Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1335/17.9T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CONCEITO DE RETRIBUIÇÃO NA LAT
REPARTIÇÃO DE RESPONSABILIDADES
Nº do Documento: RP202112151335/17.9T8AVR.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I – O conceito de retribuição, para efeitos de cálculo das pensões e indemnizações devidas por acidentes de trabalho, é mais amplo do que é definido no artigo 258.º do CT/2009, por contemplar todas as prestações que revistam carácter de regularidade e tenham correspectividade com a relação juslaboral.
II - O acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 14/2015, reporta ao conceito de retribuição das prestações complementares do artigo 258.º do CT/2009 e não do artigo 71.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
III – O legislador excluiu da repartição de responsabilidade, prevista no artigo 79.º, n.º 4, da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente e as ajudas médicas, medicamentosas e técnicas, não incluídas nas despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1335/17.9T8AVR.P1
Origem: Comarca Aveiro. Olv. Azeméis. Juízo do Trabalho.
Relator - Domingos Morais – R 941
Adjuntos: Paula Leal de Carvalho
Rui Penha

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. – Relatório
1.B… intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, a correr termos na Comarca Aveiro, S.M.Feira, Juízo do Trabalho J1, contra
C… – Companhia de Seguros, S.A. e
D…, S.A., todos nos autos identificados, alegando, em síntese, que sofreu um acidente de trabalho, no dia 04.04.2016, o qual consistiu num atropelamento por empilhador, no local e tempo de trabalho, no exercício de funções ao serviço do seu empregador, a 2.ª ré, tendo sofrido lesões que exigiram tratamentos e, após consolidação, deixaram sequelas que geram uma incapacidade permanente parcial com incapacidade permanente absoluta para a profissão habitual; que carece de ajudas técnicas, médicas e medicamentosas e fez despesas em que deve ser ressarcido.
Terminou, pedindo:
a) Deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente, a Ré condenada a pagar, ao mesmo, as despesas de tratamento, tratamentos se necessários ou a Pensão anual e vitalícia, pagável em duodécimos no seu domicílio, de acordo com a incapacidade permanente que lhe vier a ser fixada, face ao resultado da Junta Médica e as despesas de consultas e tratamentos e ajudas que sejam determinados e supra descritos de 13 a 15.
b) Assim como, deve a Ré, ser igualmente condenada a pagar as despesas das deslocações do autor para Tribunal desde a data do acidente até à data de alta no valor total de 20,00€.”.
2. - Citada, a ré seguradora contestou, alegando que a sua responsabilidade emergente do acidente de trabalho sofrido pelo autor está limitada pelo valor do salário transferido à data do acidente.
3. - Citada, a ré patronal contestou, alegando, em resumo, que “Relativamente à retribuição do sinistrado, apenas aceita o valor de retribuição que resulta dos recibos que se juntam, oportunamente comunicados à R. seguradora e para que se remete e Aceita a responsabilidade pelo valor de retribuição que não se mostrar transferido para a R. seguradora nos termos da apólice e face ao valor que for apurado nestes autos ser devido a seu cargo.”.
4. - No despacho saneador, foram fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória, bem como determinado desdobramento do processo para fixação de incapacidade.
5. - Realizado o julgamento e respondidos os quesitos, o Mmo Juiz proferiu decisão, já rectificada:
Pelo exposto, julgo procedente a ação e, em consequência, reconheço que o autor, em consequência do acidente dos autos, ficou a padecer de uma IPP de 91,8% com IPATH para a profissão de operador de soldadura por eletroarco ou oxiacetilénico, com consolidação das lesões em 16 de novembro de 2017 e, em consequência, condeno as rés no seguinte:
Condeno a ré C… – Companhia de Seguros, SA, no pagamento ao sinistrado das seguintes quantias:
Uma pensão anual, vitalícia e actualizável de € 6.895,64 a partir de 17 de novembro de 2017, devidamente atualizada para a quantia de € 7.019,76 a partir de 1 de janeiro de 2018, € 7.132,08 a partir de 1 de janeiro de 2019 e € 7.182 a partir de 1 de janeiro de 2020, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação da pensão já vencida e não paga, até integral pagamento;
A quantia de € 5.004,63, a título de subsídio de elevada incapacidade acrescida de juros de mora desde 17 de novembro de 2017 até integral pagamento;
A quantia de € 20 de despesas de deslocação acrescida de juros de mora desde o dia seguinte ao da tentativa de conciliação até integral pagamento; e
A quantia de € 1.287,93, a título de diferenças indemnizatórias, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.
Condeno a ré D…, SA, no pagamento ao sinistrado das seguintes quantias:
Uma pensão anual, vitalícia e actualizável de € 541,42 à ré seguradora a partir de 17 de novembro de 2017, devidamente atualizada para a quantia de € 551,16 a partir de 1 de janeiro de 2018, € 559,98 a partir de 1 de janeiro de 2019 e € 563,90 a partir de 1 de janeiro de 2020, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação da pensão já vencida e não paga, até integral pagamento;
A quantia de € 392,94, a título de subsídio de elevada incapacidade acrescida de juros de mora desde 17 de novembro de 2017 até integral pagamento; e
A quantia de € 906,21, a título de diferenças indemnizatórias, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.
Mais condeno as rés seguradora e empregadora, na proporção de 92,72% e de 7,28%, respetivamente, na prestação ao sinistrado das seguintes ajudas médicas, medicamentosas e técnicas:
Acompanhamento médico na àrea de Medicina Física e de Reabilitação, para prescrição das próteses/substituição dos seus componentes e realização periódica de tratamento fisiátrico, tendo como objectivos reduzir a sintomatologia álgica e pontenciar a capacidade de marcha com a prótese;
Acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico, visando adequar expectativas, minimizar o sofrimento e aperfeiçoar estratégias de coping;
Banco para duche, com periodicidade de substituição de 10 anos;
Canadianas, com periodicidade de substituição de 1 ano;
Prótese transtibial com estrutura endosquelética de encaixe rígido em carbono acrílico, interface em silicone com suspensão por membrana (amovível), perna tubular leve, pé com retorno de energia e movimento do tornezelo, e revestimento cosmético com meia de silicone, com periodicidade de substituição de 2 anos;
Barra de apoio para duche, com periodicidade de substituição de 10 anos;
Prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética: - interface em silicone e pé aquático, com periodicidade de substituição de 2 anos;
Tapete antiderrapante, com periodicidade de substituição de 2 anos; e
Adaptação de veículo automóvel para que o sinistrado seja independente nas deslocações de longo curso, com implementação de caixa automática.
Mais condeno as rés no pagamento das custas, na proporção de 92,72% para a ré seguradora e de 7,28% para a ré empregadora.
Valor da causa: € 122.124,89.”.
6. – A ré empregadora apresentou recurso de apelação, concluindo:
1ª O prémio de incentivo auferido pelo sinistrado não constitui uma remuneração regular e como tal não devia ter sido integrada no valor da remuneração considerada para efeitos deste AT.
2ª O sinistrado não padece de IPATH nem beneficia da aplicação do fator de 1,5, porque continua a exercer a sua profissão de soldador (facto 2), tendo sido reconvertido e mantendo o desempenho de funções inerentes e essenciais da sua profissão e categoria normativa contratual, não tendo sofrido quebra de rendimento ou de remuneração.
3ª A seguradora deve cobrir integralmente o subsídio de elevada incapacidade permanente e as ajudas médicas, medicamentosas e técnicas, porque a norma do nº 5 do artº 79º da LAT tem uma enumeração taxativa das prestações proporcionalmente a cargo do empregador e da seguradora, quando a retribuição declarada para efeito de prémio for inferior à real.
Nestes termos, deve o recurso merecer provimento e ser revogada a sentença recorrida, com as consequências legais.”.
7. – A ré seguradora contra-alegou, concluindo que “o recurso não deve merecer provimento.”.
8. - O M. Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
9. - Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. - Fundamentação de facto
1. - Na 1.ª instância foi proferida a seguinte decisão sobre a matéria de facto:
1. Factos provados:
1. No dia 04-04-2016, cerca das 10:00 horas, em Oliveira de Azeméis, o Autor foi vítima de acidente quando trabalhava para a ré empregadora que consistiu em, ao deambular no seu local de trabalho, ter sido atropelado por empilhador.
2. Naquela data, o autor trabalhava para a ré empregadora com a categoria profissional de soldador de 1.ª, mediante retribuição, sob as ordens, direção e fiscalização desta.
3. O autor auferia o salário mensal de € 567,00 x 14 meses, acrescido de € 93,94 x 11 meses de subsídio de alimentação e € 112,72 x 14 meses de outras remunerações regulares (subsídio de turno).
4. A responsabilidade infortunística se encontrava transferida para C… – companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice n° ……., na modalidade de prémio variável, com a retribuição anual transferida de € 10.087,42.
5. Do acidente resultaram lesões traumáticas no pé esquerdo, bem como as lesões e incapacidades descritas no relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls 111 e segs e 118 e seguintes, com base nas quais o Perito do GML de Entre Douro e Vouga fixou a consolidação médico-legal das suas lesões no dia 16-11-2017 e lhe arbitrou um coeficiente de desvalorização de 61,60%, a título de IPP e que, de forma permanente e absoluta, o incapacita para o exercício da sua profissão habitual.
6. O Autor recebeu da seguradora a importância de € 10.256,50, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos e despendeu a quantia de € 20,00 em despesas de transporte, com as suas deslocações obrigatórias ao Gabinete Médico-Legal e a este Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis.
7. Na tentativa de conciliação a seguradora, aceitou a existência do acidente e a sua caracterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, a categoria profissional, a retribuição do sinistrado e a transferência da responsabilidade infortunística, nos termos da citada apólice de seguro, em função da retribuição anual ilíquida de € 10.087,42. Concordou com o resultado da perícia de avaliação de dano corporal realizada pelo Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga, visto entender que o sinistrado se encontrar efetivamente afetado de uma IPP de 61,60%. Mas não concordou, porém com as conclusões do relatório de fls 118 e seguintes, por entender que o mesmo não se encontra incapacitado, de forma permanente e absoluta, para o exercício da sua profissão habitual, nem com as respectivas ajudas técnicas ali referidas. A segunda Ré, entidade patronal, aceitou a existência do acidente e a sua caracterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, a categoria profissional e a retribuição do sinistrado, sendo que relativamente ao prémio de incentivo se aceita apenas a média anual do valor efectivamente auferido. Aceitou igualmente a transferência da responsabilidade infortunística, relativamente ao valor que não estiver transferido para a seguradora, correspondente ao que se comprovar efectivamente auferido e transferido. Concordou, a entidade patronal com o resultado da perícia de avaliação de dano corporal realizada pelo Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga, visto entender que o sinistrado se encontrar efetivamente afetado de uma IPP de 61,60%. Mas não concordou, porém com as conclusões do relatório de fls 118 e seguintes, por entender que o mesmo não se encontra incapacitado, de forma permanente e absoluta, para o exercício da sua profissão habitual, nem com as respectivas ajudas técnicas ali referidas.
8. Nos doze meses anteriores ao acidente, o autor auferiu a quantia € 327,88 de prémio de incentivo, tendo recebido valores a este título todos os meses, com exceção dos meses de novembro de 2015, fevereiro de 2016 e março de 2016, sendo que nestes dois últimos meses trabalhou apenas 17,34 e 8 horas, respetivamente, tendo estado de baixa por doença no resto do tempo de trabalho.
9. Em consequência do acidente, o autor ficou impossibilitado de forma permanente para o exercício da sua profissão de operador de soldadura por eletroarco ou oxi-acetilénico.
10. Em consequência do acidente o autor carece de acompanhamento médico na área de Medicina Física e de Reabilitação, para prescrição das próteses/substituição dos seus componentes e realização periódica de tratamento fisiátrico, tendo como objectivos reduzir a sintomatologia álgica e pontenciar a capacidade de marcha com a prótese e de acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico, visando adequar expectativas, minimizar o sofrimento e aperfeiçoar estratégias de coping.
11. Em consequência do acidente, o autor tem necessidade das seguintes ajudas técnicas:
- banco para duche, com periodicidade de substituição de 10 anos; - Canadianas, com periodicidade de substituição de 1 ano;
- Prótese transtibial com estrutura endosquelética de encaixe rígido em carbono acrílico, interface em silicone com suspensão por membrana (amovível), perna tubular leve, pé com retorno de energia e movimento do tornezelo, e revestimento cosmético com meia de silicone, com periodicidade de substituição de 2 anos;
- Barra de apoio para duche, com periodicidade de substituição de 10 anos;
- Prótese transtibial de banho com estrutura endosqueletica: - interface em silicone e pé aquatico, com periodicidade de substituição de 2 anos;
- Tapete antiderrapante, com periodicidade de substituição de 2 anos.
12. As próteses endosqueléticas para amputação transtibial necessitam de manutenção/revisão pelo menos uma vez por ano e de substituição periódica dos seus componentes (estimando-se cerca de seis meses para interface e meia de silicone, dois meses para revestimento cosmético e de dois anos para os restantes elementos).
13. Em consequência do acidente, o autor tem necessidade de adaptação de veiculo automóvel para que o sinistrado seja independente nas deslocações de longo curso, com implementação de caixa automática.
14. Será necessária a manutenção e adaptação continua da prótese à vida diária do examinado - prótese que permita tomar banho.
15. Em consequência do acidente, o autor ficou numa situação de incapacidade temporária absoluta entre 5.04.2016 e 19.10.2017 [563 dias] e de incapacidade temporária parcial a 70% entre 20.10.2017 e 16.11.2017 [28 dias].

III. – Fundamentação de direito
1. - Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) e artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho (CPT), e salvo questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões dos recorrentes, supra transcritas.
Mas essa delimitação é precedida de uma outra, qual seja a do reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal recorrido, isto é, o tribunal de recurso não pode criar decisões sobre matéria nova, matéria não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.

2.Objecto do recurso:
- A incapacidade do sinistrado: IPATH e factor 1,5.
- A retribuição do sinistrado: prémio de incentivo.
- A repartição da responsabilidade com a seguradora: subsídio de elevada incapacidade permanente e ajudas.
3. - Da incapacidade do sinistrado: IPATH e factor 1,5.
3.1. – Em sede de recurso, a recorrente alegou:
A questão é que a profissão de soldador é generalista e não compreende só a especialidade de soldadura por eletroarco ou oxi-acetilénico, abrangendo também a especialidade de soldadura por pontos. O sinistrado continua a operar essa soldadura por pontos, por não estar incapaz para essa atividade, como resulta das declarações que ele próprio prestou e que a motivação fática reproduz a pgs. 7 e já resultava do relatório dos peritos (auto de exame médico).
O facto de essas funções, na máquina, se equipararem a um operador de máquina e de um operador de máquina as poder executar com um mínimo de formação para esse efeito (formação de soldadura) não resolve o problema nem é decisivo.
O que é fundamental é que o sinistrado continua a ser soldador, a exercer funções dessa profissão de soldador (por pontos) e a trabalhar na sua atividade de soldador. E portanto essa conclusão é incompatível com a IPATH para a profissão de soldador e com a manutenção da capacidade de ganho sem quebra de rendimento/remuneração pelo exercício dessa profissão, embora com as limitações funcionais decorrentes das lesões sofridas.”.
E concluiu: “2ª O sinistrado não padece de IPATH nem beneficia da aplicação do fator de 1,5, porque continua a exercer a sua profissão de soldador (facto 2), tendo sido reconvertido e mantendo o desempenho de funções inerentes e essenciais da sua profissão e categoria normativa contratual, não tendo sofrido quebra de rendimento ou de remuneração.”
3.2. – Neste particular, está provado que “9. Em consequência do acidente, o autor ficou impossibilitado de forma permanente para o exercício da sua profissão de operador de soldadura por eletroarco ou oxi-acetilénico” e que carece de acompanhamento médico na área de Medicina Física e de Reabilitação, para prescrição das próteses/substituição dos seus componentes e realização periódica de tratamento fisiátrico - cf. ponto 10) -, bem como tem necessidade das ajudas técnicas descritas nos pontos 11) e 12) dos factos provados.
Assim, de modo sub-reptício, o que a recorrente pretende é a alteração da natureza e grau da incapacidade de que o autor é portador, em consequência do acidente de trabalho descrito nos autos.
Como vem entendendo este Tribunal da Relação, a alteração da natureza e grau de incapacidade resultante de acidente de trabalho, em sede de recurso, constitui modificação da decisão sobre a matéria de facto.
[cf., entre outros, os acórdãos do TRP de 27.03.2017, proc. n.º 690/14.7T8VRF.P1; de 20.06.2016, proc. n.º 44/2012.0TTSTS-1.P1 e de 09.01.2020, proc. n.º 4296/2018.3T8OAZ.P1, relatados pelo ora relator].
3.3. - A modificabilidade da decisão de facto, por iniciativa das partes, está expressa no artigo 640.º, do CPC, que dispõe:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo da possibilidade de poder proceder à respectiva transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)”.
Assim, não tendo a recorrente cumprido o estatuído no citado artigo 640.º do CPC, improcede, nesta parte, o recurso por si apresentado.
4. - Da retribuição do sinistrado: prémio de incentivo.
4.1. – A recorrente alegou em sede de recurso:
“A afirmação da sentença de que «nada apontando no sentido de que não receberia se nos meses de fevereiro e março de 2016 não estivesse estado de baixa por doença» traduz uma inversão do ónus da prova, pois era o sinistrado que tinha de provar a regularidade da remuneração, o direito a receber o prémio de incentivo e que se não tivesse estado de baixa receberia esse valor ou deveria tê-lo recebido, total ou parcialmente, o que não foi alegado nem provado. Por isso, não é legítima a extrapolação da sentença, que resulta de uma conclusão ilógica e infundamentada e assente em factos não provados e que os recibos não autorizam.”.
4.2. – Está provado nos autos que o autor auferia o salário mensal de € 567,00 x 14 meses, acrescido de € 93,94 x 11 meses de subsídio de alimentação e € 112,72 x 14 meses de outras remunerações regulares (subsídio de turno) e que nos doze meses anteriores ao acidente, o autor auferiu a quantia € 327,88 de prémio de incentivo, tendo recebido valores a este título todos os meses, com exceção dos meses de novembro de 2015, fevereiro de 2016 e março de 2016, sendo que nestes dois últimos meses trabalhou apenas 17,34 e 8 horas, respetivamente, tendo estado de baixa por doença no resto do tempo de trabalho - cf. pontos 3) e 8) dos factos dados como provados.
Na sentença recorrida, o Mmo Juiz consignou:
Não resulta de qualquer elemento que o prémio de incentivo visasse compensar o sinistrado por custos aleatórios, pelo que o que releva é a sua regularidade. Nesta matéria, embora não seja relativo ao conceito de retribuição em matéria de acidentes de trabalho, o acórdão do STJ n.º 14/2015 fixou jurisprudência no sentido de que a regularidade exigida é de onze meses em doze. No caso, não resultou provado que o autor, no ano anterior ao acidente, tenha auferido um valor a título de prémio de incentivo, onze meses, mas a verdade é que recebeu sempre, todos os meses, exceto um, salvo o período em que esteve de baixa por doença, com cerca de 2 e 1 dia trabalhados nesses meses, pelo que consideramos que está demonstrada a regularidade, pois o autor recebeu, com exceção de um mês, o prémio de incentivo em todos os meses que trabalhou, nada apontando no sentido de que não receberia se nos meses de fevereiro e março de 2016 não estivesse estado de baixa por doença. Na realidade, a questão dos onze meses de recebimento da retribuição, durante um ano civil, deve ser entendida com a necessária adaptação, não considerando períodos de interrupção ou suspensão do trabalho, porque se assim não fosse, então se um trabalhador estivesse de baixa por doença durante dois meses, a própria retribuição base não integraria o conceito de retribuição na medida em que, nesse período, o trabalhador também não a recebe, não perfazendo onze retribuições-base em doze meses. Por isso, concluimos que os factos provados demonstram regularidade no pagamento de um valor a título de prémio de incentivo, não se devendo considerar os períodos em que o autor esteve de baixa por doença, o que ocorreu nos dois últimos meses quase completos. Desta forma, a ré empregadora é responsável pelas prestações, na parte relativa à retribuição anual de € 327,88. Em suma, cabe à ré seguradora a quota-parte de 96,85% da responsabilidade e à ré empregadora a quota-parte de 3,15% da responsabilidade.”.
4.3. - O artigo 26.º, n.º 3 da Lei 100/97, de 13 de Setembro, dispunha:
3 - Entende-se por retribuição mensal tudo o que a lei considera como seu elemento integrante e todas as prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios.”.
O artigo 71.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, estatui:
1 - A indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, são calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado, à data do acidente.
2 - Entende-se por retribuição mensal todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios.
3 - Entende-se por retribuição anual o produto de 12 vezes a retribuição mensal acrescida dos subsídios de Natal e de férias e outras prestações anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade.”. (negrito nosso)
É consabido que a jurisprudência é consensual no sentido de que o conceito de retribuição, para efeitos de cálculo das pensões e indemnizações devidas por acidentes de trabalho, é mais amplo do que era definido no artigo 82.º do DL .º 49 408 (LCT); no artigo 249.º do CT/2003; e é definido no actual artigo 258.º do CT/2009, por contemplar todas as prestações que revistam carácter de regularidade e tenham correspectividade com a relação juslaboral.
[cf., entre outros:
- Acórdão do TRC, de 26.10.2000, Recurso n.º 2150/00, no site da internet;
- Acórdão do TRL de 09.05.2018, in www.dgsi.pt: I. A LAT de 2009 deixou de fazer remissão para os critérios da retribuição da lei geral, mas continua a conferir especial atenção ao elemento da regularidade no pagamento. II. E exceptua do conceito as prestações que se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios, pois que não se traduzem num ganho efectivo para o trabalhador. III. Cabe ao empregador o ónus de alegar e provar a natureza compensatória de custos aleatórios dos valores regularmente pagos, como facto impeditivo do direito do sinistrado.”. (negrito nosso)
- I - Conforme resulta do nº 2 do artigo 71º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, constitui retribuição, para efeito de acidentes de trabalho, «todas as prestações recebidas pelo sinistrado com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios». II Um subsídio de prevenção que visava compensar o constrangimento pessoal decorrente de o trabalhador ter que estar facilmente contactável e disponível para interromper o seu período de descanso e ir prestar trabalho, se necessário, e que é pago apenas nos meses em que o trabalhador está de prevenção, mesmo que pago apenas durante 7 meses no ano anterior ao sinistro, deve ser incluído na retribuição relevante para a reparação das consequências do acidente, nos termos do número anterior.”.]. (negrito nosso)
O mencionado acórdão de fixação jurisprudência do STJ n.º 14/2015, reporta ao conceito de retribuição das prestações complementares do artigo 258.º do CT/2009 e não do artigo 71.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, que fique claro, para evitar qualquer dúvida sobre esta matéria.
Assim, considerando o entendimento jurisprudencial sobre o conceito de retribuição, para efeitos de cálculo das pensões e indemnizações devidas por acidentes de trabalho, supra exposto, cabia à ré empregadora o ónus de alegar e provar a natureza compensatória de custos aleatórios da quantia € 327,88 que pagou ao autor, nos doze meses anteriores ao acidente, a título de prémio de incentivo.
Como decorre da contestação apresentada, a recorrente não cumpriu tal ónus, pois, limitou-se a alegar no artigo 3.º:
3º Relativamente à retribuição do sinistrado, apenas aceita o valor de retribuição que resulta dos recibos que se juntam, oportunamente comunicados à R. seguradora e para que se remete.”.
Improcede, também, nesta parte, o recurso da ré empregadora, embora por diferente fundamentação da exposta na sentença recorrida.
5. - Da repartição da responsabilidade com a seguradora: subsídio de elevada incapacidade permanente e ajudas médicas e técnicas.
5.1.Do subsídio de elevada incapacidade permanente
5.1.1. - Na 3.ª conclusão, a recorrente alega:
3ª A seguradora deve cobrir integralmente o subsídio de elevada incapacidade permanente e as ajudas médicas, medicamentosas e técnicas, porque a norma do nº 5 do artº 79º da LAT tem uma enumeração taxativa das prestações proporcionalmente a cargo do empregador e da seguradora, quando a retribuição declarada para efeito de prémio for inferior à real.”.
A ré seguradora discorda, invocando “a regra da proporcionalidade”, prevista no n.º 4 do artigo 79.º da LAT.
5.1.2. - O artigo 79.º, nos n.ºs 4 e 5 da LAT, prescreve:
“4 - Quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, que não pode ser inferior à retribuição mínima mensal garantida.
5 - No caso previsto no número anterior, o empregador responde pela diferença relativa às indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas, bem como pelas despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respectiva proporção.”. (negrito nosso)
Por sua vez, no Anexo da Portaria n.º 256/11, de 05.07, a Cláusula 23.º, n.º 1 - Insuficiência da retribuição segura -, dispõe:
1 - No caso de a retribuição declarada ser inferior à real, o tomador do seguro responde:
a) Pela parte das indemnizações por incapacidade temporária e pensões correspondente à diferença;
b) Proporcionalmente pelas despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica.”.
Neste contexto normativo, a jurisprudência vem entendendo que o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente não integra a previsão do n.º 5 artigo 79.º, por ser taxativa a sua formulação: “O referido subsídio é devido, na totalidade, pela seguradora responsável, porque tem montante fixo, não dependente da retribuição auferida pela vítima, e porque se não encontra abrangido pela previsão do art.º 79º, nº 5, da referida Lei, sobre repartição de responsabilidades” – cf. acórdão do TRE de 20.04.2017, in www.dgsi.pt.;
[Ver ainda do mesmo T. R. Évora: acórdãos de 12.10.2017, proc. 447/13.2TTFAR.E1; de 26.10.2017, proc. 4205/15.1T8STB-A.E1 e de 20.4.2017, in CJ, 2017, T 2, p. 248.
No mesmo sentido tem decidido o T. R. Guimarães, com o argumento de que, quer a Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, no seu artigo 79.º, n.º 5, quer a própria apólice uniforme (cláusula 23.ª), aprovada pela Portaria nº 256/11, de 05 de Julho, não prevêem que esse pagamento seja efectuado na proporção da responsabilidade transferida: acórdãos do TRG de 31.3.2020, proc. 1369/15.8T8BCL.G1; de 5.12.2019, proc. 2199/16.5T8BCL.G1 e de 4.2.2021, proc. 3086/19.0T8VNF.G1].
5.2.Da prestação de ajudas médicas e técnicas.
5.2.1. - Na fundamentação da sentença recorrida, o Mmo Juiz consignou: “Nos termos dos artigos 23.º. alínea a) e 25.º, n.º 1, alínea a) e b), da LAT, a seguradora tem a obrigação de fornecimento dos tratamentos médicos necessários ao restabelecimento do sinistrado.
E a final decidiu: “Mais condeno as rés seguradora e empregadora, na proporção de 96,85% e de 3,15%, respetivamente, na prestação ao sinistrado das seguintes ajudas médicas, medicamentosas e técnicas: (…)”, sem, no entanto, especificar a norma que permite a repartição de tal responsabilidade.
5.2.2. – Conforme o disposto nos artigos 23.º e 25.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, o direito à reparação do acidentado no trabalho compreende várias prestações em espécie e em dinheiro.
De todas essas prestações, a LAT só prescreve a repartição de responsabilidade para as que estão expressas no citado artigo 79.º, n.º 5.
Assim, na leitura literal dessa norma, elemento interpretativo incluído nas regras da interpretação da lei, previstas no artigo 9.º do Código Civil, o legislador excluiu da repartição de responsabilidade, prevista no citado artigo 79.º, n.º 4, o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente e as ajudas médicas, medicamentosas e técnicas, não incluídas nas “despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica”, ou seja, todas aquelas ajudas médicas, medicamentosas e técnicas – cf. artigo 41.º da LAT - que o sinistrado poderá necessitar após a alta clínica, isto é, após a cura, ou a insusceptibilidade de modificação, das lesões sofridas na sequência de acidente de trabalho – cf. artigo 35.º, n.º 3, da LAT.
Neste processo de interpretação dos n.ºs 4 e 5 do artigo 79.º e da Cláusula 23.ª do Anexo da Portaria n.º 256/11, de 05.07, no contexto do artigo 9.º do C. Civil, cabe aquele princípio interpretativo: não pode o intérprete incluir, aquilo que o legislador excluiu.
Dito de outra forma: de todas as prestações – em espécie e em dinheiro - que o legislador incluiu no direito do sinistrado a ser compensado pelas limitações funcionais, ocasionadas por acidente de trabalho, apenas inclui na responsabilidade repartida as que constam enunciadas no n.º 5 do artigo 79.º da LAT e na Cláusula 23.ª do Anexo da Portaria n.º 256/11, de 05.07.
Assim, destinando-se as “ajudas médicas, medicamentosas e técnicas” mencionadas no dispositivo condenatório da sentença a compensar as limitações funcionais do autor/sinistrado após a alta clínica, por insusceptibilidade de modificação das lesões sofridas na sequência do acidente de trabalho descrito nos autos, já não cabem no âmbito das “despesas efectuadas com a hospitalização e assistência clínica”, logo após o acidente.
Em síntese: não estando incluídas na enumeração taxativa do n.º 5 do artigo 79.º da LAT, nem da Cláusula 23.ª do Anexo da Portaria n.º 256/11, de 05.07, as prestações do subsídio por situação de elevada incapacidade permanente e das ajudas médicas, medicamentosas e técnicas necessárias ao autor/sinistrado após a sua alta clínica, não se lhes aplica o regime da responsabilidade repartida, previsto no n.º 4 do citado artigo 79.º da LAT.
Assim, procede, nesta questão, o recurso da ré empregadora, com a consequente revogação parcial da sentença.

IV.A decisão
Atento o exposto, acórdão os Juízes que compõem esta Secção Social:
1. - Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação sobre a matéria de direito, e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte da condenação da responsabilidade repartida, relativa ao subsídio por situação de elevada incapacidade permanente e das ajudas médicas, medicamentosas e técnicas, a qual é substituída pelo presente acórdão que:
2. – Condena a ré seguradora no pagamento integral, ao autor, do subsídio por situação de elevada incapacidade permanente e na prestação das ajudas médicas, medicamentosas e técnicas, absolvendo, nesta parte, a ré D…, S.A..
3. – No mais, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da ré seguradora e da ré empregadora, na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente.

Porto 2021.12.15
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha