Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3434/20.0T8OAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
TRIBUNAL COMPETENTE EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RP202204043434/20.0T8OAZ-A.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial, determina-se pelo thema decidendum, pelo pedido conjugado com os factos jurídicos que fundamentam a pretensão deduzida.
II - A competência especializada dos Tribunais/Juízos do Trabalho para apreciar o pedido de indemnização civil, por danos patrimoniais e não patrimoniais, emergentes de acidente de trabalho ocorrido por comportamento culposo do empregador, não conflitua, no sentido em que são independentes, com a competência ordinária dos Tribunais/Juízos Criminais que apreciem a eventual responsabilidade criminal inerente ao mesmo acidente de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3434/20.0T80AZ-A.P1
Origem: Comarca Aveiro-O.Azeméis-Juízo Trabalho
Relator: Domingos Morais – Registo 964
Adjuntos: Paula Leal de Carvalho
Rui Penha


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
1. – No decurso da acção especial emergente de acidente de trabalho n.º 3434/20.0T80AZ, a correr termos na Comarca Aveiro-O.Azeméis-Juízo Trabalho, na qual figuram como partes, os autores/beneficiários
AA, BB e CC, e como rés
Companhia de Seguros X ..., S.A., e
S..., S.A.,
Foi proferido o despacho saneador, no qual foi apreciada a excepção da competência material do Tribunal do Trabalho, nos seguintes termos:
1. A ré empregadora alega que o Tribunal é incompetente, porque corre termos processo criminal e os autores estão obrigados a efetuar o pedido cível no âmbito desse processo.
Oficiou-se ao processo n.º 130/20.2GCOAC que informou que o processo crime, que teve início em 30 de outubro de 2020, está em fase de investigação.
Nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do CPP, o pedido cível pode ser deduzido em separado quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses.
No caso verifica-se essa situação e, por isso, consideramos que nada obsta à dedução do pedido nesta sede, sendo certo que, como é invocada a responsabilidade subjectiva do empregador, a indemnização, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da LAT, é fixada nos termos gerais de direito.
Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de incompetência do Tribunal por desrespeito do princípio da adesão.
Assim, o tribunal é o competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.”.
2. - A ré, S..., S.A., apresentou recurso de apelação em separado, concluindo:
1ª O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (artº 71º do CPP), o que não é o caso.
2ª Na realidade, à data em que a petição inicial deu entrada, 14.6.2021, ainda não estava verificado o pressuposto e a condição da ação prevista no artº 72º, nº 1, alínea a), do CPP (o pedido cível pode ser deduzido em separado quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses).
3ª Ou seja, faltava uma condição da ação, determinante da inadmissibilidade do pedido de indemnização civil (pelo dano da morte e danos não patrimoniais) em separado (do processo crime respetivo), perante o tribunal civil, e da incompetência do Juízo do Trabalho, como arguiu a recorrente, pelo que a decisão recorrida violou as normas citadas nas conclusões anteriores.
Nestes termos, deve o recurso merecer provimento, com as consequências legais.
3. – Os autores e a primeira ré não responderam.
4. - O M Público não emitiu parecer, “por inaplicabilidade do artigo 87º, n.º 3, do CPT.”.
5. - Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. – Fundamentação de facto
Para além da factualidade que consta do Relatório que antecede, consigna-se ainda que:
1. - O acidente de trabalho, descrito nos autos, ocorreu no dia 29.10.2020.
2. - A petição inicial deu entrada em juízo no dia 04.06.2021.
3. - O processo crime teve início em 30 de outubro de 2020 e está em fase de investigação.
III.Fundamentação de direito
1. - Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, aplicáveis por força do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) e artigo 87.º do CPT, e salvo questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões do recorrente.
2. - Questão a apreciar
- Da (in)competência material do Tribunal do Trabalho.
3. - Da (in)competência material do Tribunal do Trabalho.
3.1. – A ré recorrente alegou na contestação:
9.º Quanto aos danos invocados, no capítulo dos danos não patrimoniais, incluindo o dano da morte e os danos próprios, não é a sede própria nem o tribunal competente para os reclamar, uma vez que existe um processo crime pendente sobre os factos objeto destes autos, como vem documentado na p.i. (NUIPC 130/20.2GCOAZ).
10º O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (artº 71º do CPP), o que não é o caso.
11º Sem prejuízo e sem conceder quanto à falta de responsabilidade no sucedido, não pode a R. deixar de impugnar a alegação produzida nos artºs 137º a 187º e os valores impetrados, por serem desconformes com o praticado.”.
3.2. – Na resposta, os autores alegaram:
26. Sendo os Autores beneficiários do sinistrado falecido, nos termos da Lei dos Acidentes de Trabalho, a competência para julgar a ação em que os mesmos peticionam o pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais com fundamento na inobservância das regras sobre saúde e segurança no trabalho pertence ao tribunal de trabalho.
27. O artigo 18º da Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei nº 98/2009, de 4.9), permite que no processo resultante do acidente de trabalho, para além da atribuição de uma pensão anual, seja também considerada a totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais ocorridos, se o acidente tiver sido provocado pelo empregador ou resultar da falta de observância de regras sobre a segurança e saúde no trabalho.
28. O que é o caso dos presentes autos, sendo assim a sede própria e competente.”.
3.3. - Quid iuris?
Nos termos do artigo 126.º - Competência cível -, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário -, “Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.
É consabido que a competência do tribunal em razão da matéria se afere pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, determina-se pelo thema decidendum, pelo pedido conjugado com os factos jurídicos que fundamentam a pretensão deduzida, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor, como resulta do artigo 5.º, n.º 3 do CPC.
Na verdade, desde, pelo menos, a Lei n.º 82/77, de 06.12 - Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais -, que a resolução dos litígios emergentes de acidentes de trabalho está atribuída à jurisdição especializada do Trabalho - cf. artigo 56.º, alinea f) e artigo 66.º, alínea c) da Lei n.º 82/77, de 06.12 - que aborda esta competência num quadro processual próprio – cf. CAPÍTULO II Processos emergentes de acidente de trabalho e de doença profissional do CPT -, o qual integra disciplina processual específica para a realização deste ramo do Direito, articulando a dimensão pericial da determinação das consequências do acidente, com a realização dos interesses de natureza pública que estão subjacentes: a reparação da perda da capacidade de ganho do sinistrado ou o inerente direito dos seus familiares à reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho por ele sofrido - artigo 2.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro.
[cf., entre outros, acórdão do STJ de 08.06. 2017; e acórdão do TRL de 19.09.2017].
A questão que é colocada no presente recurso é a de saber se face à causa de pedir - acidente de trabalho ocorrido em 29.10.2020, por violação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho por parte da ré empregadora - e ao pedido formulado na petição inicial - “F. A quantia de 60.000,00€ a título de danos não patrimoniais, pelo dano morte, cabendo 30.000,00€ (trinta mil euros) à 1ª Autora, 15.000,00€ (quinze mil euros) ao 2º Autor e 15.000,00€ (quinze mil euros) à 3ª Autora” e “G. A quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros) à 1ª Ré, pelos danos não patrimoniais próprios” - contra as rés, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro, se impõe ou exige que a competência para apreciar essa parte do pedido, atribuída aos Tribunais de Trabalho no referido artigo 126.º da Lei 62/2013, de 26.08, seja preterida face ao disposto nos alegados artigos 71.º e 72.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Entendemos que não, pelas razões que passamos a expor.
A relação material controvertida, descrita na petição inicial, comporta os autores [beneficiários da vítima mortal no acidente de trabalho]; a seguradora [responsável por transmissão obrigatória - artigo 79.º da Lei n.º 98/2009]; e a empregadora [responsável originária - artigo 7.º - e responsável nos termos do artigo 18.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 98/2009], e cuja resolução jurídica a Lei n.º 62/2013, de 26.08, atribui aos Tribunais/Juízos do Trabalho, no exercício da sua competência especializada, nos termos supra referidos.
E se é verdade que o regime jurídico de acidentes de trabalho, em Portugal, assenta na subscrição de um seguro privado de contratação obrigatória, entregue a entidades privadas (Empresas de Seguros), também é certo que a entidade empregadora pode ser responsabilidade nos termos previstos no artigo 18.º - Actuação culposa do empregador - n.º 1 da Lei n.º 98/2009: “1 - Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.”. (negrito nosso)
E a competência especializada dos Tribunais do Trabalho para apreciar os “prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais” por “actuação culposa do empregador”, não conflitua, no sentido em que são independentes, com a competência ordinária dos Tribunais Criminais para apreciar a eventual responsabilidade criminal em que os responsáveis previstos no n.º 1 do artigo 18.º tenham incorrido, como expressamente resulta do seu n.º 2:
2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que os responsáveis aí previstos tenham incorrido.”.
Improcede, assim, o recurso em separado apresentado pela ré empregadora.

IVDecisão
Atento o exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto julgar o recurso de apelação em separado improcedente, e, em consequência, manter a decisão recorrida.

As custas são a cargo da ré recorrente.

Porto, 2022.04.04
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha