Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1028/23.8Y2MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRA-ORDENACIONAL
COIMA
PRESCRIÇÃO
REGIME LEGAL
ESTADO DE EMERGÊNCIA
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
DIREITO DE DEFESA
LEI MAIS FAVORÁVEL
RETROACTIVIDADE
NOTIFICAÇÃO
MODALIDADES
Nº do Documento: RP202402211028/23.8Y2MTS.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELOS ARGUIDOS.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - As normas de prescrição reportam-se ao regime substantivo do facto criminoso ou contraordenacional, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicadas de forma retroativa, salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável ao arguido.
II - Os novos prazos de prescrição e causas de interrupção e suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, bem assim do procedimento contraordenacional e das coimas, sendo prejudiciais ao arguido por alargamento dos prazos de prescrição, apenas poderão ser aplicados aos factos praticados na sua vigência, sob pena de se lhe conferir um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no art.29.º, n.º 4, da CRP.
III - O art.19.º, nº 6, da CRP, expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar […] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos […]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do art.2.º da Lei n.º 44/86.
IV - Daqui resulta que o estado de emergência não pode ser usado para afastar a proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional, através do alargamento de prazos de prescrição quanto a factos praticados antes do estado de emergência.
V - A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais aos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um daqueles diplomas.
VI - A aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do art.29.º, n.º 4, da Constituição -, não se vendo razão para o afastar no domínio contraordenacional.
VII - Contudo, a verificada suspensão dos atos e prazos nos processos criminais e contraordenacionais, imposta pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e posteriormente, pela Lei nº 4-B/2021, configura uma causa suspensiva da prescrição, por falta de autorização legal para o processo continuar, nos termos dos art. 27º A, al. a), do RGCO, e art.120º, nº1, al. a), do C. Penal.
VIII- No processo de contraordenação, nada obsta à entrega a terceira pessoa, na morada ou sede do destinatário, da carta registada com aviso de receção, nos termos e para efeitos do art.50º, do RGCO, a coberto do art.113º, nº7, do Código Processo Penal, aplicável ex vi art. 41º do RGCO quanto ao arguido (pessoa singular) e do art.223º, nº3, do Código Processo Civil, aplicável ex vi art. 41º do RGCO e art. 4º do Código Processo Penal quanto à sociedade arguida.
IX- A recusa do documento de identificação no ato da assinatura do aviso de recção deve equiparar-se à recusa de assinatura deste.
X- Presumindo-se feita a notificação (art.113º, nº2, do Código Processo Penal, aplicável ex vi art. 41º do RGCO), esta só pode ser ilidida pelo notificando, a quem compete alegar, aquando da impugnação judicial, e provar os factos necessários para demonstrar que não recebeu a notificação e por causa que não lhe é imputável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1028/23.8Y2MTS.P1

Relator:
João Pedro Pereira Cardoso
Adjuntos:
1º - Elsa Paixão
2º - William Themudo Gilman


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Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


1. RELATÓRIO

No Processo (contraordenação) nº 1028/23.8Y2MTS do Juízo Local Criminal de Matosinhos - Juiz 3, foi em 01/11/2023 proferida sentença, na qual – ao que aqui interessa - se decidiu julgar totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial interposto pelos arguidos e, em conformidade, manter a decisão administrativa que condenou:

- AA, numa coima única no valor de 1.200€ (mil e duzentos euros); e

- A... Ld.ª, numa coima única no valor de 1.200€ (mil e duzentos euros) e na sanção acessória de devolução do produto resultante da venda do pescado ilicitamente capturado, no valor 2.764,50€ (dois mil, setecentos e sessenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), revertendo este perdido a favor do Estado.


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Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os arguidos, para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:

CONCLUSÕES

I. Como decorre do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre, devendo esta possibilidade revestir a, “(…) forma de notificação, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 41.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, e do artigo 112.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal” a qual “(…) terá de ser feita, em alternativa, por contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado, ou por via postal registada – artigo 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal”, sendo que a, “(…) notificação por contacto pessoal com o notificando a lei não admite que a mesma seja feita em pessoa diversa daquele (artigo 113.º, n.º 1, alínea a), do CPP)”;

II. Tendo a Autoridade Administrativa optado por proceder à notificação dos arguidos na modalidade de carta registada com aviso de receção, procedimento ao qual – como é comumente conhecido – está associado um formalismo específico, concretamente à necessidade de identificação da pessoa que recebeu a carta ou aviso e a verificação da capacidade dessa pessoa para transmitir ou comunicar ao arguido o conteúdo da notificação que recebeu ou a capacidade de obrigar a sociedade (circunstância que a Autoridade Administrativa tinha condições de apurar), verificando que dos avisos de receção não resulta a cabal identificação de quem os recebeu,  tinha a obrigação de regularizar tal situação.

III. Não o tendo feito, dúvida não há de que os arguidos não foram regularmente notificados para os efeitos previstos no artigo 50.º do RGCO, o que resulta numa nulidade insanável. 

IV. O facto das notificações em causa terem sido remetidas num momento em que todo o país (e o mundo) se encontrava assolado com uma pandemia global epidemiológica provocada pela doença Covid -19, não justifica o incumprimento dos mínimos exigíveis, em concreto a apostura do nome completo das pessoas que receberam as respetivas notificações, bem como a sua identificação (número de cartão de cidadão ou outro documento oficial como um passaporte, por exemplo), como sucedeu nos presentes autos.


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V. Entre o dia 10 de Abril de 2020 (data da suposta receção da notificação para apresentação de defesa) e o dia 06 de julho de 2023 (data da notificação da decisão administrativa) decorreram mais de três anos, não se tendo verificado quaisquer causas de interrupção durante esse período, uma vez que não foram levadas a cabo pela autoridade administrativa quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou pedido de auxílio às autoridades policiais.

VI. A suspensão dos prazos prescricionais relativos aos processos penais e contraordenacionais que tenham por referência factos praticados em data anterior à vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro é violadora do princípio da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional e, como tal, inadmissível do ponto de vista constitucional.

VII. Não se verificando qualquer causa de suspensão ou de interrupção, verifica-se sim a prescrição do procedimento contraordenacional, pelo menos quanto ao arguido, uma vez que entre ambas as notificações (da notificação para apresentação de defesa e da notificação da decisão administrativa) decorrem mais de três anos.

VIII. No caso, como o dos autos, cujos factos se reportam ao  período de 22 de agosto e 29 de agosto de 2019, em que o agente praticou factos puníveis antes do início do regime especial da suspensão da prescrição pela COVID-19, a suspensão da prescrição não pode ser justificada por maiores ou menores dificuldades de investigação ou realização de atos processuais, já que a proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional existe e está justificada - única e exclusivamente - pela proteção do agente, em particular, pelo direito do arguido à segurança jurídica.

IX. Desta forma, a proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional não está associada a razões ou problemas de saúde pública ou dificuldades de investigação e, por isto mesmo, estas razões não podem ser usadas para afastar a proibição de aplicação retroativa da lei substantiva em matéria penal e contraordenacional.

X. Acresce que o fundamento da prescrição, é ser o “castigo” demasiado longe do delito ou da condenação uma inutilidade. E é uma inutilidade porque a intervenção do direito penal ou contraordenacional, com todas as suas armas, a partir de determinada altura, não é capaz de cumprir nenhuma das suas funções ou finalidades. 

XI. A necessidade da sanção dilui-se gradualmente com o decurso progressivo do tempo, por um lado, porque se reconhece a desnecessidade de aplicação das sanções e, por outro lado, porque aumentam as dificuldades probatórias, potenciando a probabilidade de decisões erradas. 

XII. Ao decidir como decidiu, a sentença aqui em crise violou os artigos 5º, 27º, 28º e 41º nº 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, o artigo 113º nº 16 do Cod. Proc. Penal e os artigos 19º nº 6 e 32º da Constituição da Républica Portuguesa.

TERMOS EM QUE, revogando-se a sentença proferida, declarando-se a nulidade das notificações para o exercício do direito de defesa com todas as consequências legais e a prescrição do procedimento contraordenacional relativamente ao arguido, se fará a - tão habitual neste Superior Tribunal – JUSTIÇA!”


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O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com o legal efeito. 

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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

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Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e, uma vez colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

Atentando nas conclusões apresentadas na motivação do recurso que, conforme jurisprudência constante e assente, delimitam o seu objeto (cfr. art. 412º, nº 1, do Código de Processo Penal):
 as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
a) Da suspensão da prescrição do processo contraordenacional
b) Nulidade das notificações para o exercício do direito de defesa


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Da suspensão da prescrição do processo contraordenacional

Sem questionarem os demais pressupostos em que se baseou a decisão recorrida sobre a questão da prescrição do procedimento criminal, os arguidos impugnam aquela exclusivamente em relação à (não) suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional pela COVID-19.

A este propósito ponderou-se na decisão recorrida que:

- os factos descritos no auto de notícia ocorreram no dia 29/08/2019;

- os arguidos foram notificados para exercer defesa no dia 10/04/2020;

- em 16/06/2023 foi proferida a decisão administrativa condenatória;

- em 26/05/2023 foi o arguido notificado da decisão administrativa condenatória;

- os arguidos interpuseram recurso da decisão em crise em 25/07/2023;

- os arguidos foram notificados do exame preliminar do recurso da decisãoadministrativa em 12/09/2023.

Considerou-se ainda na sentença, circunstância que não vem impugnada, que: “Atento o limite máximo das molduras abstratas aplicáveis às infrações imputadas ao arguido AA, o prazo de prescrição é de 3 (três) anos, conforme o artigo 27.º, n.º 1, alínea b), do Regime Geral das Contraordenações. Já quanto à sociedade arguida A..., Ld.ª, o prazo de prescrição é de 5 (cinco) anos, conforme o artigo 27.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma.

A contagem do prazo de prescrição, quer da pessoa coletiva quer da pessoa singular, iniciou em 29/08/2019.

É, por isso, manifesto que o prazo de prescrição da pessoa coletiva não se mostra prescrito”.

Nada disto vem impugnado pelos recorrentes.

Os arguidos insurgem-se, isso sim, quanto à suspensão do prazo de prescrição reconhecido na sentença:

- nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, vigorando entre o dia 9/03/2020 e o dia 2/06/2020, num total de 86 dias (cf. art.º 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6/04, e art.ºs 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2000 de 29/05; e

- nos termos do n.º 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, vigorando entre 22/01/2021 e 5/04/2021, num total de 74 dias (cf. art.º 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, e art.º 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5/04.

A sua discordância, centrada na aplicação deste regime temporário determinado pela COVID 19, baseia-se na alegada violação do princípio da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional e, como tal, inadmissível do ponto de vista constitucional, já que os factos se reportam a finais de agosto de 2019.

Cumpre apreciar.

Da suspensão da prescrição: COVID

A questão central que aqui se coloca consiste em saber se a suspensão da prescrição estabelecida pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março [1], e pela Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro, é aplicável a factos pretéritos, como aqueles aqui reportados a agosto de 2019.

O disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aqui nos ocupa, com respeito à suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, não foi objeto de modificação pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.

Subsequentemente, pela Lei n.º 16/2020, de 6 de maio, veio a ser alterada, pela quarta vez, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que, por efeito dos seus artigos 2.º e 8.º, revogou o artigo 7.º deste último diploma.

As alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, entraram em vigor no dia 3 de junho de 2020, pelo que, para o que releva para a presente decisão, da conjugação dos diplomas acima escrutinados resulta que o período da suspensão dos prazos de prescrição e caducidade originariamente estatuída na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, vigorou entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, ou seja, 86 dias. ‎

Por força do artigo 6º-B, nº3, da Lei nº 4-B/2021, de 01/02, ocorreu nova suspensão relativa no período temporal de 22/01/2021 a 05/04/2021 [2], num total de 73 dias.

Não obstante não ter havido encurtamento ou ampliação do prazo de prescrição previsto no regime geral em vigor à data da prática da infração, a modificação legal dos factos interruptivos ou suspensivos que resultaram daquelas alterações influi na contagem concreta do prazo de prescrição do procedimento, visto que as concretas causas de interrupção e de suspensão constituem fatores imprescindíveis a ter em conta na determinação do prazo máximo de prescrição do procedimento.

Ora, as normas de prescrição reportam-se ao regime substantivo do facto criminoso ou contraordenacional, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicadas de forma retroativa aos crimes/contraordenações aqui julgados (salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável à arguida – art. 2.º, n.º 1 e 4 do Código Penal e art.2º do RGCO e art.29º, nº1 e 4, da CRP.

Os novos prazos de prescrição e causas de interrupção e suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, bem assim do procedimento contraordenacional e das coimas, sendo prejudiciais ao arguido, pois alargará necessariamente tais prazos de prescrição, apenas poderá ser aplicada para os factos praticados na sua vigência, o que não é o caso dos autos, sob pena de conferir-lhe um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP.

Na doutrina prevalece largamente o entendimento de que às regras referentes ao regime da prescrição do procedimento criminal são aplicáveis as garantias previstas no artigo 29.º da CRP, no tocante à retroatividade da lei penal. Ou seja, às normas relativas a prazos de prescrição, causas de interrupção ou de suspensão, e efeitos da prescrição são aplicáveis as regras vigentes à data da prática da conduta (tempus delicti), proibindo-se a aplicação retroativa das que sejam menos favoráveis ao agente e impondo-se a aplicação retroativa dos regimes mais favoráveis.

O artigo 19.º, nº6, da CRP, expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar […] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos […]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 44/86 [3].

Semelhante entendimento resulta da declaração de voto exarada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2021, onde se refere: «O princípio da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido é valorado de uma forma especial pelo nosso legislador constituinte, sendo tão importante que nem em situação de estado de sítio ou de emergência pode ser suspendido no que respeita a matéria criminal, como decorre do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição – que refere que «A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar (…) a não retroatividade da lei criminal» Esta proibição inclui todas as dimensões de retroatividade, abrangendo também, naturalmente, a aplicação a processos já pendentes de uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição cujo termo não se mostre ainda atingido (a designada retrospetividade ou retroatividade inautêntica)”.

Daqui resulta que o estado de emergência não pode ser usado para afastar a proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional, através do alargamento de prazos de prescrição quanto a factos praticados antes do estado de emergência.

A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais aos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um daqueles diplomas.

No domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem se sobrepor à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.

Neste sentido concluiu a jurisprudência do Ac RC 07-12-2021 (Maria José Nogueira), AC RG 25-01-2021 (Cândida Martinho), RL 9.03.2021 (Vieira Lamim), RE 23.02.2021 (António Condesso), RL 24.07.2020 (Jorge Gonçalves) e RL 21.07.2020 (Ana Sebastião), todos in www.dgsi.pt.

Também assim a doutrina seguida por José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, Juiz de Direito, em “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março - uma primeira leitura e notas práticas” e em “Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a terceira vaga da pandemia COVID-19”, in Julgar online, março de 2020 e fevereiro de 2021, respetivamente, página 7 e página 8.

Do mesmo modo defenderam Rui Cardoso e Valter Baptista, in «Estado de Emergência — COVID-19 — Implicações na Justiça - Jurisdição Penal e Processual Penal», Centro de Estudos Judiciários, abril de 2020, páginas 533 a 536.

Também assim Germano Marques da Silva («Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica», in Revista do Ministério Público, número especial COVID-19: 2020, páginas 109 a 127) e Adriano Squilacce e Raquel Cardoso Nunes, in “A suspensão dos prazos de prescrição em processo penal e contraordenacional por efeito da legislação covid-19” [4], disponível em https://www.uria.com/documentos/publicaciones/7446/documento/foro-port04.pdf?id=12274.

Igual entendimento vemos defendido por Nuno Brandão, “Suspensão da Prescrição do Procedimento Contra-Ordenacional e COVID-19: Retrospectiva sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º500/2021”, in REVISTA PORTUGUESA DE DIREITO CONSTITUCIONAL, Separata, N.º 2 (2022), pg.27ss.

Em sentido contrário encontramos o Ac RL 4.12.2020 (processo 164/19.0YUSTR.L1) e o Ac RL 11-02-2021 (Almeida Cabral) www.dgsi.pt, concluindo que “não se está, aqui, perante uma sucessão de leis penais, mas, antes, perante um “regime temporário de excepção”, o qual, decorrido o tempo, ou deixadas de verificar as circunstâncias que o haviam determinado, cessará todos os seus efeitos, conforme o previsto no n.° 2 do citado art.° 7.°, fazendo com que o anterior “regime” retome a sua vigência e normalidade. Finalmente, também não se poderá dizer que a suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido. É que o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr”.

Também o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a (in)constitucionalidade da norma extraível da conjugação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, segundo a qual a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional estabelecida no sobredito artigo 7.º, n.º 3, é aplicável aos prazos (de prescrição) que, à data da entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, se encontravam já em curso.

Considerou que a suspensão do prazo prescricional prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, configura uma medida, entre várias, tomadas no âmbito da legislação de emergência para fazer face à situação pandémica, que originou o estado de exceção constitucional. O período que mediou entre 9 de março (Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março) e 3 de junho de 2020 (Lei n.º 16/2020, de 29 de maio) foi tido como causa de suspensão do prazo prescricional de procedimentos criminais (e contraordenacionais), em grande medida como decorrência da paralisação da atividade judiciária lato sensu durante esse período.

Numa lógica de diferenciação entre tipos de retroatividade no domínio penal, distinguindo os conceitos de retroatividade direta ou de primeiro grau e “retrospetividade”, também conhecida por “retroatividade inautêntica”, (nesta última a norma não se aplica retractivamente – aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado), o Acórdão TC n.º 500/2021, de 9 de Junho de 2021, acompanhado pelos Ac.s TC nº660/2021, de 29 de julho, e Acórdão n.º 798/2021, de 21 de outubro, decidiu: “Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência”, cuja interpretação tem inteira aplicação, também, à prescrição do procedimento criminal, conforme referido no texto desse acórdão no seu ponto 31.

Baseado na razão de ser desta causa de suspensão, derivada, única e exclusivamente, da situação imprevisível de emergência sanitária que originou o estancamento da atividade judiciária, por um determinado período, o Tribunal Constitucional entendeu que a intenção do legislador foi “a aplicação desta causa de suspensão da prescrição a processos em curso, aquando da sua entrada em vigor, isto é, a factos cometidos antes dessa data, por serem esses mesmos procedimentos que sofreram uma “torção” na sua tramitação com a sustação da respetiva tramitação (ac TC nº660/2021).

Mais concluiu o TC que “a aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto” (ac TC nº660/2021), juízo de não inconstitucionalidade cujos argumentos são replicáveis para os procedimentos de natureza contraordenacional ” ( ac TC 500/2021 e ac TC nº660/2021) [5].

Ora, salvo melhor opinião, a jurisprudência que vemos defendida pelos acórdãos do TC nº500/2021, TC nº 660/2021 e TC nº n.º 798/2021 afronta claramente a proteção do princípio da proibição da aplicação retroativa da lei criminal in pejus, ao considerar que está fora do âmbito de proteção daquele princípio a aplicação imediata de uma nova causa de suspensão a processos em curso quando no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tenha iniciado, mas ainda não se mostre extinto.

De resto, o Plenário do TC nos Acórdãos n.ºs 231/2021, 232/2021 e 319/2021, proferidos em matéria contraordenacional, estando também em causa a introdução de novas causas, bem como a eliminação de outras, de suspensão do prazo de prescrição do procedimento que ainda não atingira o seu termo, considerou que «as normas sobre prescrição do procedimento, para além da indiscutível vertente processual, têm natureza substantiva [o que] determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respetivas normas ao princípio da aplicação retroativa do regime concretamente mais favorável ao agente da infração [significando] que não pode ser aplicada lei sobre prescrição que se revele, em concreto, mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos, bem como deve ser aplicado retroativamente o regime prescricional que eventualmente se mostre, em concreto, mais favorável» (ponto 5).

Independentemente das razões de emergência sanitária que estiveram na base da criação de uma nova causa de suspensão, aquele entendimento afronta a jurisprudência consolidada, inclusivamente do Tribunal Constitucional, segundo a qual as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção do procedimento criminal se inserem nas designadas “normas processuais materiais” [6] e, por isso, também elas vinculadas ao princípio da legalidade (por comportarem elementos relativos à punibilidade do agente), impondo o art.19º, nº6, da C.R.P. limites claros à suspensão do exercício de direitos, especialmente à retroatividade da lei criminal, ainda que em estado de emergência.

De resto, a referência expressa neste art.19º, nº6, à retroatividade da lei criminal não pode deixar de abranger, atenta a sua conexão com o direito penal substantivo, os ilícitos de mera ordenação social, como não os excluem, na interpretação uniforme da doutrina e jurisprudência, os art.s 29º e 32º.

Basta atentar na sua epigrafe para perceber que o legislador constituinte faz uma referência genérica à lei e processo criminal, neles incluído, a passos, o direito das contraordenações, domínio onde são indiscutivelmente aplicáveis, segundo a doutrina e jurisprudência, a generalidade dos princípios estruturantes e garantias processuais neles consagrados, inclusivamente o da proibição da aplicação retroativa da lei criminal in pejus, apesar de nenhuma referência expressa ali existir ao direito das contraordenações, com ressalva do art.32º, nº10.

De outro jeito, em estado de emergência, estaria também aberta a possibilidade de aplicação de normas de conteúdo sancionatório contraordenacional com efeitos retroativos, em clara violação do art.29º, nº4, e mesmo do art.18º, nº3, da C.R.P. [7], e do art.7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição [8], não se vendo razão para o afastar no domínio contraordenacional.

Contudo, diferente desta, outra causa suspensiva se verifica, relacionada com a paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, no domínio criminal e contraordenacional, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020 [9], ou seja, 86 dias, e posteriormente, por força do artigo 6º-B, nº1, e artigo 6º-C, nº1, al.b), da Lei nº 4-B/2021, de 01/02, que determinou nova suspensão no período temporal de 22/01/2021 a 05/04/2021 [10], num total de 73 dias.

Durante estes dois períodos o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, ante a paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos tribunais.

O prazo de prescrição suspendeu-se durante o período em que não foi autorizado legalmente o andamento do processo, ou seja, levantado legalmente o obstáculo legal da suspensão dos atos e prazos no procedimento contraordenacional.

A razão de ser desta suspensão baseia-se, como foi o caso, na existência de um obstáculo previsto na lei, de carácter geral, ao inicio ou continuação do procedimento contraordenacional, “o qual suspende o respetivo prazo de prescrição do procedimento mal o obstáculo legal produza os seus efeitos” [11].

Se determinados eventos excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar ou continuar os seus termos, então, “deve também impedir o decurso do prazo de prescrição. Eliminado esse obstáculo, o (resto do) prazo de prescrição deve voltar a correr” [12].

Ora, aplicando ao caso o regime da suspensão previsto no art. 27ºA, al.a) do RGCO, correspondente ao art.120º, nº1, al.a),do C. Penal [13], já que os procedimentos criminal e contraordenacional não podiam legalmente continuar por falta de autorização legal, essa suspensão limitou-se ao período de 86 + 73 dias, sendo aquela uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos e, por isso, a coberto do princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal e contraordenacional.

No contexto em causa, não podemos aceitar que o legislador tivesse ditado, como resposta coletiva a uma pandemia, nalguns processos e procedimentos, a total inoperabilidade do sistema punitivo e depois, paradoxalmente, legitimar o seu aproveitamento para evitar a punição do ilícito efetivamente cometido.

Assim, embora com fundamento diferente, operou por iguais períodos a suspensão do prazo normal de prescrição.

Levando em conta o contexto legal emergente da resposta dada pelo legislador à contenção dos efeitos da pandemia denominada Covid-19, também o Ac RL 10.02.2022 (Lígia Trovão), www.dgsi.pt, aceitou que a suspensão dos atos e prazos para a prática de todos os atos processuais e procedimentais determinada nessa ocasião integra a previsão do art. 27º-A nº 1 a) do RGCO que estabelece que “A prescrição do procedimento por contraordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento: a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal “.

Assim, improcede a pretensão dos recorrentes quanto à questão da (não) suspensão da prescrição.


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Nulidade das notificações para o exercício do direito de defesa

Vieram os arguidos invocar que não foram regularmente notificados para os efeitos previstos no artigo 50.º do RGCO, o que resulta numa nulidade insanável. 

Isto porque, afirmam:

“(…) notificação por contacto pessoal com o notificando a lei não admite que a mesma seja feita em pessoa diversa daquele (artigo 113.º, n.º 1, alínea a), do CPP)”;

Tendo a Autoridade Administrativa optado por proceder à notificação dos arguidos na modalidade de carta registada com aviso de receção, certo é que:

- não foi identificada a pessoa que recebeu a carta ou aviso (nome completo das pessoas que receberam as respetivas notificações, bem como a sua identificação (número de cartão de cidadão ou outro documento oficial como um passaporte, por exemplo); e

- não foi verificada a capacidade dessa pessoa para transmitir ou comunicar ao arguido o conteúdo da notificação que recebeu ou a capacidade de obrigar a sociedade (circunstância que a Autoridade Administrativa tinha condições de apurar), verificando que dos avisos de receção não resulta a cabal identificação de quem os recebeu,  tinha a obrigação de regularizar tal situação. 

Cumpre apreciar.

Aos arguidos encontram-se imputadas várias contraordenações puníveis pelo DL n.º 35/2019, 11 de março, o qual estabelece o regime sancionatório aplicável ao exercício da atividade da pesca comercial marítima.

O direito de defesa no âmbito do processo contraordenacional consiste numa garantia de natureza constitucional, à imagem do que sucede no processo penal.

O art.º 32.º, n.º10, da Constituição da República Portuguesa prevê expressamente: “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.

No âmbito das contraordenações na atividade da pesca comercial e marítima, o citado DL 35/2019 assegura o cumprimento da referida garantia de defesa, através da notificação do auto de notícia, nos termos do seu art.º 28.º.

Concretamente,

Artigo 28.º - Procedimento contra-ordenacional - Notificações

1 - A notificação do auto de notícia e demais notificações subsequentes efetuam-se:

a) Por contacto pessoal com o notificando no lugar em que for encontrado;

b) Mediante carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando;

c) Mediante carta simples expedida para o domicílio ou sede do notificando.

2 - A notificação por contacto pessoal deve ser efetuada, sempre que possível, no ato de autuação, podendo ainda ser utilizada para qualquer ato do procedimento quando o notificando for encontrado pela entidade competente.

3 - Se não for possível, no ato de autuação, proceder nos termos do número anteriorou se estiver em causa qualquer outro ato, a notificação pode ser efetuada através de carta registada, expedida para o domicílio ou sede do notificando.

(…)

5 - Considera-se domicílio ou sede do notificando o que conste no registo organizado pela entidade competente para concessão de autorização ou licença de atividade ou, subsidiariamente:

a) O que conste na base de dados do cartão do cidadão;

b) O que conste dos autos de contraordenação, nos casos em que o arguido não seja residente no território nacional ou nos casos em que o domicílio ou sede tenha sido indicado pelo arguido aquando da notificação pessoal do auto.

6 - A notificação por carta registada considera-se efetuada no 3.º dia útil posterior ao do envio, devendo a cominação constar do ato de notificação.”

Dos autos resulta que a autoridade administrativa procurou notificar os arguidos para se pronunciarem nos termos e para os efeitos previstos no art.º 50.º do RGCO, mediante carta registada expedida para o domicílio e para a sede dos notificados, sob registo ... (sociedade  arguida) e ... (arguido).

Não vem questionado pelos recorrentes arguidos que as cartas registadas emitidas pela autoridade administrativa, nos termos do citado art.50º, foram expedidas no dia 7.04.2020 para o domicílio do arguido e para a sede da sociedade  arguida (notificandos).

É certo que tais cartas registadas foram acompanhadas do respetivo aviso de receção, constantes dos autos, o que não obsta à regularidade da notificação nos termos do citado art.28º, nº1.

As referidas cartas registadas foram efetivamente entregues no dia 8.04.20200 na morada/sede dos respetivos destinatários, a um terceiro, de nome “BB”, que se encontrava na morada/sede indicada e as recebeu, a coberto do art.113º, nº7, do Código Processo Penal, aplicável ex vi art. 41º do RGCO quanto ao arguido (pessoa singular) e do art.223º, nº3, do Código Processo Civil, aplicável ex vi art. 41º do RGCO e art. 4º do Código Processo Penal [14].

No caso haverá de se presumir, salvo prova em contrário, que essa pessoa se declarou em condições de entregar as cartas aos destinatários e que o fez, não obstante se ter recusado facultar, como anotado nos respetivos avisos de receção, a sua identificação completa, o que não afeta a validade da notificação, como não a afetaria a recusa de assinatura do aviso de receção [15].

Presumindo-se feita a notificação (art.113º, nº2, do Código Processo Penal, aplicável ex vi art. 41º do RGCO), só pode ser ilidida pelo notificado.

Como vem sendo pacificamente defendido pela jurisprudência, para ilidir a presunção quanto à notificação, cabe ao notificando alegar e provar os factos necessários para demonstrar que não recebeu a notificação e por causa que não lhe é imputável, devendo invocar tal questão no requerimento de impugnação judicial.

Ora, nenhuma violação do princípio da proibição de indefesa consagrado nos artigos 20.º, nº1, e 32º, nº1, da C.R.P., ocorre em torno da possibilidade de os arguidos ilidirem a presunção da sua notificação.
Com efeito, não obstante o ónus da prova que lhes incumbia, os arguidos aceitaram, sem produção desta, a prolação de  decisão por despacho, ao qual não se opuseram, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 64.º do RGCO, donde o Tribunal a quo ter logo anunciado que assim decidiria, como o fez através do despacho recorrido.
A notificação considerada pelo tribunal a quo, seguindo o procedimento legal previsto :
- não só dá garantias mínimas de segurança e fiabilidade de comunicação do ato na morada ou sede dos arguidos;
- como não foi tornado impossível ou excessivamente difícil ilidir a presunção de recebimento oportuno desse ato.

Em sede de impugnação judicial a arguida teve o ensejo de se defender sobre essa questão de facto.

Concretamente, os arguidos tiveram oportunidade de demonstrar que “BB, terceira pessoa que recebeu as cartas para notificação nos termos do art. 50º, do RGCO, nenhuma ligação tinha com os arguidos, bastando juntar certidão de registo permanente da sociedade arguida, em vez do excerto recortado e copiado apara a impugação judicial, para se perceber se era ou não cônjuge do arguido /gerente. 

Como se observou, não foi por impedimento, compressão ou cerceamento do seu inquestionável direito de defesa que os arguidos não apresentaram e produziu defesa a esse respeito.
Sindicar agora o julgamento dos factos sobre o conhecimento que os arguidos tiveram do ato da notificação, questão objeto da sua impugnação judicial, seria o mesmo que admitir o inaceitável recurso sobre matéria de facto (art.75º, nº1, a contrario, do RGCO)  

Seja como for, para terminar, estranha-se que os arguidos tivessem questionado em de notificação do art.50 do RGCO, a idoneidade e transmissão da notificação por aquela BB, melhor identificada noutras notificações aos destinatários, sem impugnar outrossim estas últimas, como foi o caso das notificações de decisão final administrativa e da convocação para julgamento.

Pelo que, à evidência, cumpre concluir que os recorrentes foram regularmente notificados – por via postal registada – nos termos dos normativos legais ante enunciados, para os efeitos previstos no art. 50º do RGCO, podendo exercer cabalmente o seu direito de defesa.

Do que vem sendo dito, resta concluir pela existência e validade de notificação efetuada para os arguidos exercerem o direito de defesa, nos termos do art.º 50.º do RGCO.


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3. DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e em consequência confirmar a decisão recorrida.


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Custas pelos recorrentes arguidos, fixando-se a taxa de justiça individual em 4 (quatro) UC (arts. 513º, nº 1, do CPP, ex vi do art. 74º, nº 4 do RGCO e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).

Notifique.

(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).


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Porto, 21.02.2024
João Pedro Preira Cardoso
Elsa Paixão
William Themudo Gilman
_________________________
[1] Cfr. art. 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua versão original, que declarou suspensos os prazos de prescrição do procedimento criminal, aplicável com as necessárias adaptações a “procedimentos contraordenacionais”, por força da remissão do nº6, do art.7º, o mesmo se passando com o art. 6.º-B, n.º 3 da referida lei, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro.
[2] No que ao caso interessa a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, no seu artigo 6.º-B, n.º 1, veio suspender todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais e Ministério Público.
E o artigo 6.º-C, no seu nº1, alínea b), veio suspender os prazos para a prática de atos em procedimentos contraordenacionais.
Apesar da entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 5.º), a produção dos seus efeitos retroagiu à data de 22 de janeiro de 2021 (artigo 4.º).
Tais prazos apenas deixaram de estar suspensos até 5 de abril de 2021, uma vez que os referidos artigos 6.º-B e 6º-C, foram revogados pelo artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05 de abril, e cuja entrada em vigor se deu a 06 de abril de 2021 (artigo 7.º).
[3] Neste sentido são também claros os Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º 1), 17-A/2020, de 2 de abril (artigo 7.º, n.º 1), e 20-A/2020, de 17 de abril (artigo 6.º, n.º 1), que o renovaram.
[4] Concluindo que “o facto de a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e de a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, corresponderem a leis temporárias não altera a circunstância de o alargamento de prazos prescricionais, que foi ditado por uma lei nova, não poder ser aplicado retroativamente. Isto porque o problema de fundo continua a ser um problema de sucessão de leis no tempo. Ora, estando em causa um problema de sucessão de leis no tempo, vigora o princípio da não aplicação retroativa da lei penal, em especial na vertente da não aplicação ao agente de um regime legal mais desfavorável do que aquele que vigorava ao tempo da prática do facto. A circunstância de a Lei n.º 1-A/2020 (incluindo as suas sucessivas alterações, nomeadamente pela Lei n.º 4-B/2021) ser uma lei temporária significa apenas que, aos factos praticados durante a sua vigência, aplicar-se-ão as regras prescricionais aí definidas (cfr. artigo 2.º, n.º 3, do Código Penal e artigo 3.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações).Ou seja, quando estão em causa questões substantivas, mesmo a lei temporária vale, única e exclusivamente, para o futuro e não para o passado”.
[5] No mesmo sentido, o aresto vindo de referir, cita GIAN LUIGI GATTA, segundo o qual “quando o prazo de prescrição não tenha ainda atingido o seu fim, ao determinar o prolongamento – como no caos da suspensão motivada pela pandemia –, a lei superveniente não torna punível um facto não punível: ela limita-se a conceder ao Estado, por qualquer motivo, neste caso por força de uma emergência sanitária, mais tempo para apurar os factos e a responsabilidade criminal. O direito de defesa não resulta, de modo algum, comprometido e o Estado não abusa do poder punitivo, nem frustra aquela exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal: como mostra a própria disciplina da prescrição do crime (…) o momento em que se cumpre a prescrição é, na verdade, variável e em boa medida imprevisível antes da prática do facto, quando o agente nem sequer sabe se alguma vez será alvo de um procedimento criminal (cfr. “Lockdown da justiça penal, suspensão da prescrição do crime e princípio da irretroatividade: um curto-circuito”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Separata, Ano 30, n.º 20, maio-agosto 2020, Gestlegal, pág. 312 e 313).
[6] Também assim o AUJ do STJ nº4/2011, de 13 de janeiro, in Diário da República n.º 30/2011, Série I de 2011-02-11, páginas 769 - 780: “Na discussão sobre a natureza jurídica da prescrição, centrada na prescrição do procedimento criminal, domina, actualmente, uma concepção mista que vê na prescrição um instituto jurídico tanto substantiva como processualmente relevante e fundado
[7] Com o entendimento que o princípio da proibição da retroatividade de normas contraordenacionais não decorre do art.29º, nº4, mas sim do art.18º, nº3, da C.R.P. veja-se o ac TC 608/2013 (Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros).
[8] Neste sentido, a declaração de voto constante do ac TC nº660/2021 (Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros), embora restrita aos processos de natureza criminal, por aceitar que a norma em causa não é inconstitucional em matéria contraordenacional.
[9] Por foça das alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, veio a ser modificada, pela quarta vez, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que, por efeito dos seus artigos 2.º e 8.º, revogou o artigo 7.º deste último diploma e aditou um regime transitório dirigido à realização de audiências de discussão e julgamentos e outras diligências processuais (cfr. artigo 6.º-A, n.ºs 1 a 5), mantendo, ainda assim, um conjunto de prazos processuais suspensos (cfr. artigo 6.º-A, n.º 6).
As alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, entraram em vigor no dia 3 de junho de 2020 (art.10º), pelo que, para o que releva para a presente decisão, da conjugação dos diplomas acima escrutinados resulta que o período da suspensão dos atos e prazos processuais e procedimentais estatuída na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, vigorou – como sobredito - entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, ou seja, 86 dias.
[10] No que ao caso interessa a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, no seu artigo 6.º-B, n.º 1, veio suspender todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais e Ministério Público.
E o artigo 6.º-C, no seu nº1, alínea b), veio suspender os prazos para a prática de atos em procedimentos contraordenacionais.
Apesar da entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 5.º), a produção dos seus efeitos retroagiu à data de 22 de janeiro de 2021 (artigo 4.º).
Tais prazos apenas deixaram de estar suspensos até 5 de abril de 2021, uma vez que os referidos artigos 6.º-B e 6º-C, foram revogados pelo artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05 de abril, e cuja entrada em vigor se deu a 06 de abril de 2021 (artigo 7.º).
[11] Tiago Lopes de Azevedo, in Lições de direito das contraordenações, Almedina, 2020, pg.223
[12] Pedro Gama da Silva, in A Prescrição no Direito Penal Português, Almedina, pg. 117 e Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime. Aequitas- Editorial Notícias, 1993, pg.711.
[13] No direito comparado encontramos paralelo deste segmento normativo no código penal alemão (§ 78b num.2) e no código penal italiano (art.159º).
[14] Veja-se a jurisprudência seguida pelo Ac RL 19/02/2018 (processo n.º385/17.0Y4LSB.L1-3) e Ac RE 11/07/2013 (Proc. n.º 45/13.0TBETZ.E1), www.dgsi.pt, segundo a qual: a notificação das sociedades e demais pessoas colectivas ao abrigo do Recurso (Contraordenação) Decreto-Lei n.º 433/83, de 27.10, que aprovou o Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCOC), deve ser feita nos termos das citações destas em processo civil, ou seja, segundo o artigo 223º/CPC, na pessoa dos seus legais representantes ou na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração”.
[15] Repare-se que ao tempo ainda não vigorava a Lei 10/2020, de 18 de abril, que aprovou o regime excecional e temporário quanto às formalidades da