Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1267/15.5T8FNC-A.L1.S1
Nº Convencional: 4ª. SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: DEVER DE SIGILO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
Data do Acordão: 12/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / CLÁUSULAS CONTRATUAIS DE LIMITAÇÃO DA LIBERDADE DE TRABALHO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAL / COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA.
Doutrina:
- Aníbal de Castro, Impugnação das Decisões Judiciais”, 2.ª ed., 111.
- J. Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. I, 647/648, ed. 1980.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, 1976, 91.
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 241-242.
- Rodrigues Bastos, Notas ao “Código de Processo Civil”, Vol. III, 247.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 405.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 60.º, 635.º, N.º 3, 639.º, N.º 1.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 128.º, N.º 1, AL. F), 136.º, N.ºS 1 E 2.
LEI N.º 62/2013, DE 26-08 (LOSJ): - ARTIGOS 126.º, N.º 1, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
-DE 7/3/85, IN B.M.J., 347.º/477.

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 5/4/1989, IN B.M.J. 386/446, DE 23/3/90, IN A.J., 7.º/90, 20, DE 12/12/1995, IN C.J., 1995, III/156, DE 18/6/96, C.J., 1996, II/143, DE 31/1/1991, IN B.M.J. 403.º/382.
-DE 13.02.2008, PROC. N.º 07S3385, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1 – A competência do tribunal, sendo um pressuposto processual, afere-se pelo pedido e respetivos fundamentos, nos termos em que são configurados pelo autor.

2 – Tendo as partes inserido no contrato de trabalho uma cláusula de confidencialidade para vigorar até três anos após a cessação do contrato de trabalho, esta obrigação, livremente assumida pela trabalhadora, é inerente à relação laboral e dela emerge diretamente.

3 – Sendo pedida a condenação da ex-trabalhadora no pagamento da indemnização estabelecida na cláusula penal, em consequência da violação da cláusula de confidencialidade, estão em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado, ainda que a violação tenha ocorrido após a cessação do contrato de trabalho, cabendo, por isso, a competência para a ação à secção do trabalho, nos termos do art. 126, nº 1, al. b) da LOSJ.

Decisão Texto Integral:



PROC. 1267/15.5T8FNC-A.L1.S1
REVISTA
4ª Secção
RC/FP/PH



Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1])

1 – RELATÓRIO ([2])

AA, SA. propôs na Instância Central da Comarca da …, Secção do Trabalho, ação com processo comum contra BB pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 50.000,00 acrescida dos juros de mora, a título de indemnização por violação do estabelecido na cláusula 18ª do contrato de trabalho entre elas celebrado.

Para tanto alegou ser uma empresa cujo objeto social é, entre outros, o de compra e venda de aparelhos auditivos, bem como da prestação de serviços de assistência técnica aos mesmos. Em 6.09.2012 celebrou contrato de trabalho com a R. que, em 16.03.2011, por aditamento, passou a vendedora especialista. A cláusula 18ª do contrato previa que mesmo após a cessação do contrato, por período não inferior a três anos, a R. se comprometia a não revelar ou ceder a terceiros estranhos a si quaisquer informações confidenciais relativas a projetos, estudos, contabilidade, especificidades de produtos, segredos comerciais e de produção e metodologia comercial a que tivesse acesso, assim como nomes e endereços de clientes e manter qualquer tipo de registo de clientes. A violação da cláusula implicava indemnização no valor mínimo de € 50.000,00. Por vontade da R. o contrato cessou em 2014, tendo passado a prestar serviços a empresa concorrente e relativamente à qual, em rede social, se anunciava como especialista. A R. terá relação de proximidade com sócio dessa empresa, passou a realizar diversos contactos comerciais com clientes seus utilizando elementos da sua organização e a oferecer acompanhamentos e serviços relativos a atividades do seu objeto social.

Na contestação, a R. excecionou a incompetência material do tribunal, dado que as questões colocadas não emergem diretamente da relação laboral que existiu e que rescindiu em 5.02.2014 com justa causa.

No despacho saneador, conhecendo da suscitada exceção da incompetência absoluta, foi o tribunal declarado o competente, nos seguintes termos:

“(…)

Da competência em razão da matéria

A Ré suscitou a incompetência material do tribunal, alegando que a obrigação (o direito) invocado na presente acção emerge do contrato de trabalho, mas em momento posterior à sua vigência.

Manifestamente, a Ré não tem razão,

Citando as suas próprias palavras, "atento o disposto no art. 126º, nº 1, al. b) da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, “das questões emergentes das relações de trabalho subordinado”.

Ora, as relações de trabalho subordinado emergem directamente da lei e do contrato, individual ou colectivo.

Assim, emergindo a questão em apreço directamente do contrato individual de trabalho, a competência dos tribunais do trabalho é evidente.

Na verdade, a citada lei não faz depender o exercício dos direitos emergentes do contrato da vigência do mesmo contrato.

Por outro lado, os efeitos ou alguns dos efeitos do contrato prolongam-se para além da sua própria vigência. Em rigor, nem pode afirmar-se que o contrato de trabalho cessou plenamente quando o mesmo prevê a sua eficácia para além da cessação da prestação do trabalho.

E mesmo que assim não fosse, isto é, ainda que a questão em apreço não emergisse directamente da relação de trabalho, a supra referida norma da LOSJ admite também a competência dos tribunais do trabalho para as questões conexas com a relação laboral, uma vez que a obrigação de indemnizar pela violação do pacto de confidencialidade está indissociavelmente ligado à relação de trabalho subordinado.

Pelo exposto, improcede a suscitada excepção e declaro este tribunal competente em razão da matéria para o objecto da causa.

(…)”.

Inconformada, a R. apelou, tendo sido proferida a seguinte deliberação:

«Acordam os Juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm na íntegra a sentença.»

Desta deliberação recorre a R. de revista para este Supremo Tribunal, impetrando a revogação do acórdão e que se declare a Secção do Trabalho incompetente.

A A. contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.

Cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, o Exmº Procurador-Geral-‑Adjunto emitiu douto parecer no sentido da concessão da revista e da revogação do acórdão recorrido, o qual não mereceu resposta.

Formulou a recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

“A) Conforme referido na contestação, a A. e ora recorrida, na presente acção, pede a condenação da Ré e recorrente no pagamento de uma indemnização por danos resultantes de uma alegada violação de um acordo de confidencialidade celebrado pelas partes, designadamente do convencionado na cláusula 18ª do contrato de trabalho junto como doc. n.º 2 à PI, contrato este que, conforme assente nos autos, cessou em 2014.

B) Assim, a recorrida, nos presentes autos, invoca como causa de pedir, uma alegada violação, e danos daí resultantes, de uma cláusula inerente aos denominados dever de sigilo e dever geral de não concorrência, ocorrida após a cessação do contrato de trabalho, i.e. após a recorrente deixar de exercer funções naquela.

C) Ao contrário do referido no douto acórdão recorrido (vide página 11, 3º parágrafo), a obrigação indemnizatória reclamada nos presentes autos não supõe, nem exige, uma qualquer análise da forma pela qual cessou o contrato de trabalho dos autos, pois nos presentes autos não se discute uma eventual ilicitude ou irregularidade da cessação do contrato em causa, ou a falta de pagamento de um qualquer crédito ou qualquer outra questão resultante dessa cessação.

D) Ora, "Em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o Tribunal, a competência afere-se pelo "quid disputatum" ou "quid decidendum", em antítese com aquilo que, mais tarde, será o "quid decisum", isto é, a competência determina-se pelo pedido do autor, o que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjectivos." (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 91; STJ, de 21-2-01, Acórdãos Doutrinais do STA, 479º, 1539; STJ, de 9-2-99, BMJ nº 484, 292; STJ, de 9-5-95, CJ (STJ), Ano III, T2, 68.)

E) E aqui, atento o disposto no artigo 126º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário, doravante designada LOSJ- compete às secções de trabalho conhecer, em matéria cível, "Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho".

F) In casu, a indemnização pedida pela recorrida não se fundamenta no cumprimento defeituoso do contrato de trabalho, por parte recorrente, aliás, já extinto, razão pela qual as questões suscitadas na acção não emergem, directamente, da relação laboral que, outrora, existiu entre as partes.

G) E assim se deve entender quando se esteja a discutir uma obrigação pós-‑contratual de sigilo, ainda que essa obrigação esteja ínsita numa cláusula do contrato de trabalho. (Nesse sentido vide Acórdão STJ, 17-2-2009, www.dgsi.pt/jstj.nsf- doc. n.º 3)

H) Ou seja e em conclusão, face aos termos em que a acção está configurada, designadamente a causa de pedir invocada, e sendo a pretensão da recorrida a condenação da recorrente no pagamento de uma indemnização pelos danos causados pela prática de actos que se podem traduzir em concorrência desleal, ocorridos após a cessação do contrato de trabalho, está-se perante uma acção cível de condenação, e não perante uma questão emergente ou conexa com uma relação de trabalho subordinado. (Nesse sentido vide Acórdão STJ, 17-2-2009, www.dgsi.pt/jstj.nsf- Doc. n.º 3-; e Acórdão STJ de 03-6-2009, processo n.º 301/09.2YFLSSB - Doc. n.º 2 -).

I) E tanto é evidente o que atrás se disse que a recorrida apresentou outra acção contra a ora recorrente, invocando a mesma factualidade e causa de pedir aqui invocadas, a qual correu os seus termos no 2º Juízo do Tribunal da Propriedade Intelectual, com o n.º 148/15.7YHLSB.

J) De resto (pasme-se!), o acórdão do TRL (Acórdão do TRL de 17.10.2012, processo n.º 206/12.0TTTVD.L14, in www.dgsi.pt, - doc. n.º 1) invocado no douto acórdão recorrido, diz precisamente o contrário do defendido pelos Venerandos Juízes Desembargadores a quo, designadamente que os tribunais de trabalho não são competentes para dirimir questões que surjam posteriormente à extinção da relação de trabalho, as quais, por isso, ficam abrangidas pela competência dos tribunais comuns.

K) Pelo exposto, é patente a incompetência material do Tribunal de 1ª instância a quo para conhecer da questão sub judice, atento o disposto no supra citado artigo 126° da LOSJ.

L) O que constitui excepção dilatória, com consequente absolvição da instância (cfr. artigo 577º, alínea a) e 576º n.º 2, ambos do CPC ex vi artigo 1º do CPT).

M) Assim, ao julgar improcedente a excepção de incompetência material invocada pela recorrente, o Meritíssimo Juiz de 1ª instância, e bem assim o Tribunal da Relação de … ao confirmá-la no douto acórdão recorrido, distancia-se de vasta jurisprudência que sobre a mesma questão decidiu diferentemente, nomeadamente e a título meramente exemplificativo:

- Acórdão do TRL de 17.10.2012, processo n.º 206/12.0TTTVD.L14, in www.dgsi.pt; (Doc. n.º 1)

- Acórdão STJ de 03-6-2009, processo n.º 301/09.2YFLSSB, in www.dgsi.pt; Doc. n.º 2) e

Acórdão STJ, 17-2-2009, in www.dgsi.pt. (Doc. n.º 3)

N) Devendo, pois, essa decisão ser anulada e substituída por nova decisão que considere a apelação procedente e consequentemente integralmente procedente a excepção de incompetência material do Tribunal de 1ª instância a quo, com absolvição da Ré e ora recorrente da instância.”

A A., nas contra-alegações, formulou as seguintes conclusões:

“A. O presente recurso interposto pela Recorrente BB, tem por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de … que julgou improcedente a apelação e, em consequência, manteve na íntegra o douto despacho saneador proferido em sede de 1.ª instância, o que julgou improcedente a excepção de incompetência material da Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca da … para decidir o litígio que opõe as partes.

B. Os argumentos utilizados pela Recorrente - e que se mantêm desde a sua Contestação em 1ª instância - demonstram, claramente, uma profunda confusão quanto aos fundamentos da presente acção, bem como uma incorrecta interpretação das normas jurídicas que regulam e regem a competência das secções do trabalho.

C. Pelo que bem andou o Tribunal a quo - assim como o Tribunal de 1.ª instância - tendo feito uma correcta aplicação das normas que regem a competência das secções do trabalho.

D. Embora a Recorrente invoque que a acção se funda na violação do dever de sigilo e erradamente - na violação do dever geral de não concorrência, conclui depois confusamente que a acção se baseia em danos pela prática de actos que se podem traduzir em concorrência desleal.

E. A presente acção não se funda na violação do dever geral de não concorrência, nem tampouco na prática de actos de concorrência desleal, mas sim na violação de um dever de sigilo e confidencialidade decorrentes quer da lei quer do contrato de trabalho celebrado entre as partes.

F. De igual modo, também é incorrecta a afirmação de que a acção proposta pela Recorrida contra a Recorrente junto do Tribunal de Propriedade Intelectual tem por base a mesma factualidade e causa de pedir invocadas nos presentes autos, na medida em que aquela se baseia na prática, pela Recorrente, de actos de concorrência desleal, desprendida, portanto, do accionamento da cláusula penal prevista na Cláusula 18.3 do Contrato de Trabalho.

G. No que se refere à competência material da Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca da … para o julgamento da questão sub judice, invoca a Recorrente que, por um lado, a acção não se baseia num pedido de indemnização pelo cumprimento defeituoso do contrato de trabalho e, por outro lado, que o contrato de trabalho já se encontra extinto.

H. Sucede que a cessação do contrato de trabalho não obsta à apreciação por parte das secções do trabalho de querelas dos mesmos decorrentes, conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 02.09.1999 e pelo Tribunal da Relação de … em acórdãos datados de 02.01.2011 e 09.09.2008 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).

I. No que respeita ao argumento da Recorrente de que a acção não se baseia num pedido de indemnização pelo cumprimento defeituoso do contrato de trabalho e, logo, que não emerge directamente de uma relação de trabalho, basta analisar a Petição Inicial para concluir que o pedido de indemnização formulado se sustenta na violação da Cláusula 18.ª do Contrato de Trabalho, a qual estipula uma obrigação de sigilo e confidencialidade de dados e segredos de negócio da Recorrida, que se estende ao período pós-contratual.

J. Obrigações essas que existiam apenas e tão só por efeito de um contrato de trabalho que vigorou entre as partes.

K. Acresce que o facto de poderem também estar em causa normas de direito civil não exclui que a matéria alegada na Petição Inicial tenha conexão com o direito do trabalho e emerja directamente de uma relação jurídico-laboral de trabalho subordinado.

L. A questão que se discute nos autos, apesar de se tratar de matéria cível, decorre de um foro laboral e, sobretudo, de uma cláusula contratual estabelecida no Contrato de Trabalho celebrado entre as partes.

M. No caso concreto, a acção resulta não só de uma relação laboral, mas também de uma cláusula cível ínsita no contrato de trabalho reduzido a escrito e assinado pelas partes, o que, por si só, é suficiente para conferir competência às secções do trabalho para o julgamento das matérias.

N. Neste mesmo sentido já se pronunciou, entre outros, o Tribunal da Relação de …, nos citados acórdãos de 02.01.2011 e de 09.09.2008, bem como o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 13.02.2008 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).

O. Pelo que andou bem o Tribunal a quo ao decidir que "o indemnização que se pretende não surge nem à margem de um contrato de trabalho e nem [à margem] das relações laborais estabelecidas".

P. O acórdão recorrido não invoca o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.10.2012, processo n.º 206/12.0TTTVD.L14, mas sim o acórdão proferido pelo mesmo tribunal e no mesmo dia, mas no âmbito do processo n.º 212/11.1TTLSB.L1-4, no qual se conclui que os tribunais de trabalho são competentes para "apreciar o pedido formulado por trabalhador aposentado que verse sobre matéria emergente da relação de trabalho subordinado que manteve com a sua antiga entidade patronal, nomeadamente em sede de aplicação e efeitos de directiva emanada da mesma sobre a sua situação, à data da sua aposentação, bem como sobre os efeitos e consequências sobre ela de sentença judicial proferida em data posterior àquela em que se aposentou (...)".

Q. Em face da legislação em vigor e do entendimento jurisprudencial dominante, não restam dúvidas de que a decisão do Tribunal a quo de que "as secções do trabalho são materialmente competentes para conhecer do pedido de pagamento de indemnização por violação do dever de sigilo consagrado no contrato de trabalho ainda que este já tenha cessado" não merece censura.

R. Face a todo o exposto, dúvidas não poderão subsistir quanto à correcta decisão proferida pelo Tribunal a quo - e, bem assim, pelo Tribunal de 1.ª instância em sede de despacho saneador -, sendo as secções do trabalho materialmente competentes para julgar o litígio objecto dos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 126.º, n.º 1, alínea b) da LOSJ, não merecendo a mesma, na opinião da Recorrida, qualquer reparo.

2 – ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas, está apenas em causa saber qual o tribunal materialmente competente para a ação, se a Secção do Trabalho como decidiram as instâncias, se a Secção Cível como pretende a recorrente.

3 - FUNDAMENTAÇÃO

3.1 - OS FACTOS

De entre factos considerados assentes pelas instâncias, são os seguintes os relevantes para conhecimento do objeto do recurso:

«1 – No dia 6 de Setembro de 2010 a Autora celebrou com a Ré um contrato de trabalho escrito para o exercício das funções de rececionista.

2 - Em 16 de Março de 2011, Autora e Ré celebraram entre si um aditamento ao Contrato de Trabalho, tendo a Ré passado a exercer as funções de Vendedora Especializada (Audioprotesista) para a Autora.

3 - Foi estipulado, na cláusula 18ª n.º 1 do referido contrato de trabalho escrito, que a Ré se comprometeu a não revelar a pessoas estranhas à Autora quaisquer informações confidenciais relativas a projetos, estudos, contabilidade, especificidades de produtos, segredos comerciais e de produção, metodologia comercial, a que a Ré tivesse acesso acerca dos negócios ou atividade da Autora ou dos seus clientes.

4 - Nos termos da mesma cláusula, ficou ainda estabelecido que quaisquer nomes, endereços e informações relativas a clientes eram propriedade exclusiva da Autora, não sendo permitido à Ré manter qualquer tipo de registo sobre os clientes.

5 - Ficou ainda estabelecida a expressa proibição à Ré da utilização, divulgação ou cedência, a qualquer título, de informações relativas aos clientes ou aos trabalhadores da Autora, a que a Ré tivesse acesso no âmbito da prestação da sua atividade.

6 - A Ré comprometeu-se a cumprir estes deveres mesmo após a cessação do contrato de trabalho e por um período não inferior a 3 anos.

7 - Por fim, foi ainda acordado entre as partes que a violação dos deveres estabelecidos nesta cláusula implicaria para a Ré o pagamento de uma indemnização no valor mínimo de € 50.000,00, sem prejuízo do ressarcimento de danos emergentes e lucros cessantes que excedessem o referido valor.

8 - Em Fevereiro de 2014, a Ré comunicou à Autora que fazia cessar unilateralmente o contrato de trabalho, por resolução com justa causa com fundamento na alteração definitiva do local de trabalho por parte da Autora.

9 - Posteriormente à cessação do Contrato de Trabalho, a Autora passou a colaborar para a CC, Lda., com sede na Rua …, no ….

10 - A referida CC divulgou uma carta onde refere "Informamos que a especialista BB que exerceu funções na empresa AA terá todo o prazer de, os receber para fazer um exame auditivo completo sem qualquer compromisso, e desde já deixa o convite a todos os seus clientes que está disponível para continuar a fazer o acompanhamento/manutenção, oferecendo as mesmas condições que oferecia quando foi especialista na AA. Se confia no trabalho da especialista BB, então venha agora à CC porque a … espera por si"».

3.2 - O DIREITO

Vejamos então a referida questão que constitui o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

A competência do tribunal, como pressuposto processual que é, fixa-se no momento da propositura da ação, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (art. 260º do CPC) («é o princípio chamado da “perpetuatio jurisdictionis: semel comptens semper competens”»([5]), com exceção, obviamente do estabelecido no art. 61º do CPC, e afere-se “de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos (“quid decidendum”) ([6])), ou seja, de acordo com o pedido e com a causa de pedir.

A competência é regulada pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas normas processuais respetivas (art. 60º do CPC).

Estabelece o art. 126º, nº 1, al. b), da Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ):

“1 - Compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível:

a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;

b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;

c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;

d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;

e) Das ações destinadas a anular os atos e contratos celebrados por quaisquer entidades responsáveis com o fim de se eximirem ao cumprimento de obrigações resultantes da aplicação da legislação sindical ou do trabalho;

f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;

g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;

h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal;

i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;

j) Das questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por eles representados, ou afetados por decisões suas, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de uns ou de outros;

k) Dos processos destinados à liquidação e partilha de bens de instituições de previdência ou de associações sindicais, quando não haja disposição legal em contrário;

l) Das questões entre instituições de previdência ou entre associações sindicais, a respeito da existência, extensão ou qualidade de poderes ou deveres legais, regulamentares ou estatutários de um deles que afete o outro;

m) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais;

n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;

o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão;

p) Das questões cíveis relativas à greve;

q) Das questões entre comissões de trabalhadores e as respetivas comissões coordenadoras, a empresa ou trabalhadores desta;

r) De todas questões relativas ao controlo da legalidade da constituição, dos estatutos e respetivas alterações, do funcionamento e da extinção das associações sindicais, associações de empregadores e comissões de trabalhadores;

s) Das demais questões que por lei lhes sejam atribuídas.

2 - Compete ainda às secções do trabalho julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação nos domínios laboral e da segurança social.”

Com a presente ação pretende a A. acionar o estabelecido na cláusula 18ª do contrato de trabalho que celebrou com a Ré, nos termos da qual ficou (…) estabelecido que quaisquer nomes, endereços e informações relativas a clientes eram propriedade exclusiva da Autora, não sendo permitido à Ré manter qualquer tipo de registo sobre os clientes, bem como ficou estabelecida a expressa proibição à Ré da utilização, divulgação ou cedência, a qualquer título, de informações relativas aos clientes ou aos trabalhadores da Autora, a que a Ré tivesse acesso no âmbito da prestação da sua atividade, tendo esta se obrigado mesmo após a cessação do contrato de trabalho e por um período não inferior a 3 anos, a não revelar a pessoas estranhas à Autora quaisquer informações confidenciais relativas a projetos, estudos, contabilidade, especificidades de produtos, segredos comerciais e de produção, metodologia comercial, a que a Ré tivesse acesso acerca dos negócios ou atividade da Autora ou dos seus clientes.

Foi ainda acordado entre as partes que a violação dos deveres estabelecidos nesta cláusula implicaria para a Ré o pagamento de uma indemnização no valor mínimo de € 50.000,00, sem prejuízo do ressarcimento de danos emergentes e lucros cessantes que excedessem o referido valor.

Invocando a violação, pela R., daquelas obrigações contratualmente assumidas, pretende a A. haver daquela a indemnização estabelecida na cláusula penal.

As obrigações assumidas pela R., para vigorarem após a cessação do contrato de trabalho, encontram o seu assento no art. 405º do CC, nos termos do qual, “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.

Importa, porém, não olvidar que, no âmbito das relações de trabalho subordinado a liberdade contratual é limitada, nomeadamente no que tange à assunção de obrigações para vigorarem após a cessação do contrato, como decorre expressamente do disposto no art. 136º nºs 1 e 2 do CT e do art 47º da CRP.

O dever de confidencialidade é estabelecido no art. 128º, nº 1, al. f) como um dever do trabalhador.

Trata-se, assim, de um dever que emerge e é inerente à própria relação de trabalho subordinado, obrigação que, no caso, as partes acordaram em manter mesmo após a cessação do contrato.

Como claramente resulta da cláusula 18ª do contrato, a R. obrigou-se à confidencialidade e à não utilização dos conhecimentos e outras informações sobre clientes adquiridos ao serviço da R., não só durante a vigência do contrato, mas também nos 3 anos subsequentes à sua cessação. Ou seja, a R. obrigou-se a manter, após a cessação do contrato, um dos deveres inerentes à relação de trabalho subordinado.

Não há dúvida de que os conhecimentos adquiridos pela R. e acautelados pela cláusula de confidencialidade foram adquiridos na vigência do vínculo laboral e por causa deste.

É certo que a invocada violação ocorreu após a cessação do contrato de trabalho.

Porém, apesar de ter já cessado a relação laboral e a pretensa violação do dever de confidencialidade ter ocorrido após a cessação do contrato, afigura-se-‑nos inquestionável, que estão em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado ([7]).

Importa ainda ter em consideração que a decisão sobre o mérito da causa passa pelo confronto da cláusula 18ª do contrato com o estabelecido no art. 136º, nº 1 do CT, na medida em que a mesma comporta uma clara limitação ao exercício da liberdade de trabalho da R., tarefa que cabe, claramente, na competência das secções do trabalho, pelo que, também por aqui, estamos perante questões emergentes de relações de trabalho subordinado.

Invoca a recorrente em abono da sua pretensão, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.06.2009, 1ª secção, agravo n.º 301/09.2YFLSSB (Garcia Calejo) e de 17.02.2009, agravo nº 08A3836 (Helder Roque), nos quais se decidiu caber a competência aos tribunais cíveis.

Tratam-se, contudo, de situações diferentes da dos autos.

Em ambos os arestos estava em causa a violação do pacto de não concorrência, hoje previsto e regulado no art. 136º do CT (e não do dever de confidencialidade, como no caso dos autos) cuja vigência se iniciava com a cessação do contrato, consistente no facto do R. ter iniciado, após a cessação do contrato, uma atividade concorrencial com a exercida ao abrigo do vínculo que mantivera com o A.

“Uma vez que [as] cláusulas [de não concorrência com efeitos post pactum finitum] estão necessariamente associadas à cessação do vínculo laboral – embora possam constar, logo à partida, do contrato de trabalho ou do instrumento de regulamentação colectiva do trabalho aplicável, na prática elas integram com frequência os acordos revogatórios do contrato de trabalho – configurando-se como um efeito acessório da própria cessação do contrato…” ([8]).

Como é referido no sumário do acórdão de 17.02.2009, o pacto de não concorrência traduz-se “num acordo simultâneo com o acto extintivo do contrato de trabalho, assume autonomia relativamente a este, impondo aos mesmos sujeitos novas obrigações correlativas (…). Os pactos de não concorrência situam-se numa zona de fronteira entre o Direito do Trabalho, o Direito Comercial e o Direito Civil, em que confluem interesses e princípios opostos”.

Acresce que no acórdão de 30.06.2009, o pacto de não concorrência era decorrente de um anterior contrato de prestação de serviços.

No caso sub judice está em causa um anterior contrato de trabalho e a violação do dever de confidencialidade que existia na vigência do contrato, por decorrência do disposto no art. 128º, nº 1, al. f) do Código do Trabalho, mas que a trabalhadora se obrigou a manter nos três anos subsequentes à cessação daquele.

Nos termos clausulados a Ré comprometeu-se a cumprir estes deveres [de confidencialidade] mesmo após a cessação do contrato de trabalho e por um período não inferior a 3 anos (o sublinhado é nosso).

Não se verifica assim qualquer contradição de acórdãos, certo como é que, para que exista é necessária uma oposição frontal na solução jurídica, assente em idêntico núcleo de factualidade e não é o caso.

Em suma, tratando-se de obrigações inerentes à relação jurídica de trabalho subordinado e dela diretamente decorrentes, face ao disposto no art. 126º, nº 1, al. b) da LOSJ, a competência para a ação cabe à secção do trabalho, como decidido pelas instâncias.

5. DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Negar a revista e manter o acórdão recorrido.

2 – Custas da revista pela recorrente.

Anexa-se o sumário do acórdão.

Lisboa, 14.12.2016

Ribeiro Cardoso - Relator

João Fernando Ferreira Pinto

Pinto Hespanhol

---*---

SUMÁRIO

Dever de sigilo

Competência material

Tribunais do Trabalho

1 – A competência do tribunal, sendo um pressuposto processual, afere-se pelo pedido e respetivos fundamentos, nos termos em que são configurados pelo autor.

2 – Tendo as partes inserido no contrato de trabalho uma cláusula de confidencialidade para vigorar até três anos após a cessação do contrato de trabalho, esta obrigação, livremente assumida pela trabalhadora, é inerente à relação laboral e dela emerge diretamente.

3 – Sendo pedida a condenação da ex-trabalhadora no pagamento da indemnização estabelecida na cláusula penal, em consequência da violação da cláusula de confidencialidade, estão em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado, ainda que a violação tenha ocorrido após a cessação do contrato de trabalho, cabendo, por isso, a competência para a ação à secção do trabalho, nos termos do art. 126, nº 1, al. b) da LOSJ.

Lisboa, 14.12.2016

(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(João Fernando Ferreira Pinto)
(Manuel Joaquim de Oliveira Pinto Hespanhol)

_______________________________________________________
[1] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico e ou entre aspas) em que se manteve a original.
[2] Relatório elaborado tendo por base o constante no acórdão recorrido.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247.
[5] J. Castro Mendes, in DIREITO PROCESSUAL CIVIL, vol. I, pág. 647/648, ed. 1980.
[6] Manuel de Andrade, NOÇÕES ELEMENTARES DO PROCESSO CIVIL, ed. 1976, pág. 91.
[7] Cfr. neste sentido o acórdão desta secção de 13.02.2008 (Pinto Hespanhol), proc. 07S3385, in www.dgsi.pt
[8] Maria do Rosário Palma Ramalho, TRATADO DE DIREITO DO TRABALHO, PARTE II – SITUAÇÕES LABORAIS INDIVIDUAIS, pág. 241-242.