Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11/19.2GBAND.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RP2020042211/19.2GBAND.P1
Data do Acordão: 04/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico protegido através da punição do crime de violência doméstica é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos, nomeadamente os que afetem a dignidade pessoal.
II - Trata-se de um crime específico, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e o ofendido.
III - No caso em apreço, e apesar de a ofendida ser ex-mulher do arguido, o contexto do sucedido não permite afirmar que a agressão está relacionada com questão que se prenda com a conjugalidade de outrora, tratando-se de uma agressão que é similar à que poderia ter ocorrido entre pessoas sem qualquer tipo de relação familiar, passada ou presente; não pode afirmar-se que a agressão levada a cabo pelo arguido visasse especificamente molestar a integridade física da vítima na vertente de afetar a sua dignidade ou liberdade enquanto sua ex-mulher; a sua conduta não consubstancia uma manifestação de posição de domínio ou de força; não estão em causa maus tratos físicos ou psíquicos que se revelem com crueldade, desprezo, vingança, ou especial desejo de humilhar a vítima; não estamos perante uma situação, como as que são frequentes, em que é o arguido que vai à procura da vítima, mas uma situação em que a vítima vai ao encontro do arguido. Por estes motivos, não estamos perante um crime de violência doméstica, mas perante um crime de ofensa à integridade física simples.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 11/19.2GBAND.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No presente processo, por sentença datada de 25/11/2019, depositada no dia 26/11/2019, e no que ora importa salientar, decidiu-se condenar o arguido B…, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs. 1, al. a), 4 e 5 do Código Penal, na pena de um ano e cinco meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, bem como na pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período de um ano e cinco meses.

Mais se decidiu julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela assistente/demandante C… e, em consequência, condenar o arguido a pagar-lhe a quantia total de mil quatrocentos e noventa e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos, dos quais mil euros são a título de compensação pelos danos não patrimoniais que aquela sofreu e quatrocentos e noventa e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos por danos patrimoniais.

Inconformado com a sobredita decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma nos termos constantes insertos nos autos, aqui tidos como especificados (refª.9626464), tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição, sem cópia dos factos e dos excertos da prova gravada transcritos e da respetiva remissão para os mesmos):
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36. Caso assim não se entenda e se considere improcedente o recurso quanto à matéria de facto, o que não se espera, mesmo assim deverá o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica que foi condenado.

37. O crime de violência domestica é um crime complexo, que não se confunde com o crime de ofensa à integridade física, injurias, ameaças ou outro, contra as pessoas indicadas no artº152 do C.P.,

38. O traço distintivo desses ilícitos depende da perspetiva adotada a respeito do bem jurídico protegido no crime de violência domestica, que é a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os maus tratos cruéis, degradantes, desumanos num bem jurídico complexo que abrange a tutela da saúde física, psíquica, emocional e moral.

39. O crime de violência doméstica pressupõe a existência de maus tratos físicos ou psíquicos e estes se revelem com crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar a vítima, cf. tem sido jurisprudência pacífica por todos, AC.R.L., publicado in www.dgsi.pt

40. No caso sub judice, mesmo considerando a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal A Quo, não se verifica qual crueldade, maus tratos, abuso de poder ou tentativa de humilhação da assistente,

41. Não estão, no caso sub judice, verificados os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime, mas sim do crime de ofensas corporais simples.

42. Em qualquer condenação que viesse a aplicar ao arguido sempre teria de ter em consideração a atitude provocatória da assistente e mesmo humilhante para o arguido, que diminui substancialmente a ilicitude e a culpa, devendo a pena a aplicar, ser sempre reduzida ao mínimo legal.

43. Na dosimetria da pena concreta a aplicar é fixado de acordo com os critérios fixados no artº 71, nº 1 e 2, C.P. e exigências de prevenção nos termos do artº 40, C.P., atendendo sempre a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime rodearam o mesmo antes, durante e depois do seu cometimento.

44. Se o arguido não for absolvido, como se espera, a pena a aplicar deveria ser reduzida ao mínimo legal, atenta os circunstancialismos em que os factos ocorreram.

45. Quanto à indemnização fixada pelo tribunal A Quo, quer quanto aos danos patrimoniais e não patrimoniais, ela não foi fixada segundo critérios de equidade, devendo, ser substancialmente reduzida, na medida dos danos e a culpa do agente e do lesado para o contributo do desfecho final.

46. A douta decisão recorrida violou, entre outros o disposto nos artºs 152, 40, 70 e 71 do C.P.

O recurso foi regularmente admitido (refª. 10989445).

O Ministério Público respondeu nos termos vertidos nos autos, cujos fundamentos aqui temos como reproduzidos (refª. 9851770), concluindo que o recurso não merece provimento.

A assistente não respondeu.

Neste tribunal, a Ex.ma PGA emitiu o parecer que consta dos autos e que aqui se tem como repetido (refª. 13622533), através do qual sustentou que o recurso deveria ser julgado improcedente e mantida a decisão recorrida.

No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi aduzido.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:

a) a decisão recorrida:

No que aqui importa reter, a sentença recorrida é do teor seguinte (transcrição):

Com relevância para a decisão da causa, finda a produção de prova encontram-se provados os seguintes factos:

1. O arguido e C… contraíram matrimónio católico em 29/04/1978, o qual foi dissolvido por divórcio em 23/07/2018.

2. Dessa união matrimonial nasceram D…, em 21/02/1979 e E…, em 20/07/1983.

3. Fixaram residência comum na Rua …, n.º .., …, …, área do município de Anadia.

4. O arguido foi acusado no p.c.s. 409/17.0GBAND, da instância local de Anadia, pela prática de dois crimes de ameaça e dois crimes de ofensa à integridade física simples, tendo sido imputados factos ocorridos entre agosto e setembro de 2017, 18/10/2017, 13/01/2018, 24/02/2018, por factos perpetrados contra C….

5. No dia 06/01/2019, cerca das 13h30, no terreno anexo à residência que foi comum do casal, sita na Rua …, n.º .., …, …, área do município de Anadia, a C… preparava-se para dali retirar um trator agrícola para lavrar a terra, pois pretendia semear batatas num terreno.

6. C… encontrava-se acompanhada do seu filho D… e da namorada deste F….

7. Nesse momento, apareceu o arguido que para reagir contra a retirada do trator, que tinha sido adquirido durante o casamento, desferiu com um objeto semelhante a um cabo cujo material não foi possível apurar duas pancadas, uma na zona das costelas do lado esquerdo e outra na cabeça do lado direito.

8. Como consequência necessária e direta da conduta do arguido a C… sofreu, para além de dores, na face, ferida na região frontal direita medindo 1,5 cm, suturada com 3 pontos de seda preta; edema na região frontal e periorbitária direita com equimose violácea na pálpebra superior direita, medindo 4,5 cm x 1 cm; no ráqui, equimose violácea na região lombar esquerda medindo 16 cm x 7 cm, que determinaram um período de doença fixável em 15 dias, com afetação de 15 dias da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional.

9. Em consequência da altercação, a C… perdeu os óculos e não mais os recuperou.

10. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, conseguido, de maltratar o corpo e a saúde da C…, que sabia ser a sua ex-mulher e mãe dos seus filhos, apesar de bem saber que toda a sua conduta era ilícita e punida criminalmente por lei.

11. O arguido tem averbado no certificado de registo criminal a seguinte condenação:

- O arguido foi condenado, por sentença de 2.4.2019 e transitada em julgado a 17.5.2019, no âmbito do processo n.º 409/17.0GBAND, que correu termos no Juízo Local de competência genérica de Anadia, pela prática de 2 (dois) crimes de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nº 1, do Código Penal, praticados entre agosto e setembro e outubro, respetivamente, nas penas parcelares de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros) e 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros) e pela prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, por referência aos arts. 2º, nº 1, als. s), aj) e ar), e 3º, nº 6, al. c), daquele diploma, praticado em fevereiro de 2018, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros); e, em cúmulo jurídico, na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros).
12. A assistente sentiu-se ofendida ao ver-se agredida pelo arguido.

13. As dores que a assistente sentiu dificultaram-lhe adormecer e nos primeiros tempos teve receio do arguido/demandado.

14. A assistente tem receio que, deslocando-se novamente a casa (onde vive atualmente o arguido e que era a casa morada de família) para ir buscar coisas, o arguido volte a agredi-la.

15. Para o tratamento, a assistente necessitou de trombocide, pelo qual pagou 9,45 euros.

16. A assistente sentiu-se humilhada e vexada.

17. A assistente teve que comprar óculos novos, porque estes caíram e não mais os recuperou.

18. Os óculos da assistente tinham sido adquiridos em 2016, tendo gasto €485.

19. Em 2017, a assistente saiu de casa e foi viver com o filho mais velho e netos, em … e nunca mais voltou a viver com o arguido.

20. Desde que isso aconteceu, a assistente entrou várias vezes em casa da morada do casal, para levar alguns bens.

21. Para tal o arguido mudou as fechaduras das portas de acesso da via pública à casa e da parte do quintal.

22. Quando o arguido se ausentava, a assistente chegou a rebentar as fechaduras e eram levados bens.

23. O arguido e a assistente adquiriram o trator agrícola e o reboque e as alfaias agrícolas na pendência do casamento.

24. O divórcio entre o arguido e a assistente foi decretado a 23.7.2018.

25. O casal ainda não procedeu a partilhas.

26. Em 10.10.2018, o arguido recebeu uma notificação judicial avulsa por parte da assistente para entregar o trator e o reboque.

27. O arguido disse por escrito que não entregaria porque esses bens eram património do casal e seriam partilhados e que era o cônjuge mais velho e como tal cabeça de casal.

28. No dia dos factos, quando chegou a casa, no dia dos factos, estava com os portões abertos, encontrando-se aí o filho, a namorada do filho e a assistente a levar os bens de casa (trator).

29. O filho estava ao volante do trator e preparava-se para o levar.

30. O arguido disse-lhe que não levava o trator.

31. O arguido é considerado pelos conhecidos como pessoa calma e pacífica e respeitadora.

32. O arguido era trabalhador.

33. O arguido vive sozinho.

B - FACTOS NÃO PROVADOS

Não se lograram provar quaisquer outros factos, designadamente, não se logrou provar que:

1) - o arguido desferiu uma pancada com um ferro;

2) desferiu uma pancada no lado direito das costelas;

3) - o arguido praticou tais factos na sequência de uma discussão entre ambos, sem que nada o previsse;

4) - em consequência da atuação do arguido a assistente perdeu o telemóvel;

5) - em consequência das dores, a assistente viu-se impossibilitada de dormir de se movimentar e realizar as tarefas domesticas e agrícolas que realizava;

6) - a assistente ainda hoje sente dores na região lombar, quer na região frontal direita, localizadas sobretudo na zona suturada;

7) - a assistente ainda hoje sente muito medo do demandado/arguido, tendo deixado de dormir noites inteiras, sofrendo pesadelos e vivendo estado de ansiedade;

8) - a assistente ainda hoje tem marcas dos pontos;

9) - a assistente tem vivido atormentada e cheia de medo;

10) - a assistente tinha gasto 150 euros pelo telemóvel;

11) - o comportamento do arguido deixou a assistente em constante sobressalto pela segurança da sua integridade física e paz de espírito, provocando-lhe permanente sentimento de instabilidade que se refletia no seu estado psíquico;

III - MOTIVAÇÃO
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IV – ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Vem o arguido acusado da prática de um crime violência doméstica, previsto e punido art. 152º, n.º1, al. a) e 4 do Código Penal, a que é também aplicável as penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e de proibição de uso de porte de arma (n.º 4 e 5 do art. 152.º do C.Penal) na pessoa da sua ex-mulher e mãe dos seus filhos.
De acordo com o disposto no art. 152.º, n.º 1 do Código Penal, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade ou ofensas sexuais: a) cônjuge ou ex-cônjuge e b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Por sua vez, o n.º 2 do art. 152.º do Código Penal, prevê, a título de circunstância qualificativa do tipo, as situações em que o agente pratique “o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima”, situações em que o agente é punível com pena de prisão de dois a cinco anos.
O n.º 4 do art. 152.º do C.Penal, dispõe que “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”
Por sua vez, o n.º 5 dispõe que “a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.
O ilícito em apreço encontra-se sistematicamente inserido no título dos crimes contra as pessoas e no capítulo dos crimes contra a integridade física, visando, essencialmente, assegurar a proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana e, bem assim, penalizar a violência doméstica – enquanto manifestação de posições e condutas de domínio, força e agressão no seio da família, seja qual for a forma que esta assuma: casamento, união de facto, vida em comum, poder paternal – situação que suscita grandes preocupações, tanto a nível nacional como comunitário (1).
Como refere Taipa de Carvalho – em anotação ao artigo relativo aos maus tratos, que englobava também situações as situações de violência domestica – “a função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão “subtis” quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família (…).
A necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos e da com a consequente responsabilização penal dos seus agentes, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos.” – veja-se neste sentido , ainda aut, cit, em Comentário Conimbricense, Tomo II, fls. 329-330.
Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, os bens jurídicos protegidos com esta incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra – Cfr. Comentário do Código Penal, pág. 404.
Mas, o bem jurídico protegido com esta incriminação é essencialmente a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física e psíquica, que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos que impeçam o normal e saudável desenvolvimento da pessoa humana e ponham em causa a sua dignidade, visando-se a proteção da comunidade familiar e conjugal, em ultima instância, a própria dignidade humana.
Em ordem à proteção do referido do referido bem jurídico, pratica o crime em causa, quem, no que ao caso importa: infligir maus tratos físicos ou psíquicos, isto é, ofensas corporais simples, humilhações, provocações, molestações, injúrias, etc; na pessoa do cônjuge ou ex-cônjuge; de modo reiterado ou não, sendo que a reiteração supõe uma conduta ou ação plúrima e repetida; na presença de menor ou em domicílio comum (cfr. art. 152º/1, al a) e 2, do CP).
No que concerne ao elemento subjetivo do tipo, é o crime em apreço caracterizado como doloso, exigindo-se, portanto, o conhecimento, por parte do agente, da relação de subordinação do sujeito passivo e da censurabilidade penal das suas condutas e a intenção de, ainda assim, praticar os factos.
O dolo é direto quando, nos termos previstos no artigo 14º nº1 do CP, o agente representa e quer causar maus tratos físicos ou psíquicos a cônjuge, sabendo que está na presença de menor e no domicílio comum.
A responsabilidade criminal do agente está ainda dependente da não existência de qualquer situação que exclua a ilicitude da conduta, ou seja, da não verificação de uma causa de justificação da ilicitude, nos termos previstos nos artigos 31º a 34º, 38º e 39º do Código Penal. É igualmente indispensável que o agente tenha atuado com culpa, isto é, que fosse imputável em razão da idade (cfr. art. 19º do CP) e soubesse, no momento em que praticou o facto, que a sua conduta é punida por lei e tenha agido por sua livre e exclusiva determinação. Ao atuar desta forma, o agente do crime revela uma personalidade desconforme com as normas jurídicas e, por isso, censurável do ponto de vista ético-jurídico.
Ficou provado que o arguido e C… contraíram matrimónio católico em 29/04/1978, o qual foi dissolvido por divórcio em 23/07/2018. Dessa união matrimonial nasceram D…, em 21/02/1979 e E…, em 20/07/1983.
Fixaram residência comum na Rua …, n.º .., …, …, área do município de Anadia.
O arguido foi acusado no p.c.s. 409/17.0GBAND, da instância local de Anadia, pela prática de dois crimes de ameaça e dois crimes de ofensa à integridade física simples, tendo sido imputados factos ocorridos entre agosto e setembro de 2017, 18/10/2017, 13/01/2018, 24/02/2018, por factos perpetrados contra C….
No dia 06/01/2019, cerca das 13h30, no terreno anexo à residência que foi comum do casal, sita na Rua …, n.º .., …, …, área do município de Anadia, a C… preparava-se para dali retirar um trator agrícola para lavrar a terra, pois pretendia semear batatas num terreno.
C… encontrava-se acompanhada do seu filho D… e da namorada deste F….
Nesse momento, apareceu o arguido que para reagir contra a retirada do trator, que tinha sido adquirido durante o casamento, desferiu com um objeto semelhante a um cabo cujo material não foi possível apurar duas pancadas, uma na zona das costelas do lado esquerdo e outra na cabeça do lado direito.
Como consequência necessária e direta da conduta do arguido a C… sofreu, para além de dores, na face, ferida na região frontal direita medindo 1,5 cm, suturada com 3 pontos de seda preta; edema na região frontal e periorbitária direita com equimose violácea na pálpebra superior direita, medindo 4,5 cm x 1 cm; no ráqui, equimose violácea na região lombar esquerda medindo 16 cm x 7 cm, que determinaram um período de doença fixável em 15 dias, com afetação de 15 dias da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional.
Em consequência da altercação, a C… perdeu os óculos e não mais os recuperou.
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, conseguido, de maltratar o corpo e a saúde da C…, que sabia ser a sua ex-mulher e mão dos seus filhos, apesar de bem saber que toda a sua conduta era ilícita e punida criminalmente por lei.
Tendo em consideração a factualidade provada, não poderá deixar de concluir-se que não estão preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de que vem acusado, pelo que não pode o mesmo deixar de ser condenado por tal crime.
Com efeito, apesar de entendermos que não é toda e qualquer situação ocorrida entre ex-cônjuges, ex-namorados, ex-unidos de facto ou pessoas que tenham descendentes comuns, ainda que com relevância penal, que preenche o tipo legal de violência doméstica, no caso em concreto, entendemos que estão preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica de que o arguido vem acusado.
No nosso entender, a situação (violência) tem que existir por causa dessa relação atual ou pré-existente (pelo agressor e a vítima ter ainda ou terem tido esta convivência). No caso concreto, a situação de agressão ocorreu entre pessoas que já foram casadas entre si e que têm filhos em comum e essa agressão ocorreu ainda por causa desse relacionamento (neste caso, por causa da vertente patrimonial desse casamento, dos bens comuns, ainda indivisos), por causa de um desentendimento que tem como motivo o facto de o arguido não querer que a assistente ficasse com a detenção de bens que pertenciam ao casal e que pretendia utilizar para cultivar um terreno que lhe pertencia). Estamos perante agressões que são provocadas ainda por causa desse relacionamento que existiu entre agressor e vítima (embora pela sua parte patrimonial) e, portanto, as agressões ainda são uma consequência do relacionamento, ou seja, ainda ocorreram por causa desse vínculo que existiu entre ambos (embora na vertente patrimonial).
Por outro lado, é convicção do Tribunal que este ultrapassar dos limites por parte do arguido, através da agressão à assistente, ocorreu ou foi potenciado por esse relacionamento que já existiu entre o arguido e a assistente, pois certamente que se fosse uma outra pessoa, essa barreira ou esse limite seria mais dificilmente ultrapassado. É também para evitar o ultrapassar dessa barreira, facilitado por uma convivência anterior, que o legislador criminaliza este tipo de comportamentos com um crime distinto do crime de ofensa à integridade física, pretendendo ainda obstar a este tipo de comportamentos e punindo-os mais severamente.
Finalmente, o crime de violência doméstica é compatível ou condutas isoladas ou reiteradas. Ora, se sendo tais condutas reiteradas elas são facilmente enquadráveis no crime de violência domestica, o mesmo não se passará, no nosso entender, relativamente às condutas isoladas: elas têm que representar um plus relativamente, por exemplo, às meras ofensas à integridade física simples. No entanto, no caso concreto estamos a falar de uma situação grave (não estamos a falar de um simples empurrão, mas de uma agressão com um objeto na cabeça, que provocou um ferimento que teve que ser suturado, e nas costas), que a par de todas as considerações já expostas, consistiram em desferir duas pancadas na assistente (uma na cabeça e outras nas costelas), que requererem tratamento médico, que provocaram hematomas e que exigiram a sutura do golpe provocado por tal pancada. Estamos, pois, perante uma conduta grave (mesmo atendendo a todo o contexto existente) e, quanto a nós, claramente facilitado pela existência de um casamento entre ambos, embora já dissolvido.
Também não qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa do comportamento do arguido: na verdade, não existe qualquer situação de legitima defesa, nem de ação ou direta ou outra qualquer.
O arguido continua a habitar a casa de família (que a assistente deixou de habitar), mas os bens continuam a ser comuns e, apesar de os bens deverem ser administrados pelo cabeça de casal, isso não justifica que ele obste a uma utilização por parte da sua ex-mulher (até porque também ele continua a viver na casa que pertence a ambos) e, muito menos, pode excluir da ilicitude ou a culpa da atuação agressiva por parte do arguido (muito embora a situação que esteve na origem dos factos, deva ser ponderada na medida concreta da pena).
Assim, ficou provado que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) e n.º 4 do Código Penal, na pessoa da sua ex-mulher e mãe dos seus filhos, pelo que não pode deixar de ser condenado por tal crime.

V – DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA

O arguido, com a sua conduta, praticou um crime de violência doméstica qualificado, nos termos do art. 152º, nº 1, al. a) e nº 4 do Código Penal e punível ainda com as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de um a cinco anos.
Feito pela forma supra descrito o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a medida da sanção a aplicar.
Ao crime praticado pelo arguido é apenas punível com pena de prisão, sendo aplicável pena de prisão 1 a cinco anos.
Atendendo ao disposto no art.ºs 71.º, n.º 1 e 40.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, a medida concreta da pena determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial que no caso se façam sentir.
“Pelo que nos citados artigos se plasma, logo se vê que o modelo de determinação da medida da pena é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “ moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida “ moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares de advertência ou de segurança) do delinquente” – Ac. STJ de 14-03-2001, Coletânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, Tomo I, pag. 248.
Há que determinar a medida concreta das penas em função dos critérios previstos no artigo 71º do CP, em conjugação com o princípio da culpa, limite fundamental da medida da pena, nos termos plasmados no artigo 40º, n.º 2 do mesmo diploma, e com as finalidades das penas.
Atentos os critérios e fatores de determinação da medida concreta da pena, constantes dos art.ºs 40.º e 71.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal, entende-se que, considerando: - às exigências de prevenção geral, que, no caso, não são muito acentuadas, uma vez que, apesar de este tipo de crime ser verificação muito frequente e ter, em regra, consequências muito nefastas para as suas vítimas, há que atender ao contexto concreto em que os factos ocorreram e à concreta conduta do arguido e efeitos;
- as exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a frequência com que este tipo de crime ocorre no país e o alarme social que tem vindo a provocar na sociedade (embora no caso concreto tenhamos que atender a que as sequelas não forma muito graves);
- as exigências de prevenção especial, não são muito elevadas, uma vez que o arguido que tem averbada uma condenação por três crimes, mas trata-se de uma condenação posterior aos factos pelos quais está agora a ser julgado;
- a ilicitude é média, uma vez que estamos a falar numa única situação e as consequências físicas não são muito graves, atento o tipo de lesões e a incapacidade
- a culpa não é muito elevada, uma vez que a assistente poderia ter resolvido a situação junto dos Tribunal para evitar esta situação e não estamos perante uma situação, como as que são frequentes, em que é o arguido que procura e ou vai à procura da vítima, mas uma situação em que a vítima vai ao encontro do arguido (o que, repita-se, não exclui a ilicitude e a conduta do arguido, tanto mais que a assistente pretendia fazer uso de um bem que também lhe pertence e que é um bem comum)
- o arguido não é pessoa socialmente inserido
apresenta-se como ajustada a pena de 1 (um) anos e 5 (cinco) meses de prisão.
Atenta a pena concretamente determinada e as exigências de prevenção que se fazem sentir e toda a conduta adotada pelo arguido não é possível, face à própria pena concreta aplicada, a sua substituição por pena de trabalho a favor da comunidade ou outra pena não privativa (sem prejuízo da possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão aplicada).
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b) apreciação do mérito:

Começaremos por recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, e apenas relativamente às sentenças/acórdãos, da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal[2], devendo sublinhar-se que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede no caso vertente.
Antes de avançarmos, convirá apreciar a seguinte

questão prévia.

O recorrente vem questionar o montante de mil quatrocentos e noventa e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos fixado a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais causados à demandante e assistente C…, que entende dever ser substancialmente reduzido na medida dos danos e a culpa do agente e do lesado para o contributo do desfecho final, porque, na sua ótica, tal montante não foi fixado segundo critérios de equidade.
O montante peticionado era de seis mil cento e cinquenta e nove euros e quarenta e cinco cêntimos.
Ora, estipula o artigo 400º, nº 2, do Código de Processo Penal que “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.
Por seu turno, prevê o artigo 44º da Lei nº 62/2013, de 26/08 (cuja versão atual é a decorrente da Lei nº 107/2019, de 09/09) que:
1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.
2 - Em matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso”.
Assim sendo, se é certo que o valor peticionado é superior à alçada do tribunal recorrido, não é menos líquido que o montante fixado a título de indemnização, equivalente à parte desfavorável para o recorrente, é inferior a metade da alçada daquele tribunal
Assim sendo, constata-se a inverificação deste segundo requisito a que alude o supra citado artigo 400º, nº 2, do Código de Processo Penal, requisitos que, é consabido, são cumulativos.
Por outro lado, o facto de o recurso ter sido admitido também quanto à parte cível, tal não vincula o tribunal superior (cfr. artigo 414º, nº 3, do Código de Processo Penal).
Assim sendo, resta a rejeição do recurso nessa parte (cfr. artigos 400º, nº 2, 414º, nº 3 e 420º, nº 1, al. b), todos do Código de Processo Penal), sem prejuízo, obviamente, dos efeitos decorrentes de um eventual êxito recursivo, mormente a almejada absolvição do arguido em sede penal.
*
No mais, e em face daquilo que se apreende das efetivas conclusões trazidas à discussão pelo recorrente, importa saber:

1 – se existiu erro de julgamento (prova a rever), impondo-se a correspondente alteração e, por via dela, a sua absolvição;

2 – se não estão verificados os elementos objetivos e subjetivos do crime imputado, mas, quando muito, os do crime de ofensa à integridade física simples;

3 – se, caso se decida manter a sua condenação por qualquer um daqueles dois ilícitos, a pena a aplicar deveria ser sempre reduzida ao respectivo mínimo legal.

Vejamos, pois.

1 – do erro de julgamento.
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……………………………
……………………………
2 – da operada subsunção jurídica.

Embora pugnando em primeira linha pela sua absolvição, o recorrente alega, subsidiariamente, que, a manter-se a sua condenação, e uma vez que não se verifica crueldade, maus tratos, abuso de poder ou tentativa de humilhação da assistente, não estão verificados os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica, mas sim do crime de ofensas corporais simples, conforme depois expiclita, argumentação que, no essencial, vem vertida nas correspondentes conclusões 36 a 41 supra transcritas[3] e que, por economia, aqui se considera renovada, preconizando, por via disso, a sua absolvição daquele imputado ilícito.

Respondendo, o Ministério Público adiantou que a questão suscitada era pertinente, mas que, face à matéria de facto dada como provada, revia-se na posição assumida pelo tribunal “a quo”, aderindo à correspondente argumentação vertida na sentença recorrida, pois que, a seu ver, a apurada conduta tem já uma intensidade adequada a ofender significativamente a dignidade da vítima, uma vez que estamos perante uma situação grave, uma agressão com um objeto na cabeça e nas costas, a qual provocou, nomeadamente, um ferimento que teve de ser suturado, e em que o desvalor do resultado é relevante para o preenchimento do tipo do crime de violência doméstica, e, por outro lado, o potencial ofensivo para a integridade física da vítima decorrente da conduta do arguido já é elevado, tratando-se de atuação com dolo direito, sendo certo que, apesar da conduta do arguido ser uma reação à retirada de um trator adquirido na pendência do casamento com a assistente, a seu ver, tal circunstância não atenua a culpa daquele, não se justificando qualificar a desta como provocatória ou humilhante.

No parecer exarado, a Ex.ma PGA veio sublinhar, em suma, que é sabido que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é o da defesa da integridade pessoal e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal, conforme doutrina que cita, anotando depois que resulta da matéria de facto provada que o arguido, no âmbito de uma relação conjugal com a ofendida, nas circunstâncias de tempo e lugar constantes da sentença, agrediu-a com um objeto semelhante a um cabo, cujo material não foi possível identificar, na cabeça e na nas costas, provocando-lhe as apuradas lesões, pelo que entendia que a factualidade provada integra todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica e que o arguido só pode mesmo ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica.

Apreciando.

Começando pela letra da lei, e naquilo que aqui importa salientar, convirá relembrar que estipula o artigo 152º do Código Penal que:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

É consabido que o bem jurídico protegido pela norma é “a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos” nomeadamente os que “afetem a dignidade pessoal”. Trata-se de um crime específico, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e o ofendido[4].
Existindo total sintonia nos autos nesta matéria, o que nos dispensa maiores desenvolvimentos, resta saber se os factos ora mantidos como provados preenchem o referido tipo legal, ou se, tal como pretende o recorrente, são apenas subsumíveis ao tipo autónomo de ofensa à integridade física simples.
Cremos que tal factualidade encaixa apenas neste último tipo legal, adiante-se.
Na verdade, e apesar de a ofendida ser ex-mulher do arguido, o contexto do sucedido não permite afirmar que a agressão está conjugada com questão que se prenda com a conjugalidade de outrora, tratando-se de uma agressão que é similar à que poderia ter ocorrido entre pessoas sem qualquer tipo de relação familiar, ou entre si, passada ou presente, incluindo a conjugal, ou seja, estamos perante uma agressão de uma certa gravidade, é inquestionável, mas apenas ocorrida no seio da disputa da utilização de um trator que será um bem comum do ex-casal ainda por partilhar.
Significa isto que, e apesar do que consta como provado no ponto10 dos factos provados, isto é, que o arguido sabia que a ofendida era a sua ex-mulher e mãe dos seus filhos, não pode afirmar-se que a agressão levada a cabo pelo arguido visasse especificamente molestar a integridade física daquela na vertente de afetar a sua dignidade ou liberdade enquanto ex-mulher do mesmo, o que vale por dizer, parafraseando agora um excerto da sentença recorrida, que a conduta do arguido não consubstancia uma manifestação de posição de domínio ou de força, ou, agora na versão aduzida pelo recorrente, a coberto de citada jurisprudência, não estão aqui em causa “maus tratos físicos ou psíquicos e estes se revelem com crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar a vítima”, devendo sublinhar-se, em reforço, tal como resulta da sentença recorrida (ao pesquisar a pena a aplicar) que “não estamos perante uma situação, como as que são frequentes, em que é o arguido que procura e ou vai à procura da vítima, mas uma situação em que a vítima vai ao encontro do arguido”.
Assim sendo, o que temos como linear, cremos que os factos apurados, e tal como sustentava o recorrente, são subsumíveis apenas na previsão do artigo 143º, nº 1 do Código Penal, no qual se prevê que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”[5].
Na verdade, é consabido que está aqui em causa a proteção da integridade física da pessoa humana, tratando-se de um crime material e de dano, pelo que o tipo abrange um determinado resultado, no caso, as verificadas lesões no corpo da ofendida, sendo que se trata de um crime de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado, ou seja, uma qualquer ofensa no corpo (lesão no bem estar físico de uma forma não insignificante) ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimentos causados, exigindo-se aqui o dolo em qualquer das suas modalidades, sendo irrelevante a motivação do agente sob este ponto de vista (sem prejuízo da sua ponderação em sede de pena)[6].
De tudo isto cientes, cremos inquestionável que a agressão levada a cabo pelo arguido, intencionalmente dirigida à ofendida, ou seja, com dolo direto, causando-lhe as lesões elencadas na sentença recorrida e supra descritas, permitem reter a presença de todos os elementos objetivos e subjetivos aqui exigíveis, o que sendo linear, nos dispensa outros considerandos, sendo certo que não se descortina a existência de quaisquer causas de justificação ou de exclusão da ilicitude ou da culpa (cfr. artigo 31º e segts. do Código Penal), inexistindo a propalada provocação por parte da vítima, estando fora de questão a existência de legítima defesa e não encaixando ainda a situação na previsão do nº 3 do citado artigo 143º do Código Penal.
Neste contexto, o arguido deverá ser condenado pelo sobredito crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, devendo anotar-se que sendo o próprio arguido quem preconiza que, a manter-se a condenação, então deveria ser por este crime, nenhuma comunicação se impõe efetuar, conforme decorre linearmente do consignado no artigo 424º, nº 3 do Código de Processo Penal, que prevê que “Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respetiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”.

Consequências.

A sobredita alteração da qualificação jurídica implica que seja aplicada uma pena de acordo com a nova moldura abstrata ora encontrada.
Porém, como o recorrente questionava igualmente a pena aplicada, cremos que se justifica apreciar este peculiar aspeto em conjunto, por forma a atentar na correspondente motivação aduzida pelo mesmo, tanto mais que, do que se apreende, trata-se de argumentação extensível ao crime ora tido como verificado.
Procede, pois, este capítulo do recurso.

3 – da pena a aplicar.

O recorrente alegava que, em qualquer condenação que viesse a ser-lhe aplicada, o tribunal sempre teria de ter em consideração a atitude provocatória da assistente e, mesmo humilhante, para consigo, que diminui substancialmente a ilicitude e a culpa, devendo a pena a aplicar, ser sempre reduzida ao mínimo legal.

Na resposta, o Ministério Público anotava a este propósito que se limitava a aderir à argumentação constante da sentença recorrida, frisando, porém, que o arguido foi condenado na pena de prisão de um ano e cinco meses, suspensa na sua execução por igual período, ou seja, muito próximo do limite mínimo da moldura penal abstrata aplicável, e que, face às elevadas exigências de prevenção geral que se verificam, ao facto de estarmos perante uma agressão com um objeto na cabeça, a qual provocou, nomeadamente, um ferimento que teve de ser suturado, e o facto de o mesmo ter agido como dolo direto, entendia não se justificar uma redução da pena aplicada.

Por seu turno, a Ex.ma PGA sublinhava que o tribunal recorrido também não violou qualquer norma legal no que concerne à medida da pena, optando por uma pena que julgava justa e adequada face aos critérios consignados nos artigos 50º, 70º e 71º, todos do Código Penal.

Apreciando.

Para nos situarmos juridicamente, relembrar-se-á que, quanto à escolha da pena, reza o artigo 70º do Código Penal que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Como é sabido, “… são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa que justificam (e impõe) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação”, anotando-se ainda que deve dar-se prevalência à prevenção especial de socialização e que a prevenção geral há de atuar apenas como limite à atuação das sobreditas exigências preventivas[7].
Quanto à pena em si, é pacífico que “As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade”, e que “Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa”[8]. De resto, a culpa e a prevenção são os dois parâmetros que norteiam a indagação da medida da pena, conforme resulta claro da previsão do artigo 71º, nº 1, do Código Penal.
Claro está que uma tal tarefa há de partir, logicamente, da análise dos factos, no seu cotejo com a também apurada personalidade do seu agente, o que equivale por dizer que “… o substrato da culpa, e portanto também o da medida da pena, não reside apenas nas qualidades do caráter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível…” mas reside, isso sim, “…na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizada naquilo que chamamos a atitude da pessoa perante as exigências do dever-ser.”[9]
De tudo isto cientes, e revisitando este aspeto do decidido, o tribunal recorrido considerou que as exigências de prevenção geral eram elevadas, atenta a frequência com que este tipo de crime ocorre no país e o alarme social que tem vindo a provocar na sociedade (embora no caso concreto tenhamos que atender a que as sequelas não foram muito graves), que as exigências de prevenção especial não eram muito elevadas, uma vez que o arguido tem averbada uma condenação por três crimes, mas trata-se de uma condenação posterior aos factos aqui em apreço, que a ilicitude era média, uma vez que estamos perante uma única situação e as consequências físicas não são muito graves, que a culpa não era muito elevada, uma vez que a assistente poderia ter resolvido a situação junto dos tribunal para evitar o sucedido e não estamos perante uma situação, como as que são frequentes, em que é o arguido que procura e ou vai à procura da vítima, mas uma situação em que a vítima vai ao encontro do arguido e, finalmente, que este não é pessoa socialmente inserida.
Ora bem.
Diga-se de passagem que caso se mantivesse o imputado crime de violência doméstica nenhum reparo nos mereceria o decidido relativamente aos parâmetros de avaliação supra elencados, pois que deles dimana uma correta apreciação da factualidade sita a montante e ali se alberga o contexto do sucedido, incluindo o comportamento da vítima, aspeto este que, no fundo, era o único que alicerçava a pretensão do arguido para que a pena aplicada fosse reduzida ao mínimo legal.
Daqui decorre que, não fora a alteração da qualificação aqui encetada, e este capítulo do recurso seria improcedente por manifesta improcedência.
Reanalisando agora a situação, impõe-se começar por anotar que não deverá enveredar-se pela aplicação de uma pena de multa em detrimento da pena de prisão mercê dos registados antecedentes criminais do arguido, por factos anteriores, mas com condenação posterior, pois que os dois crimes de ameaça pelos quais veio a ser condenado e tiveram como visada a aqui assistente, a que se associa a perigosidade decorrente da detenção de arma proibida, dão nota de uma personalidade algo preocupante, pelo que a salvaguarda adequada e eficiente das finalidades punitivas que aqui é imperioso acautelar remetem-nos para o afastamento da pena de multa e pela aplicação de uma pena de prisão.
Para o cômputo desta, deverá manter-se a assertiva análise encetada pelo tribunal recorrido supra sumariada, apenas com o ajuste em sede de prevenção geral, já que o tipo legal ora encontrado, apesar de tudo, requer um menor rigor relativamente às exigências de prevenção geral, as quais não são elevadas, mas as normais para este tipo de situações.
Neste global contexto, e considerando a moldura abstrata aqui em apreço, prisão de um mês a três anos (quanto ao mínimo, cfr. artigo 41º, nº 1 do Código Penal), temos como adequada e justa a pena de dez meses de prisão.
Passando agora às penas de substituição, começaremos por relembrar que, independentemente de não existir propriamente uma hierarquia entre as penas de substituição a aplicar, dentre as várias possíveis deve optar-se pela aplicação da que melhor realize as finalidades da punição e, simultaneamente, se mostre a menos gravosa em face das circunstâncias do caso[10], recordando-se também que estão aqui em causa apenas finalidades preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, cuja caracterização no caso acima ficou descrita.
Assim sendo, considerando a imperativa previsão contida no nº 1 do artigo 45º do Código Penal, pelas razões antes apontadas para o afastamento da aplicação de uma pena de multa, aquela pena de prisão não deverá ser substituída por multa, mas, porque temos como verificados os requisitos ínsitos no nº 1 do artigo 50º do Código Penal, deverá ficar suspensa na sua execução, pelo período de um ano (cfr. nº 5 deste normativo), funcionando a suspensão como pena de substituição (imprópria) não privativa da liberdade, o que significa que se entende que não seria aqui exigível a execução da prisão e que temos como mais gravosa a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade prevista no artigo 58º, nº 1 do Código Penal que seria possível aplicar no caso, embora nos termos do nº 5 daquele preceito, estaria sempre sujeita à prévia aceitação do arguido, pois que se trata de um efetivo cumprimento de pena, logo, mais desfavorável em face da suspensão da execução da pena de prisão.
A sobredita suspensão não terá qualquer condição, designadamente, o dever de pagar à assistente, no todo ou em parte, a indemnização fixada em favor da mesma, posto que a factualidade apurada não permite reter quais as reais possibilidades económicas do arguido, razão pela qual, em sede cível, o tribunal recorrido acabou por presumir rendimentos, o que, caso o pedido cível pudesse ser aqui apreciado, e não o é, poderia levar a uma eventual alteração do montante fixado em sede de danos não patrimoniais, pois que é consabido que no cômputo destes deverá ter-se também em conta um tal aspeto (cfr. artigos 494º e 496º, nº 4, ambos do Código Civil).
Finalmente, e arredada que fica a possibilidade de apreciação do pedido cível “a se”, atenta a sua rejeição, dir-se-á que a operada alteração da qualificação dos factos em nada contende com estes e, por via disso, impossibilita uma qualquer alteração, pois que o apontado reparo já colide com a estrita análise cível que ficou arredada desta discussão.
Ainda que por fundamentos diversos, procede em parte este capítulo do recurso.
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Sem tributação, atento o êxito parcelar alcançado pelo recorrente (cfr. artigo 513º, nº 1, “a contrario”, do Código de Processo Penal.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes nesta Relação acordam:

em rejeitar o recurso interposto pelo arguido B… no tocante à parte cível, atenta a sua inadmissibilidade legal;
e, no mais, em conceder-lhe provimento parcial, em consequência do que, e alterando a respetiva qualificação, decidem absolvê-lo do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado, mas condená-lo, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, na pena de dez meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, sem qualquer condicionalismo, confirmando, no mais, e na parte questionada e apreciada, a sentença recorrida.

Sem tributação[11].

Notifique.
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Porto, 20/05/2020[12].
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
____________
[1] Vide, entre outros no mesmo e pacífico sentido, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95.
[3] Vide nota de rodapé nº 3, aqui igualmente aplicável.
[4] cfr. Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 332, na redação anterior à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 04/09, e da Lei 19/2013, de 21/02, mas que, para o que aqui importa, mantém plena atualidade.
[5] Anote-se que, inquirida pelo Ministério Público no dia 12/03/2019, a ofendida declarou que desejava procedimento criminal, ignorando-se, por falta de acesso aos autos nessa parte, se já antes tal declarara, pelo que nada obsta ao prosseguimento dos autos (cfr. artigos 49º do Código de Processo Penal e 115º, nº 1 e 143º, nº 2, estes do Código Penal).
[6] Seguimos aqui de perto as anotações ao artigo 143º, da autoria de Paula Ribeiro de Faria, insertas no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999.
[7] Vide, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs.330 a 334.
[8] Vide, Jorge de Figueiredo Dias, Ob. Cit., pág. 227.
[9] Vide, Figueiredo Dias, in “Liberdade, Culpa, Direito Penal”, Biblioteca Jurídica Coimbra Editora, 1983, págs. 183 e 184.
[10] Conforme o Ac. deste TRP datado de 01/10/2008, da autoria de Pinto Monteiro in http://www.dgsi.pt, com o qual se concorda, a ele se aderindo.
[11] Posto que a rejeição do recurso é meramente parcelar, entendemos não ter aqui aplicação o artigo 420º, nº 3 do Código de Processo Penal.
[12] Texto escrito conforme o acordo ortográfico, convertido pelo lince, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).