por demonstrado o dolo do arguido/recorrente, como fez o tribunal de primeira instância.
Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum [87]. Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
Relativamente aos factos constantes do ponto 184), o tribunal de primeira instância terá fundado a sua convicção unicamente no teor da conversa mantida com o arguido GG no dia 2/5/2020, alvo de interceção telefónica e transcrita no Anexo 55-A (alvo 112233040, sessão 06818).
Como já neste acórdão tivemos oportunidade de salientar, nada obsta a que a convicção do tribunal tivesse sido formada a partir exclusivamente do teor das conversações telefónicas, as quais podem integrar o conceito de prova direta ou indireta em função do respetivo conteúdo.
As escutas telefónicas, desde que efetuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova e a transcrição das escutas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127.° do Código de Processo Penal.
Mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, refere o acórdão do STJ de 31/5/2006 [88], «o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção. A escuta, legalmente permitida e validamente efetuada, é um meio de prova autónomo apto a provar o conteúdo da própria conversação intercetada e registada. Concluindo: as escutas telefónicas são um meio de obtenção da prova, mas as conversações recolhidas através dessas interceções constituem um meio de prova; transcrito e inserido no processo, o conteúdo das gravações passa a constitui prova documental, submetida ao princípio da livre apreciação da prova: as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, art.º 127º do Código de Processo Penal.”
Se as escutas telefónicas foram validamente obtidas, como se escreve no acórdão do TRP de 3/3/2021 (Nuno Pires Salpico, in www.dgsi.pt, já citado), “a partir daí apenas importará aferir o relevo probatório do meio de prova - conversações transcritas. A interpretação do conteúdo das conversações telefónicas é estritamente norteada pelas regras da lógica, segundo as normas da experiência comum, numa abordagem marcadamente normativa e conservadora de aferição probatória, afastada de qualquer especulação ou de terrenos onde não seja relativamente inequívoco o contexto do tráfico, juízos normativos que são sempre norteados pela prudência do julgador”.
Crucial será, na interpretação da conversação/mensagem telefónica, que o teor daquela por si só e/ou conjugada com outras permita formar uma convicção segura, sem qualquer dúvida razoável e fundada, de que a transação ocorreu.
A este propósito pode ler-se no acórdão trazido a recurso o seguinte:
«Quanto às escutas telefónicas há que referir que a jurisprudência considera que as mesmas “constituindo um meio de obtenção de prova, não deixam de ser simultaneamente um meio de prova, dado que, regularmente efetuadas, uma vez transcritas no processo, passam a constituir prova documental … pelo que … a transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127º, do Código de Processo Penal, mesmo que não lida nem examinada em audiência” (vide, entre outros Acórdão Relação Lisboa de 31/05/2006 e Acórdão Tribunal Relação Coimbra de 09/05/2012, ambos em www.dgsi.pt”.
Nestes casos e mesmo que as transcrições das escutas telefónicas - prova documental – sejam o único meio de prova a sustentar a convicção do tribunal, tal não encontra qualquer óbice legal, desde que as referidas transcrições permitam suportar um juízo seguro sobre a responsabilidade jurídico-penal do agente. A esse propósito sempre se refira que os visados nessas escutas podem sempre contraditar, no decurso da audiência, o seu conteúdo e conformidade com os respetivos suportes, bem como o alcance que a acusação lhe deu e pretendeu dar.
[…]
Voltando às escutas que, como referimos, podem constituir um meio de prova por si só, temos que na grande maioria dos diálogos os intervenientes reduzem a conversão ao mínimo indispensável e usam linguagem codificada, havendo um número muito ínfimo de exceções em que temos diálogos de simples e imediata apreensão. Logo, a análise e compreensão exata dos diálogos estabelecidos e escutados não pode ser efetuada com base numa análise individual e isolada, antes tendo que ter em conta todas as circunstâncias globais que rodeiam a situação, incluindo conversas anteriores e posteriores bem como todas as movimentações anteriores e posteriores dos arguidos e ainda as declarações dos outros intervenientes das conversas que não os arguidos que muitas das vezes admitiram o que pretendiam com as mensagens ou conversas mantidas com os arguidos.
Na verdade e nestes milhares de escutas que foram efetuadas durante cerca de ano e meio, verifica-se que quando estamos perante conversas relacionadas com estupefacientes, a linguagem usada é dissimulada e fica-se pelo mínimo indispensável, denotando-se uma preocupação de poderem ser escutados e de nessa eventualidade poderem encobrir o que estavam a realizar, o que por si só já e indiciador de que a atividade realizada era ilícita.
Assim sendo e concretizando, é perfeitamente normal e natural que as conversas mantidas por via telefónica se fiquem por meias palavras ou que os seus interlocutores utilizem códigos (tshirts, camisolas, sporting, terra, shampoos, playstation, cd, jogos para a playstation) para se referirem ao estupefaciente (apreciaremos caso a caso os códigos usados), sendo muito raro que os seus agentes falem abertamente sobre essa atividade. Acresce que na maioria das conversas o que os interlocutores pretendem saber é a localização de quem vende ou anunciar a sua chegada de forma a que a atividade de tráfico ou as conversas sobre tal atividade se possam processar sem o auxilio de qualquer tecnologia – telefone, redes sociais, etc - não deixando assim qualquer rasto.
Por outro lado e isso acontece muito nestes autos, quando estamos perante conversas entre traficantes e entre traficantes e consumidores, o teor da conversa é quase sempre o mesmo, designadamente o de querer saber onde está o outro e de lhe dizer/ordenar que se encontre com ele, não havendo nunca uma pergunta para saber o motivo do encontro, sendo que o destinatário dessa conversa nunca coloca em causa nem questiona a necessidade de tal encontro, o que é bastante indiciador de que já sabe o motivo. Ora, para um simples encontro de amigos é normal alguém “convidar o outro a “tomar um copo”, sair, ir ao futebol, ao shopping etc”, o que raramente acontece nestes autos, pois o que ouvimos quase sempre é “onde estás?, anda cá, vou aí ter, um café, etc”, o que indicia claramente que o interesse do encontro é falar de uma atividade que não pode ser escutada por ser criminosa, ou praticar atos dessa atividade, que têm de ser efetuados presencialmente mas que não podem ser anunciados por telefone, por constituírem crime. Acresce que conforme se pode verificar no relacionamento entre os arguidos, o elevado número de chamadas e mensagens enviadas entre eles - e aqui não estão incluídas as das redes sociais, nomeadamente e principalmente “whats´up” - indiciam claramente que estamos perante alguém com quem trabalha e que telefona ou envia mensagens ao outro para tratar de assuntos de trabalho (entenda-se trabalho como atividade de tráfico) e não os telefonemas ou mensagens que se enviam aos amigos para se encontrarem e confraternizarem, nem tampouco as típicas chamadas para simplesmente conversarem.
Acresce que resulta igualmente dos autos que as chamadas telefónicas e as mensagens enviadas não eram o único modo de comunicação utilizada pelos arguidos, sendo que dessas chamadas resulta muitas vezes que os encontros e/ou a finalidade desses encontros já tinham sido combinados previamente através das redes sociais. Logo, a interpretação das chamadas também tem de ter em conta tal facto, sendo que como é sabido, ainda não é possível proceder ao controlo das chamadas e mensagens nas redes sociais, pelo que é mais seguro proceder a combinações ilícitas por esse modo.
[…]
Analisando o teor da acusação, verifica-se que se reproduzem muitas conversas mantidas pelos arguidos entre eles ou com terceiros, em que se fala de assuntos relacionados com estupefaciente. Tais conversas poderão ser relevantes para melhor podermos compreender a atividade dos arguidos e as relações entre eles, mas não constituem em si, qualquer facto ilícito, nem consubstanciam qualquer crime, pelo que não devem ser levadas à factualidade assente ou não assente. Nesta conformidade, conversas em que alguém diz que “isto está muito parado” ou “não tenho nada para venda” é algo que poderá usado para compreender toda a dinâmica da atividade dos arguidos, mas que não pode sustentar uma acusação e uma posterior/eventual condenação, pelo que nos abstivemos de levar tal factualidade aos factos assentes /não assentes, apenas constituindo mais um elemento para considerarmos os factos efetivamente relevantes e consubstanciadores de um crime provados ou não provados, melhor compreendendo e situando a atividade global dos arguidos.
Na verdade e apesar de não constituir qualquer crime, ouvirmos um arguido assumir perante outrem que não tem estupefaciente para venda, tal conversa, não deixa de ser importante para juntamente com outras conversas e outros elementos de prova concluirmos pela atividade de tráfico por parte de determinados arguidos. Ou seja, estas conversas servem para a motivação da matéria de facto e não para constar na referida matéria, pois que não constituem qualquer conduta ilícita.
O mesmo se aplica a encomendas de estupefacientes em que a acusação não concretiza se houve ou não venda posterior, pois que a encomenda em si mesmo não constitui crime e se fosse seria praticado por quem a efetuou e não quem a recebeu. Porém, as constantes encomendas, quando não concretizadas em vendas, o que como poderemos constatar não sucedeu na maior parte das vezes indicada na acusação (vendas efetivamente ocorreram), também constituem mais um elemento a ter em conta para analisar toda a atividade dos arguidos, pois que quem recebe encomendas de estupefacientes e não refuta essa encomenda ou não esclarece o seu interlocutor que se deve tratar de um engano e ainda por cima combina algo ou alega alguma impossibilidade ou obstáculo é porque com grande probabilidade se dedica à atividade de venda. E, aí chegados, se aditarmos outros elementos probatórios, como a seguir referiremos, a conclusão a retirar é evidente e avassaladora. No entanto e este pormenor é que convém realçar neste momento, o que importa é frisar que tais factos também não irão constar da factualidade assente ou não assente, pois que não consubstanciam em si mesmo qualquer conduta criminosa.
Esclareça-se igualmente que mesmo nos casos em que depois do contacto não há confirmação especifica da venda – confissão por parte do vendedor, visualização por parte do agente policial ou confirmação especifica por parte do comprador – o tribunal deu como assente a referida transação pois que é o corolário lógico de todo o processo –pelas explicações que supra tecemos -, sendo natural que a seguir ao contacto se siga a transação, só assim se entendendo o referido contacto. Na verdade e se a seguir a um contacto em que se diz “já passo aí” ou “preciso de x” ou outras conversas do teor que supra referimos o normal é a concretização da operação, sendo que se tal não sucedesse, certamente teria que haver um novo contacto a perguntar se a pessoa ainda vinha ou se o vendedor ainda se encontrava no local. Ora, não tendo sucedido tais conversas e não havendo uma negação perentória do arguido das mesmas, demos as referidas vendas como assentes, como melhor explicaremos nas situações em específico. […]”.
Tendemos a concordar com esta última formulação genérica expressa no acórdão recorrido, sendo certo, porém, que a asserção nela contida não dispensa uma análise das especificidades de cada situação em concreto.
Importa sublinhar, neste âmbito, que a ilação derivada de uma presunção natural não pode formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Com efeito, o critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [89].
Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[90]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, as referidas escutas telefónicas não se encontram complementadas (e muito menos corroboradas) por qualquer outro meio de prova e afigura-se-nos que o seu conteúdo, por si só, é insuficiente para comprovar a compra e venda subsequente de produto estupefaciente (no caso, haxixe, como claramente resulta do teor da interceção telefónica em causa).
Com efeito, não há dúvida de que o recorrente BB contactou telefonicamente o arguido GG – e não o arguido BBB como, certamente por lapso, se escreveu no acórdão recorrido -, dizendo-lhe que queria três placas de haxixe, mas não queria pagar mais de “400” (euros, presume-se) por cada uma, respondendo-lhe o arguido GG que “não sabia se conseguia, que ia ver o que podia arranjar”.
É certo que, posteriormente, não surge qualquer outra conversa telefónica na qual este assunto tivesse sido abordado, mas tal elemento não se nos afigura decisivo, neste caso em concreto, uma vez que os intervenientes ficaram de se encontrar pessoalmente de seguida e, por isso, desconhecemos que diálogo mantiveram a este propósito. Na verdade, é perfeitamente plausível que o arguido GG não tenha conseguido obter o produto estupefaciente solicitado pelo recorrente BB, nas condições por este pretendidas (por preço não superior a 400 € cada placa), e que disso lhe tivesse dado conta quando se encontraram pessoalmente, assim se justificando a inexistência de uma conversa telefónica sobre tal matéria.
Deste modo, consideramos que, no presente caso, os indícios destacados na decisão recorrida não são suficientemente graves, precisos e concordantes [91], não permitindo, por isso, as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo (no sentido da demonstração do efetivo fornecimento do produto estupefaciente ao recorrente), para além da dúvida razoável.
A conclusão probatória realizada pelo Tribunal recorrido materializa-se numa decisão contra o arguido, insuficientemente suportada pelos elementos probatórios de natureza indiciária em que assentou a convicção, de modo a não deixar pelo menos dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido. Deve, por isso, ser alterada, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.
Em conclusão, sendo inequívoco que o arguido BB solicitou ao arguido GG o fornecimento de 3 placas de haxixe pelo preço unitário de 400€, destinando o arguido EE tal produto estupefaciente a revenda (como não podemos deixar de concluir, considerando a quantidade de estupefaciente em causa), desconhecendo-se se tal chegou ou não a acontecer, o ponto 184) passa a dispor da seguinte redação:
«No dia 2/5/2020, o arguido BB solicitou ao arguido GG o fornecimento de três placas de haxixe por 400 € cada, pretendendo destinar tal produto à sua revenda».
Para o elenco dos factos não provados transita o segmento do ponto 184) que alude à compra do mencionado produto estupefaciente pelo arguido BB ao arguido GG.
*
b) Verificação das circunstâncias agravantes do crime de tráfico de estupefacientes e convolação para o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Considera o recorrente que o seu comportamento não pode ser enquadrado no âmbito do crime de tráfico de estupefacientes agravado e que, a ser condenado, sempre terá de sê-lo por referência a um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
O art.º 24.º do DL n.º 15/93 estabelece, nas alíneas b), c) e j), que as penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:
b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas;
c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória;
j) O agente atuar como membro de bando destinado à prática reiterada dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando.
Relativamente à verificação das circunstâncias agravantes previstas nas alíneas b) e c), damos aqui por reproduzidas as considerações teóricas enunciadas a propósito da análise do recurso do arguido HH (IV).
Dito isto, se podemos concluir, em face da matéria de facto descrita no acórdão recorrido e que temos por definitivamente assente, que o arguido/recorrente BB estava integrado no grupo liderado pelo LL, grupo este que durante cerca de um ano e um mês vendeu diariamente, de forma organizada e hierarquizada, grandes quantidades de cocaína, heroína e haxixe, gerando lucros avultados para o líder do grupo, temos de reconhecer que quanto ao recorrente não ficou demonstrado que este tivesse obtido ou procurasse obter “avultada compensação remuneratória”.
Na verdade, apenas foi possível apurar que o arguido BB recebia um salário por contrapartida da sua colaboração na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida na Banca ... (cf. o ponto 93), mas nada nos autos sugere que o mesmo visasse obter uma compensação com uma ordem de grandeza que se afaste, manifestamente e segundo parâmetros objetivos, das projeções do crime base – sendo certo que, como é assinalado no acórdão recorrido (fls. 15.409 verso), em todas as atividades de tráfico de estupefacientes os agentes procuram obter os ganhos que a atividade lhes possa proporcionar.
Já quanto à circunstância agravante prevista na alínea b), a sua demonstração decorre inequivocamente de todo o circunstancialismo apurado, caraterizador da atividade de tráfico de estupefacientes em apreço. Com efeito, e independentemente da concreta identificação dos adquirentes de produtos estupefacientes, a verdade é que ficou demonstrado que o grupo liderado pelo LL vendeu produtos estupefacientes (cocaína, heroína e haxixe) de forma continuada, pelo menos desde 4/6/2019 até 9/7/2020, sendo certo que só à denominada “Banca ...” afluíam, diariamente, pelo menos dezenas de consumidores/compradores de várias zonas do país (cf. pontos 74, 75 e 78 da matéria de facto provada).
O volume de produtos estupefacientes transacionados (cf. o ponto 104: só no período compreendido entre o dia 5/6/2020 e o dia 8/7/2020 o grupo liderado pelo arguido LL vendeu estupefacientes no valor total de € 960.774,00), associado ao período de funcionamento da “banca” (diariamente, das 9 horas da manhã até à uma hora da madrugada – ponto 78), configuram também elementos adicionais tendentes a reforçar a ideia da disseminação daquelas substâncias ilícitas por um número significativamente elevado de pessoas.
Analisemos, agora, a circunstância agravante prevista na alínea j).
Como já tivemos oportunidade de observar neste acórdão, o conceito de “bando” integra uma situação de atuação ilícita intermédia entre a simples comparticipação criminosa e a associação criminosa - mais grave do que as situações de mera participação criminosa, embora menos censurável do que aquelas em que existe uma perfeita e definida "associação criminosa" -, integrando aquelas condutas em que, pelo menos, dois agentes atuam de forma voluntária e concertada, em colaboração mútua, com uma incipiente estruturação de funções, mas sem que se possa já considerar como existente uma organização perfeitamente caracterizada, com níveis e hierarquias de comando e com uma certa divisão e especialização de funções de cada uma das suas componentes ou aderentes, como sucede na associação criminosa [92].
O tribunal de primeira instância excluiu a verificação do crime de associação criminosa, mas considerou verificada a circunstância qualificativa em causa, escrevendo no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição parcial):
«Para a verificação deste tipo de crime basta que o agente atue com a consciência de participar num grupo, com objetivos definidos, sem que com isso obrigatoriamente conheça todos os membros envolvidos. A atuação em bando, traduz uma atuação com vista à prática reiterada de crimes, em que cada agente não tem consciência e (ou) intenção de pertença a um ente coletivo com personalidade distinta da sua e objetivos próprios – o que afastará a associação criminosa típica – mas em que os diversos “colaboradores”, inseridos numa orgânica ainda incipiente, reconhecem, todavia, a existência de uma liderança de facto a que se subordinam.
Como bem refere Figueiredo Dias, em “as Associações Criminosas, no Código Penal de 1982” os laços que atam aqueles membros não se podem confundir com aqueloutros que unem, por exemplo, os coautores, os cúmplices ou os instigadores, mas, de outra banda também não se podem confundir com os que ligam os membros de uma associação criminosa. Logo, a densidade de relações entre os membros de uma associação criminosa é mais forte do que no bando, sendo que no bando, ao contrário da associação criminosa, não há uma organização funcional, mas sim uma relação sustentada num fim comum que é a prática de crimes. Acresce que, e esta é outra característica que distingue o bando da associação criminosa, esta última assume uma maior fixidez nos seus membros, enquanto que num bando a sua composição varia de forma regular. […]
Por outro lado, a circunstância da agravação prende-se com o facto do bando introduzir uma perigosidade acrescida tanto na execução do furto como no seu resultado.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Relação Lisboa de 06/11/2003, in www.dgsi.pt:
“II - Para efeitos da qualificativa a que alude a alínea j) do artigo 24.º do D.L. n.º 15/93, a noção de «bando» é algo que se distingue da simples coautoria, por um lado, indo além dela, e da associação criminosa, por outro, que não chega a atingir.
III - «Bando» será, assim, uma atuação plural e voluntária com vista à prática de crime ou crimes, em que cada agente não tem consciência e (ou) intenção de pertença a um ente coletivo com personalidade distinta da sua e objetivos próprios - o que permite afastar a figura da associação criminosa típica - mas em que os diversos «colaboratores», inseridos numa orgânica ainda incipiente, reconhecem, todavia, a existência de uma liderança de facto a que se subordinam - o que permite, por seu lado, distinguir a figura da simples coautoria.” […]

No presente caso, perante a factualidade apurada, não temos qualquer dúvida em afirmar, tal como o fez o tribunal de primeira instância, “que os arguidos LL, AA, NN, DD, HH, OO, EE, QQ, GG, ZZ, BB, CC, FF, II e AAA sabiam da pertença do grupo, sabiam das atividades do grupo e exerciam todos uma atividade essencial dentro do grupo de forma a venderem o maior número de estupefacientes possível gerando assim lucros avultados para o líder do grupo, o arguido LL, que depois lhes pagava uma remuneração por tal atuação”.
A atuação do arguido BB, inserido numa estrutura orgânica relativamente incipiente, mas subordinada à liderança do LL, em colaboração com os demais coarguidos e com propósitos e objetivos comuns, integra inequivocamente a figura do bando, pelo que se encontra preenchida a circunstância qualificativa prevista na línea j), do art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Resta-nos analisar se o comportamento do recorrente deverá ser considerado de “menor gravidade” e, por isso, enquadrado no âmbito do tipo de ilícito previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [93]).
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”. Ainda que se verifique um conjunto de circunstâncias que apontem para uma imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída – o que acontecerá, tipicamente, se o tráfico for de carácter muito rudimentar, se a quantidade traficada não for muito elevada, se a modalidade ou as circunstâncias da ação não forem altamente desvaliosas, se o tráfico não for efetuado por estrutura organizada ou se essa estrutura for incipiente -, o comportamento do agente não deverá, em princípio, ser integrado no art.º 25.º, mas antes no tipo matricial do art.º 21.º, se ocorrer alguma das circunstâncias mencionadas no art.º 24.º (potencialmente suscetíveis de integração dos factos no tipo agravado aqui previsto) [94].
É manifesto, porém, que no presente caso não estamos perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, tendo o arguido/recorrente desempenhado funções relevantes para o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes liderada pelo arguido LL e para cuja prossecução também contribuiu de forma significativa.
A colaboração do arguido BB com a denominada “Banca ...” não era pontual, mas permanente, pelo que o arguido era membro efetivo do grupo que se dedicava à venda de produtos estupefacientes em larga escala, distribuindo tais produtos (alguns dos quais, de elevada toxicidade, como heroína e cocaína) em grandes quantidades e por número significativo de consumidores (só no período compreendido entre 5/6/2020 e 8/7/2020, as vendas de estupefacientes atingiram quase um milhão de euros), desempenhando o recorrente as específicas funções que lhe foram atribuídas – de vigilância e segurança na porta do n.º ..., selecionando, encaminhando e coordenando o acesso dos consumidores ao local de venda e alertando para a presença policial no local - com clara noção do seu contributo para a prossecução dos objetivos gerais do grupo.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, inexistindo motivos válidos para integrar o comportamento do recorrente no âmbito do tráfico de estupefacientes de menor gravidade ou, sequer, do tipo de tráfico de estupefacientes matricial, previsto e punido pelo art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22/1.[95]
*
c) Dosimetria da pena de prisão e suspensão da respetiva execução.

Discorda o recorrente da pena concreta que lhe foi aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
O crime de tráfico de estupefacientes agravado é, como vimos, punido com pena de 5 a 15 anos de prisão, tendo o tribunal de primeira instância aplicado ao recorrente a pena de 5 anos e 3 meses de prisão, fundamentando a sua decisão (apreciando a situação do recorrente conjuntamente com a do arguido CC) nos seguintes moldes (segue transcrição):
« - a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21/24 é média, pois que a sua função de reencaminhar os toxicodependentes e de assegurar não só a segurança do local, mas a boa organização das vendas, é fundamental para que as vendas possam ocorrer e com a magnitude com que existiam.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com pouca intensidade, pois que à data dos factos nenhum dos arguidos tinha antecedentes criminais, sendo que o arguido BB posteriormente foi condenado numa pena de multa pela prática, em 2016, de um crime de ofensas à integridade física. Os seus hábitos aditivos, porém, constituem um fator de risco.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem nas sociedades.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar a estes arguidos a pena de 5 anos e 3 meses de prisão.»
Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 [96], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [97].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [98].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [99], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Apesar de o arguido BB não apresentar antecedentes criminais à data da prática dos factos, tendo sido unicamente condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física cometido posteriormente, e de termos decidido no sentido da alteração parcial da matéria de facto provada, nos moldes anteriormente explicitados, não vislumbramos, mesmo assim, qualquer excesso ou desproporção da medida concreta da pena de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
Com efeito, a desinserção socioprofissional do recorrente é manifesta, o qual desde cedo adotou um estilo de vida desregrado, pautado pelo consumo abusivo de substâncias estupefacientes e álcool, pelo que não são despiciendas as exigências de prevenção especial.
Deste modo, a premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada, decorrente da específica danosidade social do tipo de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) justifica, assim, a aplicação da pena de prisão na medida determinada pelo tribunal.
Fixada em medida inferior, tal pena – fixada já num quantum muito próximo do respetivo limite mínimo da moldura abstrata - seria desajustada ao grau de ilicitude do comportamento do recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
Aliás, é de notar que só circunstâncias verdadeiramente excecionais, que no presente caso não se verificam[100], justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 [101].
A pena concreta de prisão aplicada ao recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução (art.º 50.º do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso.
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VII) Recurso do arguido DD.
a) Nulidade do acórdão.
Considera o recorrente que o acórdão enferma da nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, já que o condenou por factos diversos dos que constavam da acusação pública.
Assim, entende o recorrente que, tendo o tribunal a quo dado como provado, no ponto 124), alínea r), que o “ovo” contendo haxixe foi por ele recebido das mãos da arguida QQ, quando no ponto 1034) da acusação se imputava tal comportamento ao arguido NN (com a alcunha de “JJJ”), sem que previamente lhe tivesse sido comunicada esta alteração factual, acabou por condená-lo por factos diversos dos descritos nesta acusação, violando o princípio do acusatório e as garantias de defesa reconhecidas ao arguido no processo penal.
Vejamos se lhe assiste razão.
O ponto 1034) da acusação tem o seguinte teor. «No dia 11-03-2020, RR liga à companheira, a arguida QQ e diz-lhe para ir à janela da sua residência (nº ... da Rua ...) e dar o “ovo” (refere-se á bolota de haxixe) ao JJJ – alcunha atribuída ao NN.»
Já do ponto 124), r) da matéria de facto provada ficou a constar o seguinte: «Nesse mesmo dia, o arguido DD deslocou-se à janela da residência do arguido EE e da arguida QQ (nº ... da Rua ...), recebendo das mãos daquela um “ovo” (designação para bolota de Haxixe), por indicações dadas pelo arguido EE que momentos antes tinha pedido à QQ para aquela proceder à referida entrega.»
Assim, no ponto 1034) da acusação descreve-se a entrega de uma bolota de haxixe (vulgo “ovo”) pela arguida QQ ao “JJJ” – acrescentando o Ministério Público que se tratava da alcunha dada ao arguido NN.
Já no ponto 124), r), o tribunal indica que essa entrega foi feita ao arguido DD.
A redação dada ao ponto 1034) da acusação reproduz a conversa telefónica mantida entre o arguido EE e a companheira QQ, no dia 11/3/2020, por meio do aparelho com o n.º ... (sessão/produto nº 11166), e que tem o seguinte teor:
«[…] RR – tou, bai à janela e dá o ovo o JJJ.
Companheira – hum
RR – tá na prateleira, dá essa cena que tá aí na prateleira ao DD
Companheira – tá bem […]”.

Apoiando-se no teor desta interceção telefónica, em conjugação com o conteúdo do relatório de vigilância constante de fls. 3317/3322 (volume 11) – no âmbito da qual um indivíduo de sexo masculino é visto a chegar ao n.º ... da Rua ..., trazendo um volume debaixo do casaco, que conteria produto estupefaciente, identificando posteriormente os agentes policiais tal indivíduo como sendo o arguido DD -, o tribunal a quo precisou que a pessoa identificada por “JJJ” na acusação tratava-se do arguido DD.
Estabelece o art.º 358.º do CPP, sob a epígrafe “Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”:
“1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”.
Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [102], a alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
“Alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal. A alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa [103].
Por isso, concluiu-se neste aresto que “A circunstância de terem sido dados como provados «dois casos concretos de transação de droga com indivíduos não identificados» não integra a noção de “alteração não substancial”, pois, mesmo a existir, não modificaria o quadro factual da acusação, nem teria qualquer relevância para a qualificação ou para a determinação da moldura penal, não assumindo, assim, interesse para a decisão da causa, pelo que não se verifica violação do procedimento – tributário do princípio do acusatório – previsto nos arts. 358.° ou 359.° do CPP.”.
Para além de ser discutível que a alteração da redação dos factos introduzida pelo tribunal de primeira instância configure uma alteração não substancial relevante – uma vez que o arguido DD encontrava-se acusado de uma multiplicidade de factos enquadrados na atividade de tráfico de estupefacientes, configurando um único crime (exaurido) de tráfico de estupefacientes -, também é preciso fazer notar que a razão da obrigatoriedade de comunicação da alteração de factos ao arguido, imposta pelo art.º 358.º do CPP, prende-se com as exigências do princípio da vinculação temática, que está estritamente associado às garantias de defesa.[104] Visa-se, fundamentalmente, evitar “decisões surpresa”.
Ora, o recorrente reconhece que tanto ele como o arguido NN tinham a alcunha de “JJJ”, pelo que, conhecendo os meios de prova – e, particularmente, o conteúdo da interceção telefónica atrás mencionada, da qual resulta que o arguido NN se referiu a “JJJ” e a “DD”, como sendo a pessoa a quem deveria ser feita a entrega do produto estupefaciente –, é evidente que a decisão do tribunal de primeira instância não podia deixar de ser por ele antecipada, nada tendo de imprevista.
Nenhuma nulidade foi, assim, cometida pelo tribunal de primeira instância, improcedendo o presente fundamento do recurso.
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b) “Erro notório na apreciação da prova” e violação do princípio “in dubio pro reo”.

Considera o recorrente que o tribunal incorreu em “erro notório na apreciação da prova”, vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, na medida em que a prova analisada não permitia ultrapassar a “dúvida razoável” quanto á sua participação nos factos que lhe são imputados, tendo sido, assim, violado o princípio “in dubio pro reo”.
Como reconhece o recorrente, o “erro notório na apreciação da prova” verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem médio, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
É de notar que os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O “erro notório na apreciação da prova”, a que alude o art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[105]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [106].
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No que concerne à participação do arguido DD na execução do crime de tráfico de estupefacientes em apreço, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
«No que concerne ao arguido DD, o tribunal teve em conta as vigilâncias efetuadas no local em 11, 13, 26, 27 de Março de 2020, bem como em 1 de Abril desse ano.
Quanto ao facto do dia 08 de Março, a circunstância do arguido HH ter dito que o KKK estava à porta não significa necessariamente que estivesse a efetuar qualquer ação de vigilância ou outra, sendo que até a essa data nenhum facto ligava o arguido DD ao grupo, pelo que não o demos como assente. Quanto ao sucedido no dia 11/03/2020, nomeadamente a entrega da bolota ao DD por parte do EE, tivemos em conta fls. 4 do anexo 53, sessão 11166.
Quanto à convicção de que o arguido DD passou a exercer funções que até aí cabiam ao arguido NN tal resulta da análise às imagens recolhidas pelos agentes policiais nas vigilâncias de 26, 27 de Março e 1 de Abril onde se verificou a presença de um elemento novo (DD) e a ausência de um elemento antigo (NN). Ora, da visualização dessas imagens é possível confirmar a ação de coordenação do arguido DD, sendo que na altura, pelo facto do mesmo apenas ter atuado no dia 11/03, mas em funções diferentes, não tinha o telemóvel sob escuta, pelo que não pudemos acompanhar a sua ação de coordenação com os demais elementos (casa de recuo e estafeta) como sucedeu com o arguido NN. No entanto, há um elemento que também consideramos relevante para alicerçar a nossa convicção. Nos manuscritos apreendidos aquando da busca consta um pagamento de 500€ efetuado ao “eu/LLL”. Ora, o DD era conhecido pelo LLL. Pode-se contrapor que a perícia foi inconclusiva quanto à autoria daqueles manuscritos. No entanto, há que realçar que quanto ao arguido DD a inexistência da totalidade de dizeres comuns nos seus autógrafos e o traçado maioritariamente diferenciado das escritas em confronto inviabilizaram a realização da referida perícia, pelo que quanto a este arguido não há qualquer prova pericial a afastar a sua autoria daqueles manuscritos. Acresce que, mesmo que não fosse o DD a escrever poderia ter sido ele a efetuar a referida operação de contagem, pois que como referimos anteriormente é normal alguém conferir e outrem apontar. No entanto e esse facto é que constitui elemento fundamental na nossa análise, a circunstância de no documento figurar o nome do LLL como o autor dos manuscritos é mais um elemento a juntar a todos os outros, sendo que conhecendo o modus operandi da banca, uma das funções da gerência é além de garantir a coordenação de todos os trabalhadores, efetuar o controlo das entradas e saídas de dinheiro e estupefaciente.
Por fim, nunca nos podemos esquecer que a conclusão de que o arguido DD passou a função de gerente/coordenador da banca foi a mesma que também chegaram os agentes investigadores, polícias com larga experiência no ramo e sem qualquer interesse no caso, o que também não é de descurar, apesar de como é óbvio, tais conclusões não vincularem o tribunal.»
Reportando-se ao depoimento prestado pela testemunha EEE, agente coordenador da investigação, o tribunal a quo fez constar no acórdão recorrido o seguinte: «Quanto ao arguido DD, a testemunha falou sobre a vigilância constante de fls. 3217 e sgs. não tendo dúvida que o arguido transportou estupefaciente, pois que para além do que consta dos fotogramas – arguido transportando um volume dentro do casaco e depois saindo do ... já sem o casaco e não transportando qualquer pacote ou volume, a venda em força começou logo depois (já havia vendas antes, mas poderiam ser restos do dia anterior – na ótica da testemunha).»
Da leitura da decisão recorrida constata-se, assim, que o tribunal a quo explicitou de forma perfeitamente lógica e cristalina as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [107] de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido dolosamente.
O recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que o tribunal não incorreu em “erro notório na apreciação da prova”. Com efeito, de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou, ainda, notoriamente violadora das regras da experiência comum ou do princípio “in dubio pro reo”, como defende o recorrente.
Como é sabido, o princípio “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto decisivo para a decisão da causa -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Como é salientado no acórdão deste TRP de 4/5/2016 (relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt), “A dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável, objetivável. A dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.”.
Sustenta o recorrente que a prova constante dos autos não permitia fundar a convicção da sua participação na execução do crime de tráfico de estupefacientes em apreço, nos moldes em que vieram a ser descritos pelo tribunal a quo na matéria de facto provada. E acrescenta que, se o tribunal não enunciou qualquer dúvida a esse propósito, tal dúvida afigura-se patente perante a insuficiência e incerteza da prova utilizada para formar a sua convicção, pelo que sempre ocorre a violação do princípio “in dubio pro reo”.
Tem razão o recorrente quando assinala que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 [108], “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.”.
Por isso, violação do princípio “in dubio pro reo” ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.[109]
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [110].
Defende o recorrente que o tribunal deveria ter ficado na dúvida, pois a esse resultado necessariamente se chegaria perante a prova produzida, sendo esta manifestamente insuficiente para suportar a conclusão a que chegou o tribunal a quo – a análise dos fotogramas referentes às vigilâncias dos dias 11 e 26 de março de 2020 não permite concluir que o indivíduo fotografado era o mesmo nas duas situações, acrescenta o recorrente.
Discordamos em absoluto da perspetiva – naturalmente interessada - do recorrente: uma simples análise dos fotogramas em causa permite concluir que a pessoa retratada é sempre a mesma, independentemente da consideração da existência de tatuagens no antebraço e braço esquerdos. [111] De resto, a fisionomia e aparência física do arguido são muito peculiares e distintivas, permitindo distingui-lo facilmente dos restantes intervenientes e colaboradores da “Banca ...” que aparecem retratados nos fotogramas.
Quanto à questão das alcunhas atribuídas ao recorrente (“JJJ” e “LLL”) e à circunstância de o tribunal a quo ter considerado que este surge identificado nos manuscritos apreendidos na “banca”, também é evidente a inexistência de qualquer erro notório na apreciação da prova, decorrente da eventual preterição do princípio “in dubio pro reo”.
Aliás, o recorrente reconhece que era conhecido quer pela alcunha de “JJJ”, quer pela de “LLL” e o tribunal explica, de forma absolutamente lógica e congruente, o motivo pelo qual se convenceu que a referência a “eu/LLL” constante dos manuscritos apreendidos na “banca” reporta-se ao arguido DD (e não ao arguido NN): é que no período a que se reportam aqueles manuscritos (5/6 a 8/7/2020) o arguido NN já não se encontrava na “Banca ...”, tendo sido substituído a partir de março de 2020 pelo recorrente DD, que passou a exercer as funções de “gerência” daquele negócio de tráfico de estupefacientes inicialmente atribuídas ao referido NN (além de garantir a coordenação de todos os “colaboradores”, efetuar o controlo das entradas e saídas de dinheiro e estupefaciente).
Também as conclusões extraídas pelo tribunal a quo a partir da globalidade da prova – para além das constantes do ponto 125), já analisado, as contidas nos pontos 313) a 316), isto é, os factos relacionados com o dolo do arguido -, não merecem qualquer censura, já que se encontram apoiadas em raciocínios indutivos lógicos e congruentes com as regras da experiência comum. [112]
Como observa Claus Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), o princípio in dubio pro reo “não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
No presente caso, não só o tribunal de primeira instância não enunciou qualquer dúvida que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia pelas razões já explicitadas [113]. Inexiste, portanto, erro notório na apreciação da prova, mostrando-se a decisão recorrida totalmente congruente com a observância do princípio “in dubio pro reo”.[114]
Improcede, assim, na totalidade, o presente recurso.
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VIII) Recurso do arguido JJ.

a) Convolação para o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Defende o recorrente que o tribunal de primeira instância errou ao enquadrar o seu comportamento no tipo matricial do crime de tráfico de estupefacientes, na medida em que, reduzindo-se a sua atividade a um simples “tráfico de rua”, com poucos clientes e que, para além disso, adquiriam produto estupefaciente para consumo próprio, deverá ser integrado no âmbito do tipo de ilícito previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [115]).
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”. Verificando-se um conjunto de circunstâncias que apontem para uma imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída – o que acontecerá, tipicamente, se o tráfico for de carácter muito rudimentar, se a quantidade traficada não for muito elevada, se a modalidade ou as circunstâncias da ação não forem altamente desvaliosas, se o tráfico não for efetuado por estrutura organizada ou se essa estrutura for incipiente -, o comportamento do agente deverá, em princípio, ser integrado no art.º 25.º.
No presente caso, o tribunal de primeira instância considerou não estar perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, a justificar o enquadramento do seu comportamento no âmbito do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, escrevendo no acórdão recorrido o seguinte:
«Por fim, os arguidos JJ e MMM.
Começando pelo primeiro, não ficou assente que o mesmo se tivesse deslocado com os arguidos pertencentes ao grupo ... ao Algarve e ao Sul de Espanha para comprar estupefaciente. No entanto, já ficaram assentes as muitas vendas que o mesmo realizou, tendo o arguido vários clientes fixos.
Desses clientes, salienta-se a testemunha NNN, consumidor habitual de cocaína, a qual comprou esta substância, em diversas ocasiões, em quantidades correspondentes em média a 5 gramas de cocaína por mês, pela qual pagava cada grama o valor situado entre €55,00 a €60,00, o que ocorreu pelo menos durante o ano de 2019 e 2020 até o arguido ser detido.
Ora, perante estes vendas a que se juntaram as outras que foram dadas como assentes, entendemos que estamos perante um crime de tráfico de estupefaciente na sua forma normal, ou seja na previsão do art.º 21.º da lei da droga, pois que o tempo que duraram as vendas, a quantidade e a qualidade do estupefaciente vendido (principalmente a cocaína), não se compadecem com qualquer diminuição de ilicitude.»
Concordamos inteiramente com as considerações do tribunal a quo, a propósito da qualificação jurídica do comportamento do recorrente, atrás transcritas.
É certo que, como salienta o recorrente, não se deteta o recurso a meios sofisticados ou qualquer complexidade organizativa (como a utilização de terceiros para auxílio na venda aos consumidores ou utilização de espaços de armazenagem da droga), sem que, contudo, possa reconduzir-se a atividade de tráfico de estupefacientes por ele prosseguida a um simples “tráfico de rua”.
Por outro lado, a atividade de tráfico de estupefacientes foi prosseguida durante um período temporal relativamente longo (de, pelo menos, um ano) e com caráter de regularidade, abastecendo o arguido vários clientes fixos, para além de outros consumidores, cuja identidade não foi possível apurar.
Finalmente, protegendo o crime de tráfico de estupefacientes, de forma imediata, a saúde pública, não podemos deixar de reconhecer a existência de uma óbvia relação de proporcionalidade direta entre o volume de droga traficado e suas caraterísticas e a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido, onde quer que a atividade criminosa seja levada a cabo [116].
A quantidade e, sobretudo, a natureza dos produtos estupefacientes em causa (particularmente, cocaína, droga de elevada toxicidade) impede a integração do comportamento em causa no tipo privilegiado previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 23/1, parecendo-nos manifesto que não se configura como um caso extraordinário ou excecional, em virtude de uma ilicitude consideravelmente diminuída.
Nenhuma censura merece, assim, quanto a este aspeto, a decisão recorrida, improcedendo este fundamento do recurso.
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b) Dosimetria da pena de prisão.
Discorda o recorrente da medida concreta da pena de prisão aplicada – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 4 anos e 9 meses, numa moldura abstrata de 4 a 12 anos de prisão -, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
Vejamos se lhe assiste razão.
O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição parcial do acórdão recorrido):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º (não faz parte do bando e como tal não há qualificação do art.º 24.º) é média/elevada, pois que o arguido efetuou muitas vendas, incluindo cocaína e durante um período de tempo considerável;
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com intensidade média, pois que o arguido está integrado socialmente, estando abstinente do consumo de estupefacientes.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Ora, perante todos estes factos, decidimos aplicar ao arguido a pena de 4 anos e 9 meses de prisão.»
Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 [117], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [118].
Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados, estabelecendo o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar, falhando o seu propósito de reforço da confiança comunitária na validade das normas violadas e, por isso, o objetivo de adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração”.
Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária.
Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização [119].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [120].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [121], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos – incluindo a qualidade e quantidade do produto estupefaciente em causa -, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial; teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do C. Penal.
A premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada, decorrente da específica danosidade social do tipo de ilícito em causa, associada à necessidade de readaptação social do delinquente (prevenção especial positiva) e dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa) [122] justifica o quantum concreto da pena de prisão determinado pelo tribunal de primeira instância. Tal pena mostra-se ainda compatível com o limite da culpa (acentuada) do recorrente.
Nenhuma desproporção (muito menos considerável, a justificar a intervenção corretiva deste Tribunal) encontramos, assim, na decisão recorrida [123] - tendo em consideração a elevada intensidade dolosa evidenciada na prática do crime e o grau de ilicitude manifestado na conduta do arguido -, mostrando-se manifestamente infundada a pretensão do recorrente em ver a pena reduzida, tanto mais que esta foi já fixada num quantum próximo do limite mínimo da respetiva moldura penal abstrata.
Fixada em medida inferior, tal pena seria desajustada ao grau de ilicitude do comportamento do recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
Improcede, assim, na totalidade, o presente recurso.
*
IX) Recurso do arguido II.
a) Impugnação da matéria de facto.
Considera o recorrente que o tribunal de primeira instância incorreu num “claro erro na apreciação da prova e/ou erro de julgamento”, uma vez que os factos dados como provados, que qualificam o tipo de crime praticado, deveriam ter sido dados como não provados, por força da total ausência (ou insuficiência) de prova, produzida quer em sede de julgamento, quer no decurso do processo.
É manifesto, porém, que não foi observado o ónus de impugnação especificada, não tendo o recorrente procedido à indicação das concretas razões da sua discordância relativamente aos pontos de facto impugnados – cuja identidade desconhecemos, uma vez que não se encontram individualizados -, por referência às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP), o que preclude a possibilidade de sindicar a matéria de facto sob a perspetiva da impugnação ampla [124], sem prejuízo, porém, da possibilidade de análise da decisão sobre a matéria de facto no âmbito da revista alargada a que alude o art.º 410.º, n.º 2, do CPP.
Com efeito, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”, sendo patente a partir da leitura da decisão recorrida, pode consubstanciar um “erro notório na apreciação da prova”, vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
É de notar que os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O “erro notório na apreciação da prova”, a que alude o art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[125]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [126].
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Analisada a decisão recorrida, verificamos que os factos imputados ao recorrente reconduzem-se à função de venda de produtos estupefacientes na “Banca ...”, esclarecendo-se no acórdão recorrido que o recorrente encontrava-se no interior do ....º 1º andar direito a proceder à venda de estupefacientes, integrado no grupo liderado pelo arguido LL, de quem recebia uma remuneração de valor não concretamente apurado, grupo este que, de forma organizada e hierarquizada, adquiria avultadas quantidades de cocaína, heroína, haxixe e outros produtos estupefacientes, procedendo posteriormente à sua comercialização, disseminando-os por número elevado de consumidores (sendo certo que à “Banca ...” afluíam diariamente pelo menos dezenas de consumidores/compradores de várias zonas do país; e só no dia 4/9/2019, até às 18.14, tinham sido vendidas mais de 400 bases de cocaína – cf. os pontos 74) a 81), 92), 103), 104), 124), e), 194) da matéria de facto provada).
Relativamente à participação do recorrente na atividade de tráfico de estupefacientes atrás descrita, fundamentou o tribunal de primeira instância a sua convicção nos seguintes moldes (segue transcrição):
«Começando pela venda de estupefacientes na denominada Banca ..., a prova é tão ostensiva que quase não vale a pena enumerá-la. Na verdade, os agentes policiais que efetuaram vigilâncias, que estão plenamente identificadas e relatadas nos autos, os agentes policiais que efetuaram as buscas, principalmente os que se deslocaram à banca propriamente dita e puderam confirmar a existência de portas blindadas e grades no acesso ao ... 1.º andar direito, os inúmeros compradores que confirmaram as transações que lá efetuaram, as centenas de escutas constantes dos autos, sendo que muitas delas são relevantes para percebermos não so o simples facto, mas também a dimensão das vendas deste grupo, as mensagens trocadas, as buscas efetuadas, os produtos e dinheiro apreendidos, o manuscrito com as vendas do ultimo mês (quase 1 milhão de euros), são tudo elementos que nos permitem confirmar a existência de um negócio de tráfico de droga em larga escala, naquele local.
Também a existência de uma organização hierárquica decorre das mais elementares regras de bom-senso, sendo impossível desenvolver qualquer atividade com a escala relatada pelos agentes policiais, sem o mínimo de organização. Acresce que a existência de hierarquia nessa organização e de salários pagos resulta das inúmeras conversas escutadas (surgindo sempre em primeira linha as conversas mantidas pelo arguido HH com a CCC constantes do anexo 38), bem como dos manuscritos encontrados aquando da busca, onde constam notas de valores pagos aos trabalhadores da banca. A veracidade de tais manuscritos, independentemente da autoria dos mesmos, - questão que a seguir abordaremos - não pode nunca ser colocada em causa, pois a simples coincidência dos valores constantes no manuscrito 58 com o dinheiro apreendido nas buscas certifica de forma absoluta a sua veracidade e constitui, sem margem de dúvida, um elemento probatório avassalador da existência de uma organização com hierarquia, funções e salários definidos na denominada Banca ....
Questão diferente e que vamos analisar de forma mais pormenorizada é a de situar o papel de cada um dos arguidos nesse negócio, nomeadamente dos denominados lideres do grupo. […]
Quanto às restantes posições que os outros arguidos ocupam na estrutura em causa, temos que as mesmas decorrem dos atos praticados e foram visualizados pelos agentes policiais, bem como das escutas constantes dos autos, sendo claro e inequívoco que os mesmos não eram os donos da droga e que recebiam contrapartidas financeiras para exercer tal atividade (conversas do arguido HH e manuscrito encontrado na busca vide fls. 8103 e sgs), pelo que iremos indicar a prova que tivemos em conta para aquela factualidade à medida que analisarmos os factos concretos praticados por cada arguido. Acrescente-se ainda que a maior parte destes arguidos eram toxicodependentes pelo que a sua fiabilidade enquanto trabalhadores ficava muitas vezes comprometida, sendo normal e natural que em determinadas situações uns arguidos substituam outros no exercício de determinadas funções. […]
Quanto ao arguido II tivemos em conta as escutas transcritas nos anexos 45 e 45 A que são totalmente esclarecedoras, bem como o depoimento da testemunha OOO que afirmou ser comprador de estupefaciente e de ter visto o arguido II a vender no interior do ... 1.º andar direito do ....
Quanto à data de tal atividade e tendo em conta o já referido a propósito do início da banca e do grupo do ..., apenas demos como assente que a colaboração começou quando começou a banca, ou seja a partir de 4 de Junho. Refira-se que com exceção da testemunha OOO os outros alegados compradores não confirmaram as compras ao arguido em concreto, pelo que não as demos como assente. Contudo, o facto relevante aqui não é se o arguido vendeu a a), b) ou c), mas sim a posição que ocupava no seio do grupo, nomeadamente a de vendedor, pelo que mesmo não ficando provadas as vendas àquelas pessoas em concreto, não temos dúvidas que efetuou vendas a muitas outras.
Finalmente se esclareça igualmente que não levamos aos factos assentes ou não assentes as interações deste arguido com outros arguidos, pois que tais factos são importantes apenas para procedermos à identificação da função do arguido no seio do grupo.»

Da leitura da decisão recorrida constata-se, assim, que o tribunal a quo explicitou de forma perfeitamente lógica e cristalina as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [127] de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido dolosamente.
O recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que o tribunal não incorreu em “erro notório na apreciação da prova”. Com efeito, de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou, ainda, notoriamente violadora das regras da experiência comum ou do princípio “in dubio pro reo”, como defende o recorrente.
Como é sabido, o princípio “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto decisivo para a decisão da causa -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Violação do princípio “in dubio pro reo” ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.[128]
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [129].
Como observa Claus Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Lida a decisão recorrida, resta-nos concluir que as conclusões extraídas pelo tribunal a quo a partir da globalidade da prova – para além das constantes dos pontos da matéria de facto já mencionados, também as contidas nos pontos 313) a 316), isto é, os factos relacionados com o dolo do arguido -, não merecem qualquer censura, já que se encontram apoiadas em raciocínios indutivos lógicos e congruentes com as regras da experiência comum. [130]
O tribunal de primeira instância, fundadamente, não enunciou qualquer dúvida que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia [131]. Inexiste, portanto, erro notório na apreciação da prova, mostrando-se a decisão recorrida totalmente congruente com a observância do princípio “in dubio pro reo”.[132]
Improcede, assim, o presente fundamento do recurso.
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b) Convolação para o crime de tráfico de menor gravidade.
Considera o recorrente que o tribunal de primeira instância integrou, erradamente, o comportamento que lhe foi imputado no tipo matricial de tráfico de estupefacientes, impondo-se a sua configuração no âmbito do tipo privilegiado contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, tendo, assim, violado o princípio “in dubio pro reo”.
É, porém, manifesto que não assiste razão ao recorrente, pelas razões que passaremos a explicitar.
Desde logo, o princípio “in dubio pro reo”, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art.º 32.°, n.° 2, da CRP), vale só em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui a única solução correta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exato, como se observa no acórdão do STJ de 6/12/2006 [133].
No presente caso, o tribunal de primeira instância considerou que o comportamento do recorrente integrava a prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, por se encontrarem preenchidas as circunstâncias qualificativas previstas nas alíneas b), c) e j), do art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Não vemos qualquer razão para divergirmos da posição já por nós anteriormente expressa relativamente à questão da verificação das aludidas circunstâncias agravantes e damos aqui por reproduzidas as considerações teóricas enunciadas a propósito da análise do recurso do arguido HH (IV).
Dito isto, se podemos concluir, em face da matéria de facto descrita no acórdão recorrido e que temos por definitivamente assente, que o arguido/recorrente II estava integrado no grupo liderado pelo LL, grupo este que durante cerca de um ano e um mês vendeu diariamente, de forma organizada e hierarquizada, grandes quantidades de cocaína, heroína e haxixe, gerando lucros avultados para o líder do grupo, temos de reconhecer que quanto ao recorrente não ficou demonstrado que este tivesse obtido ou procurasse obter “avultada compensação remuneratória”.
Na verdade, apenas foi possível apurar que o arguido II recebia um salário por contrapartida da sua colaboração na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida na Banca ... (cf. o ponto 77), mas nada nos autos sugere que o mesmo visasse obter uma compensação com uma ordem de grandeza que se afaste, manifestamente e segundo parâmetros objetivos, das projeções do crime base – sendo certo que, como é assinalado no acórdão recorrido (fls. 15.409 verso), em todas as atividades de tráfico de estupefacientes os agentes procuram obter os ganhos que a atividade lhes possa proporcionar.
Já quanto à circunstância agravante prevista na alínea b), a sua demonstração decorre inequivocamente de todo o circunstancialismo apurado, caraterizador da atividade de tráfico de estupefacientes em apreço. Com efeito, e independentemente da concreta identificação dos adquirentes de produtos estupefacientes, a verdade é que ficou demonstrado que o grupo liderado pelo LL vendeu produtos estupefacientes (cocaína, heroína e haxixe) de forma continuada, pelo menos desde 4/6/2019 até 9/7/2020, sendo certo que só à denominada “Banca ...” afluíam, diariamente, pelo menos dezenas de consumidores/compradores de várias zonas do país (cf. pontos 74, 75 e 78 da matéria de facto provada).
O volume de produtos estupefacientes transacionados (cf. o ponto 104: só no período compreendido entre o dia 5/6/2020 e o dia 8/7/2020 o grupo liderado pelo arguido LL vendeu estupefacientes no valor total de € 960.774,00), associado ao período de funcionamento da “banca” (diariamente, das 9 horas da manhã até à uma hora da madrugada – ponto 78), configuram também elementos adicionais tendentes a reforçar a ideia da disseminação daquelas substâncias ilícitas por um número significativamente elevado de pessoas.
Por outro lado, e como já tivemos oportunidade de observar neste acórdão, o conceito de “bando” – circunstância agravante a que se reporta a alínea j) - configura uma situação de atuação ilícita intermédia entre a simples comparticipação criminosa e a associação criminosa - mais grave do que as situações de mera participação criminosa, embora menos censurável do que aquelas em que existe uma perfeita e definida "associação criminosa" -, integrando aquelas condutas em que, pelo menos, dois agentes atuam de forma voluntária e concertada, em colaboração mútua, com uma incipiente estruturação de funções, mas sem que se possa já considerar como existente uma organização perfeitamente caracterizada, com níveis e hierarquias de comando e com uma certa divisão e especialização de funções de cada uma das suas componentes ou aderentes, como sucede na associação criminosa [135].
O tribunal de primeira instância excluiu a verificação do crime de associação criminosa, mas considerou verificada a circunstância qualificativa em causa.
Ora, perante a factualidade apurada, não temos qualquer dúvida em afirmar, tal como o fez o tribunal de primeira instância, “que os arguidos LL, AA, NN, DD, HH, OO, EE, QQ, GG, ZZ, BB, CC, FF, II e AAA sabiam da pertença do grupo, sabiam das atividades do grupo e exerciam todos uma atividade essencial dentro do grupo de forma a venderem o maior número de estupefacientes possível gerando assim lucros avultados para o líder do grupo, o arguido LL, que depois lhes pagava uma remuneração por tal atuação.”.
A atuação do arguido II, inserido numa estrutura orgânica relativamente incipiente, mas subordinada à liderança do LL, em colaboração com os demais coarguidos e com propósitos e objetivos comuns, integra inequivocamente a figura do bando, pelo que se encontra preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea j), do art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Resta-nos analisar se o comportamento do recorrente deverá ser considerado de “menor gravidade” e, por isso, enquadrado no âmbito do tipo de ilícito previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [136]).
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”. Ainda que se verifique um conjunto de circunstâncias que apontem para uma imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída – o que acontecerá, tipicamente, se o tráfico for de carácter muito rudimentar, se a quantidade traficada não for muito elevada, se a modalidade ou as circunstâncias da ação não forem altamente desvaliosas, se o tráfico não for efetuado por estrutura organizada ou se essa estrutura for incipiente -, o comportamento do agente não deverá, em princípio, ser integrado no art.º 25.º, mas antes no tipo matricial do art.º 21.º, se ocorrer alguma das circunstâncias mencionadas no art.º 24.º (potencialmente suscetíveis de integração dos factos no tipo agravado aqui previsto) [137].
É manifesto, porém, que no presente caso não estamos perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, tendo o arguido/recorrente desempenhado funções relevantes para o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes liderada pelo arguido LL e para cuja prossecução também contribuiu de forma significativa.
A colaboração do arguido II com a denominada “Banca ...” não era pontual, mas permanente, pelo que o arguido era membro efetivo do grupo que se dedicava à venda de produtos estupefacientes em larga escala, distribuindo tais produtos (alguns dos quais, de elevada toxicidade, como heroína e cocaína) em grandes quantidades e por número significativo de consumidores (só no período compreendido entre 5/6/2020 e 8/7/2020, as vendas de estupefacientes atingiram quase um milhão de euros), desempenhando o recorrente as específicas funções que lhe foram atribuídas – venda direta aos consumidores/compradores, normalmente no interior da “Banca ...” - com clara noção do seu contributo para a prossecução dos objetivos gerais do grupo.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, inexistindo motivos válidos para integrar o comportamento do recorrente no âmbito do tráfico de estupefacientes de menor gravidade ou, sequer, do tipo de tráfico de estupefacientes matricial, previsto e punido pelo art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22/1.[138]
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c) Dosimetria da pena de prisão e suspensão da respetiva execução.

Discorda o recorrente da pena concreta que lhe foi aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
O crime de tráfico de estupefacientes agravado é, como vimos, punido com pena de 5 a 15 anos de prisão, tendo o tribunal de primeira instância aplicado ao recorrente a pena de 5 anos e 3 meses de prisão, fundamentando a sua decisão nos seguintes moldes (segue transcrição):
« - a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º e 24.º é média uma vez que o arguido era um dos vendedores habituais da banca.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com pouca intensidade, atenta a ausência de antecedentes criminais, embora a inatividade laboral e os consumos de estupefacientes constituam fatores de risco;
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Ora, perante todos estes factos, decidimos aplicar ao arguido a pena de 5 anos e 3 meses pela prática do crime de tráfico de estupefacientes qualificado, justificando-se uma pena mais alta em relação ao arguido ZZ pela sua presença mais assídua na Banca ... e uma pena mais baixa que o GG em virtude das vendas particulares daquele e dos seus antecedentes criminais.»
Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 [139], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [140].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [141].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [142], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. [143] Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Não vislumbramos qualquer excesso ou desproporção da medida concreta da pena de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
Com efeito, a desinserção socioprofissional do recorrente é manifesta, tendo desde cedo adotado um estilo de vida desregrado, pautado pelo consumo abusivo de substâncias estupefacientes, e foi já condenado pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, pelo que não são despiciendas as exigências de prevenção especial.
Além disso, o recorrente manteve a atividade de tráfico de estupefacientes em análise no presente processo por um período de tempo considerável (cerca de 1 ano e 1 mês – cf. ponto 194), sendo, por isso, elevada a ilicitude.
Deste modo, a premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada, decorrente da específica danosidade social do tipo de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) justifica a aplicação da pena de prisão na medida determinada pelo tribunal, num quantum concreto, note-se, já muito próximo do limite mínimo da respetiva moldura abstrata.[144]
Fixada em medida inferior, tal pena seria desajustada ao grau de ilicitude do comportamento do recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
Aliás, é de notar que só circunstâncias verdadeiramente excecionais, que no presente caso não se verificam, justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 [145].
Em suma, consideramos que uma pena de 5 anos e 3 meses de prisão é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e necessária – mas também suficiente – para a ressocialização do recorrente [146], não ultrapassando a medida da sua culpa[147].
A pena concreta de prisão aplicada ao recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução (art.º 50.º do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a última questão suscitada no presente recurso que, deste modo, improcede na totalidade.
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X) Recurso do arguido GG.
a) Valoração de “prova proibida” e impugnação da matéria de facto – em particular, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”.
Discorda o recorrente GG da decisão tomada pelo tribunal de primeira instância quanto aos factos que lhe foram imputados, particularmente daqueles que integram os pontos 92), 99), 100), 165) a 172), 180) e 313) a 316), os quais, no seu entender, foram incorretamente julgados e deverão transitar para o elenco dos factos não provados.
Sustenta o recorrente que o tribunal a quo formou a sua convicção em meios de prova obtidos de forma ilegal, configurando prova proibida e nula e, em todo o caso, em meios de prova claramente insuficientes para demonstrar, para além da dúvida razoável, os crimes de tráfico de estupefacientes e de tráfico e mediação de armas por que foi condenado.
Comecemos por analisar a questão da prova proibida e, consequentemente, nula, invocada pelo recorrente.
Dispõe o art.º 125.º do CPP – que consagra o princípio da legalidade e não o da tipicidade dos meios probatórios – que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Por sua vez, dispõe o n.º 1 do art.º 126.º do mesmo diploma que, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, estabelecendo o seu n.º 3 que, ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.
Tudo em conformidade com o estatuído no n.º 8 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, que determina a nulidade de todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
No caso em apreço, os elementos probatórios cuja legalidade o recorrente questiona encontram-se compilados no suporte digital de armazenamento intitulado “2 perícias”, tendo sido analisados no Anexo B, tratando-se de mensagens, vídeos e fotografias trocados via «WhatsApp» entre o arguido e outras pessoas, incluindo o arguido/recorrente MMM.
Considera o recorrente que, não tendo sido judicialmente determinada ou validada a sua apreensão, em clara violação das regras estabelecidas na Lei do Cibercrime, nem o acesso a tais conteúdos por ele consentido, configuram tais elementos prova proibida, insuscetível de valoração pelo tribunal.
É certo que o tribunal a quo valorou o relatório pericial de análise aos conteúdos extraídos do equipamento identificado como artigo 4 (o aparelho telefónico apreendido ao arguido GG), como resulta da leitura do acórdão recorrido (fls. 15354/15355), e neste são analisadas diversas mensagens, fotografias e vídeos recebidos e enviados pelo recorrente e seus interlocutores (aqui se incluindo o arguido/recorrente MMM). Depreende-se, ainda, da leitura da decisão recorrida, que a análise da prova assim obtida, na conjugação com a demais disponível, afigurou-se determinante para alicerçar a convicção do tribunal quanto à participação do recorrente na atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo na “Banca ...”, na desenvolvida por “conta própria” e, ainda, na execução do crime de tráfico e mediação de armas por que foi condenado.
Contudo, e diversamente do que alega o recorrente, a apreensão de tais documentos informáticos foi autorizada por autoridade judiciária, como se constata do teor do despacho proferido pelo JIC em 19/6/2020, constante de fls. 3989/3992 (volume 14).
Neste despacho, para além de se ter determinado a realização de buscas nas residências dos arguidos e respetivas dependências (incluindo caixas de correio), autorizou-se a leitura do conteúdo dos aparelhos de telemóvel encontrados nas buscas e/ou na posse dos suspeitos/arguidos – memória do aparelho, cartões de memória inseridos e cartão SIM -, tendo sido desde logo determinada a passagem a auto dos elementos considerados de relevo para a investigação (nomeadamente, a agenda telefónica, as mensagens, MMS e chamadas enviadas e recebidas), para além da análise e perícia aos mesmos, autorizando-se ainda o acesso, pesquisa e subsequente apreensão do conteúdo de conversações, comunicações, gravações e mensagens de correio eletrónico e dados informáticos armazenados nos computadores ou noutros suportes informáticos autónomos (aqui se incluindo, naturalmente, quaisquer telemóveis), existentes nos locais a buscar ou na posse das pessoas que ali se encontrassem, para além de subsequente análise e perícia aos mesmos, invocando-se, expressamente, o disposto nos artigos 187.º n.º 1 b) e n.º 4, 189.º e 269.º n.º 1 e) do CPP, nos artigos 11.º n.º 1 als. b) e c), 15.º n.º 1, 16.º n.ºs 1, 3 e 7 e 17.º, da Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009, de 15.09) e, ainda, nos artigos 178.º, 179.º e 269.º n.º 1 al. d), estes do Código de Processo Penal.
Foi, assim, observado o formalismo contido na Lei do Cibercrime, em particular nas normas constantes dos artigos 15.º, 16.º e 17.º do referido diploma legal.[148]
Argumenta o recorrente que os dados informáticos retirados da aplicação «Whatsapp» por ele utilizada, quer sejam conversas, fotografias ou vídeos, tratam-se de comunicações de foro pessoal e privado, sendo liminarmente proibida a sua devassa e utilização alheia sem o seu consentimento. Acrescenta que, quando enviou tais mensagens através de «Whatsapp» tinha uma legítima expetativa de privacidade quanto ao teor das mensagens, sendo liminarmente proibida a sua devassa e utilização alheia sem o seu consentimento.
Não assiste, porém, razão ao arguido. Para além de o acesso ao conteúdo do seu telemóvel ter sido judicialmente ordenado, como tivemos oportunidade de verificar, importa, ainda, neste âmbito realçar que a jurisprudência tem entendido que mensagens, vídeos, fotos e áudios trocados via «WhatsApp» e enviados livremente, não se encontram protegidos pelos direitos constitucionais de reserva da intimidade da vida privada e da confidencialidade da mensagem pessoal. Tal como acontece no que concerne às mensagens SMS, tendo sido recebidas, lidas e guardadas, passam a ter a mesma essência da correspondência escrita enviada por correio tradicional.
Efetivamente, como é referido nos acórdãos do TRL de 24/9/2013 e do TRP de 22/5/2013 (respetivamente relatados pelos Desembargadores Melo Lima e Vieira Lamim, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), em nada se distinguem de uma carta remetida por correio físico. Tendo sido já recebidas, se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador ou no telemóvel, não deverão ter mais proteção que as cartas em papel que são recebidas, abertas ou porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo, visto o disposto no art.º 194º, n.º 1 do C. Penal.
A Jurisprudência nacional é pacífica nesse sentido [149]. O recorrente não tinha, assim, que autorizar a sua utilização para efeitos probatórios.
Nestes termos, aqueles documentos valem como prova, não sendo ilícitos, nem constituindo prova proibida. O interesse público da investigação da atividade criminosa e recolha de prova relevante sobrepunha-se, no presente caso, ao interesse na proteção do direito à privacidade do recorrente.
Não se verifica, pois, a alegada violação de qualquer norma ou direito constitucional, designadamente os contidos nos artigos 126.º e 167.º do CPP e no disposto no n.º 8 do art.º 32.º da CRP.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso.
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Analisemos, agora, detalhadamente a questão da impugnação da matéria de facto suscitada neste recurso.
Como é sabido, a matéria de facto pode ser questionada por duas vias:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- por meio da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Como já neste acórdão tivemos oportunidade de mencionar, relativamente a esta última modalidade de impugnação (a ampla), o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão. [150]
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Além disso, não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas imponham a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Como bem se expende no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 [151], “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. [152].
Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que sem sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [153]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [154].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [155] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
O princípio “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto decisivo para a decisão da causa -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.[156]
Importa salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Por isso, e como se assinala no acórdão do TRL de 22/9/2020 [157], “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.”.
Deste modo, violação do princípio “in dubio pro reo” ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.[158]
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [159].
Os pontos da matéria de facto que suscitam particular discordância do recorrente têm o seguinte teor:
«92 - Os arguidos GG, ZZ (de forma residual e não permanente) e II eram os vendedores propriamente ditos, estando no interior do ....º 1.º andar dto. a proceder à venda de estupefacientes, tendo igualmente chegado a fazer vendas à porta e no exterior.»
«99 – Um dos clientes do GG era o MMM que juntamente com o arguido GG negociava armas e estupefaciente, negócio desenvolvido por conta própria fora da Banca ....»
«100 - Ao colaborarem com o arguido LL da forma descrita na acusação, os arguidos em causa recebiam uma compensação, cujo valor não foi concretamente apurado e que variava consoante as funções concretamente exercidas por cada um dos arguidos.»
«164 - Pelo menos desde Fevereiro de 2020 até à detenção dos arguidos desta rede do ..., o arguido GG, mediante remuneração que variou ao longo do tempo, mas cujo valor não foi concretamente apurado, exerceu diariamente as funções que lhe foram atribuídas naquela rede pelo arguido LL, nomeadamente da venda direta ao consumidor, mantendo-se dentro do primeiro andar (por trás da grade) no Nº ..., da Rua ..., onde efetuava a entrega de estupefaciente aos consumidores recebendo o dinheiro correspondente.»
«165 - Para além dessa atividade, o arguido vendia de forma particular estupefacientes, contactando os seus compradores através de telemóvel ou whatsapp o que fez, entre muitos outros, nas situações a seguir descritas:
a-No dia 23-03-2020, pelas 10:02, o arguido GG vendeu estupefaciente (liamba/canábis), ao arguido MMM.
b-No dia 06-04-2020, pelas 15:47, GG e o arguido MMM negoceiam a compra e venda de um quilo (Haxixe), pelo preço de 3500 euros.
c-No dia 02-05-2020, pelas 18:26, o arguido GG vendeu a BB estupefaciente - 3 placas de Haxixe por 400/500 cada placa.
d-No dia 2020-05-08, o arguido GG e o arguido MMM adquiriram em conjunto uma arma Magnum.22, com 100 balas, em estado novo, pelo preço de 500 euros, sendo 100€ pagos em estupefaciente.
e-No dia 16-05-2020, pelas 20:05, GG, através da sua namorada PPP, vendeu meio quilo de haxixe a uma amiga desta, pelo preço de cada placa a 600 euros.
f-No dia 16-06-2020, pelas 16.16, GG comprou ao arguido MMM um grama de erva (liamba), para revenda.
g-O arguido GG vendeu por sua conta haxixe e liamba a QQQ, consumidor habitual de estupefacientes, durante o ano de 2020, em quantidades e preços não concretamente apurados, cujas entregas ocorreram no bairro 1..., onde ali combinava encontros com o consumidor, através do WhatsApp, nomeadamente e pelo menos nos dias 20-02-2020, 13-03-2020, 24-03-2020, 31-03-2020, 04-04-2020 e 17/05/2020, em que vendeu ½ quilo de haxixe, por 2500€, ou seja por 500€ a placa.
h-No dia 25-04-2020, o arguido GG vendeu ao QQQ uma “shot” (arma de fogo) por 250 euros.
i-O arguido GG vendeu por sua conta haxixe e cocaína a DDD, consumidor habitual de estupefacientes, em diversas ocasiões, durante o ano de 2020, em quantidades e preços não concretamente apurados, cujas entregas ocorreram no bairro 1..., combinando encontros pelo WhatsApp.
j- O arguido GG vendeu por sua conta cocaína e heroína a RRR, em diversas ocasiões, durante o ano de 2020, em quantidades e preços não concretamente apurados, cujas entregas ocorreram no bairro 1..., combinando encontros pelo WhatsApp, nomeadamente e pelo menos nos dias 05/03, 15/03, 17/03 e 25/03 todos de 2020.
l- O arguido GG vendeu por sua conta haxixe a SSS, em diversas ocasiões, durante o ano de 2020, cujas entregas ocorreram no bairro 1..., combinando encontros pelo WhatsApp designadamente e pelo menos:
m- no dia 08/03/2020, o arguido vendeu 50 bolotas de haxixe ao SSS.
n- no dia 18-04-2020, o arguido GG vendeu haxixe ao SSS.
o- no dia 27 de abril de 2020, o arguido GG vendeu 40 tiras de haxixe a que corresponde o peso de 38,2g, tendo o referido SSS sido detido logo após na posse desse produto.
p- No dia 22-06-2020, o arguido GG vendeu por sua conta 10€ de haxixe ao proprietário do perfil ....»
«166 - Além das vendas que efetuava por conta própria e na Banca ..., mediante remuneração, o arguido GG, usando o cartão com o n.º ... (Alvo 112233040), encetou comunicações com diversos consumidores seus clientes, quer do Bairro..., quer do bairro 1..., bem como com revendedores e fornecedores e com o arguido MMM, sendo que para mostrar que possuía estupefaciente para venda ou que se dedicava a essa atividade, captava fotografias e/ou vídeos do mesmo com o seu telemóvel e remetia-as para os consumidores e revendedores, bem como para o arguido MMM, o que fez, entre outros, concretamente nos dias 04-04-2020, 07-04-2020, 14-04-2020, 10-05-2020, 11-05-2020, 12-06-2020.»
«167 - No dia 24-06-2020, o arguido GG adquiriu quantidade não apurada de haxixe para revenda.»
«168 - No dia 03-07-2020, o arguido GG comprou haxixe para revenda, em quantidade não concretamente apurada, por 525 euros a placa.»
«169 - Nos dias 06/04, 12/04, 23/06 e 01/07 os arguidos GG e MMM enviaram um ao outro vídeos em que empunhavam armas de fogo.»
«170 - No desenvolvimento do seu desígnio, nos aludidos dias o arguido GG, que se encontrava no bairro 1..., no Porto ou no interior da banca no Bairro..., tinha na sua posse para venda a terceiros consumidores/revendedores que o contactassem quantidades avultadas de estupefacientes bem como se encontrava na posse de armas de fogo, sem ser titular de licença de uso e porte de arma para o efeito, não possuía qualquer documentação respeitante às ditas armas, nem dispunha de qualquer autorização para as deter, usar, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir ou mediar uma transação.»
«171 - No dia 9 de Julho de 2020, pelas 6h00 horas, o arguido GG, detinha na sua residência, situada na Rua ... n.º ..., R/C – Porto, as quantias monetárias a seguir discriminadas, resultantes das vendas de estupefacientes efetuadas, bem como os seguintes objetos sua pertença:
- Na sala:
- 2.600 euros, em papel moeda: 600 euros em notas de 50 euros; 400 euros em notas de 100 euros; uma nota de 200 euros; 1400 euros em notas de 20 euros.
– Estupefaciente Haxixe, com o peso de 7.81 gramas,
– Telemóvel da marca Samsung, modelo ..., de cor preto, com o IMEI 1 ..., e IMEI 2 ... com o cartão introduzido da Operadora A..., atribuído ao cartão n.º ..., desbloqueado a qualquer segurança.
– Arma de fogo, espingarda, marca FAIR, modelo SRL702, cal.12 mm, n.º de serie ..., (arma esta furtada ao proprietário NUIPC 1/20.2GCSTS).
- Arma de fogo, espingarda, marca Luger, modelo Over & Under, cal.12 mm, n.º de serie ..., (arma esta furtada ao proprietário TTT, residente em Rua ..., n.º ..., 1.º drt frt ..., Vila Nova de Gaia, com CC n.º ...)
– Três cartuchos de calibre 12mm, próprios para espingarda de caça, sendo que dois se encontravam deflagrados e um por deflagrar.»
«172 - Desde data não apurada, mas pelo menos desde o ano de 2020, o arguido MMM, que não exerce qualquer atividade remunerada, dedica-se à compra e venda de produto estupefaciente na área geográfica do Grande Porto, bem como à detenção e venda de armas de fogo, nomeadamente em colaboração estrita com o arguido GG, trocando com este contactos via telemóvel ou através das aplicações móveis/redes sociais, com envio de fotografias na posse de quantidades avultadas de heroína e cocaína, bem como fotografias e vídeos na posse e utilização de armas de fogo, designadamente.»
«180 - No dia 24-05-2020, pelas 01h24m32s, o arguido GG encetou nova conversação pelo WhatsApp, com o arguido MMM onde este envia novo vídeo ao arguido GG, encontrando-se MMM e GG, no bairro 1..., na posse de estupefacientes no interior de uma mochila.»
«313 - Os arguidos LL, AA, NN, DD, HH, OO, EE, GG, ZZ, BB, CC, FF, II e AAA agiram, livre, voluntária e conscientemente, em comunhão de esforços e intentos e execução de plano previamente delineado entre eles conforme acima descrito, sabendo que LL tinha implementado uma estrutura humana e logística estável com a única finalidade de promover a transação a título oneroso de substâncias estupefacientes com terceiros.»
«314 - Estes arguidos atuaram conhecedores da natureza e características dos produtos que compravam, detinham, guardavam, angariavam, transportavam, cediam e transacionavam, bem sabendo proibida a sua detenção fora de autorização legal, e, não obstante, quiseram deter, guardar, transportar e fazer transitar tais substâncias com a finalidade de as ceder, vender e proporcionar a terceiros, após preparação adequada para o efeito, bem sabendo que não estavam legalmente autorizados a fazê-lo.»
«315 - Estes arguidos atuaram ainda sabendo que as quantidades de droga cedidas/vendidas nas circunstâncias acima descritas se destinavam a ser difundidas por número significativo de pessoas e insensíveis aos danos que originavam na saúde para milhares de consumidores finais, cientes que com isso prejudicavam de forma precoce e irreversível a saúde física e psicológica de tais consumidores.»
«316 - Com a sua atuação os arguidos visaram ainda angariar quantias avultadas, o que conseguiram e assim dispor de capital próprio, não obstante não exercerem qualquer atividade profissional lícita ou exercerem atividade com rendimentos não compatíveis com o nível de vida que pretendiam manter.»
A propósito da apreciação da prova tendente à demonstração dos crimes de tráfico de estupefacientes e de tráfico e mediação de armas, cuja autoria foi imputada ao arguido GG, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«Começando pela venda de estupefacientes na denominada Banca ..., a prova é tão ostensiva que quase não vale a pena enumerá-la. Na verdade, os agentes policiais que efetuaram vigilâncias, que estão plenamente identificadas e relatadas nos autos, os agentes policiais que efetuaram as buscas, principalmente os que se deslocaram à banca propriamente dita e puderam confirmar a existência de portas blindadas e grades no acesso ao ... 1.º andar direito, os inúmeros compradores que confirmaram as transações que lá efetuaram, as centenas de escutas constantes dos autos, sendo que muitas delas são relevantes para percebermos não só o simples facto, mas também a dimensão das vendas deste grupo, as mensagens trocadas, as buscas efetuadas, os produtos e dinheiro apreendidos, o manuscrito com as vendas do último mês (quase 1 milhão de euros), são tudo elementos que nos permitem confirmar a existência de um negócio de tráfico de droga em larga escala, naquele local.
Também a existência de uma organização hierárquica decorre das mais elementares regras de bom-senso, sendo impossível desenvolver qualquer atividade com a escala relatada pelos agentes policiais, sem o mínimo de organização. Acresce que a existência de hierarquia nessa organização e de salários pagos resulta das inúmeras conversas escutadas (surgindo sempre em primeira linha as conversas mantidas pelo arguido HH com a CCC constantes do anexo 38), bem como dos manuscritos encontrados aquando da busca, onde constam notas de valores pagos aos trabalhadores da banca. A veracidade de tais manuscritos, independentemente da autoria dos mesmos, - questão que a seguir abordaremos - não pode nunca ser colocada em causa, pois a simples coincidência dos valores constantes no manuscrito 58 com o dinheiro apreendido nas buscas certifica de forma absoluta a sua veracidade e constitui, sem margem de dúvida, um elemento probatório avassalador da existência de uma organização com hierarquia, funções e salários definidos na denominada Banca ....
Questão diferente e que vamos analisar de forma mais pormenorizada é a de situar o papel de cada um dos arguidos nesse negócio, nomeadamente dos denominados líderes do grupo.
*
[…] Quanto às restantes posições que os outros arguidos ocupam na estrutura em causa, temos que as mesmas decorrem dos atos praticados e foram visualizados pelos agentes policiais, bem como das escutas constantes dos autos, sendo claro e inequívoco que os mesmos não eram os donos da droga e que recebiam contrapartidas financeiras para exercer tal atividade (conversas do arguido HH e manuscrito encontrado na busca vide fls. 8103 e sgs), pelo que iremos indicar a prova que tivemos em conta para aquela factualidade à medida que analisarmos os factos concretos praticados por cada arguido. Acrescente-se ainda que a maior parte destes arguidos eram toxicodependentes pelo que a sua fiabilidade enquanto trabalhadores ficava muitas vezes comprometida, sendo normal e natural que em determinadas situações uns arguidos substituam outros no exercício de determinadas funções.
[…]
Prova pericial, documental e escutas
Toda a prova indicada na acusação, nomeadamente relatórios de vigilâncias, buscas, interceções telefónicas, documentos apreendidos, bem como os respetivos relatórios periciais aos produtos e bens aprendidos, sendo que depois da indicação genérica que aqui fizemos iremos apreciá-los e indicá-los nas análises personalizadas que vamos fazer a cada um dos arguidos, bem como a determinados factos.
Prova testemunhal
A testemunha EEE, agente coordenado da investigação, além de ter confirmado na íntegra o teor de todas as diligências em que participou, esclareceu algumas situações relacionadas com este ponto de venda, referindo que a casa do ... tinha uma porta blindada e possuía grades no interior, não se conseguindo visualizar o que decorria no seu interior, apenas o grande fluxo de entrada e saída de pessoas ligadas ao consumo de estupefacientes.
[…]
No que se refere ao arguido MMM todo o conhecimento adveio da análise ao seu telemóvel, sendo que a busca foi determinada pelo facto de ter notícia que estaria a trocar armas com o arguido GG.
Quanto a este arguido afirmou que o conhecimento lhe advém das escutas e posteriormente da análise do telemóvel, explicando igualmente que nas vigilâncias não conseguia ver para o interior da casa, pelo que não viu transações de estupefaciente.
Já a testemunha YY confirmou tudo aquilo que escutou e visualizou referindo que a denominada Banca ... foi o maior ponto de venda de estupefacientes que viu e investigou durante toda a sua carreira policial. Falou sobre algumas vigilâncias e escutas relacionadas com os arguidos conotados com aquele ponto de venda, referindo concretamente que o arguido LL estava numa posição superior, fundamentando a sua opinião no facto de raramente comparecer no local, de pouco interagir com os restantes arguidos que asseguravam o funcionamento da banca e de raramente conversar ao telemóvel, o que na sua experiencia profissional e tendo em conta tudo o que percecionou, incluindo escutas, o faz posicionar-se numa posição superior. Explicou igualmente que o ponto de venda estava muito bem organizado, trabalhando cerca de 10 pessoas por dia no processo de venda, desde vigias em determinados pontos, seguranças na entrada, transportadores de estupefaciente e dinheiro, bem como os vendedores propriamente ditos. A esse propósito referiu que o interior do ..., local onde se efetuava a venda, tinha uma porta blindada e no seu interior tinha grades para limitar o acesso à referida banca. Reparou igualmente que havia 2 turnos de venda uma das 09h às 17 e outro das 17h à 1 da manhã, sendo que durante o dia havia novas entregas de estupefacientes e recolha de dinheiro, de forma a evitar que houvesse sempre muito dinheiro ou estupefaciente na banca.
Falou ainda nas várias posições que os diversos arguidos ocupavam na hierarquia, alicerçando a sua opinião nas escutas e nas vigilâncias que presenciou, que constam dos autos e que deu por reproduzidas.
- UUU confirmou as diligências que efetuou nos autos, nomeadamente a busca à casa do arguido GG, referindo que as armas estavam na sala da habitação, num armário que estava aberto;
- VVV confirmou as diligências que efetuou nos autos, nomeadamente a busca à casa do arguido GG;
[…]
- RRR afirmou ser amigo do GG, tendo sido consumidor de haxixe, cocaína e heroína. Negou que o arguido GG fosse o seu fornecedor de estupefaciente, embora assuma que o GG o desenrascou por algumas vezes.
Confrontado com o anexo B fls. 42 e anexo 4, a testemunha afirmou que viu aqueles vídeos e mensagens e que interpretou os produtos constantes daquele vídeo como sendo heroína e cocaína, embora não podendo dar a certeza disso porque não os teve na sua mão.
Disse igualmente que o arguido GG não era “gabarola” e que morava no ....
[…]
- DDD confirmou o seu numero de telemóvel, referindo ser consumidor de cocaína, tendo nos anos de 2109/20 comprado cerca de 30 a 50€ por semana. Confirmou as mensagens que trocava com o arguido GG, afirmando que se relacionavam com a aquisição de estupefaciente. Mais negou conhecer o arguido CC, referindo que o arguido BB (GGG) era quem organizava as pessoas no hall de entrada do ponto de venda.
[…]
Relativamente ao arguido GG tivemos em conta a seguinte prova:
ALVO:108433040 Sessões (09888), Pag.3264 - Vol.11
ALVO:108433040 Sessões (10402), Pag.3354 - Vol.11
ALVO:112233040 Sessões (00123), Pag.3365 - Vol.11
Alvo 112233040 – sessão 1104
Alvo 108433040 – sessão 10958
Alvo 112233040, Sessões: 3049.
ALVO:112233040 Sessões (02044)
Alvo 112233040, Sessões: 4515.
Alvo 112233040, Sessões: 6429
Alvo 112233040, Sessões: 6818.
ALVO:112233040 Sessões (07124, 07139, 07140, 07141, 07142, 07143, 07144, 07145, 07146, 07147, 07149, 07152, 07153, 07154, 07155, 07156, 07158, 07159, 07168, 07169, 07170, 07171, 07172, 07173, 07174, 07175, 07176, 07177, 07178)
ALVO:108433040 Sessões (12401)
Alvo 112233040, Sessões: 08314, 08315, 08320, 08322, 08323, 08324, 08327
cf. ALVO:112233040 Sessões (10029).
Factos n.º 1080 ao 1131 da acusação:
Reportagem Fotográfica que consta fls. 6662 a 6689 do 22º Volume.
Cfr. Relatório Pericial de Análise do objeto n.º 4, contante de fls. 19 a 128 do ANEXO B.
PROVA DOCUMENTAL:
Auto de Busca e Apreensão em Anexo habitacional com 02 (duas) entradas para a mesma residência: Rua ... n.º ..., R/C – Porto e Rua ..., ... (portão de garagem) – Porto, 2020-07-09 Pag.4637 - Vol.16
Ofício em Fls. 4647 do 16º Volume onde consta informação que GG não é possuidor de qualquer Licença de Uso e Porte de Arma - Documento 2020-07-09 Pag.4647
PROVA PERICIAL:
Exame Pericial da Arma Nº514/2020 em fls. 4648 a 4650 do 16º Volume, onde consta como sendo Arma de Classe D, conforme a alínea c) do nº 6, Art.º 3º do RJAM. Arma de fogo furtada, de 2020-07-09 Pag.4648 - Vol.16
Delegação no Núcleo de Armas e Explosivos da P.S.P. a organização de processo autónomo para posterior decisão do destino da arma, conforme consta em fls. 8069 do 27º Volume.
Exame Pericial da Arma Nº515/2020 em fls. 4651 a 4653 do 16º Volume, onde consta como sendo Arma de Classe D, conforme a alínea c) do nº 6, Art.º 3º do RJAM. Arma de fogo que se apurou o seu proprietário, de 2020-07-09 Pag.4651
Delegação no Núcleo de Armas e Explosivos da P.S.P. a organização de processo autónomo para posterior decisão do destino da arma, conforme consta em fls. 8069 do 27º Volume.
Exames/Perícias 2020-08-07 Pag.7405 - Vol.25
Exame Toxicológico do LPC ao Estupefaciente Apreendido – relatório do exame Nº 202002805 –NTX
Exames/Perícias 2020-07-09 Pag.4657 - Vol.16
Teste rápido n.º 17953/2020, dando como resultado POSITIVO estupefaciente Haxixe, com o peso de 7.81 gramas
Exames/Perícias 2021-03-24 Pag.19 - Vol.1 ANEXO B
ANÁLISE AOS RELATÓRIOS PERICIAIS) Resumo: Relatório de Extração relativo ao aparelho telefónico apreendido encontra-se em suporte digital num disco externo identificado com etiqueta onde consta Evidência nº “2PERICIAS” e Proc. 2/18.0PFGDM, identificado como Artigo 4.0.
Imagens 2020-07-09 Pag.4640 - Vol.16 - Reportagem Fotográfica aos artigos apreendidos durante a busca domiciliária
Documento 2021-09-03 Pag.11193 - Vol.38
Documento 2021-05-27 Pag.8584 - Vol.28 - Certidão do Processo com o NUIPC: 23/20.3 GAMTS, consta Auto de Noticia, Auto de Apreensão, Relatório do Exame Pericial 202002188-NTX e Reportagem Fotográfica em fls.8584 a 8598 do 28º Volume
No que concerne à função exercida pelo arguido GG o depoimento dos agentes investigadores, as conversas que o arguido HH manteve com a CCC onde contava com detalhe a organização da Banca ... e ainda as próprias fotografias e vídeos que o arguido GG enviava de dentro da banca com estupefaciente na mão, são elementos mais que suficientes para darmos como assentes a sua posição no grupo. Também as conversas que manteve com o JJJ após o mesmo ter saído da banca são bastante elucidativas da função que o arguido ocupava, o mesmo se passando com a conversa de 28/03/2020. Ainda a conversa com o WWW de 01/04/2020, constante a fls. 28 do relatório 4 anexo B, constituem indício da função do arguido GG, pois que perante um pedido de trabalho para capiador, o GG sugeriu-lhe ir para a venda direta pois ganhava mais. Por fim, ainda tivemos em conta os depoimentos das testemunhas RRR e DDD que confirmaram as compras efetuadas ao arguido.
No que concerne à atividade privada desenvolvida pelo arguido, o tribunal teve em conta os depoimentos dos compradores, bem como as conversas telefónicas ou por whatsapp que o mesmo manteve com terceiros (a conversa de 25/04 com o QQQ e a de 12/05 com o JJJ são as mais ilustrativas da atividade que o arguido desenvolvia a título particular) e ainda os constantes vídeos que o mesmo insistia em gravar e enviar a comprovar essa atividade (os vídeos de 10, 11 e 24 de Maio são os mais elucidativos), bem como a compra de 06/04, efetuada conjuntamente com o arguido MMM. Também o auto de notícia efetuado no processo n.º 23/20.3GAMTS, conjugado com as interceções telefónicas que antecedem e ainda a captação e imagem onde consta o arguido GG junto do SSS, permitem-nos concluir da venda efetuada pelo arguido a essa testemunha, bem como que essa venda já não passava por uma regular venda dentro da Banca ..., mas algo extra a essa atividade.
Por fim, o estupefaciente que lhe foi apreendido, bem como a enorme quantidade de dinheiro, são outros elementos que nos permitem sufragar a tese plasmada na acusação, não havendo dúvida de que os vídeos em que se apresentava com produto similar a estupefacientes, o arguido tinha mesmo estupefaciente na sua posse.
Na verdade e perante a atividade desenvolvida pelo arguido, comprovada pelos vários elementos probatórios que supra expusemos, não faria sentido que o mesmo publicasse e enviasse fotografias e vídeos a exibir a posse de estupefaciente ou a vender estupefaciente que não fossem verdadeiras, tanto mais que estava a enviar para alguém do ramo, que facilmente o conseguiria desmascarar, ficando assim o arguido descredibilizado no meio.
Quanto às armas tivemos em conta as buscas efetuadas, bem como as conversas escutadas e ainda os vídeos apresentados, sendo que até pelo facto de terem sido apreendidas armas em casa do arguido, não tivemos dúvida em concluir que as armas constantes dos vídeos eram reais e que o arguido efetuou as compras que negociou por telemóvel, demonstrando nessas conversas um perfeito conhecimento do funcionamento e caraterísticas das armas de fogo.
Esclareça-se novamente e para que dúvidas não restem, que estes elementos devem ser interpretados e analisados da forma que supra referimos no prólogo que antecedeu a análise casuística do processo.»
Em primeiro lugar, importa assinalar que, diversamente do que sustenta o recorrente, a sua participação na atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo na denominada “Banca ...” e, para além disso, a demonstração das funções especificamente por ele desempenhadas – competindo-lhe a venda direta ao consumidor/comprador, mantendo-se dentro do primeiro andar (por trás da grade) no Nº ..., da Rua ..., onde efetuava a entrega de estupefaciente aos consumidores, recebendo o dinheiro correspondente, atuando de forma reiterada e concertada, em conjugação de esforços e de intentos com os demais, no desenvolvimento do negócio de compra e venda de estupefacientes, naquele local e sob a liderança do arguido LL (cf. pontos 92 e 164) – decorre inequivocamente do conjunto da prova analisada pelo tribunal.
Com efeito, sendo certo que o recorrente nunca foi visualizado (ou, pelo menos, identificado) na “Banca ...”, ou nas suas imediações, pelos agentes policiais no decurso das vigilâncias efetuadas (como se conclui da análise dos relatórios de vigilância constantes dos autos, complementados pelo relatório de análise de fls. 8000/8060), os depoimentos prestados pelos agentes policiais EEE e YY, conjugados com o teor das interceções telefónicas, com o depoimento prestado pela testemunha DDD e, ainda, com o teor das fotografias e conversas contidas na plataforma «Whatsapp», analisadas no relatório pericial constante do Anexo B, não deixam margem para dúvidas quanto à participação do recorrente GG na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida na “Banca ...”, em concertação de esforços com os demais arguidos e sob a chefia do arguido LL.
Na verdade, o arguido GG fotograva-se no interior da “banca” na posse de produtos estupefacientes (cf. os fotogramas constantes de fls. 42 do Anexo B, sendo visível o arguido na posse de sacos contendo produtos estupefacientes e, por detrás dele, um gradeamento, tratando-se daquele que existia na Rua ..., como explicou o agente coordenador da investigação EEE) e a sua ligação ao grupo ... resulta das interceções telefónicas, designadamente de conversas mantidas com os arguidos NN e BB (cf. as sessões 06429 e 06818, transcritas no Anexo 55-A).
O depoimento prestado pela testemunha DDD (a cuja audição integral procedemos através do citius media studio) constitui mais um elemento no qual o tribunal a quo se apoiou para fundar a sua convicção, tendo a testemunha declarado que comprava cocaína no Bairro..., contactando previamente, por mensagem, o “XXX”, para não ter de “ficar na fila”, sendo abastecido no “hall de entrada”.[160]
Por outro lado, nalgumas das conversas mantidas com os seus interlocutores o arguido alude expressamente à sua atividade de tráfico de estupefacientes no ..., chegando a mencionar os valores auferidos – como sucedeu, por exemplo, no dia 12/4/2020, quando o arguido, numa troca de mensagens através de «whatsapp” com “SSS”, utilizador do telemóvel com o n.º ..., refere estar “farto do ...”, e no dia 27/3/2020, numa conversa com a companheira PPP, também através daquela plataforma, declara vender droga no ..., de “saco na mão”, acrescentando a sua interlocutora que ele ganha “500 euros por noite” (cf. fls. 61 e 126 do Anexo B).
Resulta, assim, claramente da análise conjugada de toda a prova que, tal como concluiu o tribunal de primeira instância, a colaboração do arguido GG com a denominada “Banca ...” não era pontual, mas permanente, pelo que o arguido era membro efetivo do grupo que se dedicava à venda de produtos estupefacientes em larga escala, distribuindo tais produtos (alguns dos quais, de elevada toxicidade, como heroína e cocaína) em grandes quantidades e por número significativo de consumidores (só no período compreendido entre 5/6/2020 e 8/7/2020, as vendas de estupefacientes atingiram quase um milhão de euros), desempenhando as específicas funções que lhe foram atribuídas – de venda direta de estupefacientes aos consumidores e outros compradores, no interior do n.º ... da Rua ... - com clara noção do seu contributo para a prossecução dos objetivos gerais do grupo.
Do mesmo modo se afigura inequívoca a circunstância de o recorrente ter obtido ganhos com a atividade de tráfico de estupefacientes a que se dedicou, em conjugação de esforços com os restantes coarguidos, não só porque tal decorre das mais elementares regras da experiência, como salientou o tribunal de primeira instância no acórdão recorrido, mas também porque encontra apoio na prova constante dos autos. Com efeito, e apesar de o manuscrito apreendido na “Banca ...” não fazer menção a pagamentos efetuados ao recorrente, existem outros elementos que evidenciam a sua efetiva ocorrência, designadamente a conversa mantida através de mensagens via «whatsapp» atrás mencionada, para além da conversa telefónica transcrita no Anexo 55-A (sessão 03049), na qual o arguido, no dia 28/3/2020, refere que os seus turnos no ... decorrem desde as 9 até às 23 horas, recebendo “trezentos e vinte cinco, trezentos e cinquenta”, montante equivalente a cerca de metade do que era habitual.
Nenhuma censura merece, assim, a decisão do tribunal a quo relativamente à matéria de facto enunciada nos pontos 92), 100) e 164), que mantemos inalterada.
Com efeito, para além de se mostrar congruente com a globalidade da prova (licitamente obtida), avaliada em conjugação com critérios de normalidade decorrentes das regras da experiência comum, a decisão do tribunal de primeira instância revela-se ainda totalmente compatível com a observância do princípio “in dubio por reo”.
É que, como observa Claus Roxin (“Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois (tal como sucede com a livre convicção), argumentada, coerente, razoável (cf. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23 (1996), p. 25). Assim, para a revogação da decisão recorrida importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido.
O tribunal de primeira instância, fundadamente, não enunciou qualquer dúvida que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia perante a prova produzida[161].
Igualmente congruente com os princípios da livre apreciação da prova e da presunção de inocência, na vertente do “in dubio pro reo”, afigura-se a decisão recorrida no que concerne à factualidade que se relaciona com a atividade de tráfico de produtos estupefacientes desenvolvida pelo arguido GG “por conta própria” - empreendida, portanto, pelo recorrente em paralelo com aquela desenvolvida no seio do grupo do ..., sob a liderança do LL –, o mesmo sucedendo com a atividade de tráfico e mediação de armas, a que se alude nos pontos 99), 165), 166), 167), 168), 169), 170), 172) e 180) da matéria de facto provada.
É certo que, como salienta o recorrente, a convicção firmada pelo tribunal de primeira instância não se funda em prova direta, inexistente no que diz respeito à matéria que agora nos ocupa.
Contudo, o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além da dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.
Na verdade, “como todos os juízos históricos, o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidades sobre a verdade ou falsidade de certas proposições. Quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a «certeza subjetiva» da veracidade da correspondente afirmação de facto” (Margarida Lima Rego, “Decisões em ambiente de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais”, Revista Julgar, n.º 21, Set/Dez de 2013, p. 121).
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável”, como já tivemos oportunidade de assinalar.
Além disso, encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.
De resto, a associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objetivos e regras objetivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.[162]
Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[163]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração da autoria dos crimes imputados ao arguido/recorrente (tráfico de estupefacientes por “conta própria” e tráfico de armas) e da verificação do dolo na respetiva execução[164].
Com efeito, sendo certo que o recorrente nunca foi visualizado pelos agentes policiais a vender produtos estupefacientes ou a comprar e vender armas, o teor das interceções telefónicas e, bem assim, das fotografias, vídeos e conversas através de mensagem por meio da plataforma “whatsapp” (elementos analisados no relatório pericial constante do Anexo B), conjugado com a apreensão de armas e dinheiro no decurso da busca domiciliária e com os depoimentos prestados pelos agentes policiais EEE e YY, não deixam margem para dúvidas quanto à participação do recorrente GG nas atividades de tráfico e mediação de armas e de tráfico de estupefacientes por conta própria, desenvolvida á margem da “Banca ...”.
A prova indiciária quanto a esta matéria é abundante, como assinala o tribunal a quo no acórdão recorrido, e comporta carga persuasiva bastante para superar o limite da dúvida razoável.
Para além de conversas entre o arguido e diversos interlocutores relativas à compra e venda de armas e estupefacientes, existem ainda vídeos e fotografias nas quais o arguido (por vezes, na companhia do arguido MMM) surge a empunhar e até a disparar armas de fogo e a segurar em sacos contendo produtos estupefacientes.
Anotemos alguns dos exemplos mais relevantes:
- no dia 3/7/2020, o proprietário do perfil ... YYY envia ao “XXX” (o arguido GG) uma fotografia de uma placa de haxixe, questionando se este pretende adquirir alguma e este responde que “Esse preço ns se consigo alguém que queira irmão mas vou falar na mesma”, assim demonstrando a intenção de vender/ceder o estupefaciente a terceiros (naturalmente, fora da “Banca ...”, sendo esta a única explicação plausível) – cf. fls. 23 do Anexo B;
- no dia 23/6/2020, o arguido GG envia três vídeos, nos quais surge a empunhar e a efetuar disparos com armas de fogo, tipo espingardas de cano longo, encontrando-se na companhia do arguido MMM – que também efetua disparos -, no bairro 1... (cf. fls. 25/27 do Anexo B);
- no dia 10/5/2020, o arguido GG mantém uma conversação, via «whatsapp», com o proprietário do perfil ..., na qual assume estar a tentar comprar uma arma de fogo “Magnum” pelo preço máximo de 600 €;
- as conversas mantidas com o proprietário do perfil ... SSS, sendo percetível que o arguido GG disponibiliza-se a fornecer-lhe estupefaciente (designadamente, “bolotas de haxixe”), sendo discutidos preços e sugerindo-lhe o arguido GG que, se o revender por “300”, fica-lhe a “180” (cf. fls. 52/60 do Anexo B; e ainda fls. 63/64 do mesmo Anexo);
- o arguido GG envia um vídeo, estando a municiar uma arma de fogo e efetuando dois disparos (cf. fls. 62 do Anexo B);
- o arguido GG envia um vídeo, no qual surge na companhia do arguido MMM, exibindo uma arma de fogo, tipo revólver (cf. fls. 65 do Anexo B);
- no dia 10/3/2020 o arguido GG e o arguido MMM mantêm conversações relativas a negócios de compra e venda de produtos estupefacientes (bolotas de haxixe e liamba) – cf. fls. 78/82 do Anexo B;
- o arguido MMM envia vídeos ao arguido GG, encontrando-se este a municiar e a disparar armas de fogo (cf. fls. 83/84 do Anexo B);
- no dia 8/5/2020, o arguido GG mantém uma conversação com o arguido MMM, via «whatsapp», questionando-o se pretende ficar com uma arma “Taurus” e 100 balas, enviando fotografias (cf. fls. 90/93 do Anexo B);
- no vídeo analisado a fls. 93/94 do Anexo B, é percetível o arguido GG na posse de sacos de plástico contendo produto estupefaciente (cocaína e heroína), dos quais retira e entrega pequenas embalagens ao comprador que está ao seu lado, tendo previamente dele recebido dinheiro. O arguido encontra-se no exterior de um edifício, no bairro 1.... O referido vídeo contem a seguinte legenda: “Como vender droga. Este vídeo vai direitinho para a polícia”.
- no dia 31/5/2020, o arguido MMM envia mensagens via «whatsapp» ao arguido GG, pedindo-lhe munições de calibre 6.35mm (cf. fls. 97 do Anexo B);
- nos dias 13/3 e 24/3/2020, o arguido GG mantém conversações, via «whatsapp», com o proprietário do perfil ... QQQ, nas quais este pede estupefaciente (haxixe e liamba) ao arguido GG, perguntando-lhe o GG “quanto paga” o destinatário da droga, para ele “ver se vale a pena”, respondendo o QQQ que paga a 250 euros e dizendo o arguido “eu arranjo é boa mano” – cf. fls. 112/116;
- no dia 25/4/2020, o arguido GG mantém conversações, via «whatsapp», com o mesmo interlocutor (QQQ), dizendo-lhe que vai “comprar uma gd arma preciso de guita”; nessa sequência, QQQ diz que vai comprar a «Shot» (arma de fogo) e que vai dar 250 euros por ela; o arguido GG pergunta se ele não prefere “a pequena” e QQQ responde que quer a «Shot», que a pequena “não vale a pena”; reitera que quer a «Shot» e que quer a dele, que lhe compra em dinheiro porque gosta mesmo dela (cf. fls. 121/123 do Anexo B);
- no dia 17/5/2020, QQQ questiona o arguido GG por quanto é que fica meio quilograma de haxixe, respondendo este que “sai” a 500 euros cada placa, 2.500 euros meio quilograma (cf. fls. 124/125 do Anexo B);
- no dia 23/3/2020, o arguido GG tem uma conversa telefónica (sessão 02044, transcrita no Anexo 55-A) com o arguido MMM, pedindo-lhe este se lhe fornecia “erva”, respondendo o arguido GG que tem pouca, mas que, como é para ele, que arranja e que lhe vai levar de seguida;
- no dia 6/4/2020, o arguido GG tem uma conversa telefónica (sessão 04515, transcrita no Anexo 55-A) com o arguido MMM, na qual abordam a questão do preço da “ganza” (haxixe) que vai “entrar outra vez”, mas com rótulos diferentes, concordando ambos que, quando chegar a nova remessa, sendo tudo a duzentos euros, é que vale a pena “agarrar; referem-se à compra de um kg por “três e meio” (3.5000€);
- no mesmo dia 6/4/2020, o arguido GG tem uma conversa telefónica (sessão 04591, transcrita no Anexo 55-A) com o arguido MMM, dizendo-lhe este que vai ficar com duas armas (“uma seis trinta e cinco e uma seis vinte e dois”), respondendo o arguido GG para não vender nenhuma a ninguém, para levar à casa dele que lhe entrava logo a “guita”; acrescenta que o “mano” só quer o revólver e que lhe dá a caçadeira e a “seis trinta e cinco” e “guita”; diz, ainda, que vão causar o pânico com essa, retorquindo o arguido MMM que vão experimentá-la;
- no dia 25/4/2020, o arguido GG propõe ao arguido MMM comprarem a terceiro uma arma de cano longo, “nova”, mas que terá de ser por um preço acima de 100 contos, respondendo o arguido MMM que, por esse preço, não interessa, insistindo o arguido GG, dizendo que está “nova”; na conversa mantida a seguir, o arguido GG informa o arguido MMM que esteve a falar com o “chavalo” e que ele aceita vender por “cem pedras”, concordando o arguido MMM com o preço (cf. as sessões 06091 e 06098, transcritas no Anexo 55-A);
- no dia 8/5/2020, o arguido GG recebeu uma chamada telefónica efetuada através do telemóvel com o n.º ..., perguntando-lhe o seu interlocutor se estava interessado numa “magnum 22, nova em caixa”, com 100 balas, respondendo o arguido GG que está interessado e perguntando o preço; uns minutos mais tarde, recebe um SMS no qual o seu interlocutor (ZZZ) pergunta se ele dá “500 e mais alguma coisa”, respondendo o arguido afirmativamente (cf. sessões 07124, 07139, 07146, 07147, transcritas no Anexo 55-A);
- nessa sequência, no mesmo dia, o arguido GG contacta o arguido MMM, perguntando-lhe se não está interessado em ficar com uma “Taurus 22, uma revólver nova na caixa”, que traz 100 balas, respondendo o arguido MMM afirmativamente, propondo-lhe o arguido GG ficar “com metade”, respondendo o arguido MMM “agarra isso que eu já te ligo” (cf. sessão 07159, transcrita no Anexo 55 –A);
- no mesmo dia (8/5/2020), o arguido GG envia uma SMS a ZZZ com o seguinte teor: “Dou te os 500 e mais alguma cena amanha de manha vou ai buscar e levo te alguma cena se precisares mas descontas” (cf. sessão 07178, transcrita no Anexo 55 –A);
- no dia 16/5/2020, PPP contacta o arguido GG, perguntando-lhe se consegue arranjar “ganza”, que “ela” quer placas para vender, “para aí meio quilo”, respondendo o arguido que arranja a 600 euros cada placa (cf. sessões 08314, 08320, 08322, 08323 e 08324, transcritas no Anexo 55 –A);
- no dia 16/6/2020, o arguido GG contacta o arguido MMM, perguntando-lhe se lhe vende um grama de erva, respondendo este afirmativamente, retorquindo o arguido GG: “até já, vamos já passar aí” (cf. sessão 10029, transcrita no Anexo 55 –A).
É verdade que os produtos e objetos visionados nos vídeos e fotografias atrás mencionados não foram examinados, mas tal não impede a conclusão de que se tratava efetivamente de produtos estupefacientes e de armas de fogo, como impõem os mais elementares princípios da lógica e normalidade, decorrentes das regras de experiência comum.
Como observou a testemunha EEE (agente da PSP coordenador da investigação), o visionamento das fotografias e vídeos não deixa dúvidas quanto à circunstância de se tratar de armas reais (e não de brinquedos ou réplicas), apresentando caraterísticas idênticas às armas apreendidas na residência do arguido – embora não se possa afirmar que se tratava exatamente das mesmas, uma vez que nos fotogramas não é visível qualquer número de série.
Do mesmo modo, nenhuma reserva nos suscita a consideração do tribunal a quo quanto à demonstração da efetiva ocorrência de vendas de produtos estupefacientes (e não de qualquer outra coisa) a partir da visualização de imagens captadas por câmaras, em conjugação com as declarações de um profissional experiente, enunciada no acórdão recorrido (cf. fls. 15.311).
Quanto às concretas vendas enunciadas no ponto 165) da matéria de facto provada, argumenta o recorrente que, constituindo prova proibida o conteúdo das mensagens, fotografias e vídeos recebidos e enviados pelo arguido através da plataforma «whatsapp» e, nunca tendo sido visionado a vender produtos estupefacientes, inexiste qualquer prova concludente na qual o tribunal pudesse fundar a sua convicção.
Porém, diversamente do que sustenta o recorrente, a prova documental retirada da plataforma “whatsapp”, contida no suporte digital “2 perícias” e analisada no Anexo B, constitui prova válida, como já tivemos oportunidade de referir.
Resulta, ainda, da leitura do acórdão recorrido que o tribunal a quo fundou a sua convicção, não só nas mensagens e outros conteúdos enviados e recebidos através de «whatsapp», mas também nas interceções telefónicas, transcritas no processo.
Ora, como já neste acórdão ficou devidamente assinalado, nada obsta a que a convicção do tribunal tivesse sido formada a partir (até exclusivamente) do teor das conversações telefónicas, as quais podem integrar o conceito de prova direta ou indireta em função do respetivo conteúdo.
As escutas telefónicas, desde que efetuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova e a transcrição das escutas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127.° do Código de Processo Penal.
Mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, refere o acórdão do STJ de 31/5/2006 [165], «o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção. A escuta, legalmente permitida e validamente efetuada, é um meio de prova autónomo apto a provar o conteúdo da própria conversação intercetada e registada. Concluindo: as escutas telefónicas são um meio de obtenção da prova, mas as conversações recolhidas através dessas interceções constituem um meio de prova; transcrito e inserido no processo, o conteúdo das gravações passa a constitui prova documental, submetida ao princípio da livre apreciação da prova: as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, art.º 127º do Código de Processo Penal.»
Se as escutas telefónicas foram validamente obtidas, como se escreve no acórdão do TRP de 3/3/2021 (Nuno Pires Salpico, in www.dgsi.pt, já citado), “a partir daí apenas importará aferir o relevo probatório do meio de prova - conversações transcritas. A interpretação do conteúdo das conversações telefónicas é estritamente norteada pelas regras da lógica, segundo as normas da experiência comum, numa abordagem marcadamente normativa e conservadora de aferição probatória, afastada de qualquer especulação ou de terrenos onde não seja relativamente inequívoco o contexto do tráfico, juízos normativos que são sempre norteados pela prudência do julgador”.
Crucial será, na interpretação da conversação/mensagem telefónica, que o teor daquela por si só e/ou conjugada com outras permita formar uma convicção segura, sem qualquer dúvida razoável e fundada, de que a transação ocorreu.
A este propósito pode ler-se no acórdão trazido a recurso o seguinte:
«Quanto às escutas telefónicas há que referir que a jurisprudência considera que as mesmas “constituindo um meio de obtenção de prova, não deixam de ser simultaneamente um meio de prova, dado que, regularmente efetuadas, uma vez transcritas no processo, passam a constituir prova documental … pelo que … a transcrição das escutas assim realizadas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127º, do Código de Processo Penal, mesmo que não lida nem examinada em audiência” (vide, entre outros Acórdão Relação Lisboa de 31/05/2006 e Acórdão Tribunal Relação Coimbra de 09/05/2012, ambos em www.dgsi.pt”.
Nestes casos e mesmo que as transcrições das escutas telefónicas - prova documental – sejam o único meio de prova a sustentar a convicção do tribunal, tal não encontra qualquer óbice legal, desde que as referidas transcrições permitam suportar um juízo seguro sobre a responsabilidade jurídico-penal do agente. A esse propósito sempre se refira que os visados nessas escutas podem sempre contraditar, no decurso da audiência, o seu conteúdo e conformidade com os respetivos suportes, bem como o alcance que a acusação lhe deu e pretendeu dar.
[…]
Voltando às escutas que, como referimos, podem constituir um meio de prova por si só, temos que na grande maioria dos diálogos os intervenientes reduzem a conversão ao mínimo indispensável e usam linguagem codificada, havendo um número muito ínfimo de exceções em que temos diálogos de simples e imediata apreensão. Logo, a análise e compreensão exata dos diálogos estabelecidos e escutados não pode ser efetuada com base numa análise individual e isolada, antes tendo que ter em conta todas as circunstâncias globais que rodeiam a situação, incluindo conversas anteriores e posteriores bem como todas as movimentações anteriores e posteriores dos arguidos e ainda as declarações dos outros intervenientes das conversas que não os arguidos que muitas das vezes admitiram o que pretendiam com as mensagens ou conversas mantidas com os arguidos.
Na verdade e nestes milhares de escutas que foram efetuadas durante cerca de ano e meio, verifica-se que quando estamos perante conversas relacionadas com estupefacientes, a linguagem usada é dissimulada e fica-se pelo mínimo indispensável, denotando-se uma preocupação de poderem ser escutados e de nessa eventualidade poderem encobrir o que estavam a realizar, o que por si só já e indiciador de que a atividade realizada era ilícita.
Assim sendo e concretizando, é perfeitamente normal e natural que as conversas mantidas por via telefónica se fiquem por meias palavras ou que os seus interlocutores utilizem códigos (tshirts, camisolas, sporting, terra, shampoos, playstation, cd, jogos para a playstation) para se referirem ao estupefaciente (apreciaremos caso a caso os códigos usados), sendo muito raro que os seus agentes falem abertamente sobre essa atividade. Acresce que na maioria das conversas o que os interlocutores pretendem saber é a localização de quem vende ou anunciar a sua chegada de forma a que a atividade de tráfico ou as conversas sobre tal atividade se possam processar sem o auxilio de qualquer tecnologia – telefone, redes sociais, etc - não deixando assim qualquer rasto.
Por outro lado e isso acontece muito nestes autos, quando estamos perante conversas entre traficantes e entre traficantes e consumidores, o teor da conversa é quase sempre o mesmo, designadamente o de querer saber onde está o outro e de lhe dizer/ordenar que se encontre com ele, não havendo nunca uma pergunta para saber o motivo do encontro, sendo que o destinatário dessa conversa nunca coloca em causa nem questiona a necessidade de tal encontro, o que é bastante indiciador de que já sabe o motivo. Ora, para um simples encontro de amigos é normal alguém “convidar o outro a “tomar um copo”, sair, ir ao futebol, ao shopping etc”, o que raramente acontece nestes autos, pois o que ouvimos quase sempre é “onde estás?, anda cá, vou aí ter, um café, etc”, o que indicia claramente que o interesse do encontro é falar de uma atividade que não pode ser escutada por ser criminosa, ou praticar atos dessa atividade, que têm de ser efetuados presencialmente mas que não podem ser anunciados por telefone, por constituírem crime. Acresce que conforme se pode verificar no relacionamento entre os arguidos, o elevado número de chamadas e mensagens enviadas entre eles - e aqui não estão incluídas as das redes sociais, nomeadamente e principalmente “whats´up” - indiciam claramente que estamos perante alguém com quem trabalha e que telefona ou envia mensagens ao outro para tratar de assuntos de trabalho (entenda-se trabalho como atividade de tráfico) e não os telefonemas ou mensagens que se enviam aos amigos para se encontrarem e confraternizarem, nem tampouco as típicas chamadas para simplesmente conversarem.
Acresce que resulta igualmente dos autos que as chamadas telefónicas e as mensagens enviadas não eram o único modo de comunicação utilizada pelos arguidos, sendo que dessas chamadas resulta muitas vezes que os encontros e/ou a finalidade desses encontros já tinham sido combinados previamente através das redes sociais. Logo, a interpretação das chamadas também tem de ter em conta tal facto, sendo que como é sabido, ainda não é possível proceder ao controlo das chamadas e mensagens nas redes sociais, pelo que é mais seguro proceder a combinações ilícitas por esse modo.
[…]
Analisando o teor da acusação, verifica-se que se reproduzem muitas conversas mantidas pelos arguidos entre eles ou com terceiros, em que se fala de assuntos relacionados com estupefaciente. Tais conversas poderão ser relevantes para melhor podermos compreender a atividade dos arguidos e as relações entre eles, mas não constituem em si, qualquer facto ilícito, nem consubstanciam qualquer crime, pelo que não devem ser levadas à factualidade assente ou não assente. Nesta conformidade, conversas em que alguém diz que “isto está muito parado” ou “não tenho nada para venda” é algo que poderá usado para compreender toda a dinâmica da atividade dos arguidos, mas que não pode sustentar uma acusação e uma posterior/eventual condenação, pelo que nos abstivemos de levar tal factualidade aos factos assentes /não assentes, apenas constituindo mais um elemento para considerarmos os factos efetivamente relevantes e consubstanciadores de um crime provados ou não provados, melhor compreendendo e situando a atividade global dos arguidos.
Na verdade e apesar de não constituir qualquer crime, ouvirmos um arguido assumir perante outrem que não tem estupefaciente para venda, tal conversa, não deixa de ser importante para juntamente com outras conversas e outros elementos de prova concluirmos pela atividade de tráfico por parte de determinados arguidos. Ou seja, estas conversas servem para a motivação da matéria de facto e não para constar na referida matéria, pois que não constituem qualquer conduta ilícita.
O mesmo se aplica a encomendas de estupefacientes em que a acusação não concretiza se houve ou não venda posterior, pois que a encomenda em si mesmo não constitui crime e se fosse seria praticado por quem a efetuou e não quem a recebeu. Porém, as constantes encomendas, quando não concretizadas em vendas, o que como poderemos constatar não sucedeu na maior parte das vezes indicada na acusação (vendas efetivamente ocorreram), também constituem mais um elemento a ter em conta para analisar toda a atividade dos arguidos, pois que quem recebe encomendas de estupefacientes e não refuta essa encomenda ou não esclarece o seu interlocutor que se deve tratar de um engano e ainda por cima combina algo ou alega alguma impossibilidade ou obstáculo é porque com grande probabilidade se dedica à atividade de venda. E, aí chegados, se aditarmos outros elementos probatórios, como a seguir referiremos, a conclusão a retirar é evidente e avassaladora. No entanto e este pormenor é que convém realçar neste momento, o que importa é frisar que tais factos também não irão constar da factualidade assente ou não assente, pois que não consubstanciam em si mesmo qualquer conduta criminosa.
Esclareça-se igualmente que mesmo nos casos em que depois do contacto não há confirmação especifica da venda – confissão por parte do vendedor, visualização por parte do agente policial ou confirmação especifica por parte do comprador – o tribunal deu como assente a referida transação pois que é o corolário lógico de todo o processo –pelas explicações que supra tecemos -, sendo natural que a seguir ao contacto se siga a transação, só assim se entendendo o referido contacto. Na verdade e se a seguir a um contacto em que se diz “já passo aí” ou “preciso de x” ou outras conversas do teor que supra referimos o normal é a concretização da operação, sendo que se tal não sucedesse, certamente teria que haver um novo contacto a perguntar se a pessoa ainda vinha ou se o vendedor ainda se encontrava no local. Ora, não tendo sucedido tais conversas e não havendo uma negação perentória do arguido das mesmas, demos as referidas vendas como assentes, como melhor explicaremos nas situações em específico. […]”.
Tendemos a concordar com esta última formulação genérica expressa no acórdão recorrido, sendo certo, porém, que a asserção nela contida não dispensa uma análise das especificidades de cada situação em concreto.
Assim, quanto às vendas de heroína e cocaína que o arguido GG teria efetuado a RRR, estamos de acordo com o recorrente quando assinala que nenhuma prova comprova a sua ocorrência.
Com efeito, a testemunha RRR, inquirida na audiência de julgamento,[166] negou ter efetuado tais compras de estupefacientes (heroína e cocaína), referindo unicamente que, por vezes, o arguido GG, de quem é amigo, cedia-lhe haxixe para o seu consumo, mas sem cobrar qualquer quantia.
Por outro lado, do Anexo B apenas consta um vídeo enviado pelo arguido GG ao RRR, nele figurando o arguido GG com sacos de plástico na mão, contendo produto estupefaciente. É certo que tais produtos, pela sua aparência, seriam cocaína e heroína, o que foi igualmente declarado pela testemunha RRR, mas nenhum elemento de prova sugere que o arguido GG tenha vendido ou cedido tais substâncias a esta testemunha.
Por fim, constatámos que em todas as conversas mantidas via «whatsapp» entre estes interlocutores – arguido GG e testemunha RRR –, mesmo naquelas que não se encontram transcritas no Anexo B (mas que constam do respetivo suporte digital identificado como “2PERICIAS”), apenas são feitas referências a haxixe, não tendo sido localizada qualquer conversação alusiva a transações de heroína ou de cocaína.
Por isso, se podemos ter por certo que o arguido GG vendia produtos estupefacientes (heroína, cocaína e haxixe) na “Banca ...” e por conta própria, designadamente no bairro 1... – sendo os elementos de prova já analisados absolutamente concludentes neste sentido -, nenhuma prova atesta a ocorrência de vendas de heroína e cocaína ao RRR, razão pela qual os factos enunciados no ponto 165), j) terão de transitar para o elenco dos factos não provados.
Já as vendas de haxixe ao SSS (ponto 165), l), m), n) e o)), igualmente impugnadas pelo arguido GG, encontram-se inequivocamente demonstradas pelo teor das mensagens trocadas via «whatsapp» (cf. fls. 44/64 do Anexo B) entre os dois, conversações estas que não deixam dúvidas relevantes quanto à circunstância de, a seguir à encomenda, se ter seguido o efetivo fornecimento do produto estupefaciente.
É de notar que, quanto ao fornecimento de 40 tiras de haxixe, em 27/4/2020, pelo arguido GG ao SSS, este confirmou, quando inquirido na audiência de julgamento, que tinha adquirido tal produto estupefaciente no bairro 1..., tendo-se deslocado de Famalicão, onde reside, ao Porto com esse propósito. E, muito embora a testemunha [167] tenha negado que a venda foi efetuada pelo arguido GG – referindo, apenas, que comprou na ... -, a verdade é que outros elementos indiciários, constantes do processo, dissipam as dúvidas que, sobre essa matéria, pudessem subsistir.
Assim, e como justamente foi salientado no acórdão recorrido, a testemunha foi encontrada pela autoridade policial na posse daquele produto estupefaciente, quando se deslocava em direção a Famalicão no veículo Smart, habitualmente utilizado pelo arguido GG, encontrando-se na companhia deste arguido (cf. a certidão do NUIPC 23/20.3GAMTS, contendo auto de notícia, auto de apreensão, relatório do exame pericial efetuado ao produto estupefaciente e reportagem fotográfica, constante do volume 28 dos presentes autos).
Por outro lado, a conversa telefónica mantida naquele dia entre o arguido GG e o arguido NN (alvo de interceção telefónica e transcrita a fls. 10/12 do Anexo 55 – A, sessão 06429) é absolutamente esclarecedora, tendo o arguido descrito com pormenor toda a ocorrência, referindo que tinham “40 tiras de ganza” para “levar para Famalicão”, tendo sido abordados pela polícia no decurso de uma “operação stop”.
Por fim, resta analisar a situação particular da venda de três placas de haxixe pelo arguido GG ao arguido BB, descrita na alínea c) do ponto 165 da matéria de facto dado como provada.
Relativamente aos factos ali descritos e também constantes do ponto 184), o tribunal de primeira instância terá fundado a sua convicção unicamente no teor da conversa mantida com o arguido GG no dia 2/5/2020, alvo de interceção telefónica e transcrita no Anexo 55-A (alvo 112233040, sessão 06818).
Ora, como já tivemos oportunidade de referir a propósito da análise do recurso do arguido BB, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[168]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, as referidas escutas telefónicas não se encontram complementadas (e muito menos corroboradas) por qualquer outro meio de prova e afigura-se-nos que o seu conteúdo, por si só, é insuficiente para comprovar a compra e venda subsequente de produto estupefaciente (no caso, haxixe, como claramente resulta do teor da interceção telefónica em causa).
Com efeito, não há dúvida de que o recorrente BB contactou telefonicamente o arguido GG, dizendo-lhe que queria três placas de haxixe, mas não queria pagar mais de “400” (euros, presume-se) por cada uma, respondendo-lhe o arguido GG que “não sabia se conseguia, que ia ver o que podia arranjar.”.
É certo que, posteriormente, não surge qualquer outra conversa telefónica na qual este assunto tivesse sido abordado, mas tal elemento não se nos afigura decisivo, neste caso em concreto, uma vez que os intervenientes ficaram de se encontrar pessoalmente de seguida e, por isso, desconhecemos que diálogo mantiveram a este propósito. Na verdade, é perfeitamente plausível que o arguido GG não tenha conseguido obter o produto estupefaciente solicitado pelo recorrente BB, nas condições por este pretendidas (por preço não superior a 400 € cada placa), e que disso lhe tivesse dado conta quando se encontraram pessoalmente, assim se justificando a inexistência de uma conversa telefónica sobre tal matéria.
Deste modo, consideramos que, no presente caso, os indícios destacados na decisão recorrida não são suficientemente graves, precisos e concordantes [169], não permitindo, por isso, as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo (no sentido da demonstração do efetivo fornecimento dos produtos estupefacientes pelo recorrente), para além da dúvida razoável.
A conclusão probatória realizada pelo Tribunal recorrido materializa-se numa decisão contra o arguido, insuficientemente suportada pelos elementos probatórios de natureza indiciária em que assentou a convicção, de modo a não deixar pelo menos dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido. Deve, por isso, ser alterada, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.
Em conclusão, sendo inequívoco que o arguido BB solicitou ao arguido GG o fornecimento de três placas de haxixe pelo preço unitário de 400€, destinando o arguido EE tal produto estupefaciente a revenda (como não podemos deixar de concluir, considerando a quantidade de estupefaciente em causa), desconhecendo-se se tal chegou ou não a acontecer, o ponto 165), alínea c) passa a dispor da seguinte redação:
«No dia 2/5/2020, o arguido BB solicitou ao arguido GG o fornecimento de três placas de haxixe por 400 € cada».
Para o elenco dos factos não provados transita o segmento do ponto 165, alínea c), que alude à venda do mencionado produto estupefaciente pelo arguido GG ao arguido BB.
Ressalvadas estas duas situações (alíneas c) e j)), todos os restantes fornecimentos/vendas de estupefacientes (ou de armas) elencados no ponto 165 e nos seguintes encontram-se demonstrados pelo teor das conversações mantidas através do telemóvel ou por meio de «whatsapp» (respetivamente transcritas no Anexo 55-A e analisadas no Anexo B), elementos que não deixam dúvidas relevantes quanto à circunstância de, após a encomenda, se ter seguido o efetivo fornecimento do produto estupefaciente ou a venda de armas de fogo.
Perante o quadro factual atrás descrito, é evidente que o passo lógico seguinte consistia em ter por demonstrado o dolo do arguido/recorrente, como fez o tribunal de primeira instância.
Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum [170]. Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
Por fim, resta salientar que nenhuma censura merece a decisão recorrida relativamente à redação dos pontos 313), 314), 315) e 316). Com efeito, diversamente do que defende o recorrente, estes segmentos da decisão contêm verdadeiros factos e não simples conclusões, embora estejam necessariamente descritos duma forma mais genérica, por forma a condensarem a atividade delituosa desenvolvida pelo arguido GG em coautoria com os restantes elementos do “grupo ...” e o dolo do arguido. Dada a sua relevância para a decisão e, designadamente, para o preenchimento do tipo de ilícito subjetivo e do respetivo tipo de culpa, devem ser mantidos.
*
b) Verificação das circunstâncias agravantes do crime de tráfico de estupefacientes e convolação para os crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e de detenção de arma proibida.
Considera o recorrente que o seu comportamento não pode ser enquadrado no âmbito do crime de tráfico de estupefacientes agravado e que, a ser condenado, sempre terá de sê-lo por referência a um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
O art.º 24.º do DL n.º 15/93 estabelece, nas alíneas b), c) e j), que as penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:
b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas;
c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória;
j) O agente atuar como membro de bando destinado à prática reiterada dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando.
Não vemos qualquer razão para divergirmos da posição já por nós anteriormente expressa relativamente à questão da verificação das aludidas circunstâncias agravantes e damos aqui por reproduzidas as considerações teóricas enunciadas a propósito da análise do recurso do arguido HH (IV).
Dito isto, se podemos concluir, em face da matéria de facto descrita no acórdão recorrido e que temos por definitivamente assente, que o arguido/recorrente GG estava integrado no grupo liderado pelo LL, grupo este que durante cerca de um ano e um mês vendeu diariamente, de forma organizada e hierarquizada, grandes quantidades de cocaína, heroína e haxixe, gerando lucros avultados para o líder do grupo, temos de reconhecer que quanto ao recorrente não ficou demonstrado que este tivesse obtido ou procurasse obter “avultada compensação remuneratória”.
Na verdade, apenas foi possível apurar que o arguido GG recebia uma remuneração por contrapartida da sua colaboração na atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida na Banca ... (cf. os pontos 100 e 164), mas nada nos autos sugere que o mesmo visasse obter uma compensação com uma ordem de grandeza que se afaste, manifestamente e segundo parâmetros objetivos, das projeções do crime base – sendo certo que, como é assinalado no acórdão recorrido (fls. 15.409 verso), em todas as atividades de tráfico de estupefacientes os agentes procuram obter os ganhos que a atividade lhes possa proporcionar.
Já quanto à circunstância agravante prevista na alínea b), a sua demonstração decorre inequivocamente de todo o circunstancialismo apurado, caraterizador da atividade de tráfico de estupefacientes em apreço. Com efeito, e independentemente da concreta identificação dos adquirentes de produtos estupefacientes, a verdade é que ficou demonstrado que o grupo liderado pelo LL vendeu produtos estupefacientes (cocaína, heroína e haxixe) de forma continuada, pelo menos desde 4/6/2019 até 9/7/2020, sendo certo que só à denominada “Banca ...” afluíam, diariamente, pelo menos dezenas de consumidores/compradores de várias zonas do país (cf. pontos 74, 75 e 78 da matéria de facto provada).
O volume de produtos estupefacientes transacionados (cf. o ponto 104: só no período compreendido entre o dia 5/6/2020 e o dia 8/7/2020 o grupo liderado pelo arguido LL vendeu estupefacientes no valor total de € 960.774,00), associado ao período de funcionamento da “banca” (diariamente, das 9 horas da manhã até à uma hora da madrugada – ponto 78), configuram também elementos adicionais tendentes a reforçar a ideia da disseminação daquelas substâncias ilícitas por um número significativamente elevado de pessoas.
Analisemos, agora, a circunstância agravante prevista na alínea j).
Como já tivemos oportunidade de observar neste acórdão, o conceito de “bando” integra uma situação de atuação ilícita intermédia entre a simples comparticipação criminosa e a associação criminosa - mais grave do que as situações de mera participação criminosa, embora menos censurável do que aquelas em que existe uma perfeita e definida "associação criminosa" -, integrando aquelas condutas em que, pelo menos, dois agentes atuam de forma voluntária e concertada, em colaboração mútua, com uma incipiente estruturação de funções, mas sem que se possa já considerar como existente uma organização perfeitamente caracterizada, com níveis e hierarquias de comando e com uma certa divisão e especialização de funções de cada uma das suas componentes ou aderentes, como sucede na associação criminosa [171].
O tribunal de primeira instância excluiu a verificação do crime de associação criminosa, mas considerou verificada a circunstância qualificativa em causa, escrevendo no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição parcial):
«Para a verificação deste tipo de crime basta que o agente atue com a consciência de participar num grupo, com objetivos definidos, sem que com isso obrigatoriamente conheça todos os membros envolvidos. A atuação em bando, traduz uma atuação com vista à prática reiterada de crimes, em que cada agente não tem consciência e (ou) intenção de pertença a um ente coletivo com personalidade distinta da sua e objetivos próprios – o que afastará a associação criminosa típica – mas em que os diversos “colaboradores”, inseridos numa orgânica ainda incipiente, reconhecem, todavia, a existência de uma liderança de facto a que se subordinam.
Como bem refere Figueiredo Dias, em “as Associações Criminosas, no Código Penal de 1982” os laços que atam aqueles membros não se podem confundir com aqueloutros que unem, por exemplo, os coautores, os cúmplices ou os instigadores, mas, de outra banda também não se podem confundir com os que ligam os membros de uma associação criminosa. Logo, a densidade de relações entre os membros de uma associação criminosa é mais forte do que no bando, sendo que no bando, ao contrário da associação criminosa, não há uma organização funcional, mas sim uma relação sustentada num fim comum que é a prática de crimes. Acresce que, e esta é outra característica que distingue o bando da associação criminosa, esta última assume uma maior fixidez nos seus membros, enquanto que num bando a sua composição varia de forma regular. […]
Por outro lado, a circunstância da agravação prende-se com o facto do bando introduzir uma perigosidade acrescida tanto na execução do furto como no seu resultado.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Relação Lisboa de 06/11/2003, in www.dgsi.pt:
“II - Para efeitos da qualificativa a que alude a alínea j) do artigo 24.º do D.L. n.º 15/93, a noção de «bando» é algo que se distingue da simples coautoria, por um lado, indo além dela, e da associação criminosa, por outro, que não chega a atingir.
III - «Bando» será, assim, uma atuação plural e voluntária com vista à prática de crime ou crimes, em que cada agente não tem consciência e (ou) intenção de pertença a um ente coletivo com personalidade distinta da sua e objetivos próprios - o que permite afastar a figura da associação criminosa típica - mas em que os diversos «colaboratores», inseridos numa orgânica ainda incipiente, reconhecem, todavia, a existência de uma liderança de facto a que se subordinam - o que permite, por seu lado, distinguir a figura da simples coautoria.” […]

No presente caso, perante a factualidade apurada, não temos qualquer dúvida em afirmar, tal como o fez o tribunal de primeira instância, “que os arguidos LL, AA, NN, DD, HH, OO, EE, QQ, GG, ZZ, BB, CC, FF, II e AAA sabiam da pertença do grupo, sabiam das atividades do grupo e exerciam todos uma atividade essencial dentro do grupo de forma a venderem o maior número de estupefacientes possível gerando assim lucros avultados para o líder do grupo, o arguido LL, que depois lhes pagava uma remuneração por tal atuação”.
A atuação do arguido GG, inserido numa estrutura orgânica relativamente incipiente, mas subordinada à liderança do LL, em colaboração com os demais coarguidos e com propósitos e objetivos comuns, integra inequivocamente a figura do bando, pelo que se encontra preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea j), do art.º 24.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Resta-nos analisar se o comportamento do recorrente deverá ser considerado de “menor gravidade” e, por isso, enquadrado no âmbito do tipo de ilícito previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [172]).
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”. Ainda que se verifique um conjunto de circunstâncias que apontem para uma imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída – o que acontecerá, tipicamente, se o tráfico for de carácter muito rudimentar, se a quantidade traficada não for muito elevada, se a modalidade ou as circunstâncias da ação não forem altamente desvaliosas, se o tráfico não for efetuado por estrutura organizada ou se essa estrutura for incipiente -, o comportamento do agente não deverá, em princípio, ser integrado no art.º 25.º, mas antes no tipo matricial do art.º 21.º, se ocorrer alguma das circunstâncias mencionadas no art.º 24.º (potencialmente suscetíveis de integração dos factos no tipo agravado aqui previsto) [173].
É manifesto, porém, que no presente caso não estamos perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, tendo o arguido/recorrente desempenhado funções relevantes para o desenvolvimento da atividade de tráfico de estupefacientes liderada pelo arguido LL e para cuja prossecução também contribuiu de forma significativa.
A colaboração do arguido GG com a denominada “Banca ...” não era pontual, mas permanente, pelo que o arguido era membro efetivo do grupo que se dedicava à venda de produtos estupefacientes em larga escala, distribuindo tais produtos (alguns dos quais, de elevada toxicidade, como heroína e cocaína) em grandes quantidades e por número significativo de consumidores (só no período compreendido entre 5/6/2020 e 8/7/2020, as vendas de estupefacientes atingiram quase um milhão de euros), desempenhando o recorrente as específicas funções que lhe foram atribuídas – de venda direta de produtos estupefacientes aos compradores, no interior do n.º ....º 1º andar - com clara noção do seu contributo para a prossecução dos objetivos gerais do grupo.
Para além disso, o arguido GG também se dedicava regularmente à atividade de tráfico de estupefacientes (designadamente, de cocaína e heroína, para além de haxixe) por conta própria, à margem da “Banca ...”.
Ora, protegendo o crime de tráfico de estupefacientes, de forma imediata, a saúde pública, não podemos deixar de reconhecer a existência de uma óbvia relação de proporcionalidade direta entre o volume de droga traficado e suas caraterísticas e a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido, onde quer que a atividade criminosa seja levada a cabo [174].
Deste modo, a quantidade e, sobretudo, a natureza dos produtos estupefacientes em causa (particularmente, cocaína, droga de elevada toxicidade) sempre impediria a integração do comportamento em causa no tipo privilegiado previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 23/1,
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, inexistindo motivos válidos para integrar o comportamento do recorrente no âmbito do tráfico de estupefacientes de menor gravidade ou, sequer, do tipo de tráfico de estupefacientes matricial, previsto e punido pelo art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22/1.[175]
*
Analisemos, agora, o crime de tráfico e mediação de armas imputado ao arguido.
Considera o recorrente que, a ser condenado, apenas poderá sê-lo pelo crime de detenção de arma proibida e nunca pelo crime de tráfico e mediação de armas.
A propósito desta matéria, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«O artigo 87.º da lei das armas, sob o título Tráfico e mediação de armas postula:
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transação ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, adotar algum dos comportamentos previstos no artigo anterior, envolvendo quaisquer bens e tecnologias militares, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos aí referidos, é punido com uma pena de 2 a 10 anos de prisão.
2 - A pena referida no n.º 1 é de 4 a 12 anos de prisão se:
a) O agente for funcionário incumbido da prevenção ou repressão de alguma das atividades ilícitas previstas nesta lei; ou
b) Aquela coisa ou coisas se destinarem, com o conhecimento do agente, a grupos, organizações ou associações criminosas; ou
c) O agente fizer daquelas condutas modo de vida.
3 - A pena pode ser especialmente atenuada ou não ter lugar a sua punição se o agente abandonar voluntariamente a sua atividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela provocado, impedir que o resultado que a lei quer evitar se verifique ou auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.
Este crime é um crime de perigo comum [porquanto o autor pode ser qualquer pessoa, não se exigindo particulares qualidades ou características do agente para o seu preenchimento], abstrato ou presumido. Os bens jurídicos protegidos são a ordem, a segurança e tranquilidade públicas, através do controlo pelo Estado de “uma atividade de elevada perigosidade social e geradora de uma preocupante instabilidade no controlo e na repressão do armamento ilegal”.
A conduta típica penalmente relevante, consiste em assumir e levar a cabo um dos vários comportamentos descritos no art.º 87 da Lei n.º 5/22 - sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transação ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, e por remissão para o artigo anterior detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo - relativamente a quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos referidos no art.º 86º da Lei 5/2006, de 23-02.
É assim um crime de perigo comum cuja consumação se verifica com a aquisição e detenção de arma – quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos referidos no art.º 86º da Lei 5/2006, de 23-02 - com intenção de transmitir a sua detenção ou posse para outrem, por qualquer forma e a qualquer título.
Por fim, este crime consome o da mera detenção de arma proibida, já que o tráfico implica a intenção de transmitir a detenção.
No caso em apreço, ficou assente que os arguidos GG e MMM se dedicavam à atividade de venda de estupefacientes, tendo o arguido GG chegado a concretizar uma venda, não tendo ficado assente qualquer venda concreta do arguido MMM, mas apenas a detenção/aquisição com essa finalidade – essa conduta já configura crime.
Nessa conformidade, os 2 arguidos vão ser punidos por este ilícito, que consome os crimes de detenção de arma proibida de que vinham acusados.»
Em face da factualidade que resultou provada – analisada no anterior capítulo deste recurso e que temos por definitivamente assente – não vemos qualquer razão para divergir do entendimento do tribunal de primeira instância (sendo apenas de ressalvar o notório erro de escrita contido no acórdão, uma vez que o tribunal queria claramente referir-se, neste contexto, à atividade de venda de armas e não de estupefacientes, como, por lapso, ali ficou escrito).
Com efeito, a factualidade que resultou provada preenche a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em apreço, para além do respetivo tipo de culpa, transcendendo a ilicitude inerente à mera detenção ilícita de armas, pressuposta no ilícito típico previsto no art.º 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23/2.
Improcede, assim, na totalidade, o presente fundamento do recurso.
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c) Dosimetria das penas (parcelares e unitária) de prisão e suspensão da respetiva execução.

Discorda o recorrente das penas concretas que lhe foram aplicadas pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado e de mediação de armas, reputando-as de desproporcionadas e excessivas, alargando a sua crítica à medida da pena unitária de prisão.
O crime de tráfico de estupefacientes agravado é, como vimos, punido com pena de 5 a 15 anos de prisão, correspondendo ao crime de tráfico e mediação de armas a pena de 2 a 10 anos de prisão, tendo o tribunal de primeira instância aplicado ao recorrente, respetivamente, as penas parcelares de 6 anos e de 2 anos e 6 meses de prisão, fundamentando a sua decisão nos seguintes moldes (segue transcrição):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21/24 é média, sendo o arguido um dos vendedores. Além disso, também efetuou muitas vendas por conta própria, incluindo de drogas mais duras como a cocaína. Quanto às armas, são muitos os episódios de venda, compra e detenção, assumindo a sua posse e venda uma perigosidade acrescida atento o facto do arguido estar inserido num bando que transacionava milhares de euros de estupefaciente diariamente.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com alguma intensidade, atento o passado criminal do arguido, que já tinha antecedentes criminais na data da prática dos factos e estava em pleno período de suspensão da pena de prisão pela pática de um crime de furto qualificado.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem nas sociedades bem com a perigosidade inerente à posse e venda de armas.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido GG a pena de 6 anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes e a pena de 2 anos e 6 meses pela prática do crime de tráfico e mediação de armas, que está em concurso aparente, relação de consunção com o crime de detenção de arma proibida.»
A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites acima referidos, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.
A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[176]
Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).
A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [177].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [178], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Observa o recorrente que a pena que lhe foi aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes revela-se excessiva, designadamente por comparação com as penas aplicadas a outros elementos do grupo (os arguidos AA, DD e NN) que ocupavam “cargos” de maior relevo, tratando-se ele de um “peão”, integrando a posição mais baixa da hierarquia.
Ora, nada indica que o recorrente ocupasse a posição mais “baixa da hierarquia”, existindo, inclusivamente, elementos que sugerem que essa posição competia aos elementos do grupo que se encontravam no exterior, designadamente a organizar as filas de consumidores e o acesso ao interior da “banca” [179]– o que terá sido igualmente entendido pelo tribunal de primeira instância, com reflexo nas penas concretamente determinadas.
O tribunal de primeira instância optou por graduar a pena por referência aos arguidos que desempenhavam funções equivalentes, justificando a aplicação de uma pena mais elevada ao recorrente, por comparação com as penas aplicadas aos coarguidos ZZ e II, pela circunstância de proceder a vendas de produto estupefaciente fora da “Banca ...” e em atenção aos seus antecedentes criminais (cf. fls. 15.443), raciocínio que se nos afigura totalmente acertado.
Efetivamente, o grau de ilicitude inerente ao comportamento do arguido afigura-se elevado, considerando a circunstância de ter desenvolvido uma atividade de tráfico de estupefacientes relevante no âmbito do grupo ... e, para além disso, por conta própria,[180] não esquecendo, ainda, a específica natureza dos produtos estupefacientes transacionados (designadamente, cocaína e heroína, substâncias com forte poder aditivo e altamente nocivas para a saúde dos respetivos consumidores, como é sabido).
Protegendo o crime de tráfico de estupefacientes, de forma imediata, a saúde pública, não podemos deixar de reconhecer a existência de uma óbvia relação de proporcionalidade direta entre o volume de droga traficado e suas caraterísticas e a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido [181].
Também significativas revelam-se as necessidades de prevenção especial, apresentando o arguido antecedentes criminais pela prática de outros crimes (embora de diversa natureza), ausência de hábitos regulares de trabalho e um quotidiano pouco estruturado, caraterizado pelo convívio com pares com comportamentos desviantes e hábitos de consumo de estupefacientes.
Não vislumbramos, assim, qualquer excesso ou desproporção da medida concreta das penas de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
A premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade das normas violadas, decorrente da específica danosidade social dos tipos de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) justifica, assim, a aplicação das penas de prisão na medida determinada pelo tribunal.
Fixadas em medida inferior, tais penas seriam desajustadas ao grau de ilicitude do comportamento do recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
Aliás, a pena aplicada para o crime de tráfico ou mediação de armas foi já determinada num quantum próximo do limite mínimo da respetiva moldura abstrata, sendo de notar que só circunstâncias verdadeiramente excecionais, que no presente caso não se verificam, justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 [182].
Analisemos, agora, a medida concreta da pena única de prisão, que o tribunal de primeira instância decidiu fixar em seis anos e nove meses, numa moldura abstrata que oscila entre o mínimo de seis anos e o máximo de oito anos e seis meses (cf. o art.º 77.º, n.º 2 do Código Penal).
Resulta do disposto no n.º 1 do art.º 77.º do Código Penal que, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Fundamentou o tribunal de primeira instância nos seguintes moldes a determinação da medida concreta da pena única de prisão (segue transcrição):
«Ao arguido GG apenas lhe pode ser aplicada uma pena única que irá variar entre os 6 anos de prisão e os 8 anos e 6 meses de prisão.
Ora, considerando a personalidade do arguido que supra expusemos, bem como as necessidades de prevenção especial e geral que ao caso se fazem sentir, entendemos que devemos aplicar ao arguido GG a pena de 6 e 9 meses de prisão em cúmulo jurídico.»
Como assinala o Prof. Figueiredo Dias [183], na determinação da medida da pena conjunta “Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade”.
Por isso, e como é salientado na decisão recorrida, o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido.
Embora a lei não estabeleça nenhum critério rígido a seguir na determinação da medida concreta da pena única dentro da moldura do concurso, a prática jurisprudencial tende no sentido de, em casos que não fogem à normalidade, fazer acrescer à pena parcelar mais grave 1/3 das demais, oscilando para mais ou para menos consoante as específicas circunstâncias do caso e a personalidade do agente [184].
Trata-se, na verdade, de um critério orientador, não vinculativo, moldável às especificidades do caso concreto, mas que serve como auxiliar e merece ser ponderado, como é observado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 7/4/2015 [185].
Tal critério orientador merece amplo acolhimento na prática jurisprudencial e, como facilmente se constata, foi observado pelo tribunal de primeira instância.
Deste modo, nenhuma censura merece a decisão recorrida, mantendo-se as penas parcelares e única aplicadas ao arguido GG, improcedendo, consequentemente, o presente fundamento do recurso.
A pena única de prisão aplicada ao recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução (art.º 50.º do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso.
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XI) Recurso do arguido MMM.
a) Nulidade do acórdão (artigos 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP).
Considera o recorrente que, da leitura da motivação da decisão de facto constante da decisão recorrida, não se torna percetível por que forma o tribunal a quo chegou a uma concreta decisão quanto à factualidade controvertida e à qualificação jurídico-penal dos factos que considerou provados – invocando que o tribunal baseou-se fundamentalmente na sua convicção, sem suporte probatório -, encontrando-se a decisão insuficientemente fundamentada.
Decorre do disposto no n.º 2, do art.º 374.º do CPP – que regula os requisitos da sentença – que ao relatório segue-se a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [186], “A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).”.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.[187]
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01).
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
Contudo, e como se adverte no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2/10/2018 [188], “A lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.”
Por fim, importa salientar que “O exame crítico exigido pela lei não se basta com a apreciação das provas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada. Do juiz exige-se muito mais que análises fragmentárias, parcelares e descontextualizadas do material probatório que tem à sua disposição. O que o legislador pressupõe é um juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do seu conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que tem ao seu dispor, analisando e valorando as provas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.” [189].
Na formulação do acórdão deste TRP de 7/6/2017 [190], o exame crítico dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento “só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu.”.
No presente caso, resulta claramente da leitura da decisão recorrida que inexiste ausência ou, sequer, insuficiência da fundamentação, encontrando-se enunciados, especificadamente, os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, permitindo a fundamentação compreender de forma suficientemente clara e precisa – e com a amplitude adequada à complexidade da causa - os motivos e a construção do percurso lógico da decisão, segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum, não se restringindo a uma adesão acrítica da prova, cumprindo-se, desta forma, o ónus imposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.
Do mesmo modo, o tribunal a quo explicita adequadamente, no acórdão recorrido, os fundamentos da decisão no que concerne ao enquadramento jurídico-penal dos factos que considerou provados.
A discordância do recorrente quanto à forma como o tribunal valorou a prova – abundante, de resto, como se depreende da leitura da extensa fundamentação do acórdão recorrido – e enquadrou juridicamente os factos de modo nenhum se confunde com a patologia invocada que, claramente, não se verifica no presente caso e, por isso, em nada contende com a validade formal da decisão de que nos ocupamos.
Improcede, assim, na totalidade o presente fundamento do recurso, não se verificando a nulidade do acórdão recorrido por inexistência (ou insuficiência) de fundamentação.
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b) Contradição insanável da fundamentação (art.º 410.º, n.º 2, b) do CPP) e impugnação da matéria de facto – em particular, a invocada violação dos princípios da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”.

Defende o recorrente que o tribunal de primeira instância incorreu no vício de contradição insanável da fundamentação, no que concerne à matéria de facto constante dos pontos 173) e 176). Invoca, para além disso, que a matéria de facto integrante dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícito por que foi condenado foi incorretamente julgada, inexistindo qualquer prova objetiva e concludente da prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e de tráfico e mediação de armas em apreço, baseando-se unicamente o tribunal em meras presunções para fundamentar a sua convicção, tendo, por isso, sido violado os princípios da livre apreciação da prova e da presunção de inocência, na modalidade do “in dubio pro reo”.
Vejamos se lhe assiste razão.
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na vertente da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
A impugnação da matéria de facto baseada no chamado recurso de «revista ampliada» reconduz-se às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [191].
O vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, abrange, na verdade, dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [192].
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Efetuada esta exposição introdutória analisemos, em concreto, as razões de discordância explanadas pelo recorrente em relação à decisão recorrida.
O ponto 173) da matéria de facto provada tem a seguinte redação: “No dia 23-03-2020, pelas 10:02, o arguido MMM comprou estupefaciente (liamba/canábis) ao arguido GG, para revenda”.
Já do ponto 176) do mesmo segmento da decisão recorrida consta o seguinte: “No dia 16-06-2020, pelas 16.16, o arguido MMM vendeu um grama de erva (liamba) ao arguido GG”.
Ora, analisada a decisão recorrida não descortinamos qualquer contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, muito menos insanável, sendo certo que o vício em causa não se confunde com a diversa perspetiva do recorrente em relação á apreciação da prova efetuada pelo tribunal.
Refere o recorrente que, se o tribunal se convenceu de que o arguido GG era vendedor de produtos estupefacientes e que o arguido MMM era seu cliente, incorre em contradição se, depois, dá como provado que o arguido MMM vendeu um grama de liamba ao arguido GG.
Acrescenta o recorrente que as duas circunstâncias dificilmente se compatibilizam e são até, do ponto de vista fáctico, incompatíveis.
É evidente, porém, que inexiste qualquer inconciliabilidade ou contradição intrínseca entre estes factos, reportados, note-se, a momentos temporais e circunstancialismos concretos diferentes.
Com efeito, nada impedia que os arguidos GG e MMM vendessem e comprassem produtos estupefacientes, reciprocamente ou em colaboração um com o outro – como, aliás, é habitual suceder neste meio e atividade.
Neste sentido, o tribunal considerou demonstrado que um dos clientes do arguido GG era o arguido MMM que, juntamente com o arguido GG, negociava armas e estupefacientes, negócio desenvolvido por conta própria fora da Banca ... e, para além disso, que o arguido MMM dedicava-se, pelo menos desde o ano de 2020, á compra e venda de produto estupefaciente na área geográfica do Grande Porto, nomeadamente em colaboração estrita com o arguido GG (cf. os pontos 99 e 172 da matéria de facto provada).
Considera, ainda, o recorrente que ocorre uma evidente contradição no acórdão, quanto aos factos dados como provados e, depois, na subsunção dos referidos factos ao direito aplicável. Acrescenta que, ao tentar justificar esta evidente contradição quanto à demonstração ou não de vendas de estupefaciente, o tribunal, no acórdão, assume a dúvida e tenta justificá-la da seguinte forma:
«No entanto, esclareça-se que a dúvida que agora suscitamos, não colide com a fundamentação aduzida a propósito da matéria de facto, pois que aí estávamos perante a questão de saber se estávamos perante estupefaciente a sério ou não, enquanto que a dúvida agora suscitada é a de saber o destino que o arguido deu àquele estupefaciente e a razão da sua posse».
O recorrente não transcreve na totalidade este segmento da decisão, o qual é antecedido das seguintes frases, relevantes para o esclarecimento da questão agora tratada:
«[…] Estes factos estão na fronteira entre o crime base e o crime privilegiado, na previsão do art.º 25.º da lei 15/93, de 22/01. Fazendo uma análise mais aprofundada dos factos dados como assentes, temos desde logo que realçar que temos mais detenção de estupefacientes do que vendas. Ora, embora se possa antever que a seguir à posse advêm as vendas, certo é que tal não ficou demonstrado, podendo-se estar perante uma mera posse exibicionista a que não correspondem vendas compatíveis com tanto estupefaciente.»
Ou seja, o tribunal afirma a sua convicção quanto à circunstância de os produtos detidos e exibidos pelo arguido MMM se tratarem efetivamente de substâncias estupefacientes, enunciando unicamente a dúvida quanto ao destino que o arguido pretendia dar a tais produtos, designadamente se efetivamente os destinava à venda a terceiros.
É evidente que não estamos perante qualquer contradição, muito menos insanável, entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. O tribunal a quo resolveu a dúvida enunciada em sentido favorável ao arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo, circunscrevendo a venda de produtos estupefacientes a atos pontuais e considerando que o crime de tráfico de estupefacientes por ele praticado radicou, fundamentalmente, na detenção de tais substâncias ilícitas (que equivale a uma das modalidades da execução do ilícito típico, como veremos mais à frente).
Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso.
*
Relativamente à modalidade de impugnação (ampla) a que alude o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão. [193]
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Além disso, não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas imponham a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Como bem se expende no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 [194], “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. [195].

Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que sem sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [196]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [197].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [198] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
O princípio “in dubio pro reo”, por seu turno, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto decisivo para a decisão da causa -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.[199]
Importa salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Por isso, e como se assinala no acórdão do TRL de 22/9/2020 [200], “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.”.
Deste modo, violação do princípio “in dubio pro reo” ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.[201]
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [202].
Efetuadas estas considerações de caráter teórico e genérico, passemos à análise do caso concreto.
Assim, importa desde logo observar que no presente recurso não foi observado o ónus de impugnação especificada. Com efeito, o recorrente não procedeu à indicação das concretas razões da sua discordância relativamente aos pontos de facto impugnados – cuja identidade desconhecemos, uma vez que não se encontram individualizados, e apenas podemos deduzir pelos argumentos invocados -, por referência às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP), o que preclude a possibilidade de sindicar a matéria de facto sob a perspetiva da impugnação ampla [203], sem prejuízo, porém, da possibilidade de análise da decisão sobre a matéria de facto no âmbito da revista alargada a que alude o art.º 410.º, n.º 2, do CPP. Com efeito, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”, sendo patente a partir da leitura da decisão recorrida, pode consubstanciar um “erro notório na apreciação da prova”, vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
O “erro notório na apreciação da prova” refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[204]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [205].
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No acórdão recorrido escreveu-se o seguinte, quanto à análise da prova referente ao arguido MMM (segue transcrição):
«Quanto ao arguido MMM, tivemos em conta o auto de busca bem como as perícias efetuadas aos objetos e estupefaciente apreendido, bem como o exame ao telemóvel apreendido ao arguido GG.
Esclareça-se que este arguido não foi investigado, tendo apenas surgido pelo exame ao telemóvel do arguido GG onde se pode constatar a sua atividade delituosa. A defesa alegou que o arguido MMM era um “gabarola” e que o conteúdo dos vídeos poderia ser falso, não possuindo o arguido estupefacientes nem tampouco armas verdadeiras. No entanto e pelos motivos que já expusemos acerca da fundamentação expendida acerca do arguido GG, ao que acresce o resultado das buscas efetuadas a casa do arguido MMM e ainda ao teor dos vídeos e conversas que são bem explícitos e não deixam aso a imaginação ou a diferentes interpretações, concluímos que não estamos perante vídeos falsos de um jovem exibicionista, mas sim vídeos a comprovar a atividade a que se dedicava esse jovem, como depois se pode comprovar nas buscas efetuadas. Na verdade e se nas buscas possuía droga e armas, não é fácil sustentar que quando aparece numa filmagem na posse de armas que efetuam disparos estas não sejam verdadeiras, o mesmo se passando com estupefaciente, não fazendo sentido que tenha contratado figurantes ou atores para simularem a realização de uma atividade ilícita. Além disso, se os estupefacientes ou as armas fossem falsas, facilmente alguém com experiência poderia detetar tal facto, ficando o arguido totalmente descredibilizado num meio em que se queria integrar, como decorre dos vídeos e fotos que mandava.
Quanto à atividade de venda de armas, tal resulta inequivocamente das conversas que manteve com o arguido GG, com os vídeos e fotos enviados, bem como das armas e dinheiro apreendidos, sendo bem evidente que o arguido detinha aquelas armas para venda e que fazia disso modo de vida, para além das vendas de estupefaciente.»
Resulta, assim, do texto da decisão recorrida que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica, as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [206] de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido dolosamente.
O recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que o tribunal não incorreu em “erro notório na apreciação da prova”. Com efeito, de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
É verdade que os produtos e objetos visionados nos vídeos e fotografias atrás mencionados não foram examinados, mas tal não impede a conclusão de que se tratava efetivamente de produtos estupefacientes e de armas de fogo, como impõem os mais elementares princípios da lógica e normalidade, decorrentes das regras de experiência comum.
Além disso, e como já tivemos oportunidade de salientar a propósito da análise do recurso do arguido GG (e cujas considerações aqui reiteramos), a prova documental retirada da plataforma “whatsapp” e analisada no Anexo B, constitui prova válida, pelo que nada impedia o tribunal a quo de valorar o conteúdo das mensagens, fotografias e vídeos recebidos e enviados pelo arguido através de tal plataforma.
Resulta, ainda, da leitura do acórdão recorrido que o tribunal a quo fundou a sua convicção, não só nas mensagens e outros conteúdos enviados e recebidos através de «whatsapp», mas também nas interceções telefónicas, transcritas no processo.
Ora, como já neste acórdão ficou devidamente assinalado, nada obsta a que a convicção do tribunal tivesse sido formada a partir (até exclusivamente) do teor das conversações telefónicas, as quais podem integrar o conceito de prova direta ou indireta em função do respetivo conteúdo.
As escutas telefónicas, desde que efetuadas de acordo com as exigências legais, são meio legítimo de obtenção de prova e a transcrição das escutas constitui prova documental sujeita a livre apreciação pelo tribunal, nos termos do art.º 127.° do Código de Processo Penal.
Mesmo que as escutas constituam o único meio de prova, refere-se no acórdão do STJ de 31/5/2006 [207], «o tribunal não está impedido de nelas apoiar a sua convicção. A escuta, legalmente permitida e validamente efetuada, é um meio de prova autónomo apto a provar o conteúdo da própria conversação intercetada e registada. Concluindo: as escutas telefónicas são um meio de obtenção da prova, mas as conversações recolhidas através dessas interceções constituem um meio de prova; transcrito e inserido no processo, o conteúdo das gravações passa a constitui prova documental, submetida ao princípio da livre apreciação da prova: as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, art.º 127º do Código de Processo Penal.”
Se as escutas telefónicas foram validamente obtidas, como se escreve no acórdão do TRP de 3/3/2021 (Nuno Pires Salpico, in www.dgsi.pt, já citado), “a partir daí apenas importará aferir o relevo probatório do meio de prova - conversações transcritas. A interpretação do conteúdo das conversações telefónicas é estritamente norteada pelas regras da lógica, segundo as normas da experiência comum, numa abordagem marcadamente normativa e conservadora de aferição probatória, afastada de qualquer especulação ou de terrenos onde não seja relativamente inequívoco o contexto do tráfico, juízos normativos que são sempre norteados pela prudência do julgador”.
Crucial será, na interpretação da conversação/mensagem telefónica, que o teor daquela por si só e/ou conjugada com outras permita formar uma convicção segura, sem qualquer dúvida razoável e fundada, de que a transação ocorreu.
Importa observar que a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[208]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes [209], permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo, para além da dúvida razoável, no sentido da demonstração da autoria dos crimes imputados ao arguido/recorrente, da verificação do dolo na respetiva execução[210] e, para além disso, da proveniência ilícita da quantia monetária apreendida na sua residência.[211]
Por fim, importa assinalar que, diversamente do que invoca o recorrente, não existe qualquer contradição entre os factos constantes do ponto 172) da matéria de facto e o conteúdo do relatório social constante dos autos.
Com efeito, a factualidade considerada provada reporta-se ao período durante o qual o tribunal a quo considerou demonstrada a atividade de compra e venda de estupefacientes e de armas (desenvolvida apenas durante o ano de 2020 e com término em 9 de julho desse ano, altura em que ocorreu a detenção do recorrente e a apreensão de armas, munições e produtos estupefacientes), limitando-se o relatório social (elaborado, note-se, em 4 de março de 2022), de forma vaga e genérica, a referir que “nos últimos anos” o recorrente «esteve integrado em empresas de trabalho temporário, tendo desenvolvido atividade laboral com contratos de curta duração, […], tendo alguns deles sido desenvolvidos em alguns países da Europa» e que, “mais recentemente”, «frequentou um curso de barbeiro com duração de três meses, empregando-se de imediato na barbearia B... situada na cidade do Porto, em junho do ano passado».
Sendo assim, reportando-se a descrita atividade ilícita a alguns meses do ano de 2020, até àquela data do respetivo mês de julho, não se mostra patente que o tribunal a quo, considerando provado que o recorrente, durante aquele período, não exercia qualquer atividade remunerada, incorreu em “erro notório na apreciação da prova”.
Deste modo, e em síntese, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio da livre apreciação da prova e, ainda, pelo princípio in dubio pro reo [212] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [213], inexistindo, portanto, erro notório na apreciação da prova.[213]
Como se observa no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 {215], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto […]”.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto no que tange ao recorrente MMM.
*
c) Erro de qualificação jurídica – falta de preenchimento dos tipos objetivo e subjetivo do crime de tráfico de tráfico de estupefacientes e convolação para o crime de detenção de arma proibida.
Considera o recorrente que o seu comportamento não pode ser enquadrado no âmbito do crime de tráfico de estupefacientes, devendo ser absolvido, e que, a ser condenado, apenas poderá sê-lo por referência a um crime de detenção de arma proibida. Argumenta, para tanto, que não ficou demonstrada qualquer venda efetiva de estupefacientes ou de armas.
Contudo, não assiste razão ao recorrente, pelas razões que passaremos a explicitar.
Começando pelo crime de tráfico de estupefacientes, importa desde já assinalar que este configura-se como um crime de perigo comum e abstrato, na medida em que visa antecipar a proteção legal de diversos bens jurídicos com dignidade penal, como por exemplo a vida, a integridade física e a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes (em suma, visa-se a proteção da saúde pública), ainda que, em concreto, não se tenha verificado o perigo de violação desses bens jurídicos.
Por outro lado, o tipo de ilícito objetivo preenche-se com a mera detenção daqueles produtos estupefacientes, desde que não se comprove que se destinam ao exclusivo consumo pessoal, não sendo, pois, necessário que a detenção do produto estupefaciente se destine à posterior venda ou cedência a terceiros.
Como é salientado no acórdão do STJ, de 17/4/2013 [216], “O crime de tráfico de estupefaciente abarca todas as condutas não autorizadas previstas no art.º 21.º do DL 15/93, de 22-01. À sua consumação é-lhe indiferente a intenção lucrativa, ou o destino do produto estupefaciente, desde que não para consumo, sendo, porém, relevante, a quantidade total do produto integrante da ação proibida. O crime de tráfico como crime de perigo abstrato, centraliza-se na perigosidade da ação, uma vez que o perigo, não sendo elemento do tipo, se apresenta como “motivo da proibição”, sem que disso resulte qualquer violação do princípio constitucional da presunção de inocência.”
Já o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes, como é assinalado no acórdão do STJ de 13/9/2018 [217].
No presente caso, o tribunal a quo, optou, justificadamente, por enquadrar a conduta do recorrente no âmbito do tipo privilegiado contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, constando do acórdão recorrido, acerca deste assunto, o seguinte (segue transcrição):
«No que se refere ao arguido MMM temos uma pequena quantidade de vendas, pouco produto estupefaciente apreendido e uma quantidade de dinheiro já razoável, embora, o mesmo também já pudesse advir da venda de armas. Além disso temos uma negociação de um kg de haxixe por 3500€ (não se sabe se se concretizou ou não) bem como a detenção de heroína e cocaína e a sua consequente exibição através das redes sociais.
Estes factos estão na fronteira entre o crime base e o crime privilegiado, na previsão do art.º 25.º da lei 15/93, de 22/01. Fazendo uma análise mais aprofundada dos factos dados como assentes, temos desde logo que realçar que temos mais detenção de estupefacientes do que vendas. Ora, embora se possa antever que a seguir à posse advêm as vendas, certo é que tal não ficou demonstrado, podendo-se estar perante uma mera posse exibicionista a que não correspondem vendas compatíveis com tanto estupefaciente. No entanto, esclareça-se que a dúvida que agora suscitamos, não colide com a fundamentação aduzida a propósito da matéria de facto, pois que aí estávamos apenas perante a questão de saber se estávamos perante estupefaciente a sério ou não, enquanto que a dúvida ora suscitada é a de saber o destino que o arguido deu àquele estupefaciente e a razão da sua posse. Na verdade e sendo a detenção do estupefaciente crime, certo é que não sabemos se aquele estupefaciente era ou não do arguido MMM, não se sabendo a que título o mesmo o detinha, apenas se sabendo que o mesmo se exibia na sua posse. Logo o que nos resta são detenções, poucas vendas, uma negociação de algo que não sabemos que se chegou a concretizar e a apreensão de uma quantidade diminuta de haxixe, pelo que entendemos que ainda estamos numa situação de tráfico de menor gravidade, sendo que os constantes vídeos e fotos enviadas não passaram de um exibicionismo que, apesar de configurar crime – a posse de estupefaciente é crime –, não enferma de uma gravidade tão grande como a principio se poderia pensar.
Assim sendo, o arguido MMM também vai ser condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art.º 25.º, da lei da droga.»
É indubitável que, mesmo que não tivesse ficado provada qualquer venda de produtos estupefacientes, estaria preenchido o tipo objetivo do ilícito em apreço, uma vez que este integra diversas modalidades típicas de ação, para além da venda, como manifestamente decorre do disposto no art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Com efeito, esta norma estabelece, no seu n.º 1, que “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”.
Deste modo, e uma vez que a factualidade apurada – traduzida na compra, venda e detenção de produtos estupefacientes (cf. os pontos 173, 176, 177, 179, 180 e 181), sem que se verifique o circunstancialismo previsto no art.º 40.º do referido diploma legal – integra o tipo objetivo e subjetivo do ilícito-típico em apreço e, ainda, o correspondente tipo de culpa, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Relativamente ao enquadramento da conduta do recorrente no âmbito do tipo de crime previsto no art.º 87.º da Lei n.º 5/2006, de 23/2, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«O artigo 87.º da lei das armas, sob o título Tráfico e mediação de armas postula:
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transação ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, adotar algum dos comportamentos previstos no artigo anterior, envolvendo quaisquer bens e tecnologias militares, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos aí referidos, é punido com uma pena de 2 a 10 anos de prisão.
2 - A pena referida no n.º 1 é de 4 a 12 anos de prisão se:
a) O agente for funcionário incumbido da prevenção ou repressão de alguma das atividades ilícitas previstas nesta lei; ou
b) Aquela coisa ou coisas se destinarem, com o conhecimento do agente, a grupos, organizações ou associações criminosas; ou
c) O agente fizer daquelas condutas modo de vida.
3 - A pena pode ser especialmente atenuada ou não ter lugar a sua punição se o agente abandonar voluntariamente a sua atividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela provocado, impedir que o resultado que a lei quer evitar se verifique ou auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.
Este crime é um crime de perigo comum [porquanto o autor pode ser qualquer pessoa, não se exigindo particulares qualidades ou características do agente para o seu preenchimento], abstrato ou presumido. Os bens jurídicos protegidos são a ordem, a segurança e tranquilidade públicas, através do controlo pelo Estado de “uma atividade de elevada perigosidade social e geradora de uma preocupante instabilidade no controlo e na repressão do armamento ilegal”.
A conduta típica penalmente relevante, consiste em assumir e levar a cabo um dos vários comportamentos descritos no art.º 87 da Lei n.º 5/22 - sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transação ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, e por remissão para o artigo anterior detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo - relativamente a quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos referidos no art.º 86º da Lei 5/2006, de 23-02.
É assim um crime de perigo comum cuja consumação se verifica com a aquisição e detenção de arma – quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos referidos no art.º 86º da Lei 5/2006, de 23-02 - com intenção de transmitir a sua detenção ou posse para outrem, por qualquer forma e a qualquer título.
Por fim, este crime consome o da mera detenção de arma proibida, já que o tráfico implica a intenção de transmitir a detenção.
No caso em apreço, ficou assente que os arguidos GG e MMM se dedicavam à atividade de venda de estupefacientes, tendo o arguido GG chegado a concretizar uma venda, não tendo ficado assente qualquer venda concreta do arguido MMM, mas apenas a detenção/aquisição com essa finalidade – essa conduta já configura crime.
Nessa conformidade, os 2 arguidos vão ser punidos por este ilícito, que consome os crimes de detenção de arma proibida de que vinham acusados.»
Em face da factualidade que resultou provada – analisada no anterior capítulo deste recurso e que temos por definitivamente assente – não vemos qualquer razão para divergir do entendimento do tribunal de primeira instância (sendo apenas de ressalvar o notório erro de escrita contido no acórdão, uma vez que o tribunal queria claramente referir-se, neste contexto, à atividade de venda de armas e não de estupefacientes, como, por lapso, ali ficou escrito).
Com efeito, a factualidade que resultou provada (cf. os pontos 172, 177, 181, 348 e 349) preenche a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em apreço, para além do respetivo tipo de culpa, transcendendo a ilicitude inerente à mera detenção ilícita de armas, pressuposta no ilícito típico previsto no art.º 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23/2.
Improcede, assim, na totalidade, o presente fundamento do recurso.
*
d) Suspensão da execução da pena de prisão.
Discorda, ainda, o recorrente da decisão tomada pelo tribunal de primeira instância no que concerne à não suspensão da execução da pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão, invocando que a sua situação pessoal atual justifica a opção por uma pena não detentiva, solução igualmente indicada pelos técnicos de reinserção social no relatório constante dos autos.
Analisada a decisão recorrida, verificamos que o tribunal de primeira instância fundou em razões de prevenção geral e especial, ligadas à necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade das normas violadas e de ressocialização do recorrente, a opção pela aplicação de uma pena de prisão, em detrimento de uma pena de substituição.
Com efeito, a propósito desta temática consignou-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«Nos termos do art.º 50.º do C. Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições de sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Conforme se extrai deste dispositivo, são considerações de natureza exclusivamente preventiva, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam a opção pela suspensão da execução da pena de prisão.
Como refere Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág.332/333, a prevenção geral surge sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização.
É desde logo pressuposto da suspensão da execução da prisão a formulação de «juízo de prognose» favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes. Não se torna necessário que o juiz tenha de atingir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do arguido, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser alcançada.
No caso em apreço, há várias situações distintas que vamos analisar separadamente. […]
Arguido MMM
Quanto a este arguido o mesmo foi condenado na pena única de 3 anos e meio de prisão.
A ilicitude dos factos, principalmente no que concerne ao crime de tráfico de arma é elevada. Possui vários antecedentes criminais por crimes de roubo agravado, trafico de estupefacientes, injúria agravada, condução de veículo em estado de embriaguez e condução sem habilitação legal.
Na altura da prática dos factos estava em pleno período de suspensão de uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.
O arguido está socialmente integrado beneficiando de apoio familiar e económico por parte da sua mãe adotiva.
Por outro lado, há que referir que o arguido cresceu num ambiente disfuncional na sua família biológica, tendo tido um percurso muito instável ao longo dos anos ao nível da família biológica e da família adotiva.
Ultimamente e por força da paternidade tem adotado um percurso e um modo de vida mais adequado com os ditames da sociedade.
As técnicas da reinserção social consideram ser possível ainda a reabilitação do arguido em liberdade.
Ora, não obstante esta última parte e as melhorias que o arguido denotou ultimamente, não nos podemos esquecer que o Tribunal já deu uma oportunidade ao arguido e, este, em pleno período de suspensão da pena de prisão, voltou a delinquir, o que não é aceitável e nos faz temer por novos comportamentos criminosos.
Além disso, não podemos dar o beneficio da dúvida eternamente, sob pena de estas oportunidades se banalizarem e os infratores começarem a pensar que poderão sempre delinquir sem terem uma punição exemplar.
Nesta conformidade e essencialmente pelo facto do arguido ter praticado crimes em pleno período de suspensão, não formulamos o juízo de prognose favorável e, consequentemente, não suspendemos a pena única aplicada ao arguido MMM.»
Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão.
Com efeito, e como observa Anabela Miranda Rodrigues [218], o art.º 70.º do C. Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.
A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.
Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi).
Em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral [219].
Concordamos com o tribunal de primeira instância quando conclui pela impossibilidade de substituição da pena aplicada por uma pena não detentiva, sendo manifesta a impossibilidade de formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do recorrente e, sobretudo, sob pena de ser colocada em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos violados.[220]
Na verdade, reconhecemos que o recorrente encontra-se, atualmente, socialmente integrado, beneficiando de apoio familiar e económico por parte da sua mãe adotiva e a trabalhar com caráter de regularidade, o que foi também salientado pelo tribunal de primeira instância.
Contudo, o que se afigura decisiva, no presente caso, é a consideração de que o recorrente denota elevadas carências de socialização, no que à prevenção da reincidência de crimes em geral concerne, especialmente manifestada pela sua incapacidade de se deixar influenciar pelas penas previamente aplicadas, subsistindo um elevado risco de repetição deste tipo de crimes.
Com efeito, não podemos ignorar a circunstância de o recorrente ter sido previamente condenado pela prática de diversos crimes, incluindo numa pena de prisão cuja execução ficou suspensa, pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e de detenção de arma proibida, tendo os factos em análise nos presentes autos sido praticados no decurso do período de suspensão da execução desta pena.[221]
Deste modo, nada indica que o recorrente interiorizou suficientemente o desvalor da sua conduta pois, tendo sido já condenado numa pena de prisão (embora suspensa na execução) pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de armas, voltou a reincidir na prática do mesmo tipo de crimes. Parece, assim, claro que a anterior condenação numa pena de prisão cuja execução ficou suspensa não lhe serviu de suficiente advertência contra o crime, revelando o arguido, com o seu comportamento, que a prévia condenação não teve sobre si o esperado efeito dissuasor. [222]
É, assim, manifesta a impossibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável ao arguido, coincidente com a opção pela aplicação de uma pena de substituição. Na verdade, mostrando-se ainda o arguido carecido de socialização – apesar das alterações positivas que ultimamente tem evidenciado no seu estilo de vida - e denotando uma personalidade refratária, não se tendo deixado influenciar pela pena a que foi sujeito, reincidindo na prática de novos crimes de tráfico de estupefacientes e de mediação de armas, é evidente que está plenamente demonstrada a ineficácia ressocializadora da pena de prisão suspensa, que comprovadamente não surtiu junto do arguido o esperado efeito dissuasor.
Para além das exigências de prevenção especial, também as exigências de prevenção geral “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", pelas quais se limita sempre o valor da socialização, se revelam elevadas no caso dos autos. A comunidade dificilmente compreenderia que alguém que pratica factos da natureza dos que o arguido praticou, de forma repetida e revelando uma personalidade avessa à observância das normas jurídico-penais (incrementando, por isso, o juízo de perigosidade associado à sua personalidade e, consequentemente, de prognose desfavorável relativamente ao seu comportamento futuro), fosse, mais uma vez, punido com uma pena diversa da pena de prisão efetiva, verificada a total ausência de capacidade intimidatória e dissuasora das restantes medidas alternativas de que sucessivamente beneficiou.
E se assim é, mostrando-se o arguido incapaz de conformar o seu comportamento, em liberdade, com o mínimo que dele a comunidade espera e exige – isto é, que não reincida na prática de novos crimes -, não podia o tribunal de primeira instância deixar de aplicar uma pena privativa da liberdade, que se revela necessária a para dissuadir o arguido/recorrente da prática de novos crimes e reforçar a confiança comunitária na validade das normas violadas.
Nenhuma censura merece, também quanto a este aspeto, a decisão recorrida, mantendo-se a condenação do recorrente numa pena de prisão efetiva.
Deste modo, improcede, na totalidade, o presente recurso.
*
XII) Recurso do arguido AAAA (integrado no grupo do “bairro 3...”).
a) Contradição insanável da fundamentação (art.º 410.º, n.º 2, b) do CPP).
Defende o recorrente que o tribunal de primeira instância incorreu no vício de contradição insanável da fundamentação, no que concerne à matéria de facto provada constante do ponto 50) e aquela que consta da factualidade não provada.
Vejamos se lhe assiste razão.
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na vertente da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
A impugnação da matéria de facto baseada no chamado recurso de «revista ampliada» reconduz-se às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [223].
O vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, abrange, na verdade, dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [224].
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Efetuada esta exposição introdutória analisemos, em concreto, as razões de discordância explanadas pelo recorrente em relação à decisão recorrida.
O ponto 50) da matéria de facto provada tem a seguinte redação: «Efetuadas as vendas, o preço obtido era distribuído pelos arguidos BBBB, CCCC, DDDD e mais tarde por AAAA, em proporções não concretamente apuradas, e ainda utilizado para pagamento dos espaços cedidos para realização dos negócios, pela cedência das garagens e oficinas arrendadas ou cedidas para o efeito.»
Já do segmento da decisão recorrida referente à factualidade não provada consta o seguinte: «que o denominado grupo da … utilizasse diversas garagens para guardar produtos estupefacientes, bem como a oficina C... em ..., para esse efeito».
Analisada a decisão recorrida não descortinamos qualquer contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, muito menos insanável, sendo certo que o vício em causa não se confunde com a diversa perspetiva do recorrente em relação á apreciação da prova efetuada pelo tribunal.
Na verdade, o tribunal considerou demonstrado que os arguidos que integravam o denominado “grupo da …” utilizavam as suas próprias residências, para além da residência de EEEE, namorada do arguido CCCC, para guardar o produto estupefaciente, como reconhece o recorrente e resulta do ponto 41) da matéria de facto provada.
Não se mencionando que as garagens e oficinas mencionados no ponto 50) eram utilizadas para guardar estupefaciente – circunstancialismo fáctico que o tribunal veio a considerar não ter ficado demonstrado – não se pode dizer que existe uma contradição na fundamentação da decisão. É certo que não fica esclarecida a finalidade e a utilização que os arguidos faziam daqueles espaços, mas pode sempre admitir-se que ali poderiam ser desenvolvidas outras tarefas inerentes á atividade de tráfico de estupefacientes.
A falta de esclarecimento desta questão na matéria de facto ou a sua deficiente redação não implica o vício decisório em questão, patologia extrema que sempre teria de decorrer, claramente, do texto da decisão recorrida. O que não se verifica.
Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso.
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b) Dosimetria e suspensão da execução da pena de prisão.
Discorda o recorrente da medida concreta da pena de prisão aplicada – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 5 anos e 3 meses, numa moldura abstrata de 4 a 12 anos -, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
Vejamos se lhe assiste razão.
O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente AAAA com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição parcial do acórdão recorrido):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º é média, atento o elevado número de vendas efetuada, o período de tempo em que desenvolveu tal atividade (cerca de 1 ano) e o produto estupefaciente transacionado – cocaína, sendo menor que a dos arguidos BBBB e DDDD, em virtude do menor tempo em que desenvolveu esta atividade.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz- se sentir alguma intensidade, pois que apesar de não ter antecedentes criminais, no seu relatório social são evidenciadas algumas lacunas, salientando-se a necessidade de promoção de reflexão, responsabilização e treino de respostas alternativas e a interiorização dos valores ético-jurídicos vigentes, com vista a obter maior capacitação para estruturar o seu quotidiano de forma normativa e construtiva. Além disso, o facto de ter praticado estes factos numa altura em que estava desempregado, fazem-nos temer pela prática de novos factos quando voltar à liberdade, pois que a sua personalidade assim o evidencia (à primeira situação de desemprego cometeu ilícitos).
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido AAAA a pena de 5 anos e 3 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefaciente, referindo que se deu uma pena diferente menor ao arguido CCCC por razões humanitárias e pelas diferentes necessidades de prevenção especial.»
Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 [225], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [226].
Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados estabelecendo, em concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, a pena não satisfaz a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas - isto é, a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração”.
Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária.
Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização [227].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [228].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [229], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos – incluindo a qualidade e quantidade do produto estupefaciente em causa -, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Contudo, a pena concreta afigura-se-nos algo excessiva e desproporcionada, considerando o grau de ilicitude do crime cometido pelo recorrente, as necessidades de prevenção geral que lhe são inerentes e a dimensão da sua culpa, impondo-se a intervenção corretiva deste tribunal de recurso [230].
Consideramos que uma pena de 5 anos de prisão é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e necessária – mas também suficiente – para a ressocialização do recorrente [231], não ultrapassando a medida da sua culpa.
Vejamos, agora, a questão da escolha da espécie de pena e, em particular, se está indicada a suspensão da respetiva execução.
Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão.
Com efeito, e como observa Anabela Miranda Rodrigues [232], o art.º 70.º do C. Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.
A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.
Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi).
Em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral [233].
No presente caso, e embora se reconheça a necessidade de interiorização pelo recorrente dos valores ético-jurídicos vigentes, por forma a obter maior capacitação para estruturar o seu quotidiano de forma normativa e construtiva, assinalada no acórdão recorrido, consideramos que ainda estão reunidas as condições para a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro.
Com efeito, o recorrente não apresenta antecedentes criminais, confessou os factos e beneficia de apoio familiar. Além disso, tem mantido no estabelecimento prisional um quotidiano estruturado, frequentando atividades letivas, com vista à conclusão do 9.º ano de escolaridade, e desempenhando tarefas no bar de funcionários do D....
Apesar de a ilicitude inerente ao comportamento do recorrente ser já elevada, dada a quantidade de vendas de estupefaciente efetuadas e de produto estupefaciente por ele detido (e apreendido na sua residência), importa assinalar que o tipo de droga transacionado consistia, fundamentalmente, em canábis, embora o recorrente também tivesse vendido cocaína. Além disso, o período de tempo durante o qual o recorrente manteve esta atividade também não foi muito longo (cerca de um ano).
Neste contexto, e apesar de serem inegavelmente elevadas as exigências de prevenção geral, “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", pelas quais se limita sempre o valor da socialização, consideramos que a necessária manutenção da ordem jurídica e da fidelidade do público ao direito ainda consente a condenação do arguido/recorrente numa pena não detentiva.
Decide-se, assim, nos termos do art.º 50º do C. Penal, por ser mais favorável à recuperação social do arguido AAAA e ainda suportável ao nível da comunidade, suspender a execução da pena aplicada por igual período temporal (cinco anos), na confiança de que o arguido se manterá afastado da criminalidade.
A prevenção da reincidência implica, necessariamente, a promoção da reinserção social do recorrente, afigurando-se determinante a superação das fragilidades por ele evidenciadas, associadas ao seu estilo de vida e personalidade.
Deste modo, a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido AAAA deverá ser acompanhada de regime de prova, por tal se mostrar conveniente e adequado a promover e a consolidar a sua reintegração na sociedade, assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão, e que deverá contemplar, necessariamente, a inserção profissional do recorrente e a abstenção de consumo de substâncias psicotrópicas (cf. os artigos 53.º e 54.º do Código Penal).
Procede, assim, parcialmente o presente recurso.
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Apreciação dos recursos dos arguidos FFFF e GGG (grupo de “... – Matosinhos”)
XIII) Recurso da arguida FFFF.
a) Nulidade do acórdão.
Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, na sua alínea c), que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Considera a recorrente que o tribunal de primeira instância não ponderou, como devia, a aplicação de uma pena de multa a título principal pelo crime de detenção de arma proibida, incorrendo, por isso, na nulidade apontada.
Mas não lhe assiste razão, resultando claramente do teor do acórdão que o tribunal de primeira instância ponderou a possibilidade de aplicação de tal pena não detentiva, tendo concluído pela sua inadequação.
Com efeito, a propósito desta questão escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (fls. 15.436 verso - segue transcrição): “Ainda antes de procedermos á analise e aplicação casuística das penas, há que prestar um esclarecimento que se prende com o facto de alguns arguidos estarem igualmente acusados da pratica de crimes puníveis com pena de multa e de prisão, designadamente pela prática de crimes de detenção e arma proibida e condução sem habilitação legal. Ora, em todas essas situações, os arguidos vão igualmente ser condenados em pena de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, não fazendo sentido aplicar pena de multa e prisão, antes fazendo mais sentido, face essencialmente às necessidades de prevenção especial, aplicar uma pena única de prisão a esses arguidos.”.
A fundamentação contida na decisão recorrida, embora parca, ainda se mostra suficiente para assegurar a exigência de apreciação da viabilidade de aplicação de pena não detentiva, tarefa que constitui um poder/dever do tribunal, no sentido de evitar, tanto quanto possível, a aplicação da pena de prisão.
Improcede, assim, o presente fundamento do recurso, não padecendo o acórdão recorrido da nulidade invocada.
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b) Dosimetria e suspensão da execução da pena de prisão – em particular, a questão da valoração dos antecedentes criminais da arguida e da confissão dos factos.
Discorda a recorrente da medida concreta das penas de prisão aplicadas – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 6 anos e em 9 meses, quanto aos crimes de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida, respetivamente -, reputando-as de desproporcionadas e excessivas.
Vejamos se lhe assiste razão.
O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta das penas aplicadas à recorrente com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição do acórdão recorrido):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º é média/elevada, atento o elevado número de vendas efetuado, o período de tempo em que desenvolveu tal atividade e o produto estupefaciente transacionado – cocaína, para além das drogas leves. Confessou parcialmente os factos.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com pouca intensidade, pois tem poucos antecedentes criminais – apenas 1 crime de ofensas à integridade praticado há mais de 10 anos atrás - e não tem hábitos aditivos.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.

Nesta conformidade e tendo em conta essencialmente o elevado número de vendas, entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar à arguida FFFF a pena de 6 anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo art.º 21.º, da lei da droga e a pena de 9 meses de prisão pela prática do crime de detenção de arma proibida.»
Começa a arguida por criticar a ponderação efetuada, pelo tribunal a quo, dos seus antecedentes criminais, referindo que deveria ter sido definitivamente cancelada a decisão condenatória a que faz referência, nos termos previstos no art.º 11.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio.
Efetivamente, resulta da matéria de facto provada que, por decisão transitada em julgado em 12/5/2017, proferida no processo comum coletivo n.º 748/11.4PHMTS, do Juízo Central Criminal de Vila do Conde, foi aplicada à arguida uma pena de multa, pela prática (em 5/5/2011) de um crime de ofensa à integridade física simples, pena esta que veio a ser substituída por uma pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, tendo sido declarada extinta pelo cumprimento.
Estabelece o art.º 11.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, o seguinte:
«1 - As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos:
[…]
b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza».
A jurisprudência tem considerado que a valoração de um certificado do registo criminal que certifique decisões que, nos termos legais, dele já não deveriam constar, implica uma verdadeira proibição de valoração de prova, estando vedado ao tribunal ter em conta tais decisões.[234]
No presente caso, e tanto quanto resulta da análise do certificado de registo criminal constante do processo, a aludida pena terá sido declarada extinta em 25/10/2017, pelo que resta-nos concluir que nada impedia o tribunal de primeira instância de levar em linha de conta aquela condenação sofrida pela arguida. Com efeito, no momento em que a decisão condenatória foi proferida nos presentes autos (25/7/2022), ainda não se tinha completado o prazo de cinco anos previsto no art.º 11.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio (cf. o art.º 279.º, alínea c) do Código Civil).
Analisemos, agora, a questão da “confissão” dos factos pela arguida que, no seu entender, não foi devidamente ponderada pelo tribunal.
Uma confissão, integral ou parcial, é um meio de prova que tem na sua origem as declarações de arguido, refletindo, acima de tudo, uma posição processual perante as imputações realizadas.
A confissão integral e sem reservas deve ser consignada em ata de julgamento atenta a sua relevância e os efeitos processuais daí decorrentes (cf. art.º 344.º do CPP) e, por tal razão, há também quem entenda que deve constar da matéria de facto provada.
A confissão parcial, pelo contrário, é, à partida, apenas mais um dos elementos de prova a ponderar para fixação da factualidade objeto do julgamento[235].
No presente caso, resulta do teor do acórdão recorrido que a arguida confessou parcialmente os factos por que se encontrava acusada/pronunciada, admitindo ter procedido à venda de haxixe e de erva, mas negando as vendas de cocaína que lhe foram imputadas (cf. fls. 15.384/15.385 dos autos).
Estando em causa uma confissão parcial dos factos e a prática de crime punível com pena superior a cinco anos de prisão, as declarações da arguida prestadas nos autos são apreciadas segundo o princípio da livre apreciação da prova – artigos 127.º e 344.º, n.ºs 3 e 4, ambos do CPP.
O valor probatório de uma confissão é variável, podendo oscilar entre um contributo muito relevante para a descoberta da verdade (tipicamente, naquelas situações em que a prova, para além da confissão, é nula ou reduzida, revelando-se esta, por esse motivo, decisiva para a demonstração dos factos) ou com pouco significado, dependendo das circunstâncias do caso concreto.
No presente caso, não há dúvida de que o contributo dado pela arguida para o apuramento dos factos e descoberta da verdade não foi decisivo, e nem sequer se afigura particularmente relevante, tendo em conta a abundância dos restantes elementos de prova à disposição do tribunal. Aliás, a arguida não confessou as vendas de cocaína que lhe foram imputadas, limitando-se a admitir a venda dos produtos estupefacientes menos nocivos.
Portanto, não só a confissão foi meramente parcial, com reduzido valor atenuativo, como também os restantes factos não admitidos pela arguida (incluindo as vendas de cocaína) acabaram por ser demonstrados através de outros meios de prova - o que infirma a consideração da recorrente de que confessou, na totalidade, os factos que vieram a ser considerados provados pelo tribunal.
Efetuadas estas considerações introdutórias, passemos à análise do caso concreto, por referência ao quantum das penas de prisão determinadas pelo tribunal a quo.
O crime de tráfico de estupefacientes matricial é punido com pena de 4 a 12 anos de prisão, correspondendo ao crime de detenção de arma proibida por que a recorrente foi condenada pena de prisão até 4 anos ou pena de multa até 480 dias (cf. os artigos 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/1 e 86.º, n.º 1, alínea d), do regime jurídico das armas e munições), tendo o tribunal de primeira instância aplicado à recorrente, respetivamente, as penas parcelares de 6 anos e de 9 meses de prisão.
A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites acima referidos, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.
A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[236]
Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).
A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [237].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [238], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pela recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Como é salientado na decisão recorrida, o grau de ilicitude inerente ao comportamento da arguida é já acentuado, considerando a quantidade e natureza dos produtos estupefacientes transacionados (designadamente, cocaína, substância com forte poder aditivo e danosidade para a saúde dos respetivos consumidores, como é sabido), o período de tempo durante o qual manteve tal atividade ilícita (pelo menos durante três anos) e o nível de organização que caraterizou a sua atividade (com recurso a “casas de recuo”, para guardar, preparar e vender os estupefacientes).
Também significativas revelam-se as necessidades de prevenção especial, apresentando a arguida antecedentes criminais (embora pela prática de crime de diversa natureza) e um quotidiano pouco estruturado, caraterizado pela ausência de hábitos regulares de trabalho e de consumo de estupefacientes.
Não vislumbramos, assim, qualquer excesso ou desproporção da medida concreta das penas de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
A premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade das normas violadas, decorrente da específica danosidade social dos tipos de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pela recorrente e pela comunidade em geral) justifica, assim, a aplicação das penas de prisão na medida determinada pelo tribunal.
Fixadas em medida inferior, tais penas seriam desajustadas ao grau de ilicitude do comportamento da recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
Aliás, a pena aplicada para o crime de detenção de armas foi já determinada num quantum próximo do limite mínimo da respetiva moldura abstrata, sendo de notar que só circunstâncias verdadeiramente excecionais, que no presente caso não se verificam, justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 [239].
Do mesmo modo, nenhuma censura merece a pena única de prisão, que o tribunal de primeira instância decidiu fixar em seis anos e três meses, numa moldura abstrata que oscila entre o mínimo de seis anos e o máximo de seis anos e nove meses (cf. o art.º 77.º, n.º 2 do Código Penal).
Com efeito, esta pena unitária adequa-se perfeitamente à ilicitude e às exigências de prevenção globalmente ponderadas, não ultrapassando o limite da sua culpa (elevada).
Na verdade, como já tivemos oportunidade de assinalar a propósito da análise do recurso do arguido GG (X), o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido.
Embora a lei não estabeleça nenhum critério rígido a seguir na determinação da medida concreta da pena única dentro da moldura do concurso, a prática jurisprudencial tende no sentido de, em casos que não fogem à normalidade, fazer acrescer à pena parcelar mais grave 1/3 das demais, oscilando para mais ou para menos consoante as específicas circunstâncias do caso e a personalidade do agente [240].
Trata-se, na verdade, de um critério orientador, não vinculativo, moldável às especificidades do caso concreto, mas que serve como auxiliar e merece ser ponderado, como é observado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 7/4/2015 [241].
Tal critério orientador merece amplo acolhimento na prática jurisprudencial e, como facilmente se constata, foi observado pelo tribunal de primeira instância.
A pena única de prisão aplicada à recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução ou a opção pelo cumprimento em regime de permanência na habitação (cf. os artigos 50.º e 43.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso.
Improcede, assim, na totalidade, o presente recurso.
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XIV) Recurso do arguido GGG.
a) Nulidade do acórdão.
Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, na sua alínea c), que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Considera o recorrente que o tribunal de primeira instância não ponderou, como devia, a aplicação de uma pena de multa a título principal pelos crimes de detenção de arma proibida e de condução sem habilitação legal, incorrendo, por isso, na nulidade apontada.
Contudo, e como já tivemos oportunidade de assinalar no decurso da análise do recurso antecedente, interposto pela coarguida FFFF, resulta claramente do teor do acórdão que o tribunal de primeira instância ponderou a possibilidade de aplicação de tal pena não detentiva, tendo concluído pela sua inadequação.
Com efeito, a propósito desta questão escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (fls. 15.436 verso - segue transcrição): “Ainda antes de procedermos á analise e aplicação casuística das penas, há que prestar um esclarecimento que se prende com o facto de alguns arguidos estarem igualmente acusados da pratica de crimes puníveis com pena de multa e de prisão, designadamente pela prática de crimes de detenção e arma proibida e condução sem habilitação legal. Ora, em todas essas situações, os arguidos vão igualmente ser condenados em pena de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, não fazendo sentido aplicar pena de multa e prisão, antes fazendo mais sentido, face essencialmente às necessidades de prevenção especial, aplicar uma pena única de prisão a esses arguidos.”.
A fundamentação contida na decisão recorrida, embora sucinta, ainda se mostra suficiente para assegurar a exigência de apreciação da viabilidade de aplicação de pena não detentiva, tarefa que constitui um poder/dever do tribunal, no sentido de evitar, tanto quanto possível, a aplicação da pena de prisão.
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Considera ainda o arguido que o acórdão recorrido padece de “manifesto vício de fundamentação” quanto á declaração de perda de bens, acrescentando que trabalhava à data dos factos, motivo pelo qual todos os bens apreendidos deverão ser-lhe restituídos em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.
Decorre do disposto no n.º 2, do art.º 374.º do CPP – que regula os requisitos da sentença – que ao relatório segue-se a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [242], “A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).”.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.[243]
Na formulação do acórdão deste TRP de 7/6/2017 [244], o exame crítico dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento “só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu.”.
No presente caso, resulta claramente da leitura da decisão recorrida que inexiste ausência ou, sequer, insuficiência da fundamentação, encontrando-se enunciados, especificadamente, os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal e, para além disso, as razões que levaram o tribunal a concluir que os bens (objetos e quantias monetárias) apreendidos tinham proveniência ilícita.
É certo que a fundamentação da convicção do tribunal quanto à proveniência ilícita e titularidade dos bens (incluindo quantias monetárias) apreendidos não é prolixa, mas, ainda assim, suficiente e perfeitamente adequada, permitindo compreender com clareza e precisão os motivos e a construção do percurso lógico da decisão (cf. páginas 15.309, 15.389 verso a 15.392 verso e 15.433 verso a 15.435 verso).
A discordância do recorrente quanto à forma como o tribunal valorou a prova – abundante, de resto, como se depreende da leitura da extensa fundamentação do acórdão recorrido – de modo nenhum se confunde com a patologia invocada que, claramente, não se verifica no presente caso e, por isso, em nada contende com a validade formal da decisão de que nos ocupamos.
Pretendendo o recorrente atacar as premissas em que se baseou o tribunal para declarar a perda a favor do Estado dos bens apreendidos, deveria ter impugnado a matéria de facto, o que manifestamente não fez – resultando, por isso, inútil a invocação, neste contexto, da pretensa violação do princípio “in dubio pro reo”, dado que tal princípio, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art.º 32.°, n.° 2, da CRP), vale só em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exato, como se observa no acórdão do STJ de 6/12/2006 [245].
Sempre se dirá, porém, que independentemente da consideração de o arguido se encontrar, ou não, a trabalhar à data dos factos, a verdade é que a generalidade dos bens apreendidos não foi encontrada na residência que mantinha com a arguida FFFF, como seria natural caso se tratassem de objetos pessoais, mas sim no interior de uma “casa de recuo” arrendada pelos arguidos, sita em .../Gondomar, e da residência da arguida CCC, locais onde tinham guardados produtos estupefacientes, diversos objetos (alguns dos quais relacionados com a preparação daqueles produtos) e, ainda, quantias monetárias (cf. os pontos 254 e 255 da matéria de facto provada).
Neste contexto, é evidente que se impunha a conclusão, a que chegou o tribunal a quo, de que tais objetos e quantias monetárias provinham da atividade de tráfico de estupefacientes ou com ela se relacionavam, por ser a única congruente com as regras da experiência comum.
Improcede, assim, na totalidade o presente fundamento do recurso, não se verificando a nulidade do acórdão recorrido por inexistência/insuficiência de fundamentação ou omissão de pronúncia.
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b) Atenuação especial da pena.
c) Dosimetria e suspensão da execução da pena de prisão.
Discorda o recorrente da medida concreta das penas de prisão aplicadas – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 5 anos e 9 meses, 9 meses e 3 meses, quanto aos crimes de tráfico de estupefacientes, de detenção de arma proibida e de condução sem habilitação legal, respetivamente -, reputando-as de desproporcionadas e excessivas.
Considera, ainda, que o tribunal deveria ter atenuado especialmente a pena em conformidade com o regime previsto nos artigos 72.º e 73.º do Código Penal, por serem reduzidas as necessidades de prevenção especial.
Vejamos se lhe assiste razão.
Nos termos do artigo 72º, n.º 1, do Código Penal, «O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.»
E dispõe tal artigo, no seu n.º 2, que:
«Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.»
O princípio que regula a aplicação deste instituto, como ensina Figueiredo Dias[246], é a diminuição acentuada, não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, consequentemente, das exigências de prevenção.
As circunstâncias previstas no n.º 2 não têm o efeito automático de desencadear o efeito atenuativo especial, mas apenas quando da sua presença se poder concluir que a «imagem global do facto», resultante da atuação de alguma ou de algumas das referidas circunstâncias, se apresente tão diminuída, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura abstrata cabida ao tipo de facto respetivo.
Deste modo, a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos «normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios[247].
Ora, vistos os factos provados e a fundamentação de facto da sentença, não vemos como concluir que estejamos perante um caso extraordinário.
Com efeito, a ilicitude do facto, como se entendeu na sentença recorrida, é elevada, tendo em conta as concretas condutas assumidas pelo arguido, a quantidade e o tipo de estupefacientes transacionados (sobretudo haxixe, mas também cocaína) e o nível organizativo do negócio de venda de estupefacientes prosseguido com a coarguida FFFF (com recurso à colaboração de terceiros e mediante a utilização de casas de recuo, para preparação, acondicionamento e venda da droga e, para além disso, para a guarda de dinheiro e de outros objetos).
É, assim, também acentuada a sua culpa. Aliás, diversamente do que sustenta o recorrente, resulta do acórdão recorrido que a sua participação não se afigurou secundária por comparação com a atuação da arguida FFFF, sua companheira, relativamente a quem não estava numa posição de menoridade ou de dependência.
A este propósito, o tribunal de primeira instância foi muito claro, referindo que «[…] há que referir que apesar de a arguida FFFF ter atribuído um papel secundário ao arguido DDDD – disse que ele fazia o que ela mandava – e da maioria das testemunhas referirem o nome da arguida como sendo a pessoa a quem compraram ou combinaram a compra, tal não significa que o arguido DDDD fosse um mero empregado daquela, antes resultando que o arguido DDDD tinha o completo domínio no processo do tráfico e que tinha poder decisório na aquisição e venda de estupefacientes como resulta das inúmeras escutas com os seus pais (aquisição estupefaciente) e com os toxicodependentes compradores, não se limitando a cumprir ordens de alguém que lhe era superior, antes estando ao mesmo nível da FFFF, embora se admita que esta tenha um papel mais ativo, afigurando-se-nos que tal se deve mais à personalidade dos membros do casal e não a uma efetiva supremacia de um em relação ao outro. No entanto, esse traço de personalidade faz com que a arguida FFFF seja mais ativa assumindo o papel de coordenação e organização da atividade, papel esse que tem sempre de ser assumido por alguém, não significando neste caso, e é isto que pretendemos esclarecer, que o organizador seja um líder e que os outros, neste caso o marido, estejam numa posição subalterna.»
Finalmente, se é certo que o arguido não tem antecedentes criminais e denota possuir hábitos de trabalho (embora de caráter irregular, como resulta do relatório social e da matéria de facto provada), para além de um comportamento ajustado no decurso da sua reclusão, tal não basta para desencadear o efeito atenuativo pretendido, pois nada de extraordinário revela, no sentido de fazer funcionar a atenuação especial, com a consequente diminuição dos limites máximos e mínimos das molduras abstratas previstas pelo legislador para os crimes em causa.
Concluindo, não há fundamento para fazer funcionar o instituto da atenuação especial da pena, como pretende o recorrente, já que inexistem circunstâncias anteriores ou posteriores aos crimes praticados, ou contemporâneas deles, que diminuam (muito menos de forma acentuada) a ilicitude dos factos, a sua culpa (ambas elevadas) ou a necessidade da pena.
Analisemos, agora, a dosimetria das penas de prisão aplicadas ao recorrente e a eventual possibilidade de suspensão da execução da pena unitária.
O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta das penas aplicadas ao recorrente nos seguintes termos (segue transcrição do acórdão recorrido):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º é média/elevada, atento o elevado número de vendas efetuado, o período de tempo em que desenvolveu tal atividade e o produto estupefaciente transacionado – cocaína, para além das drogas leves. Quanto ao crime de detenção de arma e à condução sem carta aplica-se aqui o que já referimos anteriormente a propósito dos outros arguidos.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com pouca intensidade atenta a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade, o mesmo se referindo à perigosidade das armas e à sinistralidade rodoviária.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido GGG a pena de 5 anos e 9 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefaciente (menor que a sua companheira em virtude da maior participação daquela no negócio, embora, como referimos na fundamentação da matéria de facto, sem menosprezar o papel deste arguido), a pena de 9 meses de prisão pelo crime de detenção de arma proibida e a pena de 3 meses de prisão pelo crime de condução sem habilitação legal.»
O crime de tráfico de estupefacientes matricial é punido com pena de 4 a 12 anos de prisão, correspondendo ao crime de detenção de arma proibida por que o recorrente foi condenado pena de prisão até 4 anos ou pena de multa até 480 dias (cf. os artigos 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/1 e 86.º, n.º 1, alínea d), do regime jurídico das armas e munições), e ao crime de condução sem habilitação legal pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias (cf. o art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3/1). No âmbito destas molduras abstratas, o tribunal de primeira instância aplicou ao recorrente, respetivamente, as penas parcelares de 6 anos, de 9 meses e de 3 meses de prisão.
A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.
A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[248]
Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).
A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [249].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [250], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Como é salientado na decisão recorrida, o grau de ilicitude inerente ao comportamento do arguido é já acentuado, considerando a quantidade e natureza dos produtos estupefacientes transacionados (sobretudo haxixe, mas também cocaína, substância com forte poder aditivo e danosidade para a saúde dos respetivos consumidores, como é sabido), o período de tempo durante o qual manteve tal atividade ilícita (pelo menos durante três anos) e o nível de organização que caraterizou a sua atividade (com recurso a “casas de recuo”, para guardar, preparar e vender os estupefacientes).
As exigências de prevenção geral associadas, especialmente, ao crime de tráfico de estupefacientes são muito elevadas, configurando este fenómeno atualmente um verdadeiro flagelo social. Já as necessidades de prevenção especial não se afiguram insignificantes, pois se é certo que o recorrente é primário, não deixa de evidenciar uma personalidade desconforme com a pressuposta pela ordem jurídica, e francamente carecida de socialização, revelada pela circunstância de ter mantido aquela atividade ilícita com caráter de regularidade e por um alargado período de tempo (no mínimo, por três anos).
Não vislumbramos, assim, qualquer excesso ou desproporção da medida concreta das penas de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção.
A premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade das normas violadas, decorrente da específica danosidade social dos tipos de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) justifica, assim, a aplicação das penas de prisão na medida determinada pelo tribunal.
Fixadas em medida inferior, tais penas seriam desajustadas ao grau de ilicitude do comportamento do recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
Aliás, as penas aplicadas aos crimes de detenção de armas e de condução sem habilitação legal foram determinadas num quantum próximo dos limites mínimos das respetivas molduras abstratas, sendo de notar que só circunstâncias verdadeiramente excecionais, que no presente caso não se verificam, justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 [251].
Do mesmo modo, nenhuma censura merece a pena única de prisão, que o tribunal de primeira instância decidiu fixar em seis anos, numa moldura abstrata que oscila entre o mínimo de cinco anos e nove meses e o máximo de seis anos e nove meses (cf. o art.º 77.º, n.º 2 do Código Penal).
Com efeito, esta pena unitária adequa-se perfeitamente à ilicitude e às exigências de prevenção globalmente ponderadas, não ultrapassando o limite da sua culpa (elevada).
Na verdade, como já tivemos oportunidade de assinalar neste acórdão, o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido.
Embora a lei não estabeleça nenhum critério rígido a seguir na determinação da medida concreta da pena única dentro da moldura do concurso, a prática jurisprudencial tende no sentido de, em casos que não fogem à normalidade, fazer acrescer à pena parcelar mais grave 1/3 das demais, oscilando para mais ou para menos consoante as específicas circunstâncias do caso e a personalidade do agente [252].
Trata-se, na verdade, de um critério orientador, não vinculativo, moldável às especificidades do caso concreto, mas que serve como auxiliar e merece ser ponderado, como é observado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 7/4/2015 [253].
Tal critério orientador merece amplo acolhimento na prática jurisprudencial e, como facilmente se constata, foi observado pelo tribunal de primeira instância.
A pena única de prisão aplicada ao recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução ou a opção pelo cumprimento em regime de permanência na habitação (cf. os artigos 50.º e 43.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso.
Improcede, assim, na totalidade, o presente recurso.
*
Apreciação dos recursos das arguidas GGGG e HHHH.

XV) Recurso da arguida GGGG.

a) Vícios decisórios e impugnação da matéria de facto.
Defende a recorrente que a matéria de facto constante dos pontos 275) e 333), no que concerne à imputação de uma atuação em coautoria com a arguida HHHH, foi incorretamente julgada, devendo, nessa parte, transitar para o elenco da factualidade não provada. Acrescenta a recorrente que o tribunal incorreu em “erro notório na apreciação da prova” no que se refere a tal matéria e, ainda, no que diz respeito às vendas de cocaína que lhe foram imputadas, inexistindo qualquer prova suscetível de demonstrar que se dedicava à venda de cocaína a terceiros com caráter de regularidade.
Vejamos se lhe assiste razão.
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
A impugnação da matéria de facto baseada no chamado recurso de «revista ampliada» reconduz-se às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [254].
O “erro notório na apreciação da prova” refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[255]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [256].
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Relativamente à modalidade de impugnação (ampla) a que alude o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão. [257]
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Além disso, não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas imponham a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Como bem se expende no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012[258], “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. [259].
Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que sem sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [260]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [261].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [262] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Efetuada esta exposição introdutória analisemos, em concreto, as razões de discordância explanadas pela recorrente em relação à decisão recorrida.
O ponto 275) da matéria de facto provada tem o seguinte teor: «No período compreendido entre pelo menos 2018 e a detenção dos arguidos, as arguidas GGGG e HHHH, de comum acordo e em conjugação de esforços, dedicam-se à aquisição de haxixe, erva (canábis) e cocaína a pessoas e locais não concretamente apurados, e em diversas ocasiões fizeram-no ao arguido BBBB e ao arguido IIII com a colaboração de JJJJ, numa média, a este último, de pelo menos meia placa por mês, e à sua posterior venda a consumidores que as procuram nas suas próprias residências, sitas na Rua ..., n.º ... e Rua ..., n.º ..., 2.º Direito, em ..., Matosinhos, respetivamente.»
O ponto 333) tem a seguinte redação: «As arguidas GGGG e HHHH agiram, livre, voluntária e conscientemente, em comunhão de esforços e intentos, em execução de plano previamente delineado entre eles conforme acima descrito, sabendo que não lhes era lícito angariar, receber, comprar, deter, possuir, pôr à venda, vender, ceder, adquirir, transportar ou guardar, distribuir ou ceder, nas circunstâncias supra descritas, os produtos estupefacientes acima descritos, substâncias cuja natureza estupefaciente e características psicotrópicas bem conheciam e destinavam à venda ou cedência a terceiros e, não obstante, quiseram fazê-lo.»
A propósito da apreciação da prova tendente à demonstração dos crimes de tráfico de estupefacientes, cuja execução foi imputada ás arguidas GGGG e HHHH, atuando em coautoria, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«...
Escutas:
- ALVO:105647040 Sessões 05299, 05302, 05324, 05360, 05362, 05363, 05365, 05366, 05368, 05421), Pag.1129 - Vol.5
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- ALVO:104014040 Sessões (04556,04557,04560), Pag.835 - Vol.4
Facto n.º 1796 ao 1800 da acusação:
- ALVO:104014040 Sessões (04556,04557,04560), Pag.835 - Vol.4
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- ALVO:105647040 Sessões 05299, 05302, 05324, 05360, 05362, 05363, 05365, 05366, 05368, 05421), Pag.1129 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (05421), Pag.1131 - Vol.5.
- ALVO:105647040 Sessões (03903)
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- ALVO:105647040 Sessões (16205,16214), Pag.1612 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (18426), Pag.1780 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (19987,19988,19995,20032), Pag.1908 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (05324,05355), Pag.1129 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (15445), Pag.1611 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (16554,16555), Pag.1667 - Vol.6
- RDE/Vigilância (RDE) Relatório de vigilância de 10-10-2019,
- auto de apreensão, Teste Rápido de despistagem de estupefacientes nº 16778/2019, Pag.1863, 1875 e 1877 - Vol.7;
- ALVO:105647040 Sessões (19327,19334,19335), Pag.1907 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (26114), Pag.2553 - Vol.9.
- RDE/Vigilância (RDE) Relatório de vigilância de 10-10-2019, auto de apreensão, Teste Rápido de despistagem de estupefacientes nº 16778/2019, Pag.1863, 1875 e 1877 - Vol.7;
- Interceções telefónicas ALVO:105647040 Sessões (19327,19334,19335), Pag.1907 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (05203), Pag.1129 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (05324, 08113, 08114, 08117, 08120, 08122, 08123, 08125, 08126, 08127, 08129, 08132, 08133, 08135, 08136, 08138, 08139, 08141), Pag.1240 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (09892), Pag.1317 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (11973), Pag.1374 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (12400), Pag.1433 - Vol.5
-ALVO:105647040 Sessões (13025,13026,13052,13057,13096,13102), Pag.1433 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (13010,13024), Pag.1433 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (13390), Pag.1435 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (13492,13494,13496), Pag.1436 - Vol.5
- ALVO:105647040 Sessões (15123), Pag.1611 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (15126), Pag.1611 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (15736), Pag.1611 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (15948,15951), Pag.1611 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (15994,15996), Pag.1612 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (17063,17070,17072,17077), Pag.1668 - Vol.6
- ALVO:105647040 Sessões (17810,17825), Pag.1779 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (18915,18916,18918), Pag.1780 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (19558), Pag.1908 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (18524), Pag.1780 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (19816,19850,19851), Pag.1908 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (20641,20642,20795), Pag.2005 - Vol.7
- ALVO:105647040 Sessões (23417), Pag.2344 - Vol.8
- ALVO:105647040 Sessões (23847), Pag.2344 - Vol.8
- ALVO:105647040 Sessões (27820, 27821, 27823, 27831, 27832, 27867, 27869, 27884, 27885, 27890), Pag.2967 - Vol.10
-ALVO:105647040 Sessões (27995, 27996, 27998, 28002, 28003, 28005), Pag.2969 - Vol.10
- ALVO:105647040 Sessões (28132), Pag.2970 - Vol.10
- ALVO:105647040 Sessões (28766), Pag.3048 - Vol.10
- ALVO:105647040 Sessões (29739, 29740, 29742, 29744), Pag.3142 - Vol.10
- ALVO:105647040 Sessões (30321, 30322, 30326, 30327, 30329), Pag.3257 - Vol.11
- ALVO:105647040 Sessões (32832,32906)
- ALVO:105647040 Sessões (32940, 32941, 32943, 32945, 32946, 32947)
- Relatório de Análise do objeto n.º 31, constante de fls. 301 a 304 do ANEXO B.
- Expediente de fls. 5111 e 5111 verso do 18.º volume.
- Relatório de Análise do objeto n.º 83, contante de fls. 426 a 450 do ANEXO B.
Expediente de fls. 5127 e 5127 verso do 18. Volume.
PROVA DOCUMENTAL:
RDE/Vigilância de 2019-10-10, de fls.1863 - Vol.7
Apreensões de 2019-10-10, de fls.1869 - Vol.7
Exames/Perícias de 2019-10-10, de fls.1870 - Vol.7
Teste Rápido de despistagem de estupefacientes nº 16779/2019, tendo resultado positivo de 1,00 gramas de cocaína.
Apreensões de 2019-10-10, de fls.1875 - Vol.7
Exames/Perícias de 2019-10-10, de fls.1877 - Vol.7
Teste Rápido de despistagem de estupefacientes nº 16778/2019, tendo resultado positivo de 46.74 gramas de Haxixe.
Documento de 2021-05-20 - CERTIDÃO do processo n.º 25/19.2 PFGDM, com Auto de Notícia, Auto de Apreensão, Relatório do Exame Pericial 201904531-NTX em fls.12308 a 12319 do 43º Volume
Auto de Busca e Apreensão elaborado em Rua ... – ... – Matosinhos, de 2020-07-09 Pag.5111 - Vol.18
Imagens 2020-07-09 Pag.5120 - Vol.18 - Reportagem Fotográfica aos artigos apreendidos durante a busca domiciliária.
Auto de Busca e Apreensão elaborado em Rua ..., ..., 2.º dto – ... – Matosinhos, de 2020-07-09 Pag.5127 - Vol.18
Documento 2020-07-09 Pag.5160 - Vol.18 - Folha de Suporte com envelope em papel com a inscrição ....
Documento 2020-07-10 Pag.7045 - Vol.24 - Ofício em Fls. 7045 do 24º Volume
Imagens 2020-07-09 Pag.5128 - Vol.18 - Reportagem Fotográfica aos artigos apreendidos durante a busca domiciliária.
Imagens 2020-10-14 Pag.8997 - Vol.30 - Reportagem Fotográfica ao caderno com inscrições apreendido no âmbito das Buscas Domiciliárias á arguida HHHH.
PROVA PERICIAL:
Exames/Perícias 2020-07-09 Pag.5112 - Vol.18
Teste rápido n.º 17988/2020, dando como resultado POSITIVO estupefaciente Liamba, com o peso de 45.04 gramas
Exames/Perícias 2020-08-07 Pag.7395 - Vol.25
Exame Toxicológico do LPC ao Estupefaciente Apreendido – relatório do exame Nº 202002787 –NTX
Exames/Perícias 2021-03-24 Pag.301 - Vol.1 - ANEXO B
ANÁLISE AOS RELATÓRIOS PERICIAIS)
Resumo: Relatório de Extração relativo ao aparelho telefónico apreendido, encontra-se em suporte digital num disco externo identificado com etiqueta onde consta Evidência nº “2PERICIAS” e Proc. 2/18.0PFGDM, identificado como Artigo 31.0.
-Teste rápido n.º 17986/2020, dando como resultado POSITIVO estupefaciente Cocaína, com o peso de 10.75 gramas
- Teste rápido n.º 17987/2020, dando como resultado POSITIVO estupefaciente Cocaína, com o peso de 6.53 gramas
Exame Toxicológico do LPC ao Estupefaciente Apreendido – relatório do exame Nº 202002851 –NTX Exames/Perícias 2020-07-10 Pag.7046 - Vol.24 (2/18.0PFGDM) Exame Pericial da Arma Nº535/2020 em Fls. 7046 e 7047.
Exames/Perícias 2020-09-14 Pag.8360 - Vol.28
Relatório Exame Pericial aos objetos com resíduos de estupefaciente Nº2022002780-NTX (colher, bolsa e balança).
Exames/Perícias 2021-03-24 Pag.426 - Vol.1 ANEXO B
Declarações de arguidos:
- GGGG afirmou que não tinha qualquer grupo de venda de estupefacientes, admitindo, porém, que a partir de 2018 voltou a consumir estupefacientes (entrou em depressão) e que como ficou desempregada começou a vender estupefacientes aos seus amigos de consumo. Disse que a irmã lhe dava boleia quando fazia as vendas, não tendo qualquer controlo sobre esse processo. A sua irmã trabalhava, nada tendo a ver com o negócio das vendas, sendo que a mesma consumia cocaína, pelo que o estupefaciente que foi apreendido em sua casa (da irmã) se destinava ao seu consumo. Por fim, afirmou ter sido companheira do arguido LL, não querendo comentar o seu relacionamento com os arguidos, nem querendo falar sobre os seus fornecedores.
Prova testemunhal
As testemunhas EEE e YY confirmaram o teor das escutas e vigilâncias que efetuaram a estes arguidos, confirmando que as conclusões que chegaram assentaram nas referidas escutas e vigilâncias.
- KKKK, agente da PSP, confirmou o teor do auto de busca de fls. 5127 e sgs, vol. 18.
- LLLL, agente da PSP, confirmou o teor do auto de busca de fls. 5127 e sgs, vol. 18.
- MMMM, agente da PSP, confirmou o teor do auto de busca de fls. 5127 e sgs, vol. 18
- NNNN, agente da PSP, confirmou o teor do auto de busca de fls. 5111, em que era visada GGGG.
- OOOO, agente da PSP, confirmou o teor do auto de busca de fls. 5111, em que era visada GGGG.
- JJ, agente da PSP, confirmou o teor do auto de busca de fls. 5111, em que era visada GGGG.
- PPPP, afirmou conhecer as arguidas HHHH e GGGG, por ter trabalhado num call-center com a arguida GGGG. Confessou ter adquirido por 1 ou 2 vezes haxixe à GGGG negando que alguma vez lhe tivesse adquirido cocaína e que tivesse adquirido algum estupefaciente à arguida HHHH, embora admitindo que já chegou a consumir com ela. Questionado sobre o episódio em que foi abordado por polícias e tinha cocaína na sua posse, a testemunha confirmou-o negando porém que o tivesse adquirido à arguida GGGG.
Confrontado com o teor das sessões 15445, 05324 e 05355, o arguido negou que estivesse a falar de cocaína, admitindo que estava a falar de erva.
-SS afirmou ser amigo da anterior testemunha e que no dia em questão (10/10/2019) tinha ido com o PPPP comprar haxixe de uber a ..., tendo o PPPP adquirido para ele ½ placa por 100€. Pouco depois foi intercetado na posse dessa ½ placa.
- QQQQ confessou ter conhecido a arguida GGGG por ele ter trabalhado num call-center, confessando ter-lhe adquirido estupefaciente - haxixe. Referiu igualmente os seus números de telemóvel, esclarecendo que todas as conversas que mantinha com a GGGG se destinavam à aquisição de haxixe. Mais disse que está em tratamento pela dependência das drogas duras, referindo que como comprava grandes quantidades de haxixe tinha uma balança em casa para confirmar a quantidade adquirida. Por fim admitiu que a GGGG também era consumidora, negando que alguma vez tivesse adquirido á sua irmã HHHH.
- RRRR afirmou conhecer as arguidas HHHH e GGGG “da noite”. Confirmou o seu número de telemóvel, negando consumir estupefacientes, mas sabendo que o seu irmão DD consumia haxixe e que chegou a comprar à arguida GGGG. Confrontada com o teor da sessão 05360 e sgs. do alvo 105647040 a testemunha confirmou o assunto dessa conversa, referindo que estavam a falar de estupefacientes para o seu irmão.
- SSSS afirmou conhecer as arguidas HHHH e GGGG confirmando o seu número de telemóvel. Reconheceu ser consumidora de haxixe e de ter adquirido esse produto à arguida GGGG, comprando usualmente uma barra por 10€. Disse igualmente que as vezes ia com uma amiga e compravam ¼ de placa. Mais referiu que as conversas que tinha com a GGGG por telemóvel era para combinarem a compra de estupefaciente
- TTTT afirmou ser a amiga da testemunha anterior, confirmando o seu número de telemóvel e as compras que fazia com a CCC. Esclareceu ainda que a compra era feita de forma muito rápida em ..., parando o carro e fazendo a troca em segundos.
- UUUU confirmou ser consumidor de haxixe, afirmando não se recordar do numero de telemóvel que usava na altura. Mais esclareceu que adquiria haxixe á arguida GGGG e que era a sua irmã quem a contactava telefonicamente para combinar as compras. Finalmente esclareceu que quando a GGGG lhe disse que estava on queria dizer que tinha estupefaciente.
Analisando a prova produzida vamo-nos apenas centrar na atividade da arguida HHHH e na venda de cocaína por parte das 2 arguidas, pois que no que concerne às vendas da arguida GGGG, a mesma confessou-as, embora a prova também fosse abundante.
Já relativamente à arguida HHHH, a sua irmã, a arguida GGGG tentou ilibá-la, retirando-a a da atividade, afirmando que a mesma só conduzia o carro quando esta procedia a entregas, de nada sabendo. Esta preocupação também foi patente em algumas testemunhas, cujo depoimento visava atribuir culpas à GGGG e retirar a HHHH desta atividade. Porém, a realidade plasmada nos autos, dá-nos uma perceção totalmente diferente do que se passou.
Assim e desde logo a apreensão efetuada em casa da arguida HHHH é elemento que não se pode deixar de tomar em consideração. Também as conversas que as mesmas tiveram via whatsapp com terceiros são elementos muito importantes para a formação da nossa convicção. Acresce que a arguida GGGG admitiu que a HHHH a acompanhava muitas vezes nas vendas, transportando-a de carro já que não tinha carta, o que torna muito improvável que a HHHH não estivesse a par da atividade desenvolvida pela GGGG e consequentemente que não tivesse colaboração decisiva, pelo menos a transportá-la. Na verdade, não nos acreditamos que a HHHH levasse a sua irmã a vários locais e não perguntasse ou suspeitasse o que iam lá fazer. Se a isso ainda somarmos as conversas que a arguida GGGG e HHHH mantiveram, então a conclusão a retirar só pode ser a coautoria no negócio da venda, estando as 2 arguidas em perfeita sintonia.
Na verdade, as conversas de 28/08/2019 e 31/08/2019 (fls. 1611, vol. 6) em que a GGGG identifica à sua irmã alguns dos seus clientes e explica a forma de trabalhar, bem como a conversa e a posterior entrega de estupefacientes por parte da arguida HHHH em 10/08/2019 (fls. 1435 e 1436) ou o pedido de estupefacientes efetuado pela GGGG á HHHH em 13/07/2019 (fls. 1317), bem como a conversa que as mesmas mantiveram sobre um fornecedor de estupefaciente (fls. 1129), ou a conversa de 07/05/2019 (fls. 7 anexo 18) motivada pela facto do LL não lhe atender o telefone e em que a arguida HHHH assume a possibilidade deste “as chibar” e de elas não terem forma de justificar a vida que têm com o rendimento mínimo, ou ainda a conversa com o gaiola de 14/10/2019 – fls. 1908 e também a venda de 04/12/2019 são elementos mais que suficientes para formarmos a nossa convicção, não havendo qualquer dúvida da total colaboração e conjugação de esforços entre as 2 arguidas no desenvolvimento desta atividade, embora se admita uma certa predominância da arguida GGGG, até pelo facto de estar desempregada ao contrário da arguida HHHH.
Quanto à venda de cocaína e para além da apreensão efetuada na casa da arguida HHHH (além da cocaína propriamente dita temos balança de precisão e plásticos já recortados para acondicionar estupefaciente) temos a vigilância de 10/10/2019 e consequente detenção e apreensão de cocaína à testemunha PPPP – vide fls. 1863 e sgs.. A este propósito a testemunha PPPP negou que tivesse adquirido tal produto à arguida GGGG e que quando falava com a mesma e se referiu a ben-u-ron estava a falar de haxixe. Ora, não acreditamos na versão da testemunha. Assim e desde logo, foi aprendida cocaína na casa da arguida HHHH o que aponta para a atividade de venda desse produto. Acrescem variadíssimas conversas por whatsapp entre a arguida HHHH e os perfis VVVV e ZZZ onde se fala de cocaína. Por outro lado e até pela similaridade da cor, bem-u-ron é código para cocaína e não para haxixe, tendo a testemunha PPPP usado tal código em outras ocasiões. Por fim, não faz sentido a versão da testemunha PPPP de que se deslocou a casa da GGGG no dia 10/10/2019 já com a cocaína no bolso, pois se assim não fazia sentido a sua deslocação àquela casa, não nos acreditando que apenas tenha lá ido para adquirir estupefaciente para um amigo e que não tenha comprado algo para si também, tanto mais que era consumidor de cocaína. A somar a isto ainda temos o pedido de branca feita por uma consumidora à arguida GGGG (fls. 2344), em que esta reencaminha a consumidora para a sua irmã HHHH, pelo que a conclusão a retirar é muito simples e não deixa qualquer dúvida sobre a atividade de venda das arguidas também deste tipo de droga.
Por fim, a questão da casa de recuo.
A esse propósito temos apenas uma escuta de 11/12/2019, constante a fls. 2344, em que a GGGG diz á WWWW que precisava daquilo que lhe tinha dado, ao que esta pede uns minutos para ir buscar e ainda lhe pergunta se não precisa de mais nada. Daí parece resultar uma certa relação de supremacia da GGGG sobre a tal WWWW que lhe guarda algo de importante e que lhe entrega o que guarda sempre que a GGGG necessita, sendo que no quadro fático da atividade desenvolvida pela GGGG a conclusão lógica a retirar é a de que esse algo será estupefaciente. Porém, essa interpretação a dar ao telefonema é apenas uma entre muitas, não tendo sido acompanhada por qualquer outro elemento probatório – buscas, depoimento ou outras escutas, nem sequer se tendo identificada a alegada WWWW – pelo que e sem outros elementos a confirmar esta versão não a podemos adotar sem mais.
Quanto aos fornecedores, o arguido BBBB confessou as vendas à arguida GGGG afirmando desconhecer o destino que a mesma dava ao produto que lhe vendia, o mesmo se passando com o arguido IIII (interrogatório de fls. 12486). Além disso as escutas de fls. 1129 e 1131 são elucidativas, sendo que também tivemos em conta aquilo que referimos a propósito da atividade venda do arguido IIII.
Já no que concerne à eventual aquisição destas arguidas ao arguido LL, a prova produzida não nos permitiu chegar a esta conclusão, pois que apesar da arguida GGGG ter mantido conversas com outros arguidos a propósito do LL, nomeadamente com a sua irmã HHHH e com o arguido IIII, certo é que a conversas apenas se centram sobre o LL atender ou não o telefone e de “as chibar”- conversa com a HHHH- bem como aquilo que aconteceu ao LL – conversa com o IIII – nada havendo em concreto sobre esta especifica questão. Logo e á falta de melhor prova, também não demos tal facto como assente.»

Analisada a decisão recorrida não descortinamos qualquer erro na apreciação da prova (muito menos notório), sendo certo que o vício em causa não se confunde com a diversa perspetiva do recorrente em relação á apreciação da prova efetuada pelo tribunal. Com efeito, de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Do mesmo modo, a prova indicada pela recorrente (fundamentalmente, as suas próprias declarações) de modo nenhum impõe decisão diversa da recorrida.
Na verdade, o tribunal explicita, de forma cristalina, por que motivo não atribuiu credibilidade às declarações prestadas na audiência de julgamento pela recorrente, existindo inúmeros elementos de prova suscetíveis de contraditá-las e demonstrativos de que as arguidas GGGG e HHHH atuavam de forma concertada, em conjugação de esforços e de intentos.
É certo que estas arguidas até podiam manter os seus próprios “negócios” de venda de estupefacientes, de forma independente, como salienta a recorrente, mas o conjunto da prova analisada indicia, de forma suficientemente segura, que existia colaboração entre elas, para além de um simples auxílio, típico da figura da cumplicidade.
Do mesmo modo, diversos elementos de prova indicam, para além da dúvida razoável [263], que ambas procediam à venda de diversas substâncias estupefacientes, incluindo cocaína.
As conversas com consumidores, com referência a “branca” e a “ben-u-ron” – claramente, códigos linguísticos para designar cocaína -, aludidas na decisão recorrida, conjugadas com a circunstância de ter sido apreendida cocaína na residência da arguida HHHH, em conjunto com uma balança de precisão e de plásticos adequados para acondicionar este tipo de estupefaciente, e de ter sido encontrado este produto na posse do consumidor/testemunha PPPP, logo após uma deslocação à casa da arguida GGGG [264], configuram elementos bastantes para alicerçar a convicção do tribunal para além da dúvida razoável.
Defende, ainda, a recorrente que, tendo ficado apenas demonstrados fornecimentos de estupefaciente a partir do ano de 2019, pelos arguidos BBBB e IIII (pontos 54, 223, 276 e 277), deve ter-se como início de atividade o ano de 2019, reduzindo-se, consequentemente, o período temporal durante o qual decorreu a sua atividade de tráfico de estupefacientes.
Mas, mais uma vez, não assiste razão à recorrente, resultando claramente da matéria de facto provada que a sua atividade de tráfico de estupefacientes decorreu, pelo menos, desde o ano de 2018, altura em que forneceu estupefaciente, designadamente, às testemunhas QQQQ (cf. ponto 279, a) e PPPP (cf. o ponto 280). Não se afigura decisivo saber se este estupefaciente foi-lhe previamente fornecido pelos arguidos BBBB, até porque a arguida poderia ter outros fornecedores.
Por este motivo, a referência ao ano de 2018, constante do ponto 275), como tendo sido aquele em que a arguida GGGG iniciou a sua atividade de tráfico de estupefacientes, deverá manter-se, já que se encontra concretizada por referência às vendas efetuadas ás referidas testemunhas, descritas nos mencionados pontos 279), alínea a) e 280).
É certo que o tribunal não delimita o exato momento em que essa atividade de tráfico de estupefacientes teve início, referindo-se unicamente ao “ano de 2018”, considerando a recorrente que tal “facto genérico” inviabiliza um pleno e efetivo contraditório.
Contudo, e como já tivemos de salientar neste acórdão (III, b) – recurso do arguido FF), a própria lei admite a possibilidade de situações em que a definição temporal da ocorrência dos factos não seja totalmente precisa, sem afetação da validade do despacho de acusação.
Na verdade, a norma constante do art.º 283.º, nº 3, alínea b) do CPP, traduz um juízo de suficiência (para a imputação jurídica e para o exercício do contraditório), já que impõe, quanto aos factos imputados em acusação, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética (…) incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática”.
Por outro lado, quando a imputação se concretiza numa sucessão repetida de atos durante certo período de tempo (que pode ser de vários anos), o processo de identificação do facto pela defesa encontra-se facilitado, dado que é essa atividade plural que está em questão, restando apurar se a verificação dos atos ocorreu à razão de “x” número de vezes por ano, ou “y” número de vezes por mês. A repetição e a frequência das condutas e suas réplicas integram a ontologia do facto e enriquecem o processo de identificação do mesmo.
Diversamente, quando se trata de um só acontecimento ou ato delitual imputado sem data precisa, a individualização e a sua singularidade ôntica, exige maior esforço de concretização. Aqui a necessidade de singularização é maior, pois a irrepetibilidade do episódio é total.
A atividade delitual nos delitos de tráfico de estupefacientes, em situações de trato sucessivo, comunga dos mesmos princípios agora analisados, onde a singularidade dos factos apurados reside na reiteração e pluralidade apuradas, bastando, para a sua identificação, que os referidos comportamentos hajam sido suficientemente descritos na sua ontologia e com a localização no referido período temporal, como é observado no acórdão do TRP de 10/3/2022 (consultável em www.dgsi.pt).
Portanto, satisfeitos os critérios da singularidade do facto, que permitem a sua identificação pela defesa, obviamente que não ocorre a violação do art.º 32º, nº 1, da C.R.P. e art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Deste modo, e em conclusão, se concordamos com a recorrente quando assinala a circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes não se poder fundar em descrições factuais vagas e genéricas, sem o mínimo de concretização espácio-temporal,[265] resulta claramente da leitura da decisão que essa exigência foi observada no acórdão recorrido. Na verdade, o tribunal a quo descreve, na medida do possível, as circunstâncias de tempo e de lugar em que os comportamentos da arguida/recorrente ocorreram, mostrando-se o ponto 275) complementado pelo teor dos pontos 279), alínea a) e 280), também da matéria de facto provada.
Deste modo, consideramos que a descrição factual efetuada pelo tribunal a quo contém precisão suficiente para garantir o exercício pela arguida/recorrente do direito de defesa e do contraditório (ínsito naquele), assegurando, ainda, a possibilidade da sua relevância jurídico-penal, nenhuma razão existindo para que se considerem como “não escritos” os factos constantes do ponto 275) da factualidade provada, relacionados com o início de atividade de tráfico de estupefacientes.
Em síntese, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio da livre apreciação da prova e, ainda, pelo princípio in dubio pro reo [266] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [267], inexistindo, portanto, erro notório na apreciação da prova.[268]
Como se observa no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 [269], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto […]”.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto no que tange à recorrente GGGG.
*
b) Convolação para o crime de tráfico de menor gravidade.
Discorda a recorrente da subsunção, efetuada pelo tribunal de primeira instância, do seu comportamento no âmbito do tipo matricial de tráfico de estupefacientes, argumentando que deverá ser considerado de “menor gravidade” e, por isso, enquadrado no âmbito do tipo de ilícito previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
A propósito do enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida GGGG e, bem assim, da arguida HHHH, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte: «Já as arguidas GGGG e HHHH atuaram em coautoria material na atividade de compra e venda de estupefacientes, fazendo-o durante pelo menos 2 anos, em total sintonia e colaboração, vendendo cocaína, haxixe e liamba. Logo e perante estas drogas e o período de tempo em causa a sua atividade delituosa já terá que ser integrada na previsão do art.º 21.º, da lei da droga, não havendo qualquer diminuição da ilicitude que justifique a subsunção ao art.º 25.º.»
Não vemos, de facto, qualquer motivo para divergir do entendimento do tribunal de primeira instância.
Como já tivemos oportunidade de salientar neste acórdão, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [270]).
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”.[271].
É manifesto, porém, que no presente caso não estamos perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, configurando-se, antes, uma ilicitude global de grau médio, equivalente à consideração de um “caso normal” de tráfico de estupefacientes.
Na verdade, a arguida prosseguiu a sua atividade delituosa de forma reiterada e permanente, durante um período de tempo significativo, transacionando, ao que tudo indica, sobretudo haxixe e canábis, mas também cocaína (estupefaciente com forte poder aditivo e nocividade para a saúde dos respetivos consumidores, como é sabido), fazendo desta atividade de tráfico de estupefacientes “modo de vida”, como resulta da factualidade apurada (cf. o ponto 272).
Protegendo o crime de tráfico de estupefacientes, de forma imediata, a saúde pública, não podemos deixar de reconhecer a existência de uma óbvia relação de proporcionalidade direta entre o volume de droga traficado e suas caraterísticas e a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido [272].
Deste modo, a quantidade e, sobretudo, a natureza dos produtos estupefacientes em causa (particularmente, cocaína, droga de elevada toxicidade) sempre impediria a integração do comportamento em causa no tipo privilegiado previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 23/1.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, inexistindo motivos válidos para integrar o comportamento da recorrente no âmbito do tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.[273]
*
c) Dosimetria e suspensão da execução da pena de prisão – em particular, a questão da confissão dos factos, da coautoria e do tipo de estupefaciente transacionado.
Discorda a recorrente da medida concreta da pena de prisão aplicada – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 5 anos e 3 meses, quanto ao crime de tráfico de estupefacientes -, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
Para fundamentar a sua posição, invoca a confissão dos factos por que se encontrava pronunciada, a circunstância de apenas ter “cedido” haxixe a terceiros e o facto de beneficiar de apoio familiar.
Vejamos se lhe assiste razão.
O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta da pena aplicada à recorrente com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição do acórdão recorrido):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º é média, atento o número de vendas, o período de tempo e o estupefaciente vendido (cocaína além das drogas leves). Apesar da arguida GGGG ter praticado a maior parte dos factos, certo é que à arguida HHHH foi-lhe apreendida cocaína, o que torna a gravidade quase igual, embora ainda mais grave a conduta da arguida GGGG. Quanto ao crime de arma proibida a ilicitude é elevada, sendo que o facto da arguida estar integrada na atividade do tráfico de estupefaciente eleva em muito o perigo de utilização. A arguida GGGG confessou os factos assumindo, a culpa, tentando afastar a sua irmã HHHH desta atividade.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com alguma intensidade, sendo que as arguidas já possuem antecedentes criminais pela prática do crime de dano – foram condenadas no mesmo processo. Além disso e apesar de se afirmarem abstinentes, certo é que não se submeteram a qualquer tratamento para o efeito, sendo que os factos praticados e as relações próximas das arguidas – companheiro da GGGG também está em prisão domiciliária, fazem-nos temer pela prática de novos ilícitos.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar à arguida GGGG a pena de 5 anos e 3 meses de prisão enquanto que à arguida HHHH deve ser aplicada a pena de 5 anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, aplicando-se a pena de 9 meses de prisão à arguida HHHH pela prática do crime de detenção de arma proibida.»
Analisemos, em primeiro lugar, a questão da “confissão” dos factos pela arguida que, no seu entender, não foi devidamente ponderada pelo tribunal.
Uma confissão, integral ou parcial, é um meio de prova que tem na sua origem as declarações de arguido, refletindo, acima de tudo, uma posição processual perante as imputações realizadas.
A confissão integral e sem reservas deve ser consignada em ata de julgamento atenta a sua relevância e os efeitos processuais daí decorrentes (cf. art.º 344.º do CPP) e, por tal razão, há também quem entenda que deve constar da matéria de facto provada.
A confissão parcial, pelo contrário, é, à partida, apenas mais um dos elementos de prova a ponderar para fixação da factualidade objeto do julgamento[274].
No presente caso, resulta do teor do acórdão recorrido que a arguida confessou parcialmente os factos por que se encontrava acusada/pronunciada, admitindo ter procedido à venda de haxixe e de outros canabinóides, mas negando as vendas de cocaína que lhe foram imputadas e à coarguida HHHH, acrescentando que o estupefaciente desta natureza detido por esta arguida destinava-se ao seu próprio consumo (cf. fls. 15.372 verso/15.373 verso).
Estando em causa uma confissão parcial dos factos e a prática de crime punível com pena superior a cinco anos de prisão, as declarações da arguida prestadas nos autos são apreciadas segundo o princípio da livre apreciação da prova – artigos 127.º e 344.º, n.ºs 3 e 4, ambos do CPP.
O valor probatório de uma confissão é variável, podendo oscilar entre um contributo muito relevante para a descoberta da verdade (tipicamente, naquelas situações em que a prova, para além da confissão, é nula ou reduzida, revelando-se esta, por esse motivo, decisiva para a demonstração dos factos) ou com pouco significado, dependendo das circunstâncias do caso concreto.
No presente caso, não há dúvida de que o contributo dado pela arguida para o apuramento dos factos e descoberta da verdade não foi decisivo, e nem sequer se afigura particularmente relevante, tendo em conta a abundância dos restantes elementos de prova à disposição do tribunal. Aliás, a arguida não confessou as vendas de cocaína que lhe foram imputadas – individualmente ou por intermédio da arguida HHHH, sua coautora -, limitando-se a admitir a venda dos produtos estupefacientes menos nocivos.
Portanto, não só a confissão foi meramente parcial, com reduzido valor atenuativo, como também os restantes factos não admitidos pela arguida (incluindo as vendas de cocaína) acabaram por ser demonstrados através de outros meios de prova.
Argumenta, também, a recorrente que as vendas consistiram em haxixe, sendo esta uma droga menos nociva, circunstância que se deverá refletir no “quantum” da pena aplicada.
É verdade que resulta da matéria de facto provada que o produto estupefaciente transacionado pela recorrente consistia, fundamentalmente, em haxixe e outros canabinóides.
Contudo, também ficaram documentadas vendas de cocaína, como resulta, por exemplo, dos pontos 280) e 281) da matéria de facto provada.
Neste âmbito, importa ainda realçar que a atuação da recorrente em coautoria com a arguida HHHH, sua irmã, decorre inequivocamente do conjunto dos factos que resultaram provados (cf. os pontos 272, 273, 275 e 333), diversamente do que a recorrente invoca no presente recurso.
Com efeito, quanto à distinção das figuras da coautoria e da cumplicidade, tem geral aceitação o entendimento de que, enquanto o coautor é um comparticipante na prática do facto, toma parte direta na sua execução, juntamente com outro(s), o cúmplice é um simples participante, não intervém na execução do facto, não realiza o tipo de ilícito, apenas auxilia o autor e, portanto, a sua intervenção no facto é acessória.
O traço fundamental da cumplicidade, que a distingue da coautoria, é a ausência de domínio funcional do facto; o cúmplice não faz mais que facilitar o facto do autor, podendo fazê-lo através de auxílio físico (cumplicidade material) ou psíquico (cumplicidade moral, também chamada cumplicidade intelectual), situando-se a prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor [275].
Finalmente, importa sublinhar que, muito embora as consequências do consumo de cannabis para a saúde dos respetivos utilizadores não sejam tão gravosas quanto as inerentes ao consumo de outras substâncias (designadamente, das consideradas “drogas duras”, como a cocaína e, sobretudo, a heroína), não é menos verdade que também não podem ser ignoradas. Com efeito, esta substância não é de modo algum benigna, desencadeando um efeito de adição relevante nos respetivos utilizadores e surgindo o seu consumo de longo prazo associado a uma variedade de condições, que incluem, para além de dependência, disfunção cognitiva e perturbações psiquiátricas. Além disso, evidências atuais apontam para um contributo do uso de cannabis no desenvolvimento de psicose, existindo uma relação consistente entre o consumo durante a adolescência e o risco de desenvolvimento de sintomas psicóticos ou perturbações do espectro da esquizofrenia (cf., neste sentido, os inúmeros estudos da autoria da Direcção-Geral de Saúde, consultáveis na internet). Este último aspeto afigura-se particularmente relevante ao nível da ponderação dos riscos para a saúde pública relacionados com o consumo desta substância, sabendo-se que a mesma é frequentemente utilizada por adolescentes e jovens e em ambientes recreativos.
Efetuadas estas considerações introdutórias, passemos à análise do caso concreto, por referência ao quantum da pena de prisão determinada pelo tribunal a quo.
O crime de tráfico de estupefacientes matricial é punido com pena de 4 a 12 anos de prisão (cf. os artigos 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/1), tendo o tribunal de primeira instância aplicado à recorrente a pena de 5 anos e 3 meses de prisão.
A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites acima referidos, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.
A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[276]
Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).
A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [277].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [278], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pela recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Como é salientado na decisão recorrida, o grau de ilicitude inerente ao comportamento da arguida é mediano, considerando a quantidade e natureza dos produtos estupefacientes transacionados (sobretudo, canabinóides, mas também cocaína) e o período de tempo durante o qual manteve tal atividade ilícita (durante cerca de dois anos).
Também significativas revelam-se as necessidades de prevenção especial, apresentando a arguida antecedentes criminais (embora pela prática de crimes de diversa natureza) e um quotidiano pouco estruturado, caraterizado pela ausência de hábitos de trabalho e de consumo de estupefacientes.
Além disso, a arguida dedicava-se à atividade de tráfico de estupefacientes de forma regular, fazendo do negócio de compra e venda de estupefacientes a sua única fonte de rendimento (cf. o ponto 272 da matéria de facto provada), denotando uma personalidade profundamente distanciada da pressuposta no “homem fiel ao direito” e carecida de socialização, com manifestas repercussões negativas ao nível da culpa e das exigências de prevenção especial.
Não vislumbramos, assim, qualquer excesso ou desproporção da medida concreta da pena de prisão (muito menos assinalável, a demandar a intervenção corretiva deste tribunal), quer por referência ao limite da culpa (acentuada), quer por referência às necessidades de prevenção (elevadas).
A premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade das normas violadas, decorrente da específica danosidade social do tipo de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pela recorrente e pela comunidade em geral) justifica, assim, a aplicação da pena de prisão na medida determinada pelo tribunal.
Fixada em medida inferior, tal pena seria desajustada ao grau de ilicitude do comportamento da recorrente e à medida da necessidade de prevenção geral - falhando o seu propósito primacial de realização contrafática dos bens jurídicos tutelados pela norma violada – e especial (sobretudo na sua dimensão negativa ou de intimidação).
A pena de prisão aplicada à recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução ou a opção pelo cumprimento em regime de permanência na habitação (cf. os artigos 50.º e 43.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso.
Improcede, assim, na totalidade, o presente recurso.
*
XVI) Recurso da arguida HHHH.
a) Nulidade do acórdão.

Defende a recorrente que o tribunal de primeira instância incorreu numa nulidade por excesso de pronúncia (cf. o art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP), na medida em que o crime de tráfico de estupefacientes, a ter ficado demonstrado, nunca poderia ser considerado um crime de tráfico matricial, mas unicamente de menor gravidade.
É claro, porém, que não se verifica qualquer nulidade da decisão por excesso de pronúncia, sendo certo que esta unicamente ocorre quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A divergência da recorrente quanto à qualificação jurídica dos factos efetuada pelo tribunal, sendo legítima, em nada contende com a validade e correção formal da decisão, pelo que improcede o presente fundamento do recurso.
*
b) Impugnação da matéria de facto.

Como já tivemos oportunidade de salientar neste acórdão, a modalidade de impugnação (ampla) a que alude o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, para ser processualmente atendível, pressupõe que o recorrente observe o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão. [279]
A arguida HHHH anuncia, no recurso, pretender impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal de primeira instância. Contudo, é manifesto que não foi observado o ónus de impugnação especificada, não tendo a recorrente procedido à indicação das concretas razões da sua discordância relativamente aos pontos de facto impugnados – cuja identidade desconhecemos, uma vez que não se encontram individualizados -, por referência às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP), o que preclude a possibilidade de sindicar a matéria de facto sob a perspetiva da impugnação ampla [280], sem prejuízo, porém, da possibilidade de análise da decisão sobre a matéria de facto no âmbito da revista alargada a que alude o art.º 410.º, n.º 2, do CPP. Com efeito, a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”, sendo patente a partir da leitura da decisão recorrida, pode consubstanciar um “erro notório na apreciação da prova”, vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
O “erro notório na apreciação da prova” refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[281]
Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [282].
Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No presente caso, o tribunal a quo explicitou claramente e de forma perfeitamente lógica na decisão recorrida as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [283] de que a arguida/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo atuado em coautoria com a arguida GGGG, sua irmã.
A recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que o tribunal não incorreu em “erro notório na apreciação da prova”. Com efeito, de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Refere a recorrente que, reconhecendo-se que era consumidora de cocaína, o tribunal a quo deveria ter considerado que o produto estupefaciente apreendido destinava-se ao seu exclusivo consumo e não à venda ou cedência a terceiros.
Contudo, não basta a demonstração de hábitos de consumo de substâncias psicotrópicas (e, em particular, de cocaína) pela recorrente para que se possa considerar integrada a prática de uma simples contraordenação ou do crime de consumo previsto no art.º 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22/1. [284]
A circunstância de a arguida deter cocaína – em quantidade, de resto, superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias – em conjunto com uma balança de precisão e de recortes em plástico normalmente utilizados para acondicionar estupefaciente, associada ao facto de ter mantido conversações claramente relacionadas com negócios de compra e venda de tal substância (designadamente, por meio de «whatsapp», com os perfis «VVVV» e «ZZZ»), constituem indícios seguros de que tais produtos eram destinados pela arguida à venda/cedência a terceiros.
Também as conclusões extraídas pelo tribunal a quo a partir da globalidade da prova, criticadas pela recorrente – designadamente, as contidas nos pontos 333) e 347), isto é, os factos relacionados com o dolo da arguida -, não merecem qualquer censura, já que se encontram apoiadas em raciocínios indutivos lógicos e congruentes com as regras da experiência comum.
Neste âmbito, importa desde logo salientar que o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além da dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada.
Na verdade, “como todos os juízos históricos, o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidades sobre a verdade ou falsidade de certas proposições. Quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a «certeza subjetiva» da veracidade da correspondente afirmação de facto” (Margarida Lima Rego, “Decisões em ambiente de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais”, Revista Julgar, n.º 21, Set/Dez de 2013, p. 121).
O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [285].
Além disso, encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.
De resto, a associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objetivos e regras objetivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.[286]
Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.[287]
Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes.
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração, não só, da (co)autoria dos crimes imputados à arguida/recorrente, mas também da verificação do dolo na respetiva execução[288].
Deste modo, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio da livre apreciação da prova e, ainda, pelo princípio in dubio pro reo [289] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável à arguida, nem tal dúvida se evidencia) [290], inexistindo, portanto, erro notório na apreciação da prova.[291]
Como se observa no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 [292], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto […]”.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto no que tange à recorrente HHHH.
*
c) Convolação para o crime de tráfico de menor gravidade e absolvição do crime de detenção de arma proibida.
Discorda a recorrente da subsunção, efetuada pelo tribunal de primeira instância, do seu comportamento no âmbito do tipo matricial de tráfico de estupefacientes, argumentando que deverá ser considerado de “menor gravidade” e, por isso, enquadrado no âmbito do tipo de ilícito previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
A propósito do enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida HHHH e, bem assim, da arguida GGGG, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte: «Já as arguidas GGGG e HHHH atuaram em coautoria material na atividade de compra e venda de estupefacientes, fazendo-o durante pelo menos 2 anos, em total sintonia e colaboração, vendendo cocaína, haxixe e liamba. Logo e perante estas drogas e o período de tempo em causa a sua atividade delituosa já terá que ser integrada na previsão do art.º 21.º, da lei da droga, não havendo qualquer diminuição da ilicitude que justifique a subsunção ao art.º 25.º.»
Não vemos, de facto, qualquer motivo para divergir do entendimento do tribunal de primeira instância.
Como já tivemos oportunidade de salientar neste acórdão, o tipo de tráfico privilegiado, contido no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1, pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes (cf. o acórdão do STJ de 13/9/2018 [293]).
Portanto, “Só se pode falar em tráfico de menor gravidade, e enquadrar os factos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, quando, avaliado na sua globalidade, o seu grau de ilicitude seja de tal modo inferior ao que se verifica no caso normal de tráfico de estupefacientes que se imponha considerá-lo, relativamente a este, como caso extraordinário ou excecional”.[294].
É manifesto, porém, que no presente caso não estamos perante uma “imagem global do facto de ilicitude sensivelmente diminuída”, configurando-se, antes, uma ilicitude global de grau médio, equivalente à consideração de um “caso normal” de tráfico de estupefacientes.
Na verdade, a arguida prosseguiu a sua atividade delituosa de forma reiterada e permanente, durante um período de tempo significativo, transacionando, ao que tudo indica, sobretudo haxixe e canábis, mas também cocaína (estupefaciente com forte poder aditivo e nocividade para a saúde dos respetivos consumidores, como é sabido), como resulta da factualidade apurada.
Protegendo o crime de tráfico de estupefacientes, de forma imediata, a saúde pública, não podemos deixar de reconhecer a existência de uma óbvia relação de proporcionalidade direta entre o volume de droga traficado e suas caraterísticas e a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido [295].
Deste modo, a quantidade e, sobretudo, a natureza dos produtos estupefacientes em causa (particularmente, cocaína, droga de elevada toxicidade) sempre impediria a integração do comportamento em causa no tipo privilegiado previsto no art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 23/1.
Não merece, igualmente, censura a decisão recorrida no que se refere à condenação da recorrente pelo crime de detenção de arma proibida. Com efeito, a matéria de facto provada – e que mantivemos inalterada – integra, inequivocamente, a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em causa e, ainda, do correspondente tipo de culpa (cf. os pontos 287, 347 e 351).
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, inexistindo motivos válidos para absolver a arguida do crime de detenção de arma proibida e, ainda, para integrar o seu comportamento no âmbito do tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22/1 [296].
*
d) Dosimetria e suspensão da execução da pena de prisão.
Discorda a recorrente da medida concreta da pena de prisão aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 5 anos, numa moldura abstrata de 4 a 12 anos -, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
A recorrente foi ainda condenada na pena de 9 meses de prisão pelo crime de detenção de arma proibida, cuja dosimetria não contestou no presente recurso, pelo que a análise a efetuar restringir-se-á ao quantum concreto da pena aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes.
O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada à recorrente com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição parcial do acórdão recorrido):
«- a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º é média, atento o número de vendas, o período de tempo e o estupefaciente vendido (cocaína, além das drogas leves). Apesar da arguida GGGG ter praticado a maior parte dos factos, certo é que à arguida HHHH foi-lhe apreendida cocaína, o que torna a gravidade quase igual, embora ainda mais grave a conduta da arguida GGGG. Quanto ao crime de arma proibida a ilicitude é elevada, sendo que o facto da arguida estar integrada na atividade do tráfico de estupefaciente eleva em muito o perigo de utilização. A arguida GGGG confessou os factos assumindo, a culpa, tentando afastar a sua irmã HHHH desta atividade.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz-se sentir com alguma intensidade, sendo que as arguidas já possuem antecedentes criminais pela prática do crime de dano – foram condenadas no mesmo processo. Além disso e apesar de se afirmarem abstinentes, certo é que não se submeteram a qualquer tratamento para o efeito, sendo que os factos praticados e as relações próximas das arguidas – companheiro da GGGG também está em prisão domiciliária, fazem-nos temer pela prática de novos ilícitos.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar à arguida GGGG a pena de 5 anos e 3 meses de prisão enquanto que à arguida HHHH deve ser aplicada a pena de 5 anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, aplicando-se a pena de 9 meses de prisão à arguida HHHH pela prática do crime de detenção de arma proibida.»
Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 [297], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [298].
Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados estabelecendo, em concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, a pena não satisfaz a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas - isto é, a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração”.
Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária.
Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização [299].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [300].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [301], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos – incluindo a qualidade e quantidade do produto estupefaciente em causa -, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pela recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Contudo, a pena concreta afigura-se-nos algo excessiva e desproporcionada, considerando o grau de ilicitude do crime cometido pela recorrente, as necessidades de prevenção geral que lhe são inerentes e a dimensão da sua culpa, impondo-se a intervenção corretiva deste tribunal de recurso [302].
Com efeito, se é certo que a recorrente colaborou com a arguida GGGG, sua irmã, na execução do crime de tráfico de estupefacientes e, nesse âmbito, levou a cabo vendas de canabinóides e, também, de cocaína, resulta da matéria de facto provada que a sua participação, em termos comparativos, terá sido bastante mais limitada. Além disso, a recorrente manteve ao longo do tempo ocupação laboral com caráter de regularidade, encontrando-se atualmente inserida profissionalmente.
Consideramos que uma pena de 4 anos e 9 meses de prisão é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e necessária – mas também suficiente – para a ressocialização da recorrente [303], não ultrapassando a medida da sua culpa.
A modificação da pena de prisão referente ao crime de tráfico de estupefacientes determina a necessidade de reponderação da pena unitária de prisão aplicada à recorrente.
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (cf. o art.º 77., n.º 2 do Código Penal).
Portanto, e em concreto, a moldura abstrata da pena unitária de prisão oscila entre o mínimo de quatro anos e nove meses e o máximo de cinco anos e seis meses.
Na determinação da medida concreta da pena unitária, como já tivemos oportunidade de assinalar neste acórdão, o que interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido.
Embora a lei não estabeleça nenhum critério rígido a seguir na determinação da medida concreta da pena única dentro da moldura do concurso, a prática jurisprudencial tende no sentido de, em casos que não fogem à normalidade, fazer acrescer à pena parcelar mais grave 1/3 das demais, oscilando para mais ou para menos consoante as específicas circunstâncias do caso e a personalidade do agente [304].
Trata-se, na verdade, de um critério orientador, não vinculativo, moldável às especificidades do caso concreto, mas que serve como auxiliar e merece ser ponderado, como é observado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 7/4/2015 [305].
Tal critério orientador merece amplo acolhimento na prática jurisprudencial e não vemos nenhuma razão para dele divergir no caso concreto.
Decidimos, assim, aplicar à recorrente a pena unitária de 5 anos de prisão, que se afigura ajustada às exigências de prevenção globalmente consideradas e não ultrapassa a medida da sua culpa.
Vejamos, agora, a questão da escolha da espécie de pena e, em particular, se está indicada a suspensão da respetiva execução.
Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão.
Com efeito, e como observa Anabela Miranda Rodrigues [306], o art.º 70.º do C. Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.
A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.
Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi).
Em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral [307].
No presente caso, e embora se reconheça a necessidade de interiorização pela recorrente dos valores ético-jurídicos vigentes, por forma a obter maior capacitação para estruturar o seu quotidiano de forma normativa e construtiva, consideramos que ainda estão reunidas as condições para a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro.
Com efeito, muito embora não seja primária – já que foi condenada numa pena de multa, por sentença transitada em julgado em 23/1/2020, pela prática de crimes de injúria, dano e ofensa à integridade física -, a recorrente não apresenta condenações pela prática de crimes de idêntica natureza.
Além disso, encontra-se profissionalmente inserida e mantém um quotidiano estruturado em torno das suas obrigações profissionais e familiares, tendo a seu cargo uma filha menor e prestando apoio aos seus sobrinhos.
Por outro lado, apesar de a ilicitude inerente ao comportamento da recorrente ser já elevada, dada a natureza do produto estupefaciente por ela detido (e apreendido na sua residência), importa assinalar que o tipo de droga transacionado consistia, fundamentalmente, em canábis, embora a recorrente também tivesse vendido cocaína.
Neste contexto, e apesar de serem inegavelmente elevadas as exigências de prevenção geral, “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", pelas quais se limita sempre o valor da socialização, consideramos que a necessária manutenção da ordem jurídica e da fidelidade do público ao direito ainda consente a condenação da arguida/recorrente numa pena não detentiva.
Decide-se, assim, nos termos do art.º 50º do C. Penal, por ser mais favorável à recuperação social da arguida HHHH e ainda suportável ao nível da comunidade, suspender a execução da pena aplicada por igual período temporal (cinco anos), na confiança de que a arguido se manterá afastada da criminalidade.
A prevenção da reincidência implica, necessariamente, a promoção da reinserção social da recorrente, afigurando-se determinante a superação das fragilidades por ela evidenciadas, associadas ao seu estilo de vida e personalidade.
Deste modo, a suspensão da execução da pena aplicada à arguida HHHH deverá ser acompanhada de regime de prova, por tal se mostrar conveniente e adequado a promover e a consolidar a sua reintegração na sociedade, assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão, e que deverá contemplar, necessariamente, a inserção profissional da recorrente e a abstenção de consumo de substâncias psicotrópicas (cf. os artigos 53.º e 54.º do Código Penal).
Procede, assim, parcialmente o presente recurso.
*
XVII) Recurso do arguido XXXX.

a) Dosimetria e suspensão da execução da pena de prisão.
Discorda o recorrente da medida concreta da pena de prisão aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 6 anos, numa moldura abstrata de 4 a 12 anos -, reputando-a de desproporcionada e excessiva.
Vejamos se lhe assiste razão.
O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição parcial do acórdão recorrido):
«a ilicitude do facto, dentro do ilícito do art.º 21.º é média/elevada, atento o elevado número de vendas efetuada e o período de tempo em que desenvolveu tal atividade (quase 20 anos, pelo menos no que concerne à testemunha YYYY). A seu favor tem que apenas vendia drogas leves, que muitas vezes vendia e consumia com quem vendia, sendo tais pessoas suas amigas, e que apesar de comprar cocaína não ficou assente que a vendesse. A seu desfavor tem que organizou uma rede de produção de liamba e haxixe com outros arguidos, instigando-os e ajudando-os a plantar e produzir estupefaciente, ficando com a produção destes para venda, o que agrava de sobremaneira a ilicitude, bem como a venda durante um longo período de tempo. Confessou parcialmente os factos de que vem acusado.
- a culpa é elevada, atento o dolo;
- a prevenção especial faz- se sentir com alguma intensidade, pois que apesar de não ter antecedentes criminais e de estar plenamente inserido na sociedade, tendo emprego fixo – professor de música – os seus hábitos aditivos e os factos praticados, com a organização da rede de produção, fazem-nos temer pela prática de novos factos.
- a prevenção geral faz-se sentir com bastante força, atenta as repercussões que o flagelo da droga tem na sociedade.
Nesta conformidade entendemos ser justo, adequado e necessário aplicar ao arguido XXXX a pena de 6 anos de prisão.»
A propósito do enquadramento jurídico-penal do comportamento do recorrente, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«Quanto ao arguido XXXX e aos outros 3 arguidos (ZZZZ, AAAAA e BBBBB) que plantavam cannabis e vendiam ao arguido XXXX, temos 2 situações distintas.
A primeira reporta-se ao arguido MMM que comprava a várias pessoas, incluindo a estes arguidos (liamba) e à arguida FFFF- haxixe e cocaína – para depois revender. Essas vendas ocorreram durante cerca de 20 anos. Além disso, o arguido acompanhava os produtores aqui arguidos no processo de cultivo das plantas de Liamba, dando-lhe conselhos e acompanhando o processo de crescimento das plantas, adquirindo-lhes depois a sua produção para posterior venda.
As vendas provadas também foram em número muito elevado, sendo que o facto de alguns dos consumidores muitas vezes se juntarem ao arguido XXXX para consumirem não retira o caráter ilícito da sua conduta.
Nessa conformidade e dando como reproduzidos os factos dados como assentes, não temos dúvida que o arguido cometeu o crime de tráfico de estupefacientes na sua forma base, ou seja na previsão do art.º 21.º, pois que tendo em conta os produtos transacionados, o tempo em que tal atividade decorreu e o elevado número de vendas, a que acresce a organização de produtores para abastecimento (é um facto que agrava a ilicitude) não permitem que ativemos a válvula de escape do sistema.»
É de notar que, apesar de o tribunal fazer referência, na ponderação dos fatores relevantes para a determinação da medida concreta da pena, à circunstância de não ter ficado demonstrada a venda de cocaína pelo recorrente, a verdade é que do segmento do acórdão atrás transcrito a venda dessa substância é afirmada, em consonância, aliás, com o que resulta da factualidade provada. Com efeito, da factualidade assente resulta que o arguido XXXX vendia cocaína, sendo abastecido de tal produto estupefaciente pelos arguidos FFFF e GGG (cf. os pontos 237, 238, 289, 292 e 295), muito embora se reconheça que os produtos estupefacientes por ele transacionados consistiam, fundamentalmente, em canabinóides (haxixe, liamba, canábis, erva).
Efetuada esta precisão, analisemos o caso concreto.
A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.
A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[308]
Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).
A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [309].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [310], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.
Finalmente, importa, quanto a esta matéria, ter presente que o recurso reveste-se das características e função de remédio jurídico. Como é assinalado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação do Porto, datado de 2/6/2010 (relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “No recurso dirigido à reação penal aplicada, a pretensão recursiva incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) no propósito de comprovar seja a inadequação quanto à escolha, seja um desajustamento relevante no quantum fixado. Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável.”
Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.
Como é salientado na decisão recorrida, o grau de ilicitude inerente ao comportamento do arguido é já acentuado, considerando a quantidade e natureza dos produtos estupefacientes transacionados (sobretudo haxixe/liamba/erva/canábis, mas também cocaína, substância com forte poder aditivo e danosidade para a saúde dos respetivos consumidores, como é sabido), o período de tempo durante o qual manteve tal atividade ilícita (muito prolongado, pois já no ano 2000 procedia à venda de substâncias estupefacientes) e o nível de organização que caraterizou a sua atividade (com recurso a uma rede de produção de liamba/canábis, por ele supervisionada e a partir da qual se abastecia).
As exigências de prevenção geral associadas ao crime de tráfico de estupefacientes são muito elevadas, configurando este fenómeno atualmente um verdadeiro flagelo social. Já as necessidades de prevenção especial não se afiguram insignificantes, pois se é certo que o recorrente é primário e confessou parcialmente os factos, não deixa de evidenciar uma personalidade desconforme com a pressuposta pela ordem jurídica, e francamente carecida de socialização, revelada pela circunstância de ter mantido aquela atividade ilícita com caráter de regularidade e por um alargado período de tempo (desde o ano de 2000 e, por isso, durante cerca de 20 anos).
Contudo, a pena concreta afigura-se-nos algo excessiva e desproporcionada, considerando o grau de ilicitude do crime cometido pelo recorrente, as necessidades de prevenção geral que lhe são inerentes e a dimensão da sua culpa, impondo-se a intervenção corretiva deste tribunal de recurso [311].
Consideramos que uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e necessária – mas também suficiente – para a ressocialização do recorrente [312], não ultrapassando a medida da sua culpa.
A pena de prisão aplicada ao recorrente não consente a possibilidade de suspensão da respetiva execução (cf. o art.º 50.º, n.º 1 do Código Penal), razão pela qual fica prejudicada a apreciação da última questão suscitada no presente recurso.
Procede, assim, ainda que apenas parcialmente, o presente recurso.
*
XVIII) Recurso da interveniente CCCCC.
Defende a recorrente que a decisão do tribunal a quo relativa à declaração de perda a favor do Estado do veículo Audi ..., de matrícula ..-XE-.., é nula por falta de fundamentação. Acrescenta que, em todo o caso, não se verificam os pressupostos de que a lei faz depender o perdimento de bens a favor do Estado na decorrência da prática de crimes, impondo-se, assim, a revogação deste segmento da decisão.
Afirmamos, desde já, não assistir razão à recorrente, não só porque a decisão encontra-se adequadamente fundamentada, mas também porque os pressupostos de que a lei faz depender a perda de bens a favor do Estado, neste âmbito, estão indubitavelmente preenchidos.
Com efeito, resulta da matéria de facto provada – e que temos por definitivamente assente, tanto mais que não foi impugnada pela recorrente - que o «arguido LL, com os lucros obtidos com a venda de estupefacientes investia na compra a pronto pagamento de variado veículos, designadamente automóveis» (ponto 105) e, nessa sequência, «comprou para si o veículo automóvel de marca Audi ..., de matrícula ..-XE-.., mas registou-o em nome de CCCCC, prima da arguida DDDDD, companheira do arguido LL» (ponto 106).
Ficou, ainda, demonstrado que «a referida CCCCC não é titular de carta de condução, sendo tal viatura conduzida habitualmente pela companheira do LL, a arguida DDDDD, por aquele (LL) não ser titular de carta de condução» (ponto 107).
A propósito da análise da questão que agora nos ocupa, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte (segue transcrição):
«Perda de instrumentos, produtos e vantagens
O art.º 110.º, do C. Penal postula o seguinte:
1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.
O art.º 111.º, do C. Penal postula o seguinte:
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.
2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando:
a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios;
b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou
c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida.
3 - Se os produtos ou vantagens referidos no número anterior não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
4 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens consistirem em inscrições, representações ou registos lavrados em papel, noutro suporte ou meio de expressão audiovisual, pertencentes a terceiro de boa-fé, não tem lugar a perda, procedendo-se à restituição depois de apagadas as inscrições, representações ou registos que integrarem o facto ilícito típico. Não sendo isso possível, o tribunal ordena a destruição, havendo lugar à indemnização nos termos da lei civil.
Constitui entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência que a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito.
Os pressupostos do instituto da perda de vantagem são apenas dois:
- A ocorrência de facto ilícito típico, ou seja, de facto antijurídico;
- A existência de vantagem, ou seja, de proveitos.
Ao contrário do regime previsto para a perda de instrumentos, em que constitui pressuposto fundamental que tal decisão vise prevenir futuras lesões dos bens jurídicos protegidos pelas normas incriminadoras em que se baseou a condenação dos arguidos, garantindo desta forma a conservação da motivação dos arguidos em não voltar a praticar atos deste tipo, bem como o sentimento de confiança da comunidade em geral pelas normas violadas, a necessidade de prevenção, especial ou geral, não é pressuposto da perda da vantagem patrimonial, bastando-se o nosso legislador com a verificação cumulativa da prática do facto ilícito e da existência de vantagem.
Esclareça-se igualmente que dado estarmos perante crimes de tráfico de estupefacientes, existe lei especifica para tais situações, designadamente a lei da droga (DL 15/93, de 22/01) que prevê esta situação no seu art.º 36.º, cuja redação é a seguinte:
1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infração prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objetos, direitos e vantagens que, através da infração, tiverem sido diretamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos direitos, objetos ou vantagens obtidas mediante transação ou troca com os direitos, objetos ou vantagens diretamente conseguidos por meio da infração.
4 - Se a recompensa, os direitos, objetos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
5 - Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna.
Refira-se ainda que nos termos do disposto no artigo 35º do Decreto-Lei nº 15/93, de 2/01, “São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”, sendo que o art.º 109.º n.º1 do C. Penal, também prevê que “são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”.
No caso em apreço é extensa a lista de bens apreendidos, dando-se aqui como reproduzidos todos os autos de busca.
No caso em apreço temos 45 arguidos condenados e 3 absolvidos.
Aos arguidos absolvidos foram-lhe apreendidos bens e dinheiros que terão de ser devolvidos, com exceção dos bens apreendidos à arguida DDDDD, pois que os mesmos foram adquiridos com os proventos resultantes da atividade ilícita desenvolvida pelo arguido LL.
Acrescente-se que relativamente a este arguido foi dado como provado que o veículo ... de matrícula ..XE.. lhe pertence, pelo que, e não obstante o mesmo estar registado em nome de terceiro, tal não impede a sua perda a favor do estado.
Quanto aos arguidos que foram condenados, todos os bens, objetos, produto estupefaciente e dinheiro apreendidos vão ser declarados perdidos a favor do Estado, por constituírem objeto ou produto do crime, com exceção do dinheiro apreendido aos arguidos KK e EEEEE pois que os mesmos apenas vão ser condenados pela detenção de estupefaciente e não pela venda.
Já quanto às armas apreendidas não resulta qualquer dúvida, pela sua natureza, da sua perigosidade e do risco elevado que as mesmas possam ser utilizadas para a prática de novo ilícito, sendo que a sua simples posse constitui simples ilícito, pelo que as declaramos perdidas a favor do Estado, nos termos do disposto no art.º 109.º, do C. Penal.»
Tendo o tribunal de primeira instância considerado provado que o veículo automóvel de matrícula ..-XE-.., apesar de se encontrar registado a favor da interveniente/recorrente, pertencia, de facto, ao arguido LL, tendo sido por ele adquirido com os lucros provenientes da atividade de tráfico de estupefacientes a que se dedicava, é evidente que não podia deixar de declará-lo perdida a favor do Estado, nos termos previstos no art.º 110.º do Código Penal e no art.º 36.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
É que, como justamente observa o tribunal a quo, os pressupostos do instituto da perda de vantagens são apenas dois: a ocorrência de facto ilícito típico; a existência de vantagem, ou seja, de proveitos decorrentes do facto antijurídico (cf. fls. 15.434).
Verificados tais requisitos, a perda a favor do Estado é declarada, independentemente de qualquer consideração de proporcionalidade ou necessidade preventiva.
A circunstância de a titularidade do veículo automóvel estar registada a favor da recorrente não impede, naturalmente, o perdimento do favor do Estado. Com efeito, a presunção do art.º 7º do CRP, aplicável ao registo automóvel, sendo juris tantum, pode ser ilidida mediante a prova do contrário (artigos 347.º e 350.º do CC) - exatamente o que ocorreu no presente caso, já que ficou demonstrado que o veículo em questão pertencia, de facto, ao arguido LL, estando na sua posse efetiva e tendo sido por ele adquirido.
Por fim, é evidente que a recorrente não assume a qualidade de qualquer “terceiro de boa fé”, com o direito de reclamar o acionamento dos mecanismos legais destinados à proteção dos seus direitos.
A propriedade do veículo automóvel em causa é meramente formal e fictícia e, por isso, a recorrente nunca poderia estar de boa fé, desconhecendo sem culpa a aquisição do veículo pelo arguido LL com os proventos decorrentes da atividade ilícita em análise nos presentes autos.
O presente recurso não tem, assim, qualquer fundamento – como, de resto, a recorrente não poderia deixar de saber -, razão pela qual improcede totalmente.
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III) Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto no seguinte:
1) Em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA, EE, CC, DD, JJ, II, MMM, FFFF, GGG e GGGG, confirmando-se integralmente, no que a estes recorrentes concerne, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes (art.º 513.º, n.º 1, do CPP), fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
2) Em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido FF, revogando-se a decisão recorrida na parte em que declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel de matrícula ..-ZV-.., o qual deverá ser restituído ao respetivo proprietário, confirmando-se, no demais, o acórdão recorrido.
Não são devidas custas por este recurso.
3) Em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido HH, reduzindo-se a pena concretamente aplicada para seis (6) anos de prisão e confirmando-se, no demais decidido, o acórdão recorrido.
Não são devidas custas por este recurso.
4) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido BB, alterando-se a matéria de facto (ponto 184) nos termos constantes do presente acórdão, e confirmando-se, no demais decidido, o acórdão recorrido.
Não são devidas custas por este recurso.
5) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido GG, alterando-se a matéria de facto (ponto 165), alíneas c) e j)) nos termos constantes do presente acórdão, e confirmando-se, no demais decidido, o acórdão recorrido.
Sem custas do presente recurso.
6) Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AAAA, reduzindo-se a pena concretamente aplicada ao recorrente para cinco (5) anos de prisão, cuja execução se decide suspender por igual período temporal, condicionada a regime de prova, assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão, e que deverá contemplar, necessariamente, a inserção profissional do recorrente e a abstenção de consumo de substâncias psicotrópicas (cf. os artigos 53.º e 54.º do Código Penal).
Sem custas do presente recurso.
Determina-se a imediata libertação do arguido/recorrente, caso a manutenção da sua prisão não interesse à ordem de qualquer outro processo.
7) Conceder provimento ao recurso interposto pela arguida HHHH, reduzindo-se a pena concretamente aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes para quatro (4) anos e nove (9) meses e a pena única para cinco (5) anos de prisão.
Decide-se suspender a execução da pena unitária de prisão por igual período temporal (cinco anos), condicionada a regime de prova, assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão, e que deverá contemplar, necessariamente, a inserção profissional da recorrente e a abstenção de consumo de substâncias psicotrópicas (cf. os artigos 53.º e 54.º do Código Penal).
Não são devidas custas por este recurso.
8) Em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido XXXX, reduzindo-se a pena concretamente aplicada para cinco (5) anos e seis (6) meses de prisão e confirmando-se, no demais decidido, o acórdão recorrido.
Não são devidas custas por este recurso.
9) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela interveniente CCCCC, confirmando-se integralmente a decisão recorrida e mantendo-se, consequentemente, a declaração de perda a favor do Estado do veículo de matrícula ..-XE-...
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UC.
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Notifique e proceda à emissão de mandados de libertação do arguido AAAA, após prévio contacto com o EP no sentido de verificar se não deve ser assegurada a manutenção da sua prisão à ordem de outro processo.
Comunique ao EP e ao tribunal de primeira instância.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP - e assinado digitalmente).
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Porto, 19 de abril de 2023.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
Borges Martins
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[1] Relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[2] A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar corretamente a lei seria afetado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objetivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
[3] Relatado pelo Desembargador José Adriano e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP, de 26/5/2015, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt, que teve por relator o Desembargador Neto de Moura.
[5] Como é salientado no acórdão deste TRP de 7/6/2017, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[6] Como é referido no acórdão do TRC de 3/10/2018 (relatado por Orlando Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista.”.
[7] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[8] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[9] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º), e não apenas a permitirem.
[10] Relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[11] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Para além do acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e já citado), veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), no qual se afirma que “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[12] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[13] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[14] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[15] Como se assinala no acórdão do TRP de 2/12/2015 (Relator Desembargador Artur Oliveira), consultável em www.dgsi.pt, “Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida”.
[16] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[17] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[18] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de nocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[19] Como é observado no acórdão do TRP de 14/12/2022 (Maria Joana Grácio, in www.dgsi.pt), as interceções telefónicas não se mostram abrangidas pela decisão do Tribunal Constitucional no acórdão 268/2022, de 19 de abril, posto que apenas os dados previamente armazenados – os “metadados” - são alvo dessa decisão.
[20] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[21] Como é observado no acórdão deste TRP de 3/2/2016 (relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, disponível para consulta em www.dgsi.pt), “A prova indireta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.”.
[22] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[23] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cf. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à participação do arguido na atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo na “Banca ...” e à intenção que presidiu ao seu comportamento, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[24] Tendo o tribunal de primeira instância considerado provado que a quantia monetária apreendida pertencia ao arguido AA e provinha da atividade de tráfico de estupefacientes a que se vinha dedicando, é evidente que não podia deixar de declará-la perdida a favor do Estado, nos termos previstos no art.º 110.º do Código Penal e no art.º 36.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Como justamente observa o tribunal a quo, os pressupostos do instituto da perda de vantagens são apenas dois: a ocorrência de facto ilícito típico; a existência de vantagem, ou seja, de proveitos decorrentes do facto antijurídico (cf. fls. 15.434).
Verificados tais requisitos, a perda a favor do Estado é declarada, independentemente de qualquer consideração de proporcionalidade ou necessidade preventiva.
[25] Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[26] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[27] Ou qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, todos de conhecimento oficioso. Com efeito, a decisão mostra-se, neste aspeto, coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[28] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[29] Cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes.
[30] Cf. o acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e proferido no processo 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt.
[31] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[32] Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/4/2007, disponível em www.dgsi.pt.
[33] Como é salientado no acórdão do STJ, de 18/1/2018 (disponível em www.dgsi.pt), relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto de Matos, “ A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se orientado no sentido que vem de se referir, assumindo que a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue no quadro da moldura penal abstrata, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.”.
[34] É de notar, aliás, que nunca seria adequada a fixação da concreta pena de prisão numa medida próxima do respetivo limite mínimo, já que só circunstâncias verdadeiramente excecionais justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 (relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[35] Escreveu-se no acórdão recorrido, a este propósito, o seguinte (cf. fls. 15.344 verso a fls. 15.345 verso):
“[…] Pouco tempo depois o contrato é celebrado em nome de QQ (11110), sendo que antes houve um formulário em nome do arguido EE (documentos juntos após a última audiência de discussão e julgamento), que não foi assinado por motivos que se desconhece, mas que não assume qualquer relevância para o caso, a não ser que o arguido EE estivesse associado por algum motivo ao arguido LL e este se quisesse afastar de qualquer facto que o pudesse conduzir a ele, o que também é algo que não pode ser desconsiderado.
Ora, tendo sido o arguido LL a arranjar inquilino para o rés-do-chão, temos mais elementos para o ligar ao tráfico do primeiro andar direito, pois que estes novos inquilinos auxiliaram tal atividade, conforme fica patente em dois factos. Primeiro é que a QQ e o EE tinham as chaves do 1.º andar direito, conforme resulta de fls. 403 e 404 do anexo B - perícias aos aparelhos apreendidos, onde se pode constatar uma conversa entre a QQ e o companheiro EE em que se questionam da chave do primeiro andar direto para irem desligar a extensão da luz-. Além disso, nessa perícia pode-se verificar a existência de conversas de voz através do instagram entre os arguidos EE e LL. Por fim, também temos a conversa constante do anexo 53 em que o EE pede à companheira para entregar o ovo ao JJJ o que mostra um total comprometimento daqueles arguidos com o negócio de tráfico de estupefacientes que se desenvolvia no local.
O segundo elemento foi a revelação feita pela testemunha FFFFF, contabilista da senhoria daquele prédio (... do ..., ... habitações), de que era a arguida QQ quem procedia ao pagamento das rendas daquelas habitações, incluindo o primeiro direito em dinheiro (tal foi negado pela arguida QQ, mas não conferimos qualquer credibilidade a tal negação, por motivos óbvios – pagamento foi efetuado em dinheiro e nunca por transferência bancária e não vislumbramos qualquer razão para que a testemunha inventasse um facto aparentemente inócuo). Daqui resulta claramente que alguém dava dinheiro à arguida QQ para pagar a sua renda e a de terceiros. E aí temos mais um elemento, pois que no manuscrito 3 apreendido aquando da busca ao ... do ..., constante a fls. 1805 consta lá a saída da quantia de 800€ para rendas e mais 200€ para o velhote.
Aqui chegados é só somar. Se foi o arguido LL quem contatou o EE e a QQ para habitarem o rés-do-chão direito do ... do ..., se estes tinham a chave e o livre acesso ao primeiro andar direito, se o primeiro direito não era habitado e estava a ser utilizado para a venda de estupefacientes, se a venda como iremos comprovar a seguir era controlada e determinada pelo arguido LL, se foi o arguido LL quem através da testemunha GGGGG arranjou um terceiro para figurar no contrato de arrendamento do 1.º andar direito, se a pessoa que o arguido LL arranjou para tomar conta do rés-do-chão direito pagava as rendas de pelo menos 3 habitações, então a conclusão a retirar é simples e consiste no facto de que quem pagava todas as rendas e beneficiava de tudo o que ali se passava era o arguido LL. Se a isto ainda aditarmos o dinheiro e o estupefaciente apreendidos no rés-do-chão direito e a ausência de justificação plausível para a posse de tão elevada quantidade de dinheiro e estupefaciente que não a atividade de tráfico, então a conclusão a que chegamos não suscita qualquer dúvida. […]”
[36] Como já salientámos, a propósito da análise dos fundamentos do recurso do arguido AA, o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[37] Para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[38] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (também relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.”
[39] Escreveu-se no acórdão do STJ de 23/3/2022 (Conselheiro Lopes da Mota, in www.dgsi.pt): “[…] na avaliação global dos factos e das suas circunstâncias particulares, que os relacionam com uma atividade planeada, repetida e organizada de tráfico, atuando os arguidos em “bando”, para fornecimento do mercado de uma determinada área geográfica, num local a que os adquirentes se dirigiam para se abastecerem de heroína e cocaína – “drogas duras”, de elevado grau de danosidade –, não se pode reconduzir a ação ao âmbito de previsão normativa do artigo 25.º do mesmo diploma.”.
[40] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt), “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[41] Como é salientado no acórdão do STJ, de 18/1/2018 (disponível em www.dgsi.pt), relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto de Matos, “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se orientado no sentido que vem de se referir, assumindo que a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue no quadro da moldura penal abstrata, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.”.
[42] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[43] Relatado pelo Desembargador Nuno Pires Salpico e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[44] Como é salientado no acórdão do STJ de 17/10/2019 (relatado pelo Conselheiro Clemente Lima, disponível em www.dgsi.pt), “O Supremo Tribunal de Justiça, designadamente em matéria de tráfico de estupefacientes, tem defendido que não são factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, visto que as afirmações genéricas não são suscetíveis de impugnação, pois não se sabe o lugar em que o agente vendeu os estupefacientes, o local em que o fez, a quem, o que foi efetivamente vendido, sendo que a aceitação das afirmações genéricas como «factos» inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32.° da C.R.P.”.
[45] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
[46] Expressamente neste sentido, cf. o acórdão do TRP, de 24/10/2012 (relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino) e o acórdão do STJ, de 23/11/2011 (relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[47] É de notar que, como é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2022 (relatado pelo Conselheiro António Gama, consultável em www.dgsi.pt), a circunstância de um arguido ser condenado pela prática do crime do art.º 21.º DL 15/93, não é obstáculo a que outro possa ser condenado em coautoria pelo crime do art.º 25.º DL 25/93, dado que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
[48] É de notar, aliás, que nunca seria adequada a fixação da concreta pena de prisão numa medida próxima do respetivo limite mínimo, já que só circunstâncias verdadeiramente excecionais justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 (relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[49] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 18/1/2023, relatado pela Conselheira Ana Barata Brito e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[50] Relatado pela Desembargadora Maria Joana Grácio e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[51] Neste sentido, cf. o acórdão do TRE de 3/3/2015 (relatado pelo Desembargador Sérgio Corvacho e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[52] A questão do preço só por outra via (eventualmente, através das interceções telefónicas, da confissão dos arguidos ou dos depoimentos de testemunhas) poderia ser esclarecida, naturalmente.
[53] Como já salientámos, a propósito da análise dos fundamentos do recurso do arguido AA, o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[54] Para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[55] Relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[56] Relatado pelo Desembargador Vasques Osório e consultável em www.dgsi.pt.
[57] Proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[58] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[59] Cf. o acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e proferido no processo 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt.
[60] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[61] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[62] Designadamente por comparação com a pena de prisão aplicada a outros arguidos que ocupavam uma posição hierárquica superior, mais próxima da liderança do arguido LL, como sucedeu com o arguido AA, que foi condenado na pena de 6 anos de prisão. É certo que os antecedentes criminais do arguido HH são muito expressivos e graves, mas consideramos que essa circunstância, só por si, não basta para justificar a condenação numa pena mais gravosa do que aquela que foi aplicada a um dos elementos posicionados no patamar mais elevado da hierarquia (ocupando uma posição próxima do líder) e que, por isso, também obteria, presumivelmente, rendimentos mais elevados do negócio de tráfico de estupefacientes por todos desenvolvido.
[63] É de notar que, também neste âmbito, o recurso assume a função de “remédio jurídico”. A este propósito afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/6/2015 (disponível em www.dgsi.pt), que “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”.
No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.
O que bem se compreende, como é assinalado neste acórdão do STJ, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.”.
[64] Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 (Relator: Jorge Langweg), igualmente disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
[65] A cuja audição procedemos, com recurso ao citius media studio.
[66] Neste sentido, cf. o acórdão do TRE de 3/3/2015 (relatado pelo Desembargador Sérgio Corvacho e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[67] A circunstância de o recorrente ter obtido ganhos com a atividade de tráfico de estupefacientes a que se dedicou, em conjugação de esforços com os restantes coarguidos, não oferece qualquer dúvida, não só porque decorre das mais elementares regras da experiência, como salientou o tribunal de primeira instância no acórdão recorrido, mas também porque encontra apoio na prova documental constante dos autos. Com efeito, o manuscrito apreendido na “banca” faz menção a pagamentos efetuados a diversos intervenientes, designadamente ao arguido CC (ali designado por “HHHHH” e “XX”, alcunha pela qual era conhecido) –cf. documento de fls. 8103/8118 (reportagem fotográfica dos apontamentos sobre a venda/apuro do estupefaciente e pagamentos/despesas do negócio, constante do volume 27).
Este meio de prova permite comprovar o recebimento da quantia de 840 € pelo recorrente CC, em 4/7/2020, facto incluído sob o ponto 102) da matéria de facto provada.
[68] É de notar que a testemunha DDD, inquirida na audiência de julgamento, referiu que o arguido CC estava no exterior do n.º ....
[69] Como já salientámos, a propósito da análise dos fundamentos do recurso do arguido AA, o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[70] Para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[71] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[72] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 23/2/2011, relatado pelo Desembargador Melo Lima e disponível em www.dgsi.pt.
[73] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
[74] Expressamente neste sentido, cf. o acórdão do TRP, de 24/10/2012 (relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino) e o acórdão do STJ, de 23/11/2011 (relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[75] É de notar que, como é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2022 (relatado pelo Conselheiro António Gama, consultável em www.dgsi.pt), a circunstância de um arguido ser condenado pela prática do crime do art.º 21.º DL 15/93, não é obstáculo a que outro possa ser condenado em coautoria pelo crime do art.º 25.º DL 25/93, dado que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
[76] Proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[77] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[78] Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[79] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[80] É de notar, aliás, que nunca seria adequada a fixação da concreta pena de prisão numa medida próxima do respetivo limite mínimo, já que só circunstâncias verdadeiramente excecionais justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 (relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[81] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º), e não apenas a permitirem.
[82] Relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[83] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Para além do acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e já citado), veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), no qual se afirma que “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[84] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[85] Cfr., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[86] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[87] Como é salientado no acórdão deste TRP, datado de 31/10/2018 (e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[88] Relatado pelo Conselheiro Sousa Fonte, disponível em www.dgsi.pt.
[89] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[90] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[91] Como salienta o Conselheiro José Santos Cabral (in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar n.º 17, Maio-Agosto 2012), é incontornável a afirmação de que a gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno, é preciso o indício quando não é suscetível de outras interpretações. Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão.
[92] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 23/2/2011, relatado pelo Desembargador Melo Lima e disponível em www.dgsi.pt.
[93] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
[94] Expressamente neste sentido, cf. o acórdão do TRP, de 24/10/2012 (relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino) e o acórdão do STJ, de 23/11/2011 (relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[95] É de notar que, como é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2022 (relatado pelo Conselheiro António Gama, consultável em www.dgsi.pt), a circunstância de um arguido ser condenado pela prática do crime do art.º 21.º DL 15/93, não é obstáculo a que outro possa ser condenado em coautoria pelo crime do art.º 25.º DL 25/93, dado que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
[96] Proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[97] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[98] Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[99] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[100] Não podendo ter esse efeito a atual situação clínica do recorrente, que apenas poderá refletir-se na forma de execução da pena.
[101] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[102] Proferido no processo nº 07PO24, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[103] Como, de resto, resulta diretamente da letra da lei – art.º 358.º, n.º 1, do CPP: “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.”
[104] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP, de 15/1/2020 (Pedro Vaz Pato, in www.dgsi.pt).
[105] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[106] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[107] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[108] Relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt.
[109] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[110] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[111] Sendo certo, porém, que estas tatuagens são visíveis, mesmo nos fotogramas referentes à vigilância do dia 26 de março, como se conclui da visualização dos fotogramas constantes de fls. 8005 dos autos.
[112] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cf. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à participação do arguido na atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo na “Banca ...” e à intenção que presidiu ao seu comportamento, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[113] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[114] Ou qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, todos de conhecimento oficioso. Com efeito, a decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[115] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
[116] Neste sentido, aludindo à quantidade e quantidade de droga traficada, como índice de aferição da “ilicitude consideravelmente diminuída”, pressuposta pelo crime de tráfico de menor gravidade, cf. o acórdão do STJ de 8/11/2018, relatado pelo Conselheiro Júlio Pereira e disponível em www.dgsi.pt.
[117] Proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[118] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[119] Cfr. o acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e proferido no processo 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt.
[120] Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[121] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[122] Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 (relatado pelo Desembargador Jorge Langweg), igualmente disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
[123] É de notar que, também no que concerne às questões que se relacionam com a escolha e determinação da medida da pena, o recurso assume a função de “remédio jurídico”. A este propósito, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/6/2015 (disponível em www.dgsi.pt), que “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”.
No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (igualmente disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.
O que bem se compreende, como é assinalado no acórdão do STJ de 9/5/2019, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.”.
[124] Como se assinala no acórdão do TRP de 2/12/2015 (Relator Desembargador Artur Oliveira), consultável em www.dgsi.pt, “Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida”.
[125] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[126] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[127] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[128] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[129] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[130] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cf. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à participação do arguido na atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo na “Banca ...” e à intenção que presidiu ao seu comportamento, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[131] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[132] Ou qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, todos de conhecimento oficioso. Com efeito, a decisão mostra-se, neste aspeto, coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[133] Relatado pelo Conselheiro Santos Cabral e disponível em www.dgsi.pt.
[134] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 23/2/2011, relatado pelo Desembargador Melo Lima e disponível em www.dgsi.pt.
[135] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
[136] Expressamente neste sentido, cf. o acórdão do TRP, de 24/10/2012 (relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino) e o acórdão do STJ, de 23/11/2011 (relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[137] É de notar que, como é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2022 (relatado pelo Conselheiro António Gama, consultável em www.dgsi.pt), a circunstância de um arguido ser condenado pela prática do crime do art.º 21.º DL 15/93, não é obstáculo a que outro possa ser condenado em coautoria pelo crime do art.º 25.º DL 25/93, dado que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
[138] Proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[139] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[140] Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[141] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[142] A este propósito afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/6/2015 (disponível em www.dgsi.pt), que “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”.
No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.
O que bem se compreende, como é assinalado neste acórdão do STJ, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.”.
[143] É de notar que a comparação efetuada pelo tribunal de primeira instância com a situação dos arguidos ZZ e GG, embora suscitando a discordância do recorrente II, faz todo o sentido, dado que todos estes arguidos desempenhavam funções idênticas na “Banca ...”.
[144] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[145] Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 (Relator: Jorge Langweg), igualmente disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
[146] Os elementos resultantes do relatório social e, designadamente, o diagnóstico de perturbação da personalidade aí referido, terão sido devidamente ponderados pelo tribunal de primeira instância, na medida em que optou por aplicar ao recorrente uma pena concreta muito próxima do mínimo legal da moldura abstrata, apesar da gravidade dos factos e consequente elevada ilicitude.
[147] Estabelece o art.º 15.º, n.º 1 da Lei do Cibercrime que “Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.”
Prescreve, por sua vez, o art.º 16.º, nos n.ºs 1 e 3 o seguinte:
“1 - Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.
demora. […]
3 - Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto […]”.
Por fim , o art.º 17.º estipula que “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”
[148] Cf., a título exemplificativo, os acórdãos do TRP de 8/6/2022 (José António Rodrigues da Cunha) e de 13/9/2017 (Luís Coimbra).
[149] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008 (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt), sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º), e não apenas a permitirem.
[150] Relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[151] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Para além do acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e já citado), veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), no qual se afirma que “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[152] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[153] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[154] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[155] Como é salientado no acórdão deste TRP de 4/5/2016 (relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt), “A dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável, objetivável. A dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.”.
[156] Relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt.
[157] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[158] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[159] Corroborando o depoimento prestado pela testemunha, constatamos a existência de diversas mensagens trocadas através de “whatsapp” com o arguido GG, constantes do Anexo B, nas quais a testemunha pede ao arguido produto estupefaciente, respondendo este afirmativamente à solicitação (cf., a título exemplificativo, fls. 69/70 do Anexo B).
[160] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção.
[161] Como é observado no acórdão deste TRP de 3/2/2016 (relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, disponível para consulta em www.dgsi.pt), “A prova indireta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.”.
[162] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[163] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cf. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à participação do arguido na atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo na “Banca ...” e por conta própria, para além da autoria no crime de tráfico e mediação de armas, à proveniência ilícita da quantia monetária apreendida e, finalmente, à intenção que presidiu ao seu comportamento, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[164] Relatado pelo Conselheiro Sousa Fonte, disponível em www.dgsi.pt.
[165] Procedemos à audição do depoimento prestado pela testemunha na íntegra.
[166] Procedemos à audição do depoimento prestado pela testemunha na íntegra.
[167] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[168] Como salienta o Conselheiro José Santos Cabral (in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar n.º 17, Maio-Agosto 2012), é incontornável a afirmação de que a gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno, é preciso o indício quando não é suscetível de outras interpretações. Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão.
[169] Como é salientado no acórdão deste TRP, datado de 31/10/2018 (e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[170] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 23/2/2011, relatado pelo Desembargador Melo Lima e disponível em www.dgsi.pt.
[171] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
[172] Expressamente neste sentido, cf. o acórdão do TRP, de 24/10/2012 (relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino) e o acórdão do STJ, de 23/11/2011 (relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[173] Neste sentido, aludindo à quantidade e quantidade de droga traficada, como índice de aferição da “ilicitude consideravelmente diminuída”, pressuposta pelo crime de tráfico de menor gravidade, cf. o acórdão do STJ de 8/11/2018, relatado pelo Conselheiro Júlio Pereira e disponível em www.dgsi.pt.
[174] É de notar que, como é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2022 (relatado pelo Conselheiro António Gama, consultável em www.dgsi.pt), a circunstância de um arguido ser condenado pela prática do crime do art.º 21.º DL 15/93, não é obstáculo a que outro possa ser condenado em coautoria pelo crime do art.º 25.º DL 25/93, dado que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
[175] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt), “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[176] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[177] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[178] Veja-se, por exemplo, a conversa mantida através de «whatsapp» entre o arguido GG e ZZZ, na qual este questiona o arguido se “precisa de capiador” (termo utilizado para angariador/vigia), respondendo o arguido negativamente, sugerindo-lhe que vá “para sacos” (isto é, venda direta), porque ganha mais (cf. fls. 28/29 do Anexo B).
[179] Como bem observa o tribunal a quo no acórdão recorrido, a circunstância de o arguido ter desenvolvido a atividade de venda de estupefacientes por conta própria não o faz incorrer na prática de um novo crime de tráfico de estupefacientes, mas constitui um facto relevante na determinação da medida da pena.
[180] Neste sentido, aludindo à quantidade e quantidade de droga traficada, como índice de aferição da “ilicitude consideravelmente diminuída”, pressuposta pelo crime de tráfico de menor gravidade, cf. o acórdão do STJ de 8/11/2018, relatado pelo Conselheiro Júlio Pereira e disponível em www.dgsi.pt.
[181] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[182] “Direito Penal Português – As Consequências do Crime”, pág. 291.
[183] Disso são exemplo, entre outros, os Acórdãos do STJ 11/2/02, proc. nº 02P1259 e 27/11/08, proc. nº 08P2149.
[184] Relatado por Maria Leonor Esteves e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[185] Relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[186] A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar corretamente a lei seria afetado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objetivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
[187] Relatado pelo Desembargador José Adriano e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[188] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP, de 26/5/2015, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt, que teve por relator o Desembargador Neto de Moura.
[189] Como é salientado no acórdão deste TRP de 7/6/2017, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[190] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[191] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[192] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º), e não apenas a permitirem.
[193] Relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[194] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Para além do acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e já citado), veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), no qual se afirma que “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[195] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[196] Cfr., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[197] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[198] Como é salientado no acórdão deste TRP de 4/5/2016 (relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt), “A dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável, objetivável. A dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.”.
[199] Relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt.
[200] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[201] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[202] Como se assinala no acórdão do TRP de 2/12/2015 (Relator Desembargador Artur Oliveira), consultável em www.dgsi.pt, “Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida”.
[203] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[204] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[205] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[206] Relatado pelo Conselheiro Sousa Fonte, disponível em www.dgsi.pt.
[207] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[208] Como salienta o Conselheiro José Santos Cabral (in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar n.º 17, Maio-Agosto 2012), é incontornável a afirmação de que a gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno, é preciso o indício quando não é suscetível de outras interpretações. Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão.
[209] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cf. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à participação do arguido na atividade de tráfico de estupefacientes e de armas e à intenção que presidiu ao seu comportamento, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[210] Tendo o tribunal de primeira instância considerado provado que a quantia monetária apreendida pertencia ao arguido MMM e provinha da atividade de tráfico de estupefacientes ou/e de armas a que se vinha dedicando, é evidente que não podia deixar de declará-la perdida a favor do Estado, nos termos previstos no art.º 110.º do Código Penal e no art.º 36.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
Como justamente observa o tribunal a quo, os pressupostos do instituto da perda de vantagens são apenas dois: a ocorrência de facto ilícito típico; a existência de vantagem, ou seja, de proveitos decorrentes do facto antijurídico (cf. fls. 15.434).
Verificados tais requisitos, a perda a favor do Estado é declarada, independentemente de qualquer consideração de proporcionalidade ou necessidade preventiva.
[211] Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[212] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[213] Ou qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, todos de conhecimento oficioso. Com efeito, a decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[214] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[215] Relatado pelo Conselheiro Pires da Graça e disponível em www.dgsi.pt.
[216] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (também relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.”
[217] In "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.
[218] Cf. o acórdão do TRL, de 28/10/2009, in www.dgsi.pt.
[219] É de notar que o tribunal não fica vinculado pelo parecer emitido pela DGRS quanto à possibilidade de suspensão de execução da pena de prisão ou opção por outra pena de substituição, podendo, justificadamente, divergir da conclusão que, quanto a este assunto, surja proclamada no relatório social. Com efeito, mostra-se pacífico o entendimento de que este elemento probatório não configura uma perícia. Além disso, os técnicos da reinserção social limitam-se a tecer considerações sobre a situação pessoal, económica e familiar dos arguidos e, para além disso, sobre a sua personalidade, podendo contribuir, por essa via, para o juízo de prognose formulado pelo tribunal e, portanto, para a aferição das necessidades de prevenção especial. Mas não se debruçam sobre as necessidades de prevenção geral verificadas no caso concreto e estas, como já tivemos oportunidade de salientar, desempenham um papel fundamental, frequentemente até decisivo, na decisão do tribunal quanto à escolha da espécie de pena.
[220] Diversamente do que sustenta o recorrente, a decisão condenatória foi proferida e transitou em julgado em data anterior à da consumação dos crimes de tráfico de estupefacientes e de armas em apreço nos presentes autos, o que apenas ocorreu em 9/7/2020.
[221] Como é salientado no acórdão do TRP, de 17/1/2017 (igualmente disponível em www.dgsi.pt), a “suspensão da execução de pena prisão é inviável, por não satisfazer as necessidades de prevenção especial previstas no artigo 50º, nº 1, do Código Penal, quando o arguido tem antecedentes criminais muito significativos por crimes semelhantes”.
[222] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[223] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[224] Proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[225] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[226] Cf. o acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e proferido no processo 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt.
[227] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[228] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[229] É de notar que, também neste âmbito, o recurso assume a função de “remédio jurídico”. A este propósito afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/6/2015 (disponível em www.dgsi.pt), que “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”.
No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.
O que bem se compreende, como é assinalado neste acórdão do STJ, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.”.
[230] Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 (Relator: Jorge Langweg), igualmente disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
[231] In "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.
[232] Cf. o acórdão do TRL, de 28/10/2009, in www.dgsi.pt.
[233] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 14/4/2021 (relatora Paula Natércia Rocha), in www.dgsi.pt.
[234] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 14/12/2022 (Maria Joana Grácio), consultável em www.dgsi.pt.
[235] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt), “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[236] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[237] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[238] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[239] Disso são exemplo, entre outros, os Acórdãos do STJ 11/2/02, proc. nº 02P1259 e 27/11/08, proc. nº 08P2149.
[240] Relatado por Maria Leonor Esteves e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[241] Relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[242] A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar corretamente a lei seria afetado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objetivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
[243] Como é salientado no acórdão deste TRP de 7/6/2017, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[244] Relatado pelo Conselheiro Santos Cabral e disponível em www.dgsi.pt.
[245] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime”, 1993, p. 305.
[246] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime”, 1993, pp. 306/307.
[247] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt), “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[248] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[249] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[250] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[251] Disso são exemplo, entre outros, os Acórdãos do STJ 11/2/02, proc. nº 02P1259 e 27/11/08, proc. nº 08P2149.
[252] Relatado por Maria Leonor Esteves e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[253] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[254] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[255] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[256] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º), e não apenas a permitirem.
[257] Relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[258] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Para além do acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e já citado), veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), no qual se afirma que “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[259] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[260] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[261] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[262] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[263] Como salienta o tribunal de primeira instância, carece de credibilidade o depoimento da testemunha quando refere que só se abasteceu de haxixe na casa da arguida GGGG, já levando a cocaína “no bolso”, tanto mais que era reconhecidamente consumidor desta substância e nas conversas mantidas, claramente relacionadas com a atividade de tráfico, refere-se a “ben-u-ron” (código para cocaína, como concluiu, e bem, o tribunal).
[264] Como é salientado no acórdão do STJ de 17/10/2019 (relatado pelo Conselheiro Clemente Lima, disponível em www.dgsi.pt), “O Supremo Tribunal de Justiça, designadamente em matéria de tráfico de estupefacientes, tem defendido que não são factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, visto que as afirmações genéricas não são suscetíveis de impugnação, pois não se sabe o lugar em que o agente vendeu os estupefacientes, o local em que o fez, a quem, o que foi efetivamente vendido, sendo que a aceitação das afirmações genéricas como «factos» inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32.° da C.R.P.”.
[265] Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[266] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[267] Ou qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, todos de conhecimento oficioso. Com efeito, a decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[268] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[269] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
[270] Expressamente neste sentido, cf. o acórdão do TRP, de 24/10/2012 (relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino) e o acórdão do STJ, de 23/11/2011 (relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[271] Neste sentido, aludindo à quantidade e quantidade de droga traficada, como índice de aferição da “ilicitude consideravelmente diminuída”, pressuposta pelo crime de tráfico de menor gravidade, cf. o acórdão do STJ de 8/11/2018, relatado pelo Conselheiro Júlio Pereira e disponível em www.dgsi.pt.
[272] É de notar que, como é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2022 (relatado pelo Conselheiro António Gama, consultável em www.dgsi.pt), a circunstância de um arguido ser condenado pela prática do crime do art.º 21.º DL 15/93, não é obstáculo a que outro possa ser condenado em coautoria pelo crime do art.º 25.º DL 25/93, dado que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
[273] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 14/12/2022 (Maria Joana Grácio), consultável em www.dgsi.pt.
[274] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 8/11/2017 (Neto de Moura), disponível em www.dgsi.pt.
[275] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt), “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[276] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[277] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[278] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º), e não apenas a permitirem.
[279] Como se assinala no acórdão do TRP de 2/12/2015 (Relator Desembargador Artur Oliveira), consultável em www.dgsi.pt, “Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida”.
[280] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cfr. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[281] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[282] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[283] Com efeito, tal não basta para que se demonstre que a recorrente destinava o produto estupefaciente encontrado na sua posse ao seu consumo (e muito menos ao seu consumo exclusivo, como é salientado no acórdão deste TRP de 11/10/2017, disponível em www.dgsi.pt).
[284] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[285] Como é observado no acórdão deste TRP de 3/2/2016 (relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, disponível para consulta em www.dgsi.pt), “A prova indireta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.”.
[286] Como é observado no acórdão deste TRP de 14/7/2020, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, 2, c), do CPP).
[287] Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cf. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).
No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à verificação dos elementos subjetivos referentes aos dois tipos de ilícito imputados à arguida – tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida -, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada.
[288] Consta do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt, o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[289] O princípio in dubio pro reo consubstancia uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25. Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[290] Ou qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, todos de conhecimento oficioso. Com efeito, a decisão mostra-se, neste aspeto, coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[291] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[292] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
Na senda da densificação do conceito de menor gravidade, dir-se-á que assumem particular relevo os seguintes critérios, como foi observado no acórdão do STJ de 13/3/2019 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt):
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
[293] Expressamente neste sentido, cf. o acórdão do TRP, de 24/10/2012 (relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino) e o acórdão do STJ, de 23/11/2011 (relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[294] Neste sentido, aludindo à quantidade e quantidade de droga traficada, como índice de aferição da “ilicitude consideravelmente diminuída”, pressuposta pelo crime de tráfico de menor gravidade, cf. o acórdão do STJ de 8/11/2018, relatado pelo Conselheiro Júlio Pereira e disponível em www.dgsi.pt.
[295] É de notar que, como é salientado no acórdão do STJ de 23/6/2022 (relatado pelo Conselheiro António Gama, consultável em www.dgsi.pt), a circunstância de um arguido ser condenado pela prática do crime do art.º 21.º DL 15/93, não é obstáculo a que outro possa ser condenado em coautoria pelo crime do art.º 25.º DL 25/93, dado que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
[296] Proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[297] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[298] Cf. o acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e proferido no processo 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt.
[299] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[300] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[301] É de notar que, também neste âmbito, o recurso assume a função de “remédio jurídico”. A este propósito afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/6/2015 (disponível em www.dgsi.pt), que “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”.
No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.
O que bem se compreende, como é assinalado neste acórdão do STJ, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.”.
[302] Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 (Relator: Jorge Langweg), igualmente disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
[303] Disso são exemplo, entre outros, os Acórdãos do STJ 11/2/02, proc. nº 02P1259 e 27/11/08, proc. nº 08P2149.
[304] Relatado por Maria Leonor Esteves e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[305] In "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.
[306] Cf. o acórdão do TRL, de 28/10/2009, in www.dgsi.pt.
[307] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt), “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[308] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[309] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[310] É de notar que, também neste âmbito, o recurso assume a função de “remédio jurídico”. A este propósito afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/6/2015 (disponível em www.dgsi.pt), que “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”.
No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.
O que bem se compreende, como é assinalado neste acórdão do STJ, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.”.
[311] Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 (Relator: Jorge Langweg), igualmente disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».