Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10/21.4T8RMR-A.E2
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: JUIZ PRESIDENTE DE COMARCA
FUNÇÕES E COMPETÊNCIAS
REJEIÇÃO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
RECLAMAÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
As funções e as competências do Juiz Presidente de Comarca estão elencadas e definidas na lei (na referenciada LOSJ), de modo rigoroso, claro e taxativo, não sendo permitido ao aplicador de tal lei, nesta matéria, interpretações analógicas ou extensivas da mesma, de tal forma que, por exemplo, possa entender-se ser permitido aos Juízes Presidentes de Comarca intervirem, por qualquer modo, nos atos jurisdicionais dos juízes integrantes da comarca respetiva.

Dito de outro modo: na atividade jurisdicional, o Juiz titular do Processo desempenha, com plena independência, e apenas com respeito pela Constituição e pela lei, a função judicial, só devendo acatamento às decisões proferidas, em via de recurso, por tribunais superiores.

O meio processualmente adequado para reagir contra o despacho de rejeição de um requerimento de impugnação judicial de decisão proferida por autoridade administrativa, em processo de contraordenação, é o “recurso”, nos exatos termos previstos no artigo 63º, nº 2, do RGCO, e nunca a “reclamação” processada em conformidade com o estabelecido no artigo 405º do C. P. Penal.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de Recurso de Contraordenação nº 10/21.4T8RMR, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo de Competência Genérica de Rio Maior), foi proferido despacho judicial que indeferiu a remessa dos autos ao Exmº Juiz Presidente da Comarca de Santarém para apreciação da “reclamação” apresentada pela arguida “JBC e F, Ldª”.

Inconformada com essa decisão, recorreu a arguida “JBC e F, Ldª”, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“1) No processo nº 10/21.4T8RMR, que corre termos no Tribunal da Comarca de Santarém, Competência genérica de Rio Maior, pelo Exmº Juiz titular dos autos foi proferido, em 25-04-2021, um despacho do seguinte teor:

2) «Pelo exposto, decido indeferir a remessa ao Exmo. Sr. Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém da reclamação apresentada pela arguida/recorrente, por manifesta falta de fundamento legal».

3) Do referido despacho a recorrente apresentou reclamação para o Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém.

4) Contudo, a 25-04-2021, o Tribunal a quo, por despacho com a referência 86527264, decidiu «indeferir a remessa ao Exmo. Sr. Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém da reclamação apresentada pela arguida/recorrente, por manifesta falta de fundamento legal».

5) Sobre este despacho, que não admitiu o recurso naquele tribunal, que entendeu «tendo em consideração a referência expressa no seu requerimento a “reclamação nos termos do art. 405º CPP”, isto porque inexiste quadro legal para que se admita que a reclamação venha a ser apreciada pelo Exmo. Sr. Juiz Presidente do Tribunal de Comarca, o qual possui limitadíssimas competências jurisdicionais no âmbito das suas funções» - Sublinhado nosso.

6) Mais fundamentando o seu despacho: «Jamais competiria, pois, ao Juiz Presidente do Tribunal de Comarca apreciar a reclamação apresentada pela arguida/recorrente (…); o meio processualmente adequado para reagir contra o despacho de rejeição do recurso de impugnação seria o recurso» - sublinhado nosso.

Razões de Discordância

7) O presente recurso vem ao despacho que não admitiu reclamação relativamente à retenção do recurso da decisão administrativa, nos termos do Art. 405°, n° 2, do C.P.P.

8) O recurso da decisão administrativa foi apresentado no Tribunal da Comarca de Santarém.

9) Tendo sido rejeitada a sua apreciação por despacho que não admitiu por «in casu, o incumprimento das exigências formais dos artigos 59.º, n.º 3, do RGCOC, e 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 41.º, n.º 1, do RGCOC, pelo que, ao abrigo do disposto no art.º 63.º, n.º 1, do RGCOC, e sem necessidade de mais considerandos, deverá ser o recurso rejeitado».

10) Do referido despacho a recorrente apresentou reclamação para o Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, no qual expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso.

11) O Juiz do Tribunal a quo defende que «jamais competiria, pois, ao Juiz Presidente do Tribunal de Comarca apreciar a reclamação apresentada pela arguida/recorrente».

12) Entendemos que o Juiz do tribunal a quo, no âmbito do artigo 405º do C.P.P., não lhe confere o poder de controlar os pressupostos de admissibilidade das reclamações postas a essas decisões, ao ponto de as rejeitar, caso os mesmos se não mostrem reunidos, em termos comparáveis àquilo que sucede em relação à interposição dos recursos.

13) Não assistindo ao Juiz reclamado qualquer poder de fiscalização sobre os pressupostos de admissibilidade da reclamação, devendo limitar-se a remetê-la à entidade competente para dela conhecer, devidamente instruída.

Pelo exposto, requer que seja julgado procedente o presente recurso interposto pela Recorrente, e que seja revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine a apresentação ao Exmº Juiz Presidente daquele Tribunal a quo da reclamação que a arguida fez dar entrada nos autos em 19-02-2021, depois de devidamente instruída”.

*

O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância respondeu ao recurso da arguida “JBC e F, Ldª”, defendendo a improcedência total do mesmo, e concluindo a sua resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1) Como sinopse do que adiante melhor se aduzirá, o Ministério Público considera nenhuma razão assistir à recorrente na sua pretensão, evidenciando-se, prima facie e derradeiramente, uma manifesta falta de fundamento legal, que deverá ser sancionada com taxa de justiça conducente à deturpação processual que nos autos se tem verificado.

2) Nos presentes autos, a decisão de fundo já foi tomada pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora: não é legalmente admissível a “reclamação” do Processo: 10/21.4T8RMR-A.E2 despacho que rejeitou a impugnação judicial da decisão administrativa, uma vez que o meio próprio para reagir é o recurso - artigo 73º, nº 1, alínea d), do RGCOC.

3) Uma vez rejeitada a “reclamação” e ultrapassado o prazo perentório para recorrer - artigo 74º, nº 1, do RGCOC -, a decisão de rejeição da impugnação judicial transitou em julgado há muito.

4) Razão pela qual, independentemente da questão de quem será, afinal, competente para conhecer de uma “reclamação” que foi já julgada improcedente, por inadmissível, importa atender ao essencial e evidente: a decisão de rejeição da impugnação judicial já transitou em julgado, não sendo impugnável por qualquer via.

5) Mas, mesmo que assim não fosse, é assaz risível que a recorrente pretenda seja apreciada “reclamação” apresentada nos termos do artigo 405º, nº 1, do Código de Processo Penal, pelo Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém.

6) Em todo o quadro de competências do Juiz Presidente, nem uma única se relaciona com a atividade jurisdicional, no âmbito da qual o Juiz titular do Processo desempenha, com autonomia e plena independência, com respeito à Constituição e à lei, a função judicial, devendo exclusivamente acatamento às decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores - artigos 203º da Lei Fundamental e artigos 4º, nº 1, e 92º da LOSJ.

7) O Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém não tem competência - remota que seja - para decidir tal questão.

Decidindo, farão V. Exªs, aliás como sempre, um ato de Inteira Justiça”.

*

Neste Tribunal da Relação de Évora, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, dando por reproduzidos os argumentos aduzidos na resposta ao recurso apresentada pelo Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No presente caso a única questão evidenciada no recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, consiste em saber se é (ou não) legalmente possível a remessa dos autos ao Exmº Juiz Presidente da Comarca de Santarém, para que o mesmo aprecie uma “reclamação” apresentada pela ora recorrente de um despacho que rejeitou a impugnação judicial (o “recurso”) de uma decisão proferida por autoridade administrativa no âmbito de um processo de contraordenação.

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:

“Ref.ª eletrónica 7170418:

Tomei conhecimento da decisão do Exmo. Sr. Vice-Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Évora de rejeição, por inadmissibilidade legal, da reclamação apresentada pela arguida/recorrente.

Extraia e autue nestes autos certidão contendo cópia da decisão sumária proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora no âmbito do processo de contraordenação n.º 152/16.8EASTR, o qual correu termos neste Juízo de Competência Genérica de Rio Maior.

D.N.

Ref.ª eletrónica 7604245:

A arguida/recorrente JBC e F, Lda. veio, por via do requerimento referido em epígrafe (apresentado em juízo em momento anterior ao da devolução dos autos eletrónicos por parte do Venerando Tribunal da Relação de Évora), requerer “(…) que a reclamação enviada em 19/02/2021, seja remetida para o Exmo. Senhor Presidente do Tribunal Judicial de Santarém, do Juízo de Competência Genérica de Rio Maior, conforme requerido no respetivo Requerimento, para apreciação (…)”, juntando em anexo despacho proferido pelo Exmo. Sr. Vice-Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Évora.

Vejamos.

A jurisprudência do Venerando Tribunal da Relação de Évora vem divergindo, no que diz respeito à forma adequada de reação contra o despacho do tribunal de primeira instância que rejeita (nomeadamente por intempestividade ou falta de cumprimento dos pressupostos formais) o recurso de impugnação de decisão proferida por autoridade administrativa, adotando, essencialmente, duas posições.

A primeira, que o ora signatário há muito vinha adotando, e que foi nestes autos defendida pelo Exmo. Sr. Vice-Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Évora em decisão referida supra (ref.ª eletrónica 7170418), e que aqui se dá por integralmente reproduzida, para os devidos efeitos, que defende, em suma, que o despacho de rejeição do referido recurso de impugnação de decisão de autoridade administrativa, por intempestivo ou apresentado sem cumprimento dos pressupostos formais, só poderá ser impugnado por via de recurso, conforme estatui taxativamente o art.º 63º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, sob a epígrafe “não aceitação do recurso”, onde se lê:

“1 - O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.

2 - Deste despacho há recurso, que sobe imediatamente”.

E a segunda, que defende que o meio próprio de reação da arguida/recorrente contra aquele despacho deverá seguir a via de reclamação, nos termos do disposto no art.º 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso”, aqui aplicável ex vi art.º 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, segundo o qual “[d]o despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige”, de que se cita a decisão sumária, inédita, proferida no processo n.º 152/16.8EASTR, de que ora se junta em anexo a este despacho a respetiva certidão judicial (ver processo eletrónico).

Ora, perante as decisões contraditórias que vêm sendo emanadas pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, com competência sobre a área territorial deste Juízo, adotou o ora signatário um critério mais largo, no sentido de admitir a apresentação por parte dos arguidos/recorrentes quer de reclamação, quer de recurso sobre o despacho que rejeite o recurso de impugnação da decisão proferida por autoridade administrativa, tentando assim evitar-se o cerceamento dos direitos dos arguidos/recorrentes e evitando a insegurança jurídica decorrente daquelas diversas correntes jurisprudenciais.

Foi precisamente o que sucedeu in casu.

Relembrando.

A arguida/recorrente interpôs recurso da decisão administrativa que a condenou no pagamento de uma coima no valor de € 12.000,00 pela prática, a título negligente, de uma contraordenação ambiental muito grave, prevista e punível pelo art.º 81.º, n.º 3, alínea c), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, e nas custas processuais administrativas no valor de € 75,00, tendo formulado alegações em 116 pontos e conclusões em 85 pontos, que constituíam um mero decalque das alegações.

O Tribunal convidou a arguida/recorrente a apresentar requerimento de interposição de recurso aperfeiçoado do qual constassem as respetivas alegações e conclusões, nos termos do disposto no art.º 59.º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, tendo aquela apresentado requerimento de interposição de recurso com as mesmas apontadas deficiências formais, razão pela qual foi o recurso rejeitado nos termos do disposto no art.º 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas.

Sobre este despacho apresentou a arguida/recorrente reclamação dirigida ao “MM(a) Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de Santarém Juízo de Competência Genérica de Rio Maior”, lapso que o Tribunal relevou, tendo em consideração a referência expressa no seu requerimento a “reclamação nos termos do art. 405º CPP”, isto porque inexiste quadro legal para que se admita que a reclamação venha a ser apreciada pelo Exmo. Sr. Juiz Presidente do Tribunal de Comarca, o qual possui limitadíssimas competências jurisdicionais no âmbito das suas funções.

Com efeito, bastará atentar no disposto no art.º 94.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto para facilmente se constatar que ao Exmo. Sr. Juiz Presidente do Tribunal de Comarca se encontram deferidas legalmente competências de natureza essencialmente organizacional, nomeadamente “(…) de representação e direção, de gestão processual, administrativas e funcionais”, nenhuma delas, elencadas no demais corpo normativo do referido artigo, se referindo à competência para apreciação da reclamação em apreço.

Jamais competiria, pois, ao Juiz Presidente do Tribunal de Comarca apreciar a reclamação apresentada pela arguida/recorrente.

Em todo o caso, sempre importará notar que a reclamação em apreço foi rejeitada pelo Exmo. Vice-Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Évora por inadmissibilidade legal, o qual fez notar de forma clara e inequívoca que o meio processualmente adequado para reagir contra o despacho de rejeição do recurso de impugnação seria o recurso, nos termos do disposto no at.º 63.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, e nunca a reclamação nos termos do art.º 405.º do Código de Processo Penal.

Assim, tendo em consideração que a reclamação não é o meio processualmente adequado para reagir ao despacho de rejeição do recurso de impugnação, que se encontra precludido o direito da arguida/recorrente de apresentar nova reclamação, e que o Exmo. Sr. Juiz Presidente do Tribunal de Comarca não possui competências para apreciação da reclamação em apreço, inexistindo qualquer fundamento legal para a pretensão da arguida/recorrente, deverá a mesma ser indeferida.

Pelo exposto, decido indeferir a remessa ao Exmo. Sr. Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém da reclamação apresentada pela arguida/recorrente, por manifesta falta de fundamento legal.

Custas do incidente anómalo pela arguida/recorrente, que se fixam em 1UC (art.º 7.º, n.ºs 4 e 8, do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique”.

3 - Elementos relevantes para a decisão.

Compulsados os autos, há que salientar os seguintes elementos processuais, relevantes para a decisão da questão colocada à nossa apreciação:

a) A ora recorrente impugnou judicialmente, perante o Tribunal competente, uma decisão de uma autoridade administrativa (decisão que condenou a recorrente no pagamento de uma coima, pela prática de uma contraordenação ambiental).

b) O referido Tribunal “convidou” a recorrente a apresentar um novo requerimento de impugnação judicial, em aperfeiçoamento do anterior, porquanto este não respeitava as exigências de forma.

c) Na sequência desse “convite”, a recorrente apresentou um novo requerimento de impugnação judicial.

d) O Tribunal competente, considerando que o novo requerimento de impugnação judicial possuía as mesmas “deficiências” de forma que o anterior, rejeitou-o, mediante pertinente despacho (despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 63º, nº 1, do Regime Geral das Contraordenações - D.L. nº 433/82, de 27/10, e doravante por nós designado por RGCO -).

e) A recorrente apresentou “reclamação” desse despacho de rejeição da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, “reclamação” dirigida ao “MMº Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém”, e na qual a recorrente convocava, expressamente, em abono da sua pretensão processual, o disposto no artigo 405º do C. P. Penal.

f) A “reclamação”, assim apresentada pela ora recorrente, foi autuada e processada pela secretaria do Tribunal de primeira instância, nos precisos termos do preceituado no artigo 405º do C. P. Penal, e, nela, e nesse mesmo Tribunal, foi proferido despacho de admissão da “reclamação”, tendo a mesma sido remetida, por determinação judicial, e para decisão, ao Exmº Presidente do Tribunal da Relação de Évora.

g) A “reclamação”, assim tramitada, foi objeto de decisão, neste Tribunal da Relação de Évora, decisão datada de 18 de março de 2021 e proferida pelo Exmº Vice-Presidente desta instância recursória, nos termos da qual a “reclamação” em causa foi indeferida.

h) Em muito breve síntese, o Exmº Vice-Presidente deste Tribunal da Relação de Évora indeferiu a “reclamação” apresentada pela recorrente com o argumento de que o meio processualmente adequado para reagir contra o despacho de rejeição de um requerimento de impugnação judicial de decisão proferida por autoridade administrativa, em processo de contraordenação, é o “recurso”, nos exatos termos previstos no artigo 63º, nº 2, do RGCO, e nunca a “reclamação” processada em conformidade com o estabelecido no artigo 405º do C. P. Penal.

i) Notificada dessa decisão, proferida pelo Exmº Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora, a recorrente veio requerer, ainda perante este mesmo Tribunal da Relação de Évora, que fosse “determinado o envio da reclamação para o Presidente do Tribunal da Comarca de Santarém - Juízo de Competência Genérica de Rio Maior -”.

j) Apreciando tal requerimento da recorrente, o Exmº Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora proferiu o seguinte despacho (na parte aqui relevante): “quanto à remessa ao Presidente da Comarca, a 1ª instância tem competência para a ordenar, ou não, conforme o fez para esta Presidência da Relação - e nada foi aqui dito sobre isso, pois não era objeto da pronúncia que nos era dado fazer -”.

k) Na sequência de tal despacho (proferido pelo Exmº Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora), e descidos os autos ao Tribunal de primeira instância, a recorrente apresentou novo requerimento, no qual solicitou que a “reclamação” fosse remetida “para o Exmº Senhor Presidente do Tribunal Judicial de Santarém, do Juízo de Competência Genérica de Rio Maior”.

l) Esse requerimento da recorrente foi apreciado e decidido através do despacho objeto do presente recurso, ou seja, o Tribunal de primeira instância indeferiu a remessa para o Exmº Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém da “reclamação” oportunamente apresentada pela recorrente (entendendo o Tribunal recorrido, em muito breve resumo, que não existe, minimamente, qualquer fundamento legal para ordenar a pretendida remessa).

4 - Apreciação do mérito do recurso.

Com o devido respeito, a pretensão recursiva carece, em absoluto, de fundamento válido.

Na verdade, e em jeito de síntese, a recorrente parte do pressuposto, errado, de que os Juízes Presidentes das Comarcas possuem competência para sindicar os atos jurisdicionais dos Juízes que fazem parte das respetivas comarcas, podendo aquilatar, apreciar e reverter as decisões por eles proferidas em processos concretos que lhes estejam distribuídos.

Ou seja, o entendimento expresso pela recorrente, e que flui da motivação do recurso, não possui o mínimo de respaldo no sistema legal português.

Senão vejamos.

I - Estabelece o artigo 203º da Constituição da República Portuguesa que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.

Por sua vez, dispõe o artigo 4º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26/08 - doravante por nós designada como LOSJ -), que “os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores”.

Ora, como é bom de ver, um Juiz Presidente de Comarca não é um “Tribunal superior”.

II - Quanto à figura legal do Juiz Presidente de Comarca, estatui o artigo 92º da referida LOSJ:

“1 - Em cada tribunal de comarca existe um presidente.

2 - O presidente do tribunal é nomeado, por escolha, pelo Conselho Superior da Magistratura, em comissão de serviço, pelo período de três anos, e sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, de entre juízes que cumpram os seguintes requisitos:

a) Exerçam funções efetivas como juízes desembargadores e possuam classificação de Muito bom em anterior classificação de serviço; ou

b) Exerçam funções efetivas como juízes de direito, possuam 15 anos de serviço nos tribunais e última classificação de serviço de Muito bom.

3 - A comissão de serviço pode não dar lugar à abertura de vaga e pode ser cessada a qualquer momento, mediante deliberação fundamentada do Conselho Superior da Magistratura”.

III - As funções e as competências do Juiz Presidente de Comarca estão elencadas e definidas na lei (na referenciada LOSJ), de modo rigoroso, claro e taxativo, não sendo permitido ao aplicador de tal lei, nesta matéria, interpretações analógicas ou extensivas da mesma, de tal forma que, por exemplo, possa entender-se ser permitido aos Juízes Presidentes de Comarca intervirem, por qualquer modo, nos atos jurisdicionais dos juízes integrantes da comarca respetiva.

Essas funções e competências dos Juízes Presidentes de Comarca estão enumeradas, taxativamente (repete-se), no artigo 94º da LOSJ (na redação que lhe foi dada pela Lei nº 40-A/2016, de 22/12):

“1 - Sem prejuízo da autonomia do Ministério Público e do poder de delegação, o presidente do tribunal possui competências de representação e direção, de gestão processual, administrativas e funcionais.

2 - O presidente do tribunal possui as seguintes competências de representação e direção:

a) Representar e dirigir o tribunal;

b) Acompanhar a realização dos objetivos fixados para os serviços judiciais do tribunal;

c) Promover a realização de reuniões de planeamento e de avaliação dos resultados dos serviços judiciais da comarca;

d) Adotar ou propor às entidades competentes medidas, nomeadamente, de desburocratização, simplificação de procedimentos, utilização das tecnologias de informação e transparência do sistema de justiça;

e) Pronunciar-se, sempre que seja ponderada a realização de sindicâncias à comarca pelo Conselho Superior da Magistratura;

f) Pronunciar-se, sempre que seja ponderada pelo Conselho dos Oficiais de Justiça a realização de sindicâncias relativamente aos serviços judiciais e à secretaria;

g) Elaborar um relatório semestral sobre o estado dos serviços judiciais e a qualidade da resposta.

3 - O presidente do tribunal possui as seguintes competências funcionais:

a) Dar posse aos juízes e ao administrador judiciário;

b) Elaborar os mapas de turnos e de férias dos juízes e submetê-los a aprovação do Conselho Superior da Magistratura;

c) Exercer a ação disciplinar sobre os oficiais de justiça, relativamente a pena de gravidade inferior à de multa, e, nos restantes casos, ordenar a instauração de processo disciplinar, com exceção daqueles a que se reporta a alínea k) do nº 1 do artigo 101º;

d) Nomear um juiz substituto, em caso de impedimento do titular ou do substituto designado, de acordo com orientações genéricas do Conselho Superior da Magistratura;

e) Assegurar a frequência equilibrada de ações de formação pelos juízes da comarca, com respeito pelas necessidades do serviço e em articulação com o Conselho Superior da Magistratura;

f) Participar no processo de avaliação dos oficiais de justiça, nos termos da legislação específica aplicável, com exceção daqueles a que se reporta a alínea l) do nº 1 do artigo 101º, sendo-lhe dado conhecimento dos relatórios das inspeções aos serviços e das avaliações, respeitando a proteção dos dados pessoais.

4 - O presidente do tribunal possui as seguintes competências de gestão processual, que exerce com observância do disposto nos artigos 90º e 91º:

a) Implementar métodos de trabalho e objetivos mensuráveis para cada unidade orgânica, sem prejuízo das competências e atribuições que, nessa matéria, prossegue o Conselho Superior da Magistratura, designadamente na fixação dos indicadores do volume processual adequado;

b) Acompanhar e avaliar a atividade do tribunal, em particular a qualidade do serviço de justiça prestado aos cidadãos, tomando designadamente por referência as reclamações ou as respostas a questionários de satisfação;

c) Acompanhar o movimento processual do tribunal, identificando, designadamente, os processos que estão pendentes por tempo considerado excessivo ou que não são resolvidos em prazo considerado razoável, informando o Conselho Superior da Magistratura e promovendo as medidas que se justifiquem;

d) Promover, com a colaboração dos demais juízes, a aplicação de medidas de simplificação e agilização processuais, sem prejuízo do disposto em legislação específica quanto à adoção de mecanismos de agilização processual pelo presidente do tribunal ou pelo juiz;

e) Propor ao Conselho Superior da Magistratura a criação e extinção de outros graus de especialização nas unidades de processos, designadamente para as pequenas causas;

f) Propor ao Conselho Superior da Magistratura a reafectação de juízes, respeitado o princípio da especialização dos magistrados, a outro tribunal ou juízo da mesma comarca ou a afetação de processos para tramitação e decisão a outro juiz que não o seu titular, tendo em vista o equilíbrio da carga processual e a eficiência dos serviços;

g) Propor ao Conselho Superior da Magistratura o exercício de funções de juízes em mais do que um tribunal ou juízo da mesma comarca, respeitado o princípio da especialização dos magistrados, ponderadas as necessidades dos serviços e o volume processual existente;

h) Solicitar o suprimento de necessidades de resposta adicional, nomeadamente através do recurso aos quadros complementares de juízes.

5 - As medidas a que se refere a alínea f) do número anterior são precedidas da concordância do juiz a reafectar ou do juiz a quem sejam afetados os processos.

6 - A reafectação de juízes ou a afetação de processos têm como finalidade responder a necessidades de serviço, pontuais e transitórias, e devem ser fundadas em critérios gerais, definidos pelo Conselho Superior da Magistratura, respeitando sempre princípios de proporcionalidade, equilíbrio de serviço e aleatoriedade na distribuição, não podendo implicar prejuízo pessoal sério para a vida pessoal ou familiar do juiz.

7 - O Conselho Superior da Magistratura fixa antecipadamente os critérios a considerar quanto à densificação dos conceitos previstos na alínea f) do nº 4 e publicita-os, previamente à sua execução, nas páginas eletrónicas das comarcas e do Conselho Superior da Magistratura.

8 - O presidente do tribunal possui as seguintes competências administrativas:

a) Elaborar os planos anuais e plurianuais de atividades e relatórios de atividades;

b) Elaborar os regulamentos internos dos serviços judiciais da comarca, ouvido o magistrado do Ministério Público coordenador e o administrador judiciário;

c) Participar na conceção e execução das medidas de organização e modernização da comarca;

d) Planear, no âmbito da magistratura judicial, as necessidades de recursos humanos.

9 - O presidente do tribunal exerce ainda as competências que lhe forem delegadas pelo Conselho Superior da Magistratura.

10 - Para efeitos de acompanhamento da atividade dos tribunais e juízos sediados na comarca, incluindo os elementos relativos à duração dos processos e à produtividade, são disponibilizados dados informatizados do sistema judicial, no respeito pela proteção dos dados pessoais”.

Do transcrito preceito legal decorre que, em todo o quadro de competências do Juiz Presidente de Comarca, nem uma única se relaciona com a atividade jurisdicional.

Nem podia ser de outra forma, porquanto, e repete-se o já acima adito, os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei, não estando sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores (e, como é bom de ver, o Juiz Presidente da Comarca não integra a qualidade de “Tribunal superior”).

Dito de outro modo: na atividade jurisdicional, o Juiz titular do Processo desempenha, com plena independência, e apenas com respeito pela Constituição e pela lei, a função judicial, só devendo acatamento às decisões proferidas, em via de recurso, por tribunais superiores.

Por conseguinte, carece totalmente de sentido pretender-se que o Juiz Presidente de Comarca aprecie um despacho proferido por um Juiz da respetiva comarca, despacho esse que rejeitou uma impugnação judicial de uma decisão de uma autoridade administrativa (decisão que condenou a recorrente no pagamento de uma coima, pela prática de uma contraordenação ambiental).

O Juiz Presidente de Comarca não tem competência para decidir tal questão (como, e muito bem, ficou devidamente explicitado no despacho revidendo).

Mais: o Juiz Presidente de Comarca, e como se nos afigura evidente, não aprecia “reclamações” apresentadas nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405º do C. P. Penal (nessas “reclamações”, a decisão é, isso sim, do Presidente do “Tribunal superior”).

IV - Nos presentes autos, indeferida que foi a “reclamação” apresentada ao abrigo do disposto no artigo 405º do C. P. Penal (mediante decisão proferida pelo Exmº Vice-Presidente deste Tribunal da Relação de Évora), e ultrapassado que está o prazo perentório para recorrer (conforme preceituado no artigo 74º, nº 1, do RGCO), o despacho que rejeitou a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa já transitou em julgado.

Repete-se: o despacho de rejeição da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, despacho que a ora recorrente, em substância e bem vistas as coisas, pretende continuar a colocar em crise, não é já impugnável, tendo transitado em julgado (de modo inelutável e sem possibilidade de ulteriores processados impugnatórios).

Face a tudo o que vem de dizer-se, o recurso da arguida é totalmente de improceder, sendo de manter a decisão recorrida.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora decidem negar provimento ao recurso interposto pela arguida, confirmando integralmente a decisão revidenda.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 26 de outubro de 2021

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia