Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4584/22.4JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Descritores: PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
REQUISITOS
INCUMPRIMENTO
INDEFERIMENTO
Nº do Documento: RP202309134584/22.4JAPRT.P1
Data do Acordão: 09/13/2023
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO DEMANDANTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Um pedido de indemnização cível formulado em processo penal que não foi deduzido em requerimento articulado, e que, a par, não contém as razões de facto e de direito que sustentam a responsabilidade civil do demandado, logo, não cumprindo as formalidades impostas pelo artigo 77º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Penal, deve ser indeferido, inexistindo lugar ao convite para o seu aperfeiçoamento.
II – Na verdade, embora o artigo 508º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil preveja a possibilidade do juiz, findos os articulados, convidar as partes a aperfeiçoá-los, inexistindo no Código de Processo Penal uma qualquer norma que trate desta situação, nada permite a conclusão de que estamos perante uma lacuna e, pelo contrário, o uso deste expediente até se afigura incompatível com a acção penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4584/22.4JAPRT.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
Nos presentes autos de processo comum (Tribunal Coletivo) 4584/22.4JAPRT do Juízo Central Criminal de Vila do Conde, a Senhora Juiz, aquando do despacho que designou dia para o julgamento, não admitiu o pedido cível deduzido a fls. 559 pelo demandante AA contra o arguido/demandado, por considerar que o mesmo não cumpre as formalidades impostas pelo artigo 77º, n.º 2 e 4 (este a contrario) do CPP, considerando, ademais, o valor do pedido – 15.000,00 € (artigo 24º, n.º 1 da LOFTJ).
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O demandante AA interpôs recurso dessa decisão.
Termina com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O presente recurso tem por objeto exclusivo o despacho proferido pelo Mmº. Juiz do Tribunal a quo, que indeferiu o pedido de indemnização civil apresentado (PIC) pelo aqui Recorrente, por considerar que o mesmo não cumpria com os formalismos do artigo 77º do CPP., nomeadamente, não se encontrava articulado nem exponha as razoes de facto e de direito.
2. Ora o Tribunal aquo rejeitou o PIC por puro lapso, pois é facto, que o PIC se encontra deduzido de acordo com o preceituado. Remete desde logo no seu artigo 1º que se “o ofendido dá aqui inteiramente reproduzida a Douta Acusação do Ministério Publico.” 3. Começa desde logo, por identificar o tribunal, identificar o processo, identificar as partes, encontra-se articulado, expõe as razoes de facto e de direito ao remeter desde logo, para a Douta Acusação Publica, enumera a prova requerida e testemunhal, contem o pedido e respetivo valor.
4. Valor que poderá ser ampliado face ao resultado da prova pericial requerida e ainda não ordenada.
5. A prova já havia sido requerida por requerimento de 12-04-2023, e não só agora com o PIC.
6. Por outro lado, nunca foi o ofendido convidado a suprir qualquer irregularidade ou deficiência, o que se impunha caso fosse a situação, em prol do princípio da colaboração dos sujeitos processuais.
7. Relativamente ao valor do pedido este poderá sempre ser ampliado, face a prova requerida e a eventuais recaídas de saúde do recorrente em virtude das lesões sofridas, podendo ser liquidado se fosse o caso em execução de sentença.
8. Assim, não pode restar qualquer dúvida que o PIC deduzido se encontra conforme e por via desse facto deve ser admitido.
Nestes termos e nos mais de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele,
9. Deve ser revogado o despacho do Meritíssimo Juiz do Tribunal aquo, relativo ao indeferimento do PIC deduzido pelo Recorrente,
10. Deve ser admitido o PIC deduzido nos presentes autos com as legais consequências. Fazendo-se, assim, a habitual e Acostumada JUSTIÇA
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Não foi a apresentada resposta.
Nesta Relação o Senhor Procurador Geral Adjunto limitou-se a apor visto, dado que o recurso versa exclusivamente matéria cível.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Objeto do recurso
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, a única questão suscitada consiste em saber se um Pedido de Indemnização Cível formulado sem cumprir as formalidades impostas pelo art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do CPP deve ser indeferido ou se, pelo contrário, deve haver lugar ao convite para o seu aperfeiçoamento.
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Dirigido ao Ministério Público e subscrito pela sua advogada, o recorrente AA apresentou o requerimento que se transcreve:
Nestes termos, deve o presente pedido ser julgado procedente por provado, condenando-se o arguido a indemnizar o ofendido no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais e de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, num total de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescido de juros vincendos até integral pagamento.
Para tanto, requer a V.ª Ex.ª, que se digne mandar notificar o arguido/demandado para, querendo, contestar no prazo e sob a cominação legais, seguindo-se ulteriores termos até final.
Prova testemunhal:
1 – BB, melhor identificado nos autos
2 – CC, melhor identificado nos autos
Prova pericial:
Requer-se a prova pericial do ofendido no âmbito das lesões sofridas e da área de neurologia.
Junta: 3 (Três) documentos e duplicados legais
Valor: € 15.000,00 (Quinze mil euros)
A ADVOGADA
(….)
O despacho recorrido, que se transcreve, não admitiu o pedido cível assim formulado, por considerar que o mesmo não cumpre as formalidades impostas pelo artigo 77º, n.º 2 e 4 (este a contrário) do CPP, considerando, ademais, o valor do pedido – 15.000,00 € (artigo 24º, n.º 1 da LOFTJ)
Com efeito, o pedido deduzido ao abrigo do artigo 77º do CPP deve ser formulado por artigos e conter as razões de facto e de direito que sustentam a responsabilidade civil dos demandados, bem como os meios de prova e de obtenção de prova a utilizar – neste sentido, vide Paulo pinto de Albuquerque, “CPP à luz da CRP e da CEDH”, 1ª edição, pág. 229).
Não obedecendo a tais requisitos, desde logo por falta de articulação das razões de facto e de direito que sustentam o pedido formulado, importa não admitir tal pedido.
Notifique
Decidindo.
Dispõe o n.º 1 do art.º 77.º do CPP que quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada.
Por sua vez, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que o lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias.
Apenas no caso de o valor do pedido consentir, se deduzido em separado, a sua apresentação sem representação por advogado, como decorre do n.º 4 do art.º 77.º do CPP, é admitida uma atenuação nas exigências formais impostas n.ºs 1 e 2, sem modificação do prazo de dedução do pedido.
No caso concreto, como resulta evidente da sua simples leitura, o pedido formulado pelo recorrente não foi deduzido em requerimento articulado. Também não contem as razões de facto e de direito que sustentam a responsabilidade civil do demandado.
Não cumpre, pois, o formalismo legal imposto pelo art.º 77.º n.ºs 1 e 2, do CPP. Não podia, assim, ser admitido, como bem decidiu a Senhora Juiz.
Entende, porém, o recorrente que ainda que faltasse algum requisito, o que como vimos é o caso, o requerimento padeceria de irregularidade ou deficiência, mas não seria inepto. Acrescenta que não tendo sido convidado pelo Tribunal a quo a completá-lo ou a corrigi-lo, deverá ser aceite, devendo ser considerado para todos os efeitos legais.
Não assiste razão ao recorrente.
Efetivamente, o convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado afigura-se incompatível com a ação penal.
O art.º 71.º do CPP consagra como regra o princípio da adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é obrigatoriamente deduzido no processo penal respetivo, salvaguardadas as exceções previstas no artigo 72.º, que prevê os casos em que é admissível a dedução do pedido em separado, perante o tribunal civil.
Como refere o Ac. TRG de 16.01.2006[1], relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, a unidade de causa entre a acção cível e a acção penal, significa que as partes cíveis se sujeitam ao regime da acção penal. É a acção cível que acompanha a acção penal e não esta que se submete às incidências possíveis no processo civil. A prevalência da acção penal é tal que o tribunal pode remeter as partes para os tribunais comuns quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal – cfr. art. 82 nº 3 do CPP.
Daqui decorrem assinaláveis diferenças de regime. (….) Assim é também no caso deste recurso.
Prevê o art. 508 nº 1 al. b) do CPC a possibilidade do juiz, findos os articulados, convidar as partes a aperfeiçoá-los. É certo que o Código de Processo Penal não tem norma que trate desta situação, mas nada permite a conclusão de que estamos perante uma lacuna.
Pelo contrário, o uso deste expediente até se afigura incompatível com a acção penal.
Quando saneia o processo, o juiz designa logo dia para a audiência, para data a fixar no prazo de dois meses – art. 312 nº 1 do CPP. Se fosse possível ao juiz, após a contestação do demandado, convidar o demandante cível a suprir as irregularidades do seu articulado, teria de fixar prazo para o efeito e, após, conceder novo prazo ao demandado para garantir o contraditório. Isso implicaria, quase inevitavelmente, o adiamento do julgamento penal, para que a instância cível se pudesse desenvolver. E, ao contrário do que impõe o referido princípio da adesão, uma submissão da acção penal à acção cível.
Assim se conclui que o regime estabelecido no CPP para a formulação do pedido cível e contestação é coerente, com autonomia, não apresentando qualquer espaço vazio. É um sistema que funciona completamente por si, na previsão, nos procedimentos e nos resultados da sua execução. Poderá, eventualmente, vir a ser objecto de alteração por parte do legislador. Mas isso é questão que transcende o âmbito da aplicação da lei.
Improcede, pois, o recurso.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Declaração de voto:
Voto a decisão, mas discordo da fundamentação quanto à impossibilidade de correção do pedido de indemnização civil formulado de forma deficiente.
Entendo que o juiz, desde que o pedido não seja manifestamente inepto, designadamente por não conter qualquer alusão à causa de pedir, ainda que por remissão para a acusação, pode convidar o lesado a aperfeiçoar o pedido, se ele não obedecer à estrutura articulada imposta pelo artigo 77º do CPP, ou se faltar algum pressuposto processual, como a representação obrigatória por advogado. Não sendo aperfeiçoado, o pedido deve ser indeferido, no todo ou em parte.
Parte da jurisprudência tem respondido afirmativamente à possibilidade de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição deficiente na ação civil conexa com a ação penal.
Neste sentido, foram os acórdãos da Relação do Porto de 20.12.2006 (Joaquim Gomes) in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/CC4E2A20ACCC18FE8025724C003F21D5, da Relação de Lisboa de 14.03.2002 (Goes Pinheiro), in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/92ce6cf3497a83c680256cbd003edf45?OpenDocument e do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.1996 (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 15ª ed., 2005, anotação ao artigo 77º, p. 215 e CJ, XVII, tomo V, 234).
Acompanho esta jurisprudência.
Com efeito, relativamente ao despacho de saneamento, dispõe o artigo 311º, n.º 1 do CPP que «Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.»
Ora, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 20.12.2006 já citado, tais questões tanto podem ter natureza penal ou cível, sendo que relativamente às questões de natureza cível, contrariamente às questões de natureza penal cuja solução consta do n.º 2 do artigo 311º, nada se diz quanto à solução das questões de natureza cível.
Verifica-se, portanto uma lacuna, a resolver de acordo com as normas do processo civil, nos termos do artigo 4º do CPP.
A norma do processo civil aplicável é o artigo 6º, n.º 2 do CPC, segundo a qual o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
Aplicando esta norma, compreende-se a posição tomada pela jurisprudência citada no sentido de que o juiz pode (deve) proferir um despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição deficiente na ação civil conexa com a ação penal.
É certo que se poderia objetar que o incidente desencadeado pelo convite à correção das deficiências do pedido cível poderia conflituar com a necessidade de celeridade do processo penal. Mas tal objeção não colhe, pois não só o incidente poderá ser tramitado de forma rápida, como também em caso de perturbação grave da celeridade do processo penal, em especial no caso de processos urgentes, sempre se poderá fazer uso do disposto no artigo 82º, n.º 3 do CPP e remeter as partes para os tribunais civis.
Assim, entendo ser de acolher a posição tomada pela jurisprudência citada quanto ao convite para suprir as deficiências do pedido de indemnização civil.
Voltando ao caso dos autos, verifica-se que na situação dos autos nem o requerimento foi articulado, nem tão pouco se verifica qualquer referência à causa de pedir, não sendo alegados factos suscetíveis de integrar a causa de pedir do direito à indemnização, ainda que por mera remissão ou ‘acompanhamento’ da acusação.
Assim, o pedido de indemnização civil formulado é inepto e não pode ter lugar o convite à correção.
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Porto, 13 de setembro de 2023
José António Rodrigues da Cunha
Cláudia Rodrigues
William Themudo Gilman (declaração de voto)
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[1] In www.dgsi.pt.