Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
85/24.4Y9PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
DESPACHO JUDICIAL
REJEIÇÃO
RECURSO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RP2024031885/24.4Y9PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (DECISÃO SUMÁRIA)
Decisão: PROCEDENTE A RECLAMAÇÃO APRESENTADA PELA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I.- A admissibilidade do recurso para o Tribunal da Relação do despacho judicial que rejeita o requerimento de interposição de impugnação judicial, devido a extemporaneidade, não depende do valor da coima aplicada ao arguido pela Autoridade administrativa, atento o disposto no artigo 63, n.º 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.
II.- As razões materiais deste entendimento são: a admissibilidade do recurso, no caso, prende-se com a garantia da tutela judicial efetiva, constitucionalmente assegurada (arts, 20º, n. 1, e 268º, n.º 4 da CRP), que pode estar em causa quando não é proferida uma decisão sobre o mérito da decisão de aplicação de coima; e, no facto, de num tal despacho – rejeição por razões formais - ser posta em causa a vertente judicial do direito de defesa do arguido, que é uma componente essencial desse direito - n.º 10, do art. 32º da CRP-.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Reclamação n.º 85/24.4Y9PRT-A.P1

2ª secção criminal, 4ª judicial

I.- Recorreu para este Tribunal da Relação a arguida AA do despacho que não admitiu o recurso de impugnação judicial, ao abrigo do art. 63º, n.º 1 do RGCO, por extemporâneo.

Sobre o requerimento de interposição do recurso para esta Relação recaiu o seguinte despacho:

«Referência electrónica 38082384:

A recorrente veio interpor recurso do despacho que não admitiu, porque intempestiva, a impugnação judicial.

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 63.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações que lhe sucessivamente lhe foram introduzidas, doravante RGCO:

1 - O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.

2 - Deste despacho há recurso, que sobe imediatamente.”

Nos termos do disposto no art. 73.º do mesmo diploma:

1- Pode recorrer-se para a relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:

a) for aplicada ao arguido uma coima superior a Euros 249,40.”

Conforme defendido por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, outubro 2011, pg. 264, entendimento que sufragamos, “é recorrível o despacho judicial de rejeição da impugnação (art. 63.º) desde que respeite a coima superior a 249,40 Euros.”

Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/11/2007, processo n.º 1790/07-2, Relator Dr Anselmo Lopes, disponível para consulta em www.dgsi.pt, “trata-se, por um lado, de uma (reduzidíssima) margem de confiança nas decisões de 1.ª instância, com o consequente ónus de eventual injustiça para os visados e, por outro lado, de uma (compreensível) regra de economia. Assim sendo, cremos como inquestionável que a regra abrange qualquer situação de improcedência ou de rejeição, sob pena de se frustrarem os seus pressupostos e finalidades, como, por exemplo, aconteceria se, estando em causa uma coima não superior a 50.000$00, fosse admissível recurso de uma decisão de rejeição (al. d) do nº 1 do artº 73º) para, …depois, aquele valor impedir a admissão de novo recurso. Era um perfeito absurdo!.”

No caso decidendo, a recorrente foi condenada de quarenta e cinco euros. Foi condenada numa coima inferior a €249,40.

Não é, pois, admissível recurso do despacho que não admitiu a impugnação.

Por inadmissibilidade legal, não admito o recurso interposto.

Custas pela recorrente – art.s 93.º, n.º4, 94.º, n.º3, do RGCO – cuja taxa de justiça, face à simplicidade do processado, fixo em cinquenta euros.

Notifique.» [fim de citação]


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É deste despacho de não admissão do recurso para este tribunal da Relação que a reclamante traz a presente reclamação, com os seguintes argumentos:

- O artigo 73º do RGCO delimita a sua aplicação às decisões proferidas nos termos do art. 64 do RGCO.

- O caso em apreço não se enquadra no art. 64º, mas no art. 63 do RGCO, conforme o despacho que não admitiu a impugnação/recurso da arguida.

Conclui que, por isso, deve ser admitido o recurso apresentado.

Termina pedindo o provimento da Reclamação, a revogação do despacho proferido e admitido o recurso interposto.


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II. Apreciação.

A questão colocada centra-se na indagação sobre a admissibilidade do recurso para este tribunal e, nomeadamente, se o mesmo depende do valor da coima aplicada.

Dispõe o art.  73º do RGCO “Decisões judiciais que admitem recurso

1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:

a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;

b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;

c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;

d) A impugnação judicial for rejeitada;

e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.

2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.

3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.

Por sua vez, dispõe o artigo 63º do RGCO “não aceitação do Recurso

1 - O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.

2 - Deste despacho há recurso, que sobe imediatamente.

No caso concreto, se o recurso depender do valor da coima, sendo o valor da coima aplicada de 45,00€, o recurso não será admissível ao abrigo do disposto no art. 73.º, n.ºs 1 al. a) do RGCO.

No entanto, a decisão recorrida foi proferida ao abrigo do disposto no artigo 63º do RGCO, que, no seu nº1, dispõe o seguinte: “O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma”.

«...a rejeição por desrespeito das exigências de forma, ou do prazo, são conhecidas no despacho a que se refere o artigo 63.º, todas as demais questões que obstem ao conhecimento do recurso, são conhecidas no âmbito do conhecimento por despacho, previsto no referido artigo 64.º.[1]»

Como consta da decisão recorrida, o tribunal a quo considerou que a não observância do prazo de recurso da decisão de aplicação da coima, de 15 dias (arts. 176, n.º 5, 7º al. c) do CE), determinava a rejeição do recurso, tendo invocado expressamente o artigo 63º, n.º 1, do RGCO.

Portanto, o processo foi decidido e o recurso rejeitado, em sede liminar, ao abrigo do citado artigo 63º, nº1, do RGCO, na parte em que aí se refere ao “recurso feito fora do prazo”.

Significa isto, sem dúvida, que o processo foi decidido em sede liminar, ao abrigo do artigo 63.º do RGCO e não por despacho ao abrigo do artigo 64.º do RGCO.

Esta circunstância é indubitável, visto que o tribunal a quo não se pronunciou previamente pela desnecessidade da audiência de julgamento, nem obteve a não oposição do Ministério Público e da arguida à decisão por despacho (cfr. nºs 1 e 2 do artigo 64º do RGCO).

Por conseguinte, o presente recurso jurisdicional, para este Tribunal da Relação do Porto, deve ser admitido, nos termos do nº 2 do artigo 63º do RGCO - “Deste despacho há recurso, que sobe imediatamente”.

Neste sentido se pronunciam Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos[2]:“Haverá também possibilidade de recurso, independentemente do valor da coima aplicada, nos casos em que a impugnação judicial for rejeitada ou o tribunal decidir por despacho com oposição do arguido”.[sublinhado nosso]

Não se podem subscrever os argumentos formais constantes da jurisprudência citada pelo tribunal a quo, porquanto há razões materiais para o entendimento que sufragamos.

Em primeiro lugar, o elemento sistemático. O artigo 63º, com a epígrafe “não aceitação do recurso” antecede o artigo 64º com a epígrafe “Decisão por despacho judicial”. Ambos e, bem assim, o artigo 73º do RGCO estão situados no mesmo capítulo [IV] do RGCO “Recurso e processo judiciais”. Não obstante, o legislador consagrou uma norma respeitante ao recurso do despacho proferido ao abrigo do art. 63º, n.º1, do RGCO, no artigo 63º, n.º 2, em vez de englobar esse recurso no artigo 73º do RGCO, inculcando uma ideia de perentoriedade sobre a existência do recurso e determinando a sua subida imediata, em contrário do que levariam a supor as regras da artigo 73º do RGCO, que apenas permitem recurso, “se”, e dos despachos proferidos nos termos do art. 64º do RGCO.

Acresce existirem razões materiais para tanto, com efeito, apelando de novo a Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, «[a] razão de ser da admissibilidade do recurso nestes casos prende-se com a garantia da tutela judicial efetiva, constitucionalmente assegurada (arts, 20º, n. 1, e 268º, n.º 4 da CRP), que pode estar em causa quando não é proferida uma decisão sobre o mérito da decisão de aplicação de coima ou sem a realização de diligências que o arguido considere necessárias.[3]»[ sublinhado nosso]

«Por outro lado, ... está em causa a vertente judicial do direito de defesa do arguido, que é uma componente essencial desse direito, pelo que a respetiva garantia constitucional (n.º 10 do art. 32º da CRP) reclamará que não deixa de haver a possibilidade de ver jurisdicionalmente apreciada a decisão que o afete.[4]» [sublinhado nosso]

Concluímos, portanto, pela admissibilidade do recurso.

No mesmo sentido se pronunciaram variados acórdãos dos tribunais superiores e o STA, de forma, ao que cremos, unânime, em casos em tudo idênticos em contraordenações no âmbito do RGIT, com aplicação subsidiária, do art. 63º, n.º 2, do RGCO[5].

Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto é admissível, ao abrigo do artigo 63º, n.º 2, do RGCO, independentemente do valor da coima aplicada pela Autoridade Administrativa.

A reclamação é para proceder.


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Sumário:
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III. Decisão.

Procede a reclamação com a consequência de o despacho reclamado ser revogado, devendo ser substituído por outro que admita o recurso interposto, com subida imediata.

Sem tributação, dada a procedência da reclamação.

Notifique.


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Porto, 18 de março de 2024.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Vice-Presidente do TRP, com competência delegada.
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[1] Cf.. O Despacho Liminar do Recurso de Impugnação no Processo das Contra-Ordenações, Leones Dantas, acedido em: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=EJ9P1DkcUt0%3D&portalid=30
[2] Contra-ordenações - Anotações ao Regime Geral, 6ª edição, 2001, Lisboa, pág.536, anotação ao artigo 73º do RGCO, nota 5.
[3] Cf. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Contara-ordenações, anotações ao Regime Geral, 6.ªed., 2011, Lisboa, pág. 536 (nota 5 ao art. 73.º do RGCO).
[4] Cf. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 4.ªed., 2010, Lisboa, pág. 561 (nota 7 ao art. 83.º do RGIT e respetiva nota 338).
[5] Cf. Acórdão do TRE de 26.10.2021, acedido em: https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/d36576e4dd35b70f802587a7006ed180; Decisão sumária do TRL de 23.03.2011, acedida em: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/67778e7d8514a6328025785c005e700d?OpenDocumentAc. do STA de 08.02.2017, acedido em: https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/e4d8f2ef0bc397f2802580c600395163?OpenDocument&ExpandSection=1;~; Ac. do STA de 01.06.2011, acedido em:
https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6ba0529e17c0b2d5802578a80033d1d1?OpenDocument
Ac. do STA de 13.07.2011, acedido em: https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/95ea8f37164cf9c4802578da002f8a8f?OpenDocument
Ac. do STA de 03.06.2009, acedido em: https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7d43758640840d3a802575cf004ded5e?OpenDocument