Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1308/20.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: PROVA PERICIAL
ESCLARECIMENTOS AO RELATÓRIO PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
Nº do Documento: RP202403181308/20.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo sido pedidos esclarecimentos ao relatório pericial, o prazo para requerer a realização de segunda perícia deve ser contabilizado a partir da data de notificação da prestação dos esclarecimentos pedidos ou do despacho que os indeferiu e não da data da notificação do relatório da primeira perícia.
II - O entendimento segundo o qual o pedido de realização de segunda perícia tem forçosamente que ter lugar no prazo de 10 contabilizados da notificação do relatório da primeira perícia propicia o recurso cumulativo a dois meios de prova, que se podem vir a revelar excessivos ou redundantes.
III - De acordo com a proibição legal da prática de atos inúteis dever-se-á esgotar a possibilidade de os esclarecimentos satisfazerem a pretensão probatória da parte e só num segundo momento aferir da oportunidade da realização de segunda perícia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1308/20.4T8PRT - A.P1


Relatora: Teresa Fonseca
1.ª adjunta: Eugénia Cunha
2.º adjunto: José Eusébio Almeida



Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - Relatório

Na ação declarativa sob a forma de processo comum que AA intentou contra “A... Companhia de Seguros, S.A.” foi indeferido o pedido da R. de realização de segunda perícia.
Inconformada, a R. interpôs o presente recurso, em que apresentou as conclusões que se seguem.
1. O relatório pericial de 12/07/2023 só se tornou definitivo com o despacho de 23/10/2023, que indeferiu os esclarecimentos pedidos pela Ré, pelo que, só a partir desta data se inicia o prazo de 10 dias para requerer a 2ª perícia.
2. Caso assim não fosse, de nada justificava o pedido de esclarecimentos, criando redundâncias processuais desnecessárias e inúteis.
3. No requerimento que apresentou para justificar a necessidade de realização de uma segunda perícia, a ora Recorrente alegou as razões da sua discordância com o relatório da primeira perícia, em cumprimento do consagrado legalmente no artigo 487.º n.º 1 do CPC;
4. Tais razões constituem motivo bastante, em face do disposto no n.º 1 do artigo 487.º do CPC, para justificar a realização de uma segunda perícia;
5. O que a lei pretende com a realização da segunda perícia é que sejam dissipadas quaisquer dúvidas sérias que tenham ficado a subsistir da primeira perícia, sobre a perceção ou apreciação dos factos investigados, com relevância na decisão sobre o mérito da causa;
6. Se a parte fundamenta devidamente o pedido, não deve deixar de ser deferida a realização da segunda perícia médico-legal;
7. A decisão recorrida viola o disposto no n.º 1 do artigo 487.º do CPC.
Nestes termos, concedendo-se provimento ao presente recurso de apelação deverá ser revogado o douto despacho que indeferiu a realização da segunda perícia, determinando-se a sua substituição por outro que ordene a realização da segunda perícia requerida pela Recorrente.
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A recorrida contra-alegou, com as seguintes conclusões:
3. O pedido de realização de segunda perícia foi extemporaneamente requerido pela recorrente, fora do prazo – já depois de decorrido o prazo – que para o efeito a Lei concede.
Sem Prescindir,
2. Só uma contradição detetada nos próprios termos do relatório pericial, a qual, no caso dos presentes autos, inexiste, poderia ser valorada, mormente para efeitos de eventual prestação de esclarecimentos ou de realização de segunda perícia.
3. Não é fundamentado o pedido de realização de segunda perícia só pelo facto de alguma das partes manifestar discordância com as conclusões ou resultados da primeira perícia.
Termos em que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pela recorrente, assim se fazendo Justiça.
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II - A questão a resolver consiste em determinar se o prazo para requerer a realização de segunda perícia deve ser contabilizado a partir da data da notificação do relatório pericial da primeira perícia ou, ao invés, da data da notificação dos esclarecimentos prestados relativamente àquele relatório ou do despacho que os indeferiu.
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III - A matéria de facto a tomar em consideração é a que em seguida se enuncia.
1 - Notificada do relatório pericial do Instituto de Medicina Legal, em 31-7-2023, a R. “A... Companhia de Seguros, S.A.” apresentou requerimento em que, assinaladamente, se lê: (…) vem do mesmo reclamar, sem prejuízo do direito que lhe assiste de requerer a realização de uma 2.ª perícia, terminando com o pedido de que os Senhores Peritos médico-legais esclareçam cada uma das questões por si abordada.
2 - Em 19-10-2023, foi proferido o seguinte despacho:
Prevê o artigo 485.º n.º 2 do Código de Processo Civil a possibilidade de as partes formularem reclamações nos casos em que exista deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial.
Perscrutado o teor do relatório pericial, afigura-se que o mesmo é perfeitamente claro nas respostas às questões de facto que constituem o objeto da perícia. Acresce que, no seu requerimento, o requerente não concretiza em que medida considera que o relatório pericial padece de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição.
Salvo melhor entendimento, trata-se de uma discordância que poderia ser suscitada em sede de segunda perícia.
Face ao exposto, indefere-se o pedido de esclarecimentos apresentado.
3 - Mediante requerimento de 25-10-2023, a R. “A... - Companhia de Seguros” requereu a realização de segunda perícia, nos termos do disposto no art.º 487.º do C.P.C., alegando que após apreciação de todos os elementos clínicos submeteu os mesmos à apreciação dos seus serviços médicos, que discordaram da incapacidade geral fixada à A. em 20 pontos, constante do relatório pericial realizado pelo INML, pelas razões que, em seguida, elencou, e que justificariam a realização de uma segunda perícia.
4 - Terminou nos seguintes moldes:
Pelo exposto requer-se, antes de mais, que sejam remetidos ao gabinete médico-legal para apreciação todos os registos clínicos da USF ... para correta verificação da incapacidade do foro de ORL.
Requerendo-se ainda a realização de uma Segunda Perícia nos termos do art. 487º do C.P.C. e com os fundamentos expostos.
- Para acompanhar a 2ª Perícia agora requerida, a Ré, desde já, nomeia como seu assessor técnico o Exº Senhor Dr. BB, com domicílio profissional sito na Rua ..., ... Lisboa, a notificar para a data que se vier a designar para o efeito.
5 - O tribunal recorrido pronunciou-se a propósito do requerimento que se vem de nomear nos seguintes moldes:
Através do requerimento em epígrafe a ré A... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. veio requerer a realização de segunda perícia.
Nos termos do disposto no art.º 487º do C.P.C. qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento da primeira. Ou seja, as partes podem requerer a realização de segunda perícia no prazo de 10 dias após a notificação do relatório respeitante à primeira perícia ou dos esclarecimentos e aditamentos requeridos em reclamação apresentada.
No caso em apreço, a ré veio apresentar reclamação ao relatório pericial apresentado pelo INML, que foi indeferido.
O relatório pericial que foi objeto de reclamação, indeferida, apresentada pela ré foi notificado às partes por notificação de 12.07.2023.
Como não houve lugar a esclarecimentos relativos aquele relatório o prazo para as partes requererem a realização de segunda perícia terminou em 11.09.2023.
Pelo exposto, o requerimento através do qual a ré vem requerer a realização de segunda perícia apresentado em 25.10.2023, é extemporâneo, e não pode ser atendido o pedido de realização de segunda perícia requerido pela ré.
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IV - Subsunção jurídica
A questão a dirimir no presente recurso consiste em determinar se, prevendo o art.º 487.º do Código de Processo Civil (C.P.C.) o prazo de 10 dias para que seja requerida a realização da segunda perícia a contar do conhecimento do resultado da primeira, este deve ser interpretado como contabilizando-se da notificação do relatório apresentado, ou se, tendo havido reclamação, o início do prazo se contabiliza a partir da notificação dos esclarecimentos ou do despacho que indeferiu a sua prestação.
O direito à prova encontra-se consagrado constitucionalmente no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, como componente do direito geral à proteção jurídica e de acesso aos tribunais.
A prova é a atividade destinada à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos (art.º 341.º do C.C., que atribui às provas a função de demonstração de realidade dos factos).
Prevê o art.º 388.º do C.C. que a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.
O resultado da perícia é expresso em relatório, no qual o perito se pronuncia fundamentadamente sobre o respetivo objeto (art.º 484.º do C.P.C.).
Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações (art.º 485.º/2 do C.P.C.).
Se as reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado (art.º 485.º/3 do C.P.C.).
O juiz pode, mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores (art.º 485.º/4 do C.P.C.).
Qualquer das partes pode, também, requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias, a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (art.º 487.º/1 do CPC).
A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (art.º 487.º/3 do C.P.C.).
Enquadrada a questão, crê-se que outro não poderá ser o entendimento a seguir que não aquele segundo o qual as partes podem requerer a realização de segunda perícia, no prazo de 10 dias sobre o conhecimento do resultado da primeira, entendido este como o relatório primitivo, caso não tenham sido pedidos esclarecimentos. Caso tenham sido pedidos esclarecimentos, o prazo para requerer segunda perícia iniciar-se-á com a notificação do relatório atinente às reclamações. A tal não obsta que o perito ou os peritos nada acrescentem. Na hipótese de o juiz não acolher o pedido da parte de que sejam prestados esclarecimentos, o prazo iniciar-se-á com a notificação do despacho de indeferimento.
Pretender diversamente lançaria um véu de perplexidade sobre a faculdade de pedir esclarecimentos. É que é plausível e desejável que, acaso o pedido de esclarecimentos seja deferido e estes sejam prestados, a pretensão de realização de segunda perícia caia por terra. O entendimento segundo o qual o pedido de realização de segunda perícia tem forçosamente que ter lugar no prazo de 10 contabilizados da notificação do relatório da primeira perícia redunda no recurso a dois meios de prova, suscetíveis de se vir a revelar, na sua cumulação, ao menos em tese, excessivos ou redundantes.
Aliás, de acordo com a proibição legal da prática de atos inúteis consagrada no art.º 130.º do C.P.C., dever-se-á esgotar, num primeiro momento, a possibilidade de os esclarecimentos satisfazerem a pretensão probatória da parte, para só num segundo momento aferir da bondade da realização de segunda perícia. Quer em termos de uso equilibrado dos meios disponíveis, quer em termos de celeridade processual, esta será, com certeza, a melhor via a trilhar.
A circunstância de o pedido de esclarecimentos ser indeferido, como não pode deixar de ser, em nada afasta a tese sustentada.
No sentido de a iniciativa das partes em requererem a realização da segunda perícia ter lugar no prazo de 10 dias após a notificação do relatório (art.º 587.º/1) ou dos esclarecimentos e aditamentos requeridos em reclamação apresentada (arts. 587.º/4 e 229.º/2), vejam-se Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Coimbra Editora, p. 521.
Já José Alberto dos Reis, a propósito do art.º 613º do Cód. de Processo Civil de 1939, referia que o ponto de partida para a contagem do prazo de oito dias facultado às partes é o encerramento do auto das respostas dadas pelos peritos no exame ou na vistoria (art. 599º). É então que fica concluído, e portanto efetuado, o primeiro arbitramento. Se houve reclamações contra as primeiras respostas, nos termos do art. 600º, e os peritos não puderam dar logo, no mesmo dia, os esclarecimentos pedidos, o prazo há de começar a correr desde o novo auto de respostas que terá de ser lavrado.
Veja-se ainda o ac. da Relação de Lisboa de 2-11-2017 (proc. 34964/15.5T8LSB-A.L1-2, Arlindo Crua, consultável in http://www.dgsi.pt/), segundo o qual, nos casos em que ocorre reclamação contra a primeira perícia, seja por deficiência, obscuridade ou contradição no relatado, seja por ausência de fundamentação das conclusões apresentadas - cf. art.º 485.º do CPC -, caso seja esta atendida, não se pode concluir que a primeira perícia está completa antes da efetiva prestação de resposta à reclamação, pelo que, no caso de apresentação de reclamação relativamente ao relatório da primeira perícia, independentemente de qual a parte reclamante, e caso aquela seja atendida, o prazo de 10 dias para requerer a realização de segunda perícia computa-se após a data de notificação do relatório pericial complementar, do qual conste a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos.
O recurso deve, pois, obter provimento.
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Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir para apreciação do requerimento formulado pela R. de realização de segunda perícia.
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Custas pela apelada por ter ficado vencida (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto ,18-3-2024.
Teresa Fonseca
Eugénia Cunha
José Eusébio Almeida