Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
629/22.6T8OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: PERSI
PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO
COMUNICAÇÃO
CARTA
Nº do Documento: RP20231012629/22.6T8OVR-A.P1
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: I - A eficácia probatória de um documento particular impugnado (fora das situações dos artigos 444º e 446º do CPC) diz apenas respeito à materialidade das declarações e já não à exatidão das mesmas. Assim, tais documentos, juntos, cujo conteúdo está sujeito à regra da livre apreciação, têm de ser conjugados com a restante prova produzida, nomeadamente testemunhal, mais se recorrendo a juízos de normalidade e regras da experiência comum.
II - Tem de admitir-se a corroboração periférica, que não apenas direta, por testemunhas, quanto ao envio de cartas ou comunicações, a partir do qual pode presumir-se, como presunção natural, a sua receção pela embargante, sem prejuízo desta ilidir tal presunção; mormente quando outros fatos indiciários sejam confirmatórios desta evidência empírica de recebimento/entrega das cartas ou comunicações. Assim o significado da quantidade de comunicações juntas; o comportamento processual da embargante mesma, traduzido na posição assumida nos autos na sequência da notificação daquela documentação; o lapso de tempo decorrido entre o adquirido incumprimento e o pagamento das prestações como fato extintivo do PERSI comunicado.
Demonstrado o envio das comunicações para a residência confessadamente da embargante, na ausência bem assim de qualquer fato susceptível de tornar duvidosa a entrega ou receção das comunicações, lícito o juízo probatório quanto ao seu recebimento.
III - O art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efetivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito.
IV - Deve ser exercitado oficiosamente sempre que, objetivamente, a ampliação a fazer importe a afirmação probatória de factos essenciais alegados como causa de pedir ou de defender, mesmo quando conferem um possível enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal de 1.ª instância, crucial para a correta decisão de mérito da causa.
V - Nas situações de imputabilidade ao executado/embargante da não receção das comunicações de instauração e/ou extinção do PERSI é de entender-se cumprida a obrigação mediante o mero envio de carta, não obstante a natureza de declarações recetícias. A comunicação da alteração da morada é um ónus do cliente bancário e a falta de cumprimento do mesmo é da sua responsabilidade. Caso seja endereçada a correspondência para a morada que foi efetivamente disponibilizada ao banco tem de se considerar cumprida a obrigação de notificação para os termos do PERSI.
VI - No caso de contratos subjacentes aos títulos exequendos que já tiveram por finalidade a regularização de responsabilidades assumidas pela Embargante perante a credora originária, respeitando a créditos consolidados; caracterizados sucessivos/vários incumprimentos, sinalizados/avisados pela credora cedente, a qual aceitou os reiterados pagamentos em atraso, a cessação ulterior de quaisquer pagamentos em cada um dos créditos exequendos, sem retoma ou amortização, sequer parcial e a frustração da possibilidade de negociação/renegociação por via da alteração não comunicada do domicílio são suficientes a caraterizar um comportamento contrário à boa fé pela executada na invocação da falta de verificação de pressuposto (antecedente) da instauração da ação executiva, por omissão de integração obrigatória dos Embargantes no PERSI, ainda quando não estivesse verificado o cumprimento exato das disposições do decreto-lei n.º 227/2012 de 25 de outubro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 629/22.6T8OVR-A.P1
(Comarca de Aveiro, Juízo de Execução de Ovar, 3º Juízo).


Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Isoleta Almeida Costa
2º Adjunto: Leonel Serôdio

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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:


I.
A sociedade comercial “A..., S.A.R.L.”, pessoa coletiva n.º ...90, com sede social em ..-.. rue ..., na qualidade de cessionária, instaurou, em 29.03.2022, no Juízo de Execução de Ovar, execução na forma ordinária do processo comum para pagamento de quantia certa, fundada em duas livranças emitidas em 05/04/2018 pela sociedade comercial “Banco 1..., S.A.”, com o NIPC ...21, conforme os documentos originais que se encontram juntos a fls. 32 e 33 dos autos principais, contra AA, com o NIF ...92, atualmente com residência na Rua ..., ..., em Aveiro, para obter o pagamento da quantia global de €25.971,84 (vinte e cinco mil novecentos e setenta e um euros e oitenta e quatro cêntimos), correspondente aos valores inscritos em cada livrança, acrescidos de juros moratórios à taxa legal contabilizados desde a data de vencimento até à presente data, assim discriminada: livrança n.º ...03, preenchida pelo valor de €19.669,60 (dezanove mil seiscentos e sessenta e nove euros e sessenta cêntimos); livrança n.º ...90, preenchida pelo valor de €6.302,24 (seis mil trezentos e dois euros e vinte e quatro cêntimos); mais peticionando o pagamento dos juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Veio a Executada deduzir embargos à execução, alegando, em síntese, por via de exceção, a falta de integração da Embargante no PERSI, aprovado pelo DL 227/2012, de 25/10 (arts. 1.º a 34.º da petição de embargos); a falta de comunicação da resolução dos contratos subjacentes à emissão das livranças exequendas, não podendo ser, consequentemente, exigidas imediatamente todas as prestações daqueles contratos (cf. arts. 45.º e 46.º da petição de embargos); a Prescrição do capital e juros (cf. arts. 54.º a 58.º da petição de embargos).
Por via de impugnação, a Embargante impugnou que o crédito sobre ela tivesse sido cedido à Exequente (cf. arts. 35.º a 41.º da petição de embargos).
A sociedade exequente, na contestação apresentada, respondeu às exceções invocadas pela Embargante e, no mais, impugnou os fundamentos da oposição nos termos alegados, tendo, para aquele efeito, juntado os instrumentos relativos aos contratos de crédito subjacentes à emissão de cada uma das livranças exequendas, bem como diversos documentos destinados a comprovar a notificação da Embargante para regularização de situações de incumprimento.
Proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento executivo (cf. fls. 88 e 89 dos autos), a Exequente veio indicar qual o contrato subjacente a cada uma das livranças exequendas, a causa de cessação de ambos os contratos e as datas de incumprimento de cada contrato de crédito (cf. requerimento apresentado a 29/11/2022).
No início da audiência prévia, a Embargante desistiu de invocar a prescrição alegada no art. 54.º da petição de embargos.
Foi proferido despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, ali se identificando como questões a solucionar as de saber: se o credor (originário ou cessionário) integrou a Embargante no PERSI; se a titularidade do crédito exequendo foi transmitida para a cessionária Embargada; se no momento do preenchimento das livranças exequendas os respetivos contratos fundamentais tinham cessado por resolução ou vencimento imediato antecipado.
Realizado o julgamento, foi proferida a sentença, na qual se julgaram os Embargos de Executado totalmente improcedentes, e, em consequência, se determinou que a execução prosseguisse para cobrança das quantias peticionadas no requerimento executivo.
Da mesma foi interposto recurso de apelação pela embargante-executada, a qual conclui pela forma seguinte:
a) O presente recurso versa sobre os factos que, salvo o devido respeito, se consideram indevidamente dados como provados, por referência à prova testemunhal e documental produzida, como sobre a subsunção dos factos à matéria de Direito.
b) A Recorrente entende que não deveriam ter sido dados como provados os factos i); j); k); e p) da Sentença Recorrida.
c) Desde logo, porque o Tribunal a quo o faz por referência a documentos que foram, devidamente, impugnados pela Embargante e que, depois, não foram corroborados por outro qualquer meio probatório que permitisse corroborar a sua valência.
d) Por outro lado, parte desses documentos correspondem a alegadas cartas, sendo que na fundamentação da Douta Sentença se considera não só os documentos em si, como ainda se assume que a narrativa (teor) do que ali consta sucedeu efetivamente, nomeadamente que existiram pagamentos de prestações por parte da Embargante; no entanto, tais pagamentos não constam de qualquer facto efetivamente dado como provado (e, entendemos nós, também não se poderia considerar provado algo só porque é relatado numa carta, sem prova direta de que esse relato é verdadeiro).
e) Depois disto, o Tribunal a quo, embarca numa série de presunções sucessivas e interligadas, para dar como provados factos desconhecidos e sobre os quais não foi feita qualquer prova direta e, entendemos nós, sequer indireta ou indiciária.
f) Em suma, o Tribunal a quo assume que se foram efetuados pagamentos (pagamentos esses que não resultam dos factos provados) pela Embargante após o alegado envio das missivas em causa, tal permite concluir e dar como seguro, certo e infalível que assim sucedeu necessariamente porque esta teve conhecimento daquelas cartas e da sua integração no “PERSI”.
g) Omite-se, aqui, a possibilidade (também ela lógica e provável) da Embargante (a ter pago as prestações) tê-lo feito espontaneamente no cumprimento do contrato que outorgara com o Banco, sem ter recebido qualquer comunicação ou ter a consciência de ter sido integrada num qualquer PERSI.
h) Ademais, concluir que o pagamento era realizado pela Recorrente na estrita sequência da comunicação do incumprimento, pressupunha, no mínimo, que as cartas que se mencionam no facto provado i), eram as que levariam à recorrente o conhecimento, em primeira mão, da situação de incumprimento.
i) Sucede que, analisando o conteúdo daquelas missivas, verificamos que em ambas se dispõe: “Verificado este incumprimento, determina o diploma legal atrás referido que informemos V. Exa., por esta via, que o(s) seu(s) crédito(s) passou(aram) a estar incluído(s) no Procedimento Extrajudicial de Regularização das Situações de Incumprimento (PERSI), já anteriormente comunicado pela nossa carta de 2018-03-20.”
j) Vejamos que, o Tribunal A Quo dá como provado que a Recorrente tomou conhecimento das missivas datadas de 27/04/2018 e 22/05/2018, pelo simples facto de, posteriormente ao alegado envio dessas comunicações, esta ter regularizado a situação de incumprimento.
k) Questiona-se, no entanto: se é este o fator preponderante para a prova da receção das ditas cartas, o mesmo não é dar como provado que a Recorrente nunca recebeu as alegadas missivas datadas de 20/03/2018, na qual, supostamente, havia sido comunicada a integração PERSI por verificação de situação de incumprimento?
l) Na ótica do Tribunal a Quo, não teria a recorrente regularizado a sua situação de incumprimento, logo perante o alegado envio das missivas datadas de 20/03/2018? Ou será que estas missivas nunca foram enviadas? Não tendo sido enviadas e estando juntas aos presentes autos, que garantia há que as demais saíram algum dia da esfera de Recorrida?
m) O mesmo raciocínio é de aplicar aos factos provados j) e k), na qual a presunção assumida pelo tribunal A Quo se torna ainda mais difícil de conceber.
n) Veja-se que, as missivas datadas de 11/05/2018 e de 01/06/2018, que se dizem ter chegado ao conhecimento da recorrente no facto provado j), correspondem, pelo que se pode vislumbrar pelo documento 1 da contestação da recorrida, a comunicações de Extinção de PERSI. Ora, não havendo nenhuma conduta da Recorrente que pudesse pressupor a receção dessas missivas, torna-se muito duvidoso dar-se como provado que esta as recebeu, por simples analogia às demais.
o) No mesmo sentido, as missivas que se provam ter chegado ao conhecimento da Recorrente no facto provado k), expõem somente a situação de mora, não se tendo provado posteriormente a essas missivas, qualquer regularização de incumprimento por parte da Recorrente.
p) Não havendo prova documental ou testemunhal que torne indubitável que a recorrente recebeu aquelas comunicações, ou que estas sequer chegaram a sair da central da entidade bancária, não pode o Tribunal A Quo presumir que os pagamentos foram realizados em consequência de aquelas missivas terem chegado ao conhecimento da Recorrente.
q) Menos ainda, pode dar como provado que, se tomou conhecimento daquelas primeiras missivas, então também terá tomado conhecimento da demais- constantes nos factos provados j) e k).
r) O próprio tribunal A Quo, acaba por referir que, a única testemunha ouvida em sede de Audiência e Julgamento não conseguiu confirmar se as cartas teriam sido colocadas em distribuição, tal como resulta da Douta Sentença e, de mais a mais, se reforça pelos minutos da gravação do depoimento desta, elencados na Alegação que antecede.
s) Não ignoramos o mecanismo que subjaz ao raciocínio do Tribunal a quo, de presumir algo a partir de um dado conhecido, no entanto, tal raciocínio é, antes de mais, falível e não confere um grau de certeza bastante, a não ser quando se consegue afirmar que a única causa possível para o evento desconhecido é um evento conhecido.
t) Mas, sufragamos a opinião de que para enveredarmos por semelhante caminho, de prova necessariamente indireta e assente em presunções, se deveria ter assente nos autos que a prova direta de tais factos não se afigura possível, nem está disponível. Deveria demonstrar-se, antes de mais, que não era possível (e porquê) efetuar-se prova direta sobre os factos em causa, para depois, com parcimónia e cautela, recorrer-se a prova indireta ou indiciária. Tal não foi o caso, nem sequer é previsível que o fosse.
u) Mas, mais grave é notar que, data venia, aquilo que o Tribunal a quo entende serem os dados disponíveis no processo (através dos quais presume outros) não são, nem mais nem menos, do que presunções (anteriores) deste mesmo Tribunal. Data venia, a Douta Sentença salta de presunção em presunção, a tal ponto que o primeiro facto presumido é usado para presumir um segundo, que na realidade é o “facto” que permitiu presumir o primeiro, num raciocínio, a nosso ver e salvo o devido respeito, falacioso.
v) É que: o Tribunal a quo presume que existiram pagamentos, socorrendo-se do teor de determinadas cartas… e, depois, presume que estas cartas são boas – e foram enviadas e recebidas - com base na “existência” de pagamentos… pagamentos esses que tinha presumido inicialmente por recurso ao teor destas cartas. Uns presumem os outros e vice-versa e acabamos a assentar presunções umas nas outras e já não em factos verdadeiramente provados ou conhecidos.
w) Presume-se, também, que o Banco não iria inventar aquelas cartas, o que em si mesmo é falacioso, desde logo porque se omite que não se sabe, sequer, se o Banco (que não é parte) foi o Autor das cartas (ou se estas foram forjadas), mas acima de tudo porque se omite, também, que bastaria um simples erro informático, ou até um simples erro humano na inserção de dados por referência a um determinado cliente, para gerar todo um equívoco e, potencialmente, cartas com informação errada.
x) Aliás, seria fácil para o Embargante arrolar prova, testemunhal ou documental, tangível para estes factos, até porque foi expressamente alertado e advertido, em Audiência Prévia e Despachos posteriores, de que teria de provar tais factos, os quais não foram provados e não deveriam ser presumidos, uns atrás dos outros e uns na dependência dos outros.
y) Assim, deveriam ter sido dados como não provados os factos i), j) e k), considerados como Provados na Douta Sentença Recorrida.
z) Já quanto ao ponto p) dado como provado, adianta-se que a Embargante, ao contrário do que se refere na Douta Sentença, se manifesta contra a legitimidade da Embargada e do Contrato de Cessão de Créditos, logo no seu requerimento inicial de Embargos, concretamente nos artigos 35 a 41 daquela Peça.
aa) Depois, constata-se que este facto é também ele feito com recurso a presunções e não a prova verdadeiramente direta, quando teria sido simples para a Embargada requerer que, por exemplo, se oficiasse ao Cessionário para confirmar se a cessão era, ou não, verdadeira e ter prova direta de tal facto.
bb) Pelo contrário, tal não sucedeu e vemos depois ser presumida a bondade de um documento, que está impugnado e a que nenhuma testemunha se referiu, com recurso ao seu layout ou porque se assemelha a outros juntos a processos judiciais, o que a nós se apresenta como contrário às regras que regulam a Produção e Valoração de Prova.
cc) Por conseguinte, também este facto p) deveria ter sido dado como não provado.
dd) Fica claro que não foi produzida prova para que aqueles factos sejam dados como provados o que, mencione-se, tem uma gravidade acrescida pelo facto de, para o PERSI que efetivamente releva nos presentes autos, se concluir da seguinte forma:“ Da factualidade acima descrita, tem que se concluir que a Embargante, pelo menos no período entre 2018 e 2019, teve várias oportunidades, a maioria delas concretizadas, para reatar o cumprimento com normalidade dos dois contratos, tendo beneficiado, pelo menos, dois PERSI (dado que é possível integrar o cliente bancário num único procedimento já pendente – cf. art. 14.º, n.ºs 3 e 4 DL nº 227/2012) no início dos respetivos planos financeiros de pagamento. No momento da cessão não existia nenhum procedimento em curso que obrigasse a Embargada a prosseguir (cf. art. 18.º n.º3 do DL n.º 227/2012). Daí vem que se impõe concluir que a Embargante não viu frustradas as garantias concedidas ao cliente bancário pelo artigo 18.º do mesmo diploma legal, designadamente, teve diversas oportunidades para regularizar as situações de incumprimento. Embora só tivesse sido integrada formalmente no PERSI em relação às duas primeiras prestações dos planos financeiros de cada contrato, há que entender que as finalidades substanciais daquele procedimento que o legislador pretendeu foram atingidas por outra via, tendo a credora cedente sinalizado os sucessivos incumprimentos, tolerando os reiterados pagamentos em atraso, e foi assim até aquela credora concluir pela incapacidade da embargante para cumprir, de forma continuada, as obrigações que havia assumido.”[…]
ee) Veja-se que, na Douta sentença, considera-se que se deu cumprimento às garantias concedidas ao cliente bancário, estabelecidas no artigo 18.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, com base na alegada integração em PERSI anteriores.
ff) Ora, o enquadramento realizado pelo Tribunal A Quo, representa um desvio ao procedimento estabelecido no Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro, quando considera que, em ambos os contratos, a Recorrente beneficiou do PERSI no ano de 2018.
gg) Obrigando aquele Decreto-Lei ao cumprimento de diversas garantias ao cliente bancário, não se pode negligenciar esses mesmos direitos, reportando o caso concreto a PERSI anteriores. A extinção de um PERSI, nos termos disposto no artigo 18.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro, obriga, necessariamente, a que verificando-se nova situação de incumprimento, todo o procedimento se reinicie.
hh) Quer isto dizer que, extinguindo-se um PERSI, por qualquer das razões que lhe dão, a verificação de novo incumprimento consubstancia razão para que se comunique novamente a integração em PERSI, totalmente impendentemente do anterior.
ii) Assim, após a extinção de cada PERSI, e perante a verificação de nova situação de incumprimento, será sempre obrigatória a integração em novo PERSI, devendo-se garantir que tal integração chega ao conhecimento do recorrente. No mesmo sentido, para que pudesse executar a garantia, era condição obrigatória que a Recorrida tivesse comunicado a extinção do PERSI.
jj) O próprio tribunal A Quo reconhece que a extinção do PERSI em 2018, resultou da regularização da situação de incumprimento. Pelo que, reitere-se, nova situação de incumprimento, daria sempre lugar a novo PERSI, sem que em lugar algum da legislação aplicável, se possa encontrar procedimentos simplificados para segundas ou terceiras situações de incumprimento.
kk) A contrário do que se menciona nas conclusões da sentença proferida pelo tribunal A Quo, a Recorrente viu negligenciadas as suas garantias, tendo em conta que, ainda que a Recorrente tivesse recebido a comunicação do preenchimento da livrança, – correspondente ao documento 3 da contestação da recorrida-, que se prova que não recebeu, esta não se pode confundir com a comunicação de integração em PERSI.
ll) Relembre-se ainda que, estando em causa dois contratos de crédito, sendo que, somente é junta aos autos a alegada integração em PERSI relativamente a um deles – correspondente à missiva datada de 15-07-2021-, comunicação essa que, diga-se, nunca chegou a conhecimento da Recorrente.
mm) Ademais, não há sequer evidência de que se tenha tentado comunicar a extinção desse procedimento, pelo que, claro está, a integração e tramitação do PERSI foi amplamente violada em, ambos os contratos.
nn) Cumpre ainda acrescentar que, nos contratos de crédito em causa, não existe domicílio convencionado, pelo que impende sobre a recorrida assegurar que a missiva é efetivamente recebida pela Cliente. Ora, apresentar uma carta, ainda que se admita que consubstancie suporte duradouro, em nada prova que a comunicação foi algum dia expedida, não havendo qualquer registo de entrega daquelas cartas junto dos CTT.
oo) Temos em crer que, ainda que a Recorrida juntasse aos autos todas as missivas de integração e extinção em PERSI, que bem se sabe que não juntou por nem existirem, em momento algum se prova que estas comunicações tenham saído da central da instituição bancária. Assim, as garantias da Recorrente foram executadas, sem que o procedimento pressuposto fosse iniciado em consequentemente sem que fosse extinto.
pp) Deste quadro factual resulta inequívoco que não se deu cumprimento ao disposto nos artºs 14º a 20º do Dec. Lei 227/12 de 25 de Outubro, devendo ser revogada a douta Sentença e deliberado que a execução deve prosseguir por inexistência de excepção de inexigibilidade da cobrança coerciva.
qq) Pelo que, entre outros, foram violados os artigos 14º, nºs 1 e 4; 15.º; 17.º n.º3 e 18º, nº 1, alínea b) e do DL 227/2012;
- pede seja revogada e substituída por Douto Acórdão que absolva a Recorrente do pedido executivo.

Contra-alegou a exequente-embargada, concluindo como segue:
A. A Recorrente celebrou vários contratos com o então Banco 1... SA;
B. A Recorrente não conseguiu cumprir esses contratos;
C. Os contratos subjacentes às Livranças em crise são contratos de reestruturação de responsabilidades;
D. Esses contratos de reestruturação de responsabilidades são em si mesmos uma forma de condensar os vários créditos anteriormente constituídos ficando a pagar uma só prestação, como forma de auxiliar o cliente bancário a endireitar-se;
E. Nem esse contrato de reestruturação de responsabilidade a Recorrente cumpriu;
F. Todas as comunicações com a Recorrente foram efetuadas para a sua morada, a que consta do contrato, mas curiosamente (ou não) só as cartas relacionadas com a integração e incumprimento do PERSI é que alegadamente não chegaram ao conhecimento da recorrente;
G. Mas logo após o envio das cartas do PERSI a recorrente efetuou dois pagamentos;
H. A recorrente vem a alterar a sua morada em 2020 e aqui alega que não recebeu as cartas posteriores à sua alteração de morada, mas não informou devidamente o Banco dessa alteração para que pudesse ser tido em conta em eventos futuros, como ditam os bons costumes bancários;
I. No que respeita ao testemunho do funcionário do Banco há a dizer o seguinte: o mesmo referiu não ter tido conhecimento direto no negócio sub judice, demonstrando conhecimento da pessoa da Recorrente, tendo ainda falado nos procedimentos habituais que são levados a cabo nas situações semelhantes;
J. E confrontado com as inúmeras cartas elaboradas pelo Banco 1..., SA, o funcionário confirmou ser aquele o procedimento habitual e que, no fundo, era o pretendido: saber se tais cartas correspondiam à prática corrente nas situações de incumprimento e integração no PERSI;
K. Essa prova foi feita: é, de facto, o procedimento normal e as cartas que lhe foram apresentadas correspondem às que tantas e tantas vezes lhe passaram pelas mãos;
L. Pretender que a testemunha saiba se as inúmeras cartas foram efetivamente enviadas é exigir-se uma prova diabólica, impossível de ser alcançada;
M. Como muito bem dita a Douta Sentença, foram emitidas inúmeras cartas de PERSI a comunicar incumprimento; Que sentido teria se as mesmas não tivessem sido enviadas à Recorrente? Gastar tempo e papel com a elaboração de inúmeros cálculos e inúmeros avisos de incumprimento? Ou da extinção do procedimento?
N. Facilmente se descortina que se trata de uma tentativa desesperada para se furtar às responsabilidades;
O. Posto isto, nenhuma censura merece a Douta Sentença recorrida;
P. Alega a ora Recorrente que é ineficaz qualquer cessão de créditos celebrada entre o Banco 1..., SA e a Recorrida, por não lhe ter sido comunicada, em observância do disposto no artigo 583º do Código Civil;
Q. A citação, como ato pelo qual se dá conhecimento a uma pessoa de que foi proposta contra ela determinada ação, cujo conteúdo lhe é dado conhecimento, cumprirá plenamente essa função;
R. A ineficácia da cessão relativamente à pessoa da Recorrente perdurou, quanto muito, até à data da citação;
S. “Uma vez citado, o devedor cedido não está mais numa situação de ignorância que deva ser protegida, (…) não poderá ignorar a transmissão (ainda que hipotética) e cumprir com eficácia, perante o antigo credor. Se assim fizer, se cumprir perante o antigo credor, o cessionário poderá invocar o nº2 do artigo 583 e exigir novo pagamento – Assunção Cristas, ob. cit. pág. 64.;
T. Já no que respeita à cessão em si mesma ressalta novamente à vista a audácia da Recorrente, que chega a ser até hilariante.;
U. A Recorrida provou ter ocorrido a cessão de créditos;
V. Juntou apenas e só – por se tratar de dados pessoais, protegidos por sigilo – a folha do contrato de cessão onde vem a menção do específico crédito cedido em crise;
W. Pelo que tudo se encontra devidamente provado, não se entendendo a razão de fundo para a questão colocada pela Recorrente;
X. O Douto Tribunal recorrido aceitou o documento anexo ao contrato de cessão pelo facto de, no âmbito das suas funções, esse mesmo documento não lhe ser estranho, sendo, até, bastante comum nas várias cessões de créditos em massa como é o caso dos autos;
Y. O Douto Tribunal recorrido não está cingido unicamente às provas que lhe são oferecidas tout court, podendo apreciá-las livremente: é o denominado princípio da livre apreciação da prova.
Z. O Douto Tribunal a quo apreciou a prova junta de acordo com a sua experiência e conhecimento, que lhe adveio das suas funções;
AA. As Livranças dadas à execução têm como contrato subjacente um acordo de reestruturação de responsabilidades;
BB. Este acordo surge porquanto a Recorrente não vinha conseguindo fazer face a todas as situações creditícias que detinha, pelo que Recorrente e Banco 1... acordaram em condensar as responsabilidades da primeira ficando esta a pagar uma só prestação, neste caso, duas prestações;
CC. O próprio contrato de reestruturação de responsabilidades consubstancia todos os fundamentos de um PERSI, que a Recorrente tão bem assinou, tendo subscrito a Livrança dos presentes autos;
DD. Invocar omissão do PERSI consubstancia um verdadeiro venire contra factum proprium;
EE. A Recorrente beneficiou já de um PERSI tendo apenas sido apelidado de acordo/contrato de reestruturação de responsabilidades;
FF. Pelo que, ainda que não tivesse ocorrido qualquer PERSI – o que não se concede, sendo meramente equacionável por questões de raciocínio lógico – não assistiria qualquer razão à Recorrente, uma vez que já havia beneficiado do mesmíssimo instituto que está na génese da criação do PERSI;
GG. Mas, como se disse, não se concede a alegada omissão de PERSI;
HH. A Recorrente já se encontrava em incumprimento com o contrato de reestruturação;
II. Foram-lhe enviadas inúmeras comunicações anterior a 2020 comunicando-lhe a integração no PERSI, nos termos do art. 14.º/4 do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10;
JJ. Após o envio das primeiras comunicações, a Recorrente dignou-se a efetuar 2 (dois) pagamentos;
KK. Tudo foi feito nos termos legais, não sendo, de todo, razoável ou, sequer, equacionável em sonhos que as cartas tenham sido pura e simplesmente emitidas e colocadas dentro de uma gaveta;
LL. Tudo visto e ponderado, nenhuma censura merece a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual é irrepreensível.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são de fato e de direito as questões a tratar. Assim:
A) Do errado julgamento da matéria de facto quanto às alíneas I), J), K) e P) dos factos provados, que devem ser havidos, todos, por não provados, a implicar de jure, a um tempo,
B) i. a não verificação de uma condição de procedibilidade da execução, posto que os credores (originário ou cessionário) não integraram a Embargante no PERSI, nem lhe comunicaram a instauração e extinção deste; ii. que a titularidade do crédito exequendo não se tenha por transmitida para a cessionária Embargada.
No pressuposto do erro de julgamento da matéria de facto quanto às alíneas I), J) e K) e sempre cabendo concluir pelo incumprimento do disposto nos artºs 14º a 20º do Dec. Lei 227/12 de 25 de Outubro, do comportamento abusivo pela embargante, por estarem em causa créditos emergentes de reestruturação de outros créditos já em situação de incumprimento.
Sempre se vislumbra, como resultará infra, a necessidade e oportunidade de ampliação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do art. 662º, n.º 1 do CPC.

A) Da impugnação da matéria de fato

Impõe-se, desde logo, a consideração dos fatos havidos por provados na sentença, uma vez que apenas quanto a estes vem colocada a questão do erro no seu julgamento, rectius, aquisição probatória.
Foi havida por provada a seguinte factualidade, com relevo para a decisão:
a) Entre o “Banco 1..., S.A.” e a Embargante foram outorgados dois contratos de crédito, em 5 de abril de 2018, conforme instrumentos que se encontram juntos de fls. 70v’ a 81v’ destes autos, cujos dizeres se dão por integralmente reproduzidos;
b) Através do primeiro contrato, com o n.º de referência interna ...2096, o “Banco 1..., S.A.” concedeu à Embargante o empréstimo no valor consolidado de €17.410,63, que se destinou a regularizar responsabilidades assumidas pela mesma Embargante perante aquele banco emergentes das seguintes relações creditícias: (i) contrato de empréstimo n.º ...7096, no montante de €20.000, outorgado em 17/06/2014, estando em dívida a quantia de €14.576,62, correspondente a capital; (ii) saldo devedor da conta de depósito à ordem n.º ...4020, no montante de €25,49, de que a mutuária é titular; e (iii) saldo devedor da conta de depósito à ordem n.º ...4020 associada ao cartão de crédito ... com o n.º ...10, no valor de €2.808,52;
c) O capital mutuado relativo àquele contrato seria amortizado no prazo máximo de 84 meses, em prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira de € 140 e as restantes de acordo com o plano financeiro constante do anexo 3 desse contrato, vencendo-se a primeira prestação no dia 21/04/2018;
d) Através do segundo contrato, com o n.º de referência interna ...4096, o “Banco 1..., S.A.” aceitou regularizar responsabilidades assumidas pela Embargante perante aquele banco emergentes das seguintes relações creditícias: (i) sete prestações vencidas e não pagas do contrato de empréstimo n.º ...7096, no montante de €976,09; (ii) saldo devedor da conta de depósito à ordem n.º ...4020 associada ao cartão de crédito ... com o n.º ...10, no valor de €4.883,62;
e) A dívida regularizada ao abrigo daquele contrato foi consolidada no montante de €5.859,71, seria amortizada no prazo máximo de 84 meses, em prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira de €64 e as restantes de acordo com o plano de reembolso constante do anexo 3 que integra esse contrato, vencendo-se a primeira prestação no dia 21/04/2018;
f) Dá-se por reproduzida a Cláusula 16.ª de ambos os contratos, relativa à cessão de créditos;
g) A livrança n.º ...03, preenchida pelo valor de €19.669,60 (dezanove mil seiscentos e sessenta e nove euros e sessenta cêntimos), foi subscrita pela Embargante, incompleta no momento em que foi passada, para garantia do bom pagamento do contrato de crédito subjacente n.º ...2096;
h) A livrança n.º ...90, preenchida pelo valor de €6.302,24 (seis mil trezentos e dois euros e vinte e quatro cêntimos), foi subscrita pela Embargante, incompleta no momento em que foi passada, para garantia do bom pagamento do contrato de crédito subjacente n.º ...4096;
i) Os documentos juntos por cópia de fls. 24, 25, 26 e 27 destes autos (correspondentes às cartas datadas de 27/04/2018 e 22/05/2018, que integram o doc. n.º 1 anexo à contestação) chegaram ao conhecimento da Embargante;
j) Os documentos juntos por cópia de fls. 44, 45, 46 e 50 destes autos (correspondentes às cartas datadas de 11/05/2018 e 01/06/2018, que integram o doc. n.º 1 anexo à contestação) chegaram ao conhecimento da Embargante;
k) Os documentos juntos por cópia de fls. 31 e 32, 37, 66, 65 e 64 destes autos (correspondentes às cartas datadas, respetivamente, de 18/03/2019, 03/05/2019, 03/07/2019, 02/08/2019 e 04/11/2019 que integram o doc. n.º 1 anexo à contestação) chegaram ao conhecimento da Embargante;
l) Em relação ao contrato de crédito n.º ..2096 registaram-se, pelo menos, os seguintes incumprimentos: em 21/04/2018, 21/05/2018, 21/09/2018, 21/10/2018,
m) Em relação ao contrato de crédito n.º ...4096 registaram-se, pelo menos, os seguintes incumprimentos: em 21/04/2018, 21/05/2018, 21/06/2018, 21/09/2018, 21/10/2018, 21/11/2018, 21/12/2018, 21/01/2019, 21/07/2019, 21/10/2019, 21/11/2019, 21/01/2020, 21/02/2020, 21/05/2020, 22/06/2020 e 21/08/2020;
n) A última data de incumprimento relativa ao contrato de crédito n.º ...4096 é 21/09/2020, e corresponde à prestação n.º 30 desse mesmo contrato;
o) A última data de incumprimento relativa ao contrato de crédito n.º ..2096 é 21/05/2021, e corresponde à prestação n.º 38 desse contrato;
p) Por contrato outorgado em 14 de setembro de 2021, o “Banco 1..., S.A.” cedeu à A..., S.A.R.L. uma carteira de créditos, bem como todas as garantias a eles inerentes, incluindo o crédito exequendo, conforme instrumento de contrato junto por cópia de fls. 3v’ a 24 dos autos principais.

Na decisão recorrida em sede de motivação da matéria de facto, quanto às alíneas que vêm postas em causa nesta sede recursiva, fez-se contar o seguinte: «Apreciação crítica da prova sobre a matéria de facto controvertida (raciocínio probatório)
Para a prova dos enunciados vertidos nas alíneas i), j) e k) dos Factos Provados, o Tribunal teve em consideração os seguintes factos probatórios que resultam da instrução da causa:
- A circunstância de a Embargante ter deixado de residir na morada indicada nas comunicações incluídas no doc. n.º 1 junto em anexo à contestação (Rua ... ..., Aveiro) apenas a partir do início do ano de 2020. Este facto encontra-se plenamente provado, por confissão judicial espontânea da Embargante feita no art. 11.º do requerimento por si apresentado em 03/11/2022);
-A circunstância de a Embargante ter procedido ao pagamento integral das primeiras e segundas prestações de cada um dos contratos de crédito (que se venceram, respetivamente, em 21/04/2018 e 21/05/2018), tendo esse pagamento sido o fundamento para a extinção dos Procedimentos Extrajudiciais de Regularização de Situações de Incumprimento com as referências ...4096 e ...2096. Este facto (pagamento) decorre da leitura conjugada dos planos prestacionais de cada contrato (cf. fls. 74 e 80v’ destes autos), dos documentos juntos a fls. 44 e 50, também destes autos (cartas datadas de 11/05/2018 e de 01/06/2018, consideradas em si mesmas, e não como documentos que contêm uma declaração receptícia) e, ainda, dos documentos juntos de fls. 24 a 27, igualmente destes autos (cartas datadas de 27/04/2018 e de 22/05/2018, consideradas em si mesmas, e não como documentos que contêm uma declaração receptícia).
Em relação ao primeiro facto probatório, o mesmo encontra-se plenamente provado, por confissão da Embargante, como se disse.
No que tange ao segundo facto probatório, existe suficiente corroboração de que as primeiras e segundas prestações de cada contrato foram pagas pela Embargante.
Em primeiro lugar, a Embargante não se insurge quanto a tais pagamentos (cf. requerimento de resposta apresentado pela Embargante em 03/11/2022).
Em segundo lugar, a Exequente não tinha qualquer utilidade em produzir os documentos juntos por cópia a fls. 44, 45, 46 e 50 destes autos (relativos à extinção, por pagamento, de, pelo menos, 2 PERSI) que não fosse para a finalidade a que se destinavam (aceitar os pagamentos das prestações em atraso), dado que o banco não iria extinguir esses procedimentos se não tivesse recebido o valor daquelas prestações. Isto significa que os documentos juntos por cópia a fls. 44, 45, 46 e 50 destes autos têm a virtualidade de fazer prova da existência de, pelo menos, dois PERSI (dado que é possível integrar o cliente bancário num único procedimento já pendente – cf. art. 14.º, n.ºs 3 e 4, DL n.º 227/2012).
Acresce que a Embargante não alegou (e parece-nos honesto e leal, do ponto de vista da boa-fé processual) que os mencionados procedimentos saíram do imaginário do banco financiador; e faz sentido que não tivesse afirmado tal coisa, dado que o credor (originário) não tinha interesse algum em criar ficticiamente PERSI, atribuindo-lhes um código, com identificação dos devedores abrangidos, e procedendo à sua extinção com fundamento no pagamento integral dos montantes em mora (pelo menos, em dois dos casos). Isso não teria racionalidade.
À vista do que se expôs, é possível concluir, com segurança, que as primeiras e segundas prestações de cada contrato foram pagas pela Embargante após ter sido iniciado/estar pendente um procedimento.
Então, se a Embargante pagou aquelas prestações em atraso foi porque tinha conhecimento dos referidos PERSI ou, pelo menos, tinha conhecimento das comunicações de obrigações em mora destinadas a sinalizar esses primeiros incumprimentos correspondentes às cartas juntas a fls. 53 (carta datada de 03/05/2018) e a fls. 55 (carta datada de 18/06/2018).
Com base nos dois factos probatórios indicados (a Embargante só alterou a morada no início do ano de 2020 e o pagamento integral das primeiras e segundas prestações de cada um dos contratos de crédito) é possível inferir, com segurança, que a Embargante teve conhecimento dos documentos juntos por cópia de fls. 31 e 32, 37, 66, 65 e 64 destes autos (correspondentes às cartas datadas, respetivamente, de 18/03/2019, 03/05/2019, 03/07/2019, 02/08/2019 e 04/11/2019 que integram o doc. n.º 1 anexo à contestação).
Aliás, o número de cartas é, por si só, uma evidência de que, pelo menos, algumas tiveram de ser recebidas pela Embargante a não ser que a mesma inutilizasse a caixa postal; e o número dessas cartas justifica-se face a uma conduta da Embargante, de ir regularizando os sucessivos incumprimentos, tendo deixado de cumprir definitivamente mais tarde. Note-se que a Embargante se limita à posição de conforto baseada na circunstância de a Embargada não ter juntado os avisos de receção relativos às cartas que estão incluídas no doc. n.º 1 anexo à contestação.
Acresce que, lendo-se com atenção os arts. 12.º, 13.º e 14.º do requerimento apresentado no dia 03/11/2022, a Embargante só alega desconhecer os documentos nos quais se encontra aposta data dos anos de 2020 e 2021, sendo coerente, nessa parte, com a alegação vertida no artigo anterior (11.º do mesmo requerimento), de que só deixou de residir na morada indicada nessas comunicações a partir do início do ano de 2020.
Deste modo, e apesar de a testemunha inquirida (BB, bancário) não ter sabido responder se as cartas foram objeto de distribuição postal, tudo quanto se acaba de afirmar confirma-se por aplicação do seguinte “standard” de prova: não existe informação no processo que obste a que se considere como provado que os documentos referidos nas alíneas i), j) e k) dos factos provados chegaram ao conhecimento da Embargante – quer dizer, não existem elementos probatórios que refutem essa hipótese, como se expôs –, e essa hipótese é aquela que melhor explica os dados disponíveis no processo, integrando-os de forma coerente.
(…) A prova do enunciado constante da alínea p) resulta, por um lado, da circunstância de a Embargante não ter arguido a ilegitimidade da Exequente, o que significa que reconhece que a mesma tem interesse direto em demandar (de acordo com o critério da legitimatio ad causam previsto no n.º 1 do art. 30.º do CPC) e que aquela credora é, por conseguinte, sujeito das relações de dívida tal como se encontram configuradas na petição executiva (cf. n.º 3 do mesmo preceito legal).
Por outro lado, ainda que a Embargante tenha impugnado o documento junto pela Embargada em anexo ao requerimento que esta mesma parte apresentou no dia 19/12/2022, o Tribunal pode apreciar livremente aquele documento (cf. art. 366.º, CC). O que importa referir é que se trata de um documento cujo layout gráfico não é estranho a este Tribunal, e se assemelha a outros documentos que normalmente são juntos aos processos judiciais em que se discute a legitimidade em sentido processual do credor cessionário. Esse documento insere-se numa lista anexa ao contrato de cessão de créditos, contendo a indicação concreta dos créditos cedidos, que é normal constar de um CD-ROM.
Não se estará a divagar se se disser que aquele documento fará, muito provavelmente, parte do anexo 1 do instrumento de contrato junto por cópia de fls. 3v’ a 24 dos autos principais.
Nesse documento constam as referências (internas) por que são denominados os dois contratos subjacentes à emissão das livranças exequendas.
Por conseguinte, eliminada a dúvida de que a Embargada é a atual titular do crédito exequendo, deixando esse enunciado fáctico de ser incerto, impõe-se considerá-lo provado.»

1. Das alíneas i), j) e k)
Ouvida toda a prova e ponderada a mesma, não entendemos que tenha ocorrido erro de julgamento pelas seguintes razões:
A impugnação genérica por parte da Embargada relativamente aos documentos particulares aludidos nas alíneas em apreço não vai referida à autenticidade e genuinidade dos documentos, antes à respetiva relevância probatória. É que a impugnação de documentos só pode ser eficaz por forma a despoletar os efeitos dos artigos 444.º e 446.º, ambos do CPC, se a invocada impugnação se encontrar acompanhada do apelo de qualquer dos fundamentos vertidos nos referidos preceitos. Assim, ininvocável agora, por preclusão, a possibilidade de os documentos juntos serem “forjados”.
De todo o modo, a força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito (José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Coimbra, 248 e 249).
Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento (por não impugnação tempestiva da sua genuinidade), daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos. É que a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exatidão das mesmas. Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respetivos factos materiais (Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, página 523, nota 3).
Sendo certo que a Ré fez juntar aqueles documentos produzidos pelo cedente, impugnada a sua força probatória, impunha-se ao tribunal conhecer da veracidade do seu teor, nomeadamente através de outros meios de prova; uma vez que, como referido, a eficácia probatória de um documento diz apenas respeito à materialidade das declarações e já não à exatidão das mesmas. Assim, tais documentos, cujo conteúdo está sujeito à regra da livre apreciação, tinham, como foram, de ser conjugados com a restante prova produzida, nomeadamente testemunhal, mais se recorrendo a juízos de normalidade e regras da experiência comum.
Ora, aqueles documentos visavam a demonstração de terem sido remetidas (e, na medida em que enviadas para a morada indicada ao credor originário pela executada mesma, recebidas) as comunicações relativamente ao cabal cumprimento do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento – PERSI, sendo certo que mais se fundou, mas não exclusivamente, o julgador no seu teor, quanto à aquisição, v.e., do fato do pagamento subsequente àquelas comunicações.
Nesta sede, cabe a este tribunal inteirar-se sobre se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado da prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugada com as regras da experiência e demais prova existente nos autos.
Temos para nós que assim sucede.
A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjetiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça (cf. Prof. Antunes Varela na RLJ 116/339). Importa considerar que a formação da convicção do juiz e a criação do espírito no julgador de que determinado facto ocorreu e de determinado modo, “se deve fundar numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida. Neste sentido Manuel Tomé Soares Gomes, Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no processo Civil, Revista do CEJ, Dossier temático Prova, Ciência e Justiça - Estudos Apontamentos , Vida do CEJ, Número 3º , 2º Semestre, 2005, pp. 158 e 159. Ensina ainda o prof. Castro Mendes “ a convicção humana é uma convicção de probabilidade”; de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente“.
No nosso sistema processual, com algumas excepções, vigora o sistema da livre apreciação da prova, no que concerne à valoração da prova e à formação da convicção necessária para suportar uma decisão judicial; o qual se caracteriza em duas linhas de força complementares: o tribunal não só aprecia livremente os meios de prova, i.é, o que o meio prova, como é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido, hoc sensu, a “quantidade” de prova produzida por aquele meio. Em cada caso, pois, o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal ou por declarações produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão, hoc sensu, de maior valor probatório.
O que se não confunde com o standard ou padrão de prova exigível, que se prende já com o problema do ónus da prova ou, em contraponto, da determinação do conceito dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.
Quanto a este, vistos os artigos 346º do CC e 516º do CPC, a prova de um facto em juízo é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (que não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica).
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz (meio da apreensão e não critério desta) a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso.
Esta é, de todo o modo, uma regra susceptível de adequação prática, a definir, caso a caso, a partir agora de fatores como:
- o da acessibilidade dos meios de prova (a natureza pública ou privada dos factos e as circunstâncias do caso, v.e, as partes serem as pessoas normalmente envolvidas nos factos, haver outras testemunhas destes para além das arroladas),
- da sua facilidade ou onerosidade,
- do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados,
- do relevo do facto na economia da acção;
tudo em termos de elevar ou diminuir a exigência probatória.
A convicção do tribunal, como emerge da fundamentação acima reproduzida, radicou na demonstração do mesmo factualismo através de outros meios de prova, para além dos documentos mesmos, constantes e produzidos d(n)os autos. Assim:
A corroboração periférica pela testemunha BB, quanto ao modo de proceder da instituição bancária e quanto às circunstâncias da “emissão” e envio das comunicações de incumprimento/mora e instauração e extinção de cada um dos PERSI pelo cedente. Evidentemente excluída a aptidão demonstrativa direta do envio físico e receção das comunicações, posto que não pôde, naturalmente, atestá-los, certo é que cabalmente explicado o modo como o sistema informático da instituição assumia, devidamente assessorado pelos funcionários competentes, a verificação das situações de inadimplemento e a geração das comunicações correspondentes, inclusive no que aos PERSI respeitava.
A documentação junta corresponde, como resulta do seu teor e do depoimento invocado na motivação pelo tribunal recorrido, ao “suporte duradouro” das comunicações constantes do sistema informático do cedente a enviar ao cliente inadimplente (integrando, pois, um registo permanente, informático, do processo atinente ao cliente e a cada um dos créditos). Nessa medida, compreende-se a alusão na motivação aprecianda à aparência de veracidade/autenticidade e à ilogicidade de uma elaboração apenas para justificar a prova em sede de embargos. Sempre em causa 2as vias de documento, como tal identificadas, a corresponder, como é sabido, por força do modo de funcionamento do registo informático mesmo, como arquivo, a uma nova impressão de documento emitido/impresso já ao menos por uma vez. Assim, adquirida a “história” do incumprimento contratual em causa, tal como registada no sistema informático do cedente, credor originário, em termos de justificar a emissão da totalidade daquelas comunicações, das quais consta, anote-se, a morada da executada, por ela assumida a sua residência naquela até inícios de 2020, sem qualquer menção ou alusão a residências intermitentes e/ou a problemas de distribuição ou recebimento de correspondência.
O envio das comunicações emitidas/impressas é, de acordo com juízos de normalidade, a regra, como emergiu do omnipresente depoimento testemunhal já aludido, posto que encarregue deste um funcionário bancário, pelo que o não envio é que seria um fato excecional. A consideração de regras da experiência (cânones da normalidade dos acontecimentos e condutas) apresenta-se como um meio lógico de apreciação das provas, meio de convicção, cedendo perante a simples dúvida sobre a sua exatidão em cada caso concreto, a qual não se basta com a probabilidade simples de uma falha humana.
Acresce o na sentença recorrida relevado significado da quantidade de comunicações juntas[1], a comprovar, justamente, a natureza “automática” das comunicações geradas pelo “sistema de gestão informática dos incumprimentos” da instituição bancária credora inicial, no confronto agora com a aquisição (não posta em causa pela recorrente[2]) das ocasiões de mora no cumprimento pela executada e dos momentos dos pagamentos ulteriores. Anote-se a corroboração periférica emergente do cotejo das ocasiões daqueles adquiridos incumprimentos dos créditos exequendos, com as datas das comunicações cujo envio e recepção foram havidas por demonstradas, muito decisivamente no que à instauração de PERSI importa (precisamente dentro dos intervalos temporais legalmente previstos), em termos de mais resultar legitimada a conclusão pelo procedimento “automático” que o funcionário bancário atestou.
Mais se faz evidenciar na decisão a rever o comportamento processual da embargante mesma, traduzido na posição assumida nos autos, mormente na sequência da notificação daquela documentação[3], que, reconduzindo a justificação do desconhecimento das comunicações, à sua alteração de residência, no início do ano de 2020, acaba por ampliar o “desconhecimento” à totalidade das comunicações anteriores àquela data pelo facto de o envio não vir demonstrado por meio de registo ou AR…, sem a alusão a qualquer fato ou circunstância justificativa de um tal “lapso” no envio (pelo cedente) e/ou na distribuição, sempre contrário a regras da experiência ou juízos de normalidade, na medida justamente da quantidade da documentação comprovadamente emitida pelo cedente/credor. É um critério de corroboração baseado numa ideia de congruência argumentativa e de ponderação da evidente dificuldade da prova direta do envio casuístico de cada um daqueles documentos, a diminuir o padrão ou standard de prova exigido.
É que, por outro lado, o pagamento das duas primeiras prestações após a data da comunicação do PERSI, vem perfeitamente justificado ainda na decisão recorrida, sem incorrer, nesse segmento, aquela na petitio principio arguida. Ali se teve é certo o teor da comunicação de extinção do plano pelo pagamento como demonstrativo daquele. Corretamente, por estar em causa uma comunicação/declaração cuja desconformidade à realidade é de todo naturalisticamente improvável, sendo certo que, sendo o pagamento um fato pessoal da embargante, a mesma não o veio pôr fundamentadamente em questão/causa.
Assim é que quando os factos têm intervenção humana ou são resultado dessa actuação, perscrutar a realidade desse facto é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação que qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias teria. Por isso que um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, i.é., a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que, por definição, possuem motivações apreensíveis, são orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal. Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer percetível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou que o seu objetivo é diferente daquele que se pretende.
Ora, a um tempo, como bem se aduz na sentença recorrida, não se alcança razão plausível para o registo pelo cedente de pagamentos como causa de extinção do PERSI, nem a executada, estando em causa facto pessoalíssimo, nega exactamente o pagamento como constante do documento que o aduz.
Sempre em lado algum da fundamentação se faz decorrer a prova do pagamento, alicerçada, nos termos expostos, nos termos da declaração da cedente em sede de comunicação do encerramento do PERSI, do fato, indireta ou indiciariamente adquirido, conforme argumentação do M.mo Juiz criticamente analisada, do envio e receção daquela e este seria o raciocínio vedado, por insubsistência da corroboração presuntiva.
A pertinência da prova indiciária deve assentar, em regra, num duplo substrato.
Por um lado, deve fundar-se, em regra, na existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis, admitindo-se que excepcionalmente baste um só indício pelo seu especial valor; por outro lado, deve assentar na racionalidade da inferência obtida de maneira que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência comum.
Reconheça-se já que o fato do pagamento subsequente às comunicações de mora/incumprimento e de instauração do PERSI (como declarado pelo cedente), foi utilizado indiciariamente na sentença recorrida para justificar o conhecimento pela embargante daquelas situações sendo esse o segmento de raciocínio probatório que a embargante tem por ilegítimo, por se reconduzir a uma dupla afirmação presuntiva.
Sem razão. O pagamento houve-se por demonstrado na medida da declaração pelo cedente e da posição nos articulados pela embargada, conjugados com o plano de cumprimento das prestações constante dos autos.
Ora, atento o lapso de tempo decorrido entre o adquirido incumprimento e o pagamento das prestações como fato extintivo do PERSI, nos termos atestados/expressos na sequência das comunicações juntas aos autos e havidas por enviadas e recebidas, absolutamente afastada a possibilidade de um cumprimento “normal”/ “regular” das prestações devidas, em falta e necessariamente consciente/ciente a embargante da situação de inadimplemento, com o que incrível que o pagamento o tenha sido sem a vontade de extinção/cessação de um conhecido procedimento no sentido da solução da dívida..
Com efeito, adquirido, pelas razões já referidas, o envio das comunicações para a residência demonstradamente da embargante, na ausência bem assim de qualquer fato susceptível de tornar duvidosa a entrega ou receção das comunicações[4], que outra inferência possível se não a do pagamento por forma a fazer cessar os procedimentos já em curso pelo credor com vista ao acionamento do seu crédito…
Na sentença recorrida mais se aduzem dois outros factos indiciários, que não deixam de ter o seu significado de corroboração periférica quanto ao conhecimento pela embargante das comunicações pelo credor das situações de incumprimento e do início de diligências reconduzíveis ao PERSI, mais ténue, naturalmente, no que ao segundo deles interessa. Assim, desde logo, o “historial” mesmo de desenvolvimento dos créditos exequendos, mediante incumprimentos vários e ao longo do tempo, necessariamente objeto de sanação/purgação já em fase de mora, até à ocasião de cessação total da liquidação parcelar/fracionada, conforme datas adquiridas e não impugnadas de incumprimentos, expressas na documentação junta pela embargada e da responsabilidade da cedente. Também o fato de ambos os créditos exequendos se reportarem já a situações de incumprimento anterior e assim a reestruturação de créditos vencidos, já após 2012, com o que conhecedora/familiarizada a embargante/executada com as possibilidades, rectius, exigências legais de aferição pela entidade bancária das circunstâncias inerentes ao inadimplemento de prestações…
No caso, pois afirma-se, a possibilidade de formulação dos realizados e analisados juízos de inferência ou dedução [sobre a controvérsia ainda existente sobre o tipo de operação mental ou argumentação subjacente à prova indiciária, se dedutivo ou indutivo, cfr., v.g., Nueva Teoria de La Prueba, Bogotá, 1997, págs. 58-59 (o qual conclui que na maioria dos casos a inferência indiciária é uma inferência analógica, isto é, uma dedução, embora apoiada numa inferência indutiva prévia) e Adalberto Camargo Aranha, Da Prova no Processo Penal, 4ª ed., S. Paulo, 1996, págs. 183-184], posto que impondo-se estes com a certeza bastante, por via das regras da experiência comum ou normalidade das situações da vida, nos termos expostos.
É que outrossim assente a convicção numa pluralidade de indícios precisos, independentes e concordantes entre si ou no mesmo sentido.
Não se alcançam, pois, razões para prover o recurso, nessa parte.
2. Menos ainda no que tange à matéria sob a alínea P).
Ainda quando não seja invocável o argumento de que a embargante não arguiu a ilegitimidade da exequente/cessionária, uma vez que os autos demonstram que a arguiu.
O documento junto pela embargada e ali aludido, constituindo-se como um documento particular, cuja autoria e genuinidade não vem posta em causa, apenas alegado o desconhecimento da realidade do fato ali declarado, é apto ou suficiente a justificar a aquisição probatória da cessão. Aqui nos remetemos para a posição assumida supra quanto aos termos da impugnação de documentos susceptível de gerar os efeitos dos artigos 444.º e 446.º, ambos do CPC, tendo-se por insuficiente a mera impugnação por desconhecimento dos fatos constantes do documento e/ou a mera impugnação da força ou eficiência probatória daquele, desacompanhada da justificação cabal de qualquer dos fundamentos vertidos nos referidos preceitos.
Ora, o documento junto carateriza (documenta pelo seu teor ou conteúdo e intervenientes) a cessão dos créditos, junta outrossim a folha do contrato de cessão da qual resulta a menção do específico crédito cedido em crise.
Acresce, de forma decisiva e não escamoteável, a posse pela exequente e cessionária das livranças entregues ao credor originário, em termos que apenas a cessão pode justificar, sendo que, como resulta da documentação junta aos autos (de execução bem assim), na posse ademais dos elementos atinentes à origem dos créditos e circunstâncias do respetivo processo/decurso, os quais, na falta daquele negócio subjacente, sempre estariam na esfera da disponibilidade do credor originário e sujeitos mesmo a apertados deveres de sigilo profissional legal.
Com o que, concluindo, o documento junto é apto a demonstrar o facto sob P), que não se vê, por conseguinte, razões para alterar também.
Totalmente improcedente, pois, o recurso no que tange à impugnação da matéria de fato havida por provada.
Mantêm-se, assim, os fatos acima elencados, na íntegra.
3. O art. 662º do CPC constitui a norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, vertida numa convicção própria mediante análise dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis no processo.
Tal competência ou poder-dever está prevista na prescrição-matriz da competência de reavaliação factual do n.º 1, sem dependência de instigação pelas partes em sede de recurso para esse efeito:
«A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Na determinação do campo da possibilidade assim estabelecida, mais cabe atentar no n.º 2 do art. 662º, 2, do CPC, e, decisivamente nas alíneas a) e b), o qual estabelece verdadeiros poderes-deveres funcionais (a lei diz «deve ainda, mesmo que oficiosamente»), claramente ordenados a possibilitar à Relação a resolução de dúvidas que se afiguram percetíveis quanto ao apuramento da verdade de certos e determinados factos alegados pelas partes, criando, dessa forma, condições de igualdade com a 1.ª instância na observação direta da fonte de prova ou no acesso a novos meios de prova[5]. Ali se estabelece ser-lhe lícito e exigido até realizar verdadeira e autónoma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados e formar a sua própria convicção, em resultado, se for o caso, das provas que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa. Para isso, tais poderes-deveres não dependem de iniciativa das partes (nem são direito potestativo que lhes assista)[6], são (ou podem-devem ser) exercidos oficiosamente e aspiram à formulação de um resultado judicativo próprio, destinado a “superar dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada”[7]. Estamos verdadeiramente perante deveres processuais de carácter vinculado, impostos para “proceder a um (verdadeiro) novo julgamento da matéria de facto, em ordem à formação da sua própria convicção, designadamente verificando se a convicção expressa pelo tribunal a quo possuía razoáveis tradução e suporte no material fáctico emergente da gravação da prova (em conjugação com os mais elementos probatórios constantes do processo)”.[8]
Por isso que, a partir da definição dos poderes naquelas situações particulares de modificabilidade da decisão de fato pela Relação é possível sustentar que (também) o poder previsto no n.º 1 deve ser exercitado oficiosamente sempre que, objetivamente, a ampliação a fazer importa a afirmação probatória de factos essenciais alegados como causa de pedir ou de defender, mesmo quando conferem um possível enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal de 1.ª instância, crucial para a correta decisão de mérito da causa, desde logo por imposição do art. 411º do CPC, sob pena da sua violação[9].
Em conclusão: o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efetivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida. Assim, por todos, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.9.2013, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, ID., “Dupla conforme e vícios na formação do acórdão da Relação”, de 1/4/2015, in https://blogippc.blogspot.com/2015/04/dupla-conforme-e-vicios-na-formacao-do.html;
Sempre – e este é o ponto – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a aludida remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialeticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância.
Quando se tenha presente este enquadramento e a comunicação/carta datada de 15/07/2021, sob páginas 1 a 5 do documento junto com a contestação sob documento número 1, como a fundamentação acima, quanto à prova ou demonstração pela embargante da emissão e envio daquelas comunicações, impõe-se concluir, justamente, pela ampliação da matéria de fato.
Com efeito, mais se impõe, sem prejuízo da conclusão ainda pelo não recebimento pela executada/embargante/devedora daquela comunicação, vista a adquirida alteração da sua residência, ter por demonstrada a realidade daquela comunicação, a qual decisivamente relevando à matéria em apreciação na causa, oportunamente alegada.
Termos em que se amplia, sob a alínea q) dos factos assentes, o seguinte:
O credor originário (cedente) mais emitiu e enviou à embargante a comunicação/carta, datada de 15/07/2021, sob páginas 1 a 5 do documento junto com a contestação sob documento número 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o que fez para a morada constante dos contratos de crédito, a qual não foi recebida pela Embargante, por ter mudado de residência em data anterior, sem que tivesse comunicado tal alteração ao credor.
B) Discorda agora a recorrente da sentença, na parte em que nesta se argumentou que: «Da factualidade acima descrita, tem que se concluir que a Embargante, pelo menos no período entre 2018 e 2019, teve várias oportunidades, a maioria delas concretizadas, para reatar o cumprimento com normalidade dos dois contratos, tendo beneficiado, pelo menos, dois PERSI (dado que é possível integrar o cliente bancário num único procedimento já pendente – cf. art. 14.º, n.ºs 3 e 4 DL nº 227/2012) no início dos respetivos planos financeiros de pagamento. No momento da cessão não existia nenhum procedimento em curso que obrigasse a Embargada a prosseguir (cf. art. 18.º n.º3 do DL n.º 227/2012). Daí vem que se impõe concluir que a Embargante não viu frustradas as garantias concedidas ao cliente bancário pelo artigo 18.º do mesmo diploma legal, designadamente, teve diversas oportunidades para regularizar as situações de incumprimento. Embora só tivesse sido integrada formalmente no PERSI em relação às duas primeiras prestações dos planos financeiros de cada contrato, há que entender que as finalidades substanciais daquele procedimento que o legislador pretendeu foram atingidas por outra via, tendo a credora cedente sinalizado os sucessivos incumprimentos, tolerando os reiterados pagamentos em atraso, e foi assim até aquela credora concluir pela incapacidade da embargante para cumprir, de forma continuada, as obrigações que havia assumido.”[…]
Aduz a recorrente que o enquadramento realizado pelo Tribunal a quo, representa um desvio ao procedimento estabelecido no Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro, quando considera que, em ambos os contratos, a Recorrente beneficiou do PERSI no ano de 2018. Assim é que, obrigando aquele Decreto-Lei ao cumprimento de diversas garantias ao cliente bancário, não se pode negligenciar esses mesmos direitos, reportando o caso concreto a PERSI anteriores. A extinção de um PERSI, nos termos disposto no artigo 18.º do Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro, obriga, necessariamente, a que verificando-se nova situação de incumprimento, todo o procedimento se reinicie. Quer isto dizer que, extinguindo-se um PERSI, por qualquer das razões que lhe dão, a verificação de novo incumprimento consubstancia razão para que se comunique novamente a integração em PERSI, totalmente impendentemente do anterior. Assim, após a extinção de cada PERSI, e perante a verificação de nova situação de incumprimento, será sempre obrigatória a integração em novo PERSI, devendo-se garantir que tal integração chega ao conhecimento do recorrente. No mesmo sentido, para que pudesse executar a garantia, era condição obrigatória que a Recorrida tivesse comunicado a extinção do PERSI. O próprio tribunal a quo reconhece que a extinção do PERSI em 2018, resultou da regularização da situação de incumprimento. Pelo que, reitere-se, nova situação de incumprimento, daria sempre lugar a novo PERSI, sem que em lugar algum da legislação aplicável, se possa encontrar procedimentos simplificados para segundas ou terceiras situações de incumprimento.
Relembre-se ainda que, estando em causa dois contratos de crédito, sendo que, somente é junta aos autos a alegada integração em PERSI relativamente a um deles – correspondente à missiva datada de 15-07-2021-, comunicação essa que, diga-se, nunca chegou a conhecimento da Recorrente. Ademais, não há sequer evidência de que se tenha tentado comunicar a extinção desse procedimento, pelo que, claro está, a integração e tramitação do PERSI foi amplamente violada em ambos os contratos. Cumpre ainda acrescentar que, nos contratos de crédito em causa, não existe domicílio convencionado, pelo que impende sobre a recorrida assegurar que a missiva é efetivamente recebida pela Cliente. Ora, apresentar uma carta, ainda que se admita que consubstancie suporte duradouro, em nada prova que a comunicação foi algum dia expedida, não havendo qualquer registo de entrega daquelas cartas junto dos CTT.
Donde, em conclusão, do quadro factual resulta inequívoco que não se deu cumprimento ao disposto nos artºs 14º a 20º do Dec. Lei 227/12 de 25 de Outubro, devendo ser revogada a douta Sentença e deliberado que a execução deve prosseguir por inexistência de excepção de inexigibilidade da cobrança coerciva.
Vejamos.
O Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários. Com o diploma em causa, o legislador pretendeu, como resulta do texto preambular do mesmo “estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas (…) O presente diploma visa, assim, promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”.
Tal diploma instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) (cfr. art.º 12.º do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro).
De acordo com o texto preambular do referido diploma “define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor.”.
Nos termos do art.º 12.º do referido diploma “As instituições de crédito promovem as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito (…)
Quanto ao procedimento que as instituições financeiras devem observar no âmbito do PERSI, dispõe o art.º 13.º do referido diploma que “No prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, a instituição de crédito informa o cliente bancário do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, bem assim, desenvolve diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado.”. Por seu turno, dispõe o art.º 14.º do referido diploma, com a epígrafe “fase inicial”: “(…) 1 - Mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa.
O PERSI inicia-se sempre mediante uma comunicação formal (i.e. em suporte duradouro na qual a instituição de crédito mutuante, entre outros elementos, deve indicar a data de integração do cliente no PERSI e o montante total em dívida, detalhando as parcelas correspondentes a capital, juros e encargos (ou comissões) resultantes da mora.
O Decreto-Lei n.º 227/2012, impõe assim às instituições de crédito mutuante uma "renegociação forçada" e confere ainda ao cliente diversas garantias não displicentes tais como a impossibilidade de a instituição de crédito mutuante (a) resolver o contrato com fundamento no incumprimento, (b) intentar ações judiciais com vista à satisfação do seu crédito, (c) ceder a terceiros, total ou parcialmente, o crédito em questão, ou (d) transmitir a sua posição contratual – tudo isto enquanto durar o PERSI (cfr. neste sentido, Francisco Almeida Garrett, no artigo “PARI, PERSI & AFINS – Breve Nota Sobre o Novo Regime”, inJusJornal, N.º 1676, 23 de Abril de 2013)
Não se discute que os contratos a que respeitam as livranças exequendas caiam no âmbito objetivo e subjetivo do Decreto-Lei n.º 227/2012, já que integram ambos um dos contratos previstos no art.º 2.º, n.º 1, al. a) e b) do referido diploma, conforme o enquadramento na sentença aprecianda, nessa parte sem discussão.
Invocado pela embargante o não cumprimento das disposições referentes ao PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento), previstas no Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, incumbe à instituição de crédito alegar e provar o cumprimento das formalidades ali previstas atentas as regras de repartição do ónus da prova previstas no art.º 342.º do Código Civil.
De acordo com o disposto nos artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do citado DL, a integração no PERSI e a extinção do procedimento, têm de ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro”.
No que se refere à concretização do conceito de comunicação em suporte duradouro, a alínea h) do artigo 3.º define-a como “qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.”
No que se reporta aos efeitos da pendência do PERSI, o art. 18.º do Dec. Lei n.º 227/2012 contém um elenco taxativo de atos que as instituições de crédito ficam impedidas de praticar enquanto decorre o aludido procedimento, o que se traduz em garantias do cliente bancário.
Uma das garantias que é atribuída aos clientes bancários na situação contemplada pelo Dec. Lei n.º 227/2012 é a proibição de sobre eles serem intentadas ações judiciais, proibição esta que impende sobre o credor, para a satisfação do seu crédito, entre a data da integração do devedor no procedimento e a sua extinção – cfr. art. 18.º, n.º 1, al. b).
Por outro lado, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito [al. c)] ou transmitir a terceiro a sua posição contratual [al. d)].
Porém, nos termos do n.º 2 do citado normativo, a instituição de crédito pode ceder créditos para efeitos de titularização [al. b)] ou ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito [al. c)]; neste último caso, sedo exigível que a cessionária seja outra instituição de crédito, “fica esta obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual” (n.º 3).
Ora, no caso concreto, a cessionária é uma sociedade de titularização de créditos.
Como sustenta Andreia Sofia Lúcio Engenheiro, O crédito bancário: a prevenção do risco e gestão de situações de incumprimento, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na área de Ciências Jurídicas Empresariais - Universidade Nova de Lisboa, Julho, 2015, p. 57, https://run.unl.pt/bitstream/10362/16176/1/Engenheiro_2015.pdf - citada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.01.2020, disponível em www.dgsi.pt, no caso da entidade bancária ceder o crédito sem ter previamente cumprido as exigências legais, não pode a cessionária escudar-se na circunstância de não ser uma entidade de crédito para, desde modo, evitar que sejam cumpridas as exigências legais. “Com efeito, de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído no citado diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art. 18º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido, sendo-lhe, por isso, lícito, sem quaisquer restrições, resolver de imediato o contrato de crédito com fundamento em incumprimento (art. 18.º, n.º 1, al. a)), intentar ações judiciais contra o mutuário, tendo em vista a satisfação dos respetivos créditos (al. b)), ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito em causa (al. c)) ou transmitir a terceiro a sua posição contratual (al. d)). Tal representaria, fácil é de ver, uma autêntica fraude à lei, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime que visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, solução essa que deve ser rejeitada.”
Tem-se entendido outrossim corresponder a falta de pressuposto (antecedente) da instauração da ação executiva, por omissão de integração obrigatória dos Embargantes no PERSI, a determinar a verificação na ação executiva da existência de uma exceção dilatória atípica ou inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e importa a absolvição dos executados da instância (cfr. art.º 278.º, n.º 1, al. e) do nCPC), sendo certo que a falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, constitui, fundamento de oposição à execução, conforme o art.º 729.º, n.º 1, al. c) do CPC[10].
Como se pode ler no mesmo Preâmbulo do diploma legal que prevê o PERSI, instituído pelo DL nº 227/2012 de 25 de Outubro, “estamos perante uma relação jurídica caraterizada por uma acentuada assimetria informativa, em que a lei inculca uma especial responsabilidade nas instituições bancárias e considera o cliente bancário-consumidor como a parte mais fraca”. Este, constitui um mecanismo de protecção aplicável a clientes bancários - consumidores - que estejam em incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, obviando a que as instituições bancárias possam desencadear, de imediato, os procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos.
As comunicações exigidas, nesta fase, têm de lhe ser feitas em suporte duradouro, ou seja, a sua representação através de um instrumento que possibilite a sua reprodução integral e inalterada, e, portanto, reconduzível à noção de documento constante do art.º 362.º do Código Civil - As comunicações de integração dos executados no PERSI e de extinção do PERSI têm de ser feitas num suporte duradouro (que inclui uma carta ou um e-mail) – arts. 14º, nº 4 e 17º, nº 3 do dito DL 227/2012, de 25/10 – e não se podem provar com recurso a prova testemunhal (arts. 364º, nº 2 e 393º, nº 1, ambos do C.Civil) exceto se houver um início de prova por escrito (que não seja a própria alegada comunicação) – Acórdão da Relação de Coimbra de 15.12.2021, in www.dgsi.pt.
A jurisprudência tem entendido maioritariamente tratar-se de declarações recetícias, constituindo ónus da exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a respectiva recepção pelo executado. Ou seja, a simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não constituem, por si só, prova do envio e recepção das mesmas pela executada.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de novembro de 2018 [Processo: 3413/14.7TBVFR-A.P1], decidiu-se que: “III - Ao exigir-se como forma da declaração uma comunicação em suporte duradouro, uma carta pode ser entendida como tal, pois, possibilita reproduzir de modo integral e inalterado o seu conteúdo. IV - Se a intenção do legislador fosse a de sujeitar as partes do procedimento extrajudicial de regularização das situações de incumprimento a comunicar através de carta registada com aviso de receção, tê-la-ia consagrado expressamente”.
Sempre, em algumas situações, de imputabilidade ao executado da não receção da comunicação se tem entendido cumprida a obrigação mediante o mero envio de carta. Assim o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora [Processo: 715/16.1T8ENT-B.E1], de 21 de maio de 2020: “As comunicações de integração dos executados no PERSI e de extinção do PERSI têm de ser feitas num suporte duradouro (que inclui uma carta ou um e-mail), conforme ressalta da leitura dos artigos 14º, nº 4 e 17º, nº 3, do DL 227/2012, de 25/10. 4. A actualização da morada é um ónus do cliente bancário e a falta de cumprimento do mesmo é da sua responsabilidade. Caso seja endereçada a correspondência para a morada que foi efectivamente disponibilizada ao banco tem de se considerar cumprida a obrigação de notificação para os termos do PERSI”.
De acordo com a matéria de facto provada, como se anota na decisão recorrida, com relação às duas primeiras prestações de cada um dos contratos, estabelecidas no respetivo plano financeiro, houve integração da Embargante em PERSI e extinção desse mesmo procedimento por pagamento integral das prestações em mora, as duas primeiras, como se disse (cf. als. i) e j) dos factos provados, com referência às comunicações datadas de 27/04/2018 e 22/05/2018 e, respetivamente de 11/05 e 01/06/2018, quanto à extinção).
Bem assim sucedeu a integração da Embargante em outro PERSI, devido ao atraso verificado no pagamento das 10.ª e 11.ª prestações do plano financeiro relativo ao contrato n.º ...4096 e ao incumprimento da 11.ª prestação do plano financeiro relativo ao contrato n.º ...2096 (cf. os planos financeiros de cada contrato e a carta datada de 18/03/2019 que se encontra junta a fls. 31 destes autos).
Concorda-se absolutamente com a posição, em sede de sentença recorrida, de que aquelas comunicações se reportam a ambos os créditos, posto que cabalmente identificados, com as menções exigidas no Aviso 17/2012 do Banco de Portugal, permitindo a lei a integração de um crédito cujo inadimplemento seja subsequente num plano já em curso, como sucede.Sempre, quanto à extinção, desde logo, avançada na comunicação que a falta de prestação dos elementos pedidos a determinaria sem mais, sendo outrossim que o pagamento, verificado, também acarreta a sua extinção, ope legis, sendo outrossim um facto pessoalíssimo do visado pelo Plano[11]…
Como se aduz, de forma não escamoteável na decisão recorrida, dúvidas não restam de que ambos os contratos de crédito beneficiaram das medidas de PERSI nos anos de 2018 e 2019.
Mais se concorda absolutamente com os termos da decisão recorrida, na parte em que ali se explicita que: «Acresce que depois da extinção desses procedimentos, verificaram-se outras situações incumprimento (cf. alíneas l) e m) dos factos provados) que foram sucessivamente regularizadas pela Embargante ainda antes da cessão de créditos. Que assim é (ou seja, que foram regularizadas essas situações de incumprimento) decorre da circunstância de a última data de incumprimento relativa ao contrato de crédito n.º ..2096 ser 21/05/2021, e corresponde à prestação n.º 38 desse contrato, e a última data de incumprimento relativa ao contrato de crédito n.º ...4096 é 21/09/2020, e corresponde à prestação n.º 30 desse mesmo contrato.
Quer dizer: no contrato de crédito n.º ..2096 não existem prestações em mora que sejam anteriores à prestação n.º 38, e no contrato de crédito n.º ...4096 não existem prestações em mora que sejam anteriores à prestação n.º 30.
Mas esta conclusão significa uma outra coisa: não existem obrigações em mora vencidas em momento posterior àquela cessão (cf. als. n), o) e p) dos factos provados).
Por essa razão, também se impõe dizer que na data de instauração da execução os contratos já não se encontravam em mora, tendo-se antes verificado o vencimento antecipado do valor de cada um deles, decorrente da perda do benefício do prazo, vencimento que não é questionado pela Embargante. Mas, ainda que o fosse, entre aquelas datas – relativas ao início dos últimos incumprimentos, por referência aos respetivos planos financeiros que previam 7 anos de amortizações – e a data de instauração da execução (29/03/2022) venceram-se prestações em número suficiente para se verificar aquele vencimento imediato, de acordo com a subalínea i) da alínea a) do n.º 1 da Cláusula 7.ª de cada contrato[12]».
De todo o modo, assiste razão à recorrente, quando sustenta que a circunstância de o cliente bancário ter sido anteriormente integrado em PERSI já extinto não constitui obstáculo a que venha novamente a beneficiar desse regime, caso se encontrem reunidos os necessários pressupostos normativos para esse efeito. Verificados esses pressupostos, a falta de integração do cliente bancário no PERSI constitui impedimento legal a que a instituição de crédito instaure ação executiva destinada a obter a cobrança coerciva de crédito abrangido por esse regime legal, como o entendeu o TRP no Acórdão de 07-03-2022 (Pº 121/20.3T8VLG-A.P1), na base de dados da dgsi.
Sempre e em data anterior à cessão de créditos, como resulta da alínea aditada dos factos assentes, foi pela cedente aberto novo PERSI e comunicada esta abertura.
Certo também que a comunicação não foi recebida. Contudo, não o foi por fato imputável à embargante mesma, que alterou a residência sem a comunicar ao credor, numa hipótese idêntica à já referida no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de maio de 2020.
E não releva que não esteja em causa um domicílio convencionado… Como é bom de ver, não é apenas sobre as entidades bancárias que impende a obrigação de boa fé na execução e cumprimento dos contratos; também ao cliente, ainda quando parte objetivamente mais carecida de proteção, se apresenta a obrigação de proceder de forma leal e correta, sendo elementar a obrigação de comunicar a alteração de domicílio, tanto mais que as comunicações o eram por via postal, como resultou.
Nessa medida, a conclusão tem de sê-lo a do cumprimento pela entidade bancária da imposição legal.
Quanto à extinção, a mesma vai condicionalmente comunicada no mesmo documento, ali adiantado que a falta de entrega dos elementos necessários à averiguação das condições do (in)cumprimento terá essa consequência…
Tudo para dizer que à data da cessão do crédito inexistia qualquer obstáculo legal a esta e que a cessionária não estava ela mesma vinculada a qualquer procedimento perante a embargante, como se aduz na decisão recorrida.
Resulta, pois, o cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI.
Final, mas já algo redundantemente, bem fundada a decisão recorrida, perante as particularidades do caso, no que tange à argumentação seguinte:
«Daí vem que se impõe concluir que a Embargante não viu frustradas as garantias concedidas ao cliente bancário pelo art. 18.º do mesmo diploma legal, designadamente, teve diversas oportunidades para regularizar as situações de incumprimento. Embora só tivesse sido integrada formalmente no PERSI em relação às duas primeiras prestações dos planos financeiros de cada contrato, há que entender que as finalidades substanciais daquele procedimento que o legislador pretendeu foram atingidas por outra via, tendo a credora cedente sinalizado os sucessivos incumprimentos, tolerando os reiterados pagamentos em atraso, e foi assim até aquela credora concluir pela incapacidade da Embargante para cumprir, de forma continuada, as obrigações que havia assumido.
Note-se que os contratos subjacentes às livranças que foram dadas à execução já têm por finalidade a regularização de responsabilidades assumidas pela Embargante perante a credora originária, respeitando ambos os contratos, por isso, a valores consolidados, sendo que, no caso do contrato n.º º ...4096, foi acordado um modo de reembolso pela Embargante que estava em situação de incumprimento quanto a obrigações decorrentes de relações creditícias anteriores.
Neste contexto, os deveres de diligência e lealdade, previstos no art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 227/2012, não impõem que a instituição de crédito seja exauriente nas tentativas de impulsionar e facilitar a regularização extrajudicial das situações de incumprimento, dado que a consolidação da dívida já tem por finalidade evitar a ação judicial por incumprimento, e a Embargante ficou, por esse efeito, sujeita a condições mais favoráveis do que as dos contratos de crédito iniciais, devido ao pagamento diferido e às novas condições de pagamento da dívida.
E, sendo assim, não se aplica, no caso concreto, a norma da al. b) do n.º 1 do art. 18.º do DL 227/2012, com fundamento em redução teleológica, não estando a Embargada impedida de instaurar a execução de que os presentes embargos são dependência.
Com efeito, uma norma legal não se aplica se o fim que ela prossegue for alcançado por uma outra via que não seja a produção da consequência jurídica que essa mesma norma estabelece para a hipótese nela prevista (redução teleológica).
A redução teleológica fica aquém do sentido literal possível da norma.
A circunstância de a redução teleológica significar um afastamento do campo de aplicação da regra mesmo quando o sentido literal da mesma determinaria a sua aplicação, não colide com o art. 9.º, n.º 2, do CC, porque o art. 9.º trata da interpretação da lei, ao passo que na redução teleológica já não se trata de interpretação.
A redução teleológica, à semelhança da analogia, fundamenta-se no princípio da igualdade, que postula que situações diferentes devem ter um tratamento jurídico diferente (v., MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao direito, Almedina, 2015, 2.ª reimpressão, pp. 366-368; KARL ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico, Gulbenkian, 7.ª edição, pp. 313-315).
Por conseguinte, há que entender que a não integração formal no PERSI da Embargante pela credora cedente em relação às obrigações em mora que se venceram (após as duas primeiras prestações dos planos financeiros) não impedia a Embargada de instaurar a execução tendo em vista a satisfação do seu crédito.
Assim, tudo ponderado, poderá mesmo concluir-se que a invocação pela Embargante da falta de integração no PERSI como forma de obstar à instauração da execução configura um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium (art. 334.º do CC). »
Sempre as circunstâncias e razões aduzidas neste segmento reconduzem antes a situação a uma hipótese de exercício abusivo, na modalidade convocada.
Pese embora a lei estatuir, no art. 334º do CC, que o exercício de um direito é ilegítimo, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”[13], para ter validade, o abuso de direito não carece de positivação, na medida em que se trata de um princípio normativo.[14]
Ora, o abuso do direito pode revestir-se, então, como um excesso manifesto dos limites impostos por três vertentes: a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito.
Os limites impostos pelos bons costumes reportam-se a regras de conduta impostas pela moral, com “referência para critérios éticos supra legais” e, por seu turno, a contrariedade ao fim social ou económico trata de situações que dizem respeito à função objetiva dos direitos subjetivos, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria cit., pp. 235 e ss.
De acordo com a doutrina, a boa fé pode, por um lado, ser encarada em sentido objetivo, quando está em jogo como uma imposição externa que todos devem respeitar, remetendo para princípios, regras, ditames ou limites. No fundo, um modo de agir. E, por outro lado, em sentido subjetivo, quando aquilo para que se remete é um estado do sujeito, do grau de cognoscibilidade de determinados factos[15].
Ora, estes “limites impostos pela boa fé” de que fala o artigo 334º do CC reportam-se, então, à boa fé objetiva, a limites impostos pelo sistema e não a um estado do sujeito. Em causa já um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expetativa dos outros.
Não existe nenhuma classificação para as várias formas que o abuso do direito pode assumir, mas apenas agrupamentos de situações típicas de casos. Cfr. Menezes Cordeiro, Do Abuso do Direito: estado das questões e perspetivas, in AA. VV., (org.) Jorge Figueiredo Dias, José Joaquim Gomes Canotilho, José de Faria Costa, Ars Ivdicandi, Estudos em Homenagem Ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Volume II: Direito Privado, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 144. Destarte, podemos identificar cinco tipos distintos que caracterizam comportamentos abusivos – venire contra factum proprium, inalegabilidades formais, supressio e surrectio, tu quoque e desequilíbrio no exercício.
O venire caracteriza-se pela verificação de comportamentos que se contradigam temporalmente, ainda que lícitos, e que, assim, levem à frustração da expectativa e confiança criadas na outra parte. Todavia, a situação jurídica originada pelo primeiro comportamento (o factum proprium) terá de estar em oposição direta com o comportamento posterior, para que possa ser inadmissível esse exercício. Ora, estes comportamentos contraditórios tanto podem sê-lo positiva ou negativamente, consoante estejamos perante o caso de alguém desenvolver um comportamento que se traduz, para a outra parte, numa expectativa de não vir a praticar determinado ato e, a posteriori, pratica-o, ou o caso do sujeito manifestar que irá assumir certo ato e, depois, não o fazer.
A tutela da confiança tem uma importância de relevo neste tipo de abuso. Para ter efeito, contudo, terão de verificar-se quatro elementos, que não dispõem de nenhuma hierarquização entre si, podendo mesmo valer a tutela sem que todos se verifiquem, uma vez que as demais premissas sejam de tal modo intensas que viabilizem a compensação de tal ausência: uma situação de confiança assente típica de quem não tenha consciência de estar a prejudicar interesse alheio; justificabilidade dessa confiança; investimento de confiança, traduzido em comportamentos baseados na mesma; imputação da confiança gerada ao lesado. Assim, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 1243 e ss., e, igualmente, Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via» no Direito da Responsabilidade Civil? O problema da imputação dos danos causados a terceiros por auditores de sociedades, Almedina, Coimbra, 1997, p. 103 e 104, conquanto critique a gradação da intensidade dos tais pressupostos, bem como a eventual falta dos mesmos (já em Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Reimpressão da edição de Fevereiro 2004, Almedina, Coimbra, 2007, p. 586/618).
Assim, nas palavras de Vaz Serra[16]: «Ninguém pode exercer um direito em contradição com o seu anterior procedimento, se este, considerado objectivamente, justificar a ilação de que não mais fará valer o direito ou se o exercício posterior for, por causa da conduta anterior do titular, contrário aos bons costumes ou à boa fé.»
No caso, os contratos subjacentes às livranças que foram dadas à execução já tiveram por finalidade a regularização de responsabilidades assumidas pela Embargante perante a credora originária, respeitando ambos os contratos, por isso, a valores consolidados, sendo que, no caso do contrato n.º ...4096, foi acordado um modo de reembolso pela Embargante que estava em situação de incumprimento quanto a obrigações decorrentes de relações creditícias anteriores[17].
Ora, correspondendo já à concretização da facilitação da regularização extrajudicial de situações de incumprimento, sendo que a consolidação da dívida, por natureza, obvia a ação judicial por incumprimento, não se desconhecendo outrossim a assimetria negocial nesta sede[18], não pode considerar-se que na situação decidenda o mutuante não tenha proporcionado ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida. Ao invés, a embargante é que não apresenta evidências de aptidão para o cumprimento das obrigações assumidas e incumpridas, uma e outra vez.
Sempre caracterizados sucessivos/vários incumprimentos, sinalizados/avisados pela credora cedente, a qual aceitou os reiterados pagamentos em atraso, sendo que a cessação ulterior de quaisquer pagamentos em cada um dos créditos exequendos, sem retoma ou amortização, sequer parcial e a frustração da possibilidade de negociação/renegociação por via da alteração não comunicada do domicílio são suficientes a caraterizar um comportamento contrário à boa fé pela executada.
Como observa Joana Lourenço e Castro, Breves considerações sobre a aplicação prática do decreto-lei n.º 227/2012 de 25 de outubro, in Estudos de direito do consumidor, publicação do CENTRO DE DIREITO DO CONSUMO, FDUC, Julho de 2021, p. 263, «Cabe tanto às instituições financeiras como aos clientes bancários (sublinhado nosso), tentar evitar situa­ções de impossibilidade de pagamento das suas prestações de créditos bancários e, desta forma, combater situações de puro incumprimento e consequentemente créditos malpara­dos que são um mal que adoece a economia.»
Por isso que a invocação da omissão pelo credor dos deveres de possibilitar a renegociação dos créditos, mediante o comportamento daquele caraterizado no caso, sempre se vislumbra contraditória e contrária à boa fé.
Tudo para dizer da improcedência da argumentação recursiva, no que ao mérito da causa interessa, sendo de manter a decisão recorrida.

III.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

Notifique.

Porto, 12 de Outubro de 2023


Sumário:
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Isabel Peixoto Pereira
Isoleta de Almeida Castro
Leonel Basto
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[1] Algumas das quais, é certo, não se prendem com os créditos em apreço na execução, antes respeitam àqueles cuja reestruturação determinou a subscrição dos títulos exequendos, servindo apenas como meio de corroboração do modo de comunicação eficiente entre as partes, pese embora a falta de registo das cartas e do seu envio mediante aviso de receção…
[2] E perfeita e cabelmente justificada em sede de sentença recorrida.
[3] O acima adiantado “posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados”, fator de determinação do standard ou padrão de prova exigido.
[4] Cfr. a hipótese versada no Acórdão do TRL de 05-01-2021 (Pº 105874/18.0YIPRT.L1-7), na base de dados da dgsi.
[5] José Lebre de Freitas/Armando Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, sub art. 662º, págs. 170-171, 174-175.
[6] Por todos, v. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 640º, pág. 166, sub art. 662º, págs. 294-295, Francisco Ferreira de Almeida, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 536-537.
[7] Abrantes Geraldes, Recursos… cit., sub art. 662º, pág. 298.
[8] FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II cit., pág. 537, completando: “Foi, assim, arredada a conceção segundo a qual a atividade cognitiva da Relação se deveria confinar, tão-somente, a um mero controlo formal da motivação/fundamentação efetuada em 1ª instância”.
[9] V. Ac. do STJ de 5/7/2022, processo n.º 400/180.0T8PVZ.P1.S1, na base de dados da dgsi.
[10] O PERSI, constituindo uma fase pré-judicial, em que se visa a composição do litígio por mútuo acordo entre credor e devedor, sendo obrigatória a integração do devedor no PERSI, a sua omissão implica a ocorrência de uma excepção dilatória inominada, que conduzirá à absolvição do executado da instância executiva– neste sentido, os Acórdãos do STJ de 9.12.2021 e 13.4.2021, pesquisáveis em www.dgsi.pt.
[11] Como se decidiu no Acórdão do TRC de 19-06-2018 (Pº 29358/16.8YIPRT.C1, rel. VÍTOR AMARAL): “Com o PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, previsto no DLei n.º 227/2012, de 25-10) pretendeu o legislador estabelecer, mediante normas imperativas, uma ordem pública de proteção do cliente/devedor/consumidor em situação de mora no cumprimento, visto como parte frágil na relação e, por isso, carecido de especial proteção, deixando a cargo da contraparte (uma entidade de crédito) especiais deveres de informação, esclarecimento e proteção. É nesse âmbito que é imposta a abertura, tramitação e encerramento de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, que constitui uma fase pré-judicial destinada à composição do litígio, por mútuo acordo, entre credor e devedor, contemplando uma fase inicial, uma fase de avaliação e proposta e uma fase de negociação. Enquanto não ocorrer extinção do PERSI, está vedada à entidade de crédito a instauração de procedimentos/ações judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito. No quadro daqueles deveres de informação, esclarecimento e proteção, cabe à entidade de crédito dar oportunidade ao contacto e negociação com a contraparte (devedor/cliente/consumidor), sem o que seria ilusória a esfera de proteção estabelecida, para o que cabe ao credor dar conhecimento à contraparte da abertura e do encerramento do PERSI, impendendo sobre si o ónus da alegação e prova da respetiva notificação. Dada essa oportunidade, não pode a contraparte (devedor) demitir-se da necessária cooperação/colaboração com a entidade de crédito, devendo, ao invés, empenhar-se nos contactos e prestação de informações necessários, sem o que o credor não poderia levar a bom termo o cumprimento dos deveres a seu cargo. A falta dessa cooperação/colaboração é causa de extinção do PERSI pela entidade de crédito (por iniciativa desta) (…)”.
[12] Não vem também questionada a verificação, como fundamentada e coerentemente na sentença, em termos para os quais nos remetemos, da previsão do art. 610º, n.º 2, al. b) do CPC.
[13] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Reimpressão da 7.ª edição de 2012, Almedina, Coimbra, 2014, p.232, equipara, analogamente, o papel desempenhado pelo abuso de direito, enquanto consagração dos limites da autonomia privada no exercício de direitos subjetivos, ao papel desempenhado pelo artigo 280º, enquanto consagração dos limites gerais dessa mesma autonomia no conteúdo do negócio jurídico.
[14] A. Castanheira Neves, Questão-de-facto – questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, I, Almedina, Coimbra, 1967, p. 529, que vê, contudo, conveniência na consagração legal do instituto; no mesmo sentido, Jorge Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito Ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações sociais, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 1999, p. 49, concorda “na conveniência de a lei prever o abuso de direito, ultrapassando-se assim as dúvidas quanto à sua aplicabilidade”.
[15] Veja-se, p.ex., Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Introdução, Fontes do Direito, Interpretação da Lei, Aplicação das Leis no Tempo, Doutrina Geral, vª edição reformulada e atualizada, Almedina, Coimbra, 2012, p. 964 e Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, Reimpressão da edição de 1973, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 164 e ss..
[16] Cfr. Abuso do Direito (Em Matéria de Responsabilidade Civil), in BMJ, n.º 85, Lisboa, 1959, pp. 251 e 252.
[17] Quanto ao qual, nos termos da documentação junta sob documento número 1 com a contestação, tinha, de resto, sido aberto PERSI.
[18] Anotando que a fase de negociação do PERSI, na verdade, não parece uma verdadeira negociação, na medida em que a vontade da instituição de crédito imperará sempre, pois ou o cliente bancário aceita a proposta inicial, ou, não aceitando, aquela pode não apresentar outra ou pode recusar as alterações sugeridas, a posição do devedor está enfraquecida e dependente da vontade do credor, sendo este a comandar a dita negociação, o que é agravado e aferido pela pluralidade de situações em que, por iniciativa própria, a instituição de crédito poderá pôr fim ao PERSI, António de Araújo Costa, Do equilíbrio contratual na relação de crédito: a posição jurídica do garante no âmbito das PME, Colecção Estudos Instituto do Conhecimento AB, N.º 6, 2017, Almedina, p. 430 e 431.