Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
204/20.0T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
ÓNUS DA PROVA
CONDENAÇÃO GENÉRICA E OPORTUNA LIQUIDAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20220405204/20.0T8AMT.P1
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Na garantia de bom funcionamento prevista no art. 921º do Cód. Civil o vendedor assegura por certo período a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento por causa a ela inerente e dentro do uso normal da mesma.
II – Neste caso, basta ao comprador provar o mau funcionamento da coisa durante o período de duração da garantia, sem necessidade de identificar a respetiva causa ou demonstrar a respetiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa e imputável a ato do comprador (v.g. má utilização), de terceiro ou devida a caso fortuito.
III – Se um veículo adquirido no estado de usado, com uma quilometragem superior a 200.000 km, não puxa, perde óleo, perde força abruptamente ou não circula na via pública com segurança, o seu comprador não age em abuso do direito se exerce contra o vendedor os direitos que para si resultam da garantia de bom funcionamento dada por este ao abrigo do art. 921º, nº 1 do Cód. Civil.
IV – A fixação de montantes indemnizatórios com base na equidade, ao abrigo do art. 566º, nº 3 do Cód. Civil, pressupõe sempre que se tenha apurado uma base factual minimamente sólida e consistente sobre esses montantes.
V – Não se tendo apurado essa base factual suficientemente consistente, deverá antes proferir-se condenação genérica de acordo com o disposto no art. 609º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 204/20.0T8AMT.P1
Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Amarante
Apelação
Recorrente: AA
Recorrido: “D..., Unipessoal, Lda.”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
A autora “D..., Unipessoal, Lda.”, com sede no Lugar ..., ..., ..., intentou ação declarativa de condenação contra o réu AA (P...), com sede na Rua ..., ..., ..., Amarante, pedindo que o tribunal declare definitivamente resolvido e anulado o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e o réu, referente ao veículo de marca Mercedes, modelo ... e matrícula ..-RP-.., devendo o réu restituir à autora a quantia de 13.000,00€, referente ao preço já pago (acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento); subsidiariamente, que o réu seja condenado a substituir a viatura de matrícula ..-RP-.. vendida à autora, por outra de iguais características e isenta de defeitos e anomalias que a impeçam de ser utilizada para o fim a que se destina; também subsidiariamente, ser o réu condenado a restituir à autora parte do preço já pago pela compra da viatura de matrícula ..-RP-.., em quantia nunca inferior a 5.000,00€, correspondente ao valor previsível que a mesma tenha de suportar pela reparação integral dos defeitos e anomalias que a viatura padece e, por fim, cumulativamente, que o réu seja condenado a pagar à autora, a quantia de 5.000,00€, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo incumprimento contratual do réu, a arbitrar segundo juízos de equidade, acrescida de juros de mora desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alega, para o efeito e em síntese, que no dia 13.4.2019 comprou ao réu o supra identificado veículo, no estado de usado e pelo preço de 13.000,00€, sendo que o réu sempre soube do destino que a autora ia dar à viatura em causa, tendo-lhe assegurado que a mesma, apesar de usada, não detinha qualquer problema ou anomalia, encontrando-se em perfeito estado de conservação e funcionamento, motivo pelo qual entregou, inclusive, à autora um certificado de garantia, através do qual acordou garantir pelo período de 12 meses, entre outros, a reparação gratuita ou substituição das peças do motor e da caixa da viatura.
Mais alega que a viatura em causa começou logo a apresentar os mais diversos defeitos, problemas e anomalias, inviabilizando assim o destino que a mesma, ao adquiri-la, lhe pretendia conferir tendo, nos finais de Abril de 2019, a autora comunicado ao réu que a viatura estava a perder óleo pela junta da admissão, não acendia a luz da resistência, tinha permanentemente acesa a luz do filtro de partículas e em circulação perdia força motriz.
Assim e sem prejuízo das diligências ocorridas entre as partes e das reparações que foram sendo feitas e que se encontram descritas nos autos, alega a autora que a viatura tem problemas e defeitos significativos ao nível do motor, diferencial e caixa de velocidades, o que tudo junto implica que o veículo perca abruptamente força motriz e fique impossibilitado de circular pelos próprios meios, problemas que não foram solucionados.
Tendo sido citado para o efeito, veio o réu apresentar a sua contestação, pugnando pela improcedência da acção.
Alega, em síntese, que se prontificou, desde logo, a verificar se o veículo tinha algum problema, tendo solicitado ao autor que entregasse o veículo na oficina indicada para o efeito, tal como deu ordem à oficina para que, em caso positivo, procedesse à sua reparação, nos termos garantidos, a expensas suas, o que sucedeu.
Mais alega que a autora, em pouco mais de 3 meses, fez cerca de 50.000 km na viatura, o que redundou numa utilização superintensiva, em média superior a 16 mil km por mês, pelo que tendo em conta que a carrinha foi comprada no estado de usada e que aquando da compra já contava com 11 anos, a utilização que a autora lhe deu acabou por levar a elevados desgastes que nem sequer se encontrariam abrangidos pela garantia que ambos contrataram.
Alega ainda o réu que tendo a autora efetuado tal quilometragem com o veículo, tinha necessidade de efetuar manutenções programadas que o réu desconhece por completo, mas que poderão ter tido influência na rápida degradação do veículo e que nunca o réu celebraria tal pacto de garantia com a autora se esta não lhe tivesse ocultado que pretendia efetuar transportes internacionais de mercadorias com aquele veículo.
Entende assim que a autora atua excedendo, claramente, os limites impostos pela boa-fé e, por isso, em abuso de direito.
Foi realizada audiência prévia, onde se proferiu despacho saneador com a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas de prova.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo e proferiu-se sentença que:
- Condenou o réu a pagar à autora a quantia de 3.000,00€ a título de redução do preço de compra de veículo;
- Condenou o réu a pagar à autora a quantia de 750,00€ a título de indemnização, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
- Absolveu o réu do demais pedido.
Inconformado com o decidido interpôs recurso o réu, pedindo a revogação da sentença recorrida.
Nas contra-alegações a autora, para além de se pronunciar pela confirmação do decidido, entendendo que as conclusões do recurso interposto pelo réu são uma repetição integral da motivação apresentada, requereu que este fosse convidado a sintetizá-las, sob pena do recurso ser rejeitado.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo
Por despacho do presente relator de 19.1.2022 determinou-se a notificação do réu/recorrente para proceder ao aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso, efetuando a sua sintetização, de acordo com o disposto no art. 639º, nºs 1 a 3 do Cód. do Proc. Civil.
O réu/recorrente respondeu ao solicitado tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Pleiteou-se acerca da (in)existência de defeitos no veículo de marca Mercedes, modelo ..., com a matrícula ..-RP-.., adquirido em 13 de abril de 2019 no estado de usado pela Autora D..., Unipessoal, Lda. ao Réu AA. O Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente, por provada, tendo condenado o Réu a pagar, à Autora, a quantia de 3.000,00€ (três mil euros), a título de redução do preço da compra do veículo, bem como o valor de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros), a título de indemnização, acrescido dos juros de mora contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento, absolvendo o Réu no demais pedido efetuado pela Autora, pelo que pretende o Réu, ora recorrente, ver reapreciada a matéria de facto e de direito que sustentou a decisão recorrida, pugnando pela sua revogação.
MATÉRIA DE FACTO QUE ATESTA O ABUSO DO DIREITO:
2. O Réu, empresário em nome individual, operava no giro comercial sob a designação de “P...”, dedicando-se à comercialização de veículos automóveis usados, sendo que a Autora, ora recorrida, era uma sociedade comercial que se dedicava, entre outras, à atividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem (artigo 2.º dos factos provados). Quando, em 13 de abril de 2019, vendeu o veículo à Autora, este tinha 11 anos e uma quilometragem de 210.000 km´s – (Documento n.º 1 junto com a PI do Autor, em conjugação com o documento junto pelo Réu no requerimento que este apresentou via Citius em 9/11/2020 (Ref.ª Citius 6685906) e foi considerado pelo Tribunal a quo para a tomada de decisão (Ponto “III.III Motivação”, da sentença) “[Publicidade de venda do veículo, quanto às suas características, designadamente a quilometragem]”)
3. Em 7 meses de uso, o veículo fez 74.654 km, numa média superior a 10 mil quilómetros por mês. (Tal resulta do teor do documento junto em sede de audiência de discussão e julgamento, pela testemunha BB, tendo sido acolhido pelo Tribunal a quo no ponto “.III Motivação”, da sentença).
4. Assim, mediante uma utilização altamente intensiva da carrinha, em pouco mais de três meses de uso a Autora fez cerca de 50.000 km´s na carrinha (artigo 32.º dos factos provados), pelo que, necessariamente, mesmo com alguns problemas que foram surgindo com o veículo (artigos 10.º a 27.º dos factos provados), as reparações que o Réu lhe fez sempre foram aptas a colocar o veículo em condições de circular.
5. À prova documental que comprova a excessiva quilometragem que esta fez em apenas 7 meses, acresce a prova testemunhal prestada na audiência de discussão e julgamento, o que, no seu conjunto, nos indicia que a Autora atuou com abuso do direito, senão vejamos:
6. Na contestação do Réu, (Ponto C – Prova Documental), este requereu ao Tribunal que notificasse a Autora para “juntar comprovativos de toda a manutenção do veículo em causa nos autos, referente ao intervalo desde que o adquiriu ao Réu até ao presente momento (…)”. Tendo em conta que a Autora nada havia remetido aos autos até à Audiência Prévia de 14 de outubro de 2020, foi nesta diligência notificada para, em 10 dias, vir aos autos juntar os documentos, sendo que, através de requerimento de 26/10/2020 (referência citius 6648695), respondeu que, “no que se refere aos comprovativos de manutenção do veículo, a Autora nada tem a juntar aos autos, por não possuir quaisquer documentos a esse título, esclarecendo que o veículo foi por diversas vezes enviado à oficina contratado pelo Réu, para reparação, nos termos referidos na petição Inicial”.
7. Também a prova testemunhal prestada no dia 23 de junho de 2021 – cuja transcrição integral se anexa ao presente recurso, dele fazendo parte integrante - nos sugere a inexistência de prova consistente com uma manutenção prudente do veículo:
A) Legal representante da Autora CC (depoimento que se iniciou, conforme a respetiva ata, às 10:12 horas e terminou às 10:42 horas):
i. Na decorrência do minuto 00:12:42 (00.12.42 a 00:13:50) admitiu que a carrinha tenha circulado, em 3 ou 4 meses, 35.000 a 40.000 quilómetros, não conseguindo especificar, durante todo aquele tempo, a carrinha teve alguma manutenção básica (óleo de motor, filtros, etc.).
ii. Não nos parece plausível que o gerente da Autora tenha memórias pormenorizadas de avarias, mas não seja capaz de dizer se alguma vez efetuou ou lhe mandou efetuar a manutenção básica.
iii. Na decorrência do minuto 00:23:47 (00:23:47 a 00:25:32), confirmou o teor do documento junto pelo Réu em 9/11/2020 (Referência citius 6685906) “[Publicidade de venda do veículo, quanto às suas características, designadamente a quilometragem]”, tendo inclusivamente confirmado que, quando comprou a viatura, sabia que esta tinha 11 anos, que era do ano 2008, mas não se recordando se a viatura tinha 210.000km aquando da compra. Ao minuto 00:26:38 (00:26:38 a 00:29:31), evitou dizer se a carrinha em causa tinha feito alguma manutenção, fossem simples mudança de óleo ou de filtros e, em contradição com aquilo que disse no requerimento que apresentou nos autos em 26/10/2020 (referência citius 6648695), disse apenas que “fez mudanças de óleo”, embora as não tenha conseguido especificar.
B) Sócia da Autora DD (depoimento foi prestado, conforme a respetiva ata, das 11:18 horas às 11:45 horas):
i. No trecho que vai do minuto 00:15:41 ao minuto 00:20:00, mais concretamente na decorrência do minuto 00:15:41, esta mostrou-se certa de que foram feitas mudanças de óleo à carrinha, de 10 em 10 mil quilómetros (de duas em duas viagens à Suíça), sendo que, normalmente, era o empregado que fazia isso, um “habilidoso”, que normalmente mete lá “uma coisa”, mete lá “um papel” a dizer em que dia tem de mudar, quando tiver “X” quilómetros e que normalmente mudam logo, depoimento que contradiz claramente o teor do requerimento apresentado nos autos pela Autora em 26/10/2020 (referência citius 6648695);
ii. Também no mesmo trecho, na decorrência do minuto 00:17:42, acabou por reconhecer que, afinal, não sabe qual o intervalo de manutenção que deveria ser respeitado naquela concreta manutenção, apenas dizendo que há carrinhas com manutenção de 20 em 20 mil km’s, outras de 10 em 10 mil, mas quanto à carrinha em questão, verbalizando: “Não sei, isso eu não sei, eu não percebo, eu percebo pouco”, tendo ainda, ao minuto 00:19:18, confirmado que assistiu à negociação e compra do veículo, que era um veículo do ano 2008 e que tinha os 210.000 quilómetros anunciados.
iii. Ora, deste depoimento que cremos se demonstrou “ensaiado”, porquanto a depoente se lembrava de todos os pormenores que interessavam à defesa da sua versão mas não se lembrava dos restantes, concluímos que a Autora não tinha qualquer registo de manutenções no veículo, manutenções essas que, de facto, nunca fez.
C) Depoimento, prestado por videoconferência, da testemunha EE, motorista da Autora, que se iniciou, conforme a respectiva ata, às 11:49 horas e terminou às 12:06 horas, tendo durado cerca de 17 minutos:
i. No trecho do minuto 00:14:10 ao minuto 00:17:09, mais precisamente na decorrência do minuto 00:14:10, esta testemunha, disse que faz algumas manutenções dos veículos da empresa, nomeadamente óleo e calços, tendo inclusivamente dito que chegou a fazer manutenções de óleo neste veículo, embora tenha também dito que não tinha ideia de quantas vezes fez a mudança de óleo da carrinha em causa, mas que fazia e “era sempre que fazia 15 mil quilómetros”.
ii. Posteriormente, quando lhe foi perguntado sobre “quantas vezes é que a carrinha fez 15 mil quilómetros?!”, a testemunha já não respondeu, tendo dito: porque a gente escreve num papel e quando chega a altura põe ao pé do motor que é para uma pessoa ir controlando”, acrescentando ainda, ao minuto 00:15:04, que filtros de ar condicionado e de óleo já não era ele quem fazia a mudança, que para isso era outra pessoa que lá ia fazer o serviço, que ele só mudava o óleo e calços, tendo dito, ainda, que não sabia quantos quilómetros é que a carrinha fez desde abril a novembro de 2019.
iii. Afiançou não possuir qualquer certificação de mecânica para mexer na carrinha. Além do mais, a sua própria patroa tinha dito que ele era apenas “um habilidoso”, tendo ainda sido desmentido, por esta, acerca da regularidade das manutenções, que ela afirmou serem de 15 em 15 mil quilómetros e não de 10 em 10 mil km´s.
D) Testemunha FF, indicada pelo Réu, cujo depoimento se iniciou, conforme a respetiva ata, às 12:15 horas e terminou às 12:24 horas, tendo durado cerca de 9 minutos:
i. No início do seu depoimento (trecho desde o minuto 00:01:08 ao minuto 00:03:38), disse que trabalhava, de forma esporádica, no stand do Réu, quando foi feito o negócio do veículo em questão, tendo inclusivamente sido ele a mostrar a carrinha ao gerente da Autora, que o gerente da Autora falou consigo e disse que a carrinha era para ele, sendo que lhe ocultou a sua actividade comercial, consistente em viagens regulares para a Suíça.
ii. Fica claro que a Autora, propondo-se a comprar um veículo com 11 anos e 210 mil quilómetros, ocultou o uso intensivo que lhe pretendia dar, com viagens de milhares de quilómetros seguidos, de Portugal para a Suíça e volta, com regularidade praticamente semanal.
E) Depoimento da testemunha BB, indicada pelo Réu, que se iniciou, conforme a ata, pelas 12:25 horas e terminou pelas 12:38 horas:
i. No trecho que vai do minuto 00:01:51 ao minuto 00:04:42, mais concretamente na decorrência do minuto 00:02:53, disse que, em 11 de novembro de 2019, recebeu a viatura na sua oficina, sendo que esta “puxava mal”, tendo referido que teve “carta branca” do Réu para resolver o problema, tendo alguém da sua oficina levado a carrinha à “T...” e que passado um dia ou dois a carrinha veio de lá a puxar bem, estando reparada.
ii. Disse ainda que, nesse dia 11 de novembro de 2019, a carrinha tinha 284.654 km quando deu entrada na sua oficina, sendo que, a solicitação do Tribunal, entregou uma ficha de entrada do veículo na sua oficina, onde consta a quilometragem do veículo àquela data.
8. Assim, da conjugação dos depoimentos e dos documentos acima indicados, além daqueles considerados como provados, deveria o Tribunal a quo ter considerado também provados os seguintes factos:
A) (Facto 34.) O veículo em causa tem matrícula do ano 2008, sendo que quando o réu o vendeu à Autora já tinha cerca de 11 anos;
B) (Facto 35.) Quando o veículo foi vendido pelo Réu à Autora, em 13 de abril de 2019, este tinha uma quilometragem de 210.000 quilómetros.
C) (Facto 36.) Em 11 de novembro de 2019, o veículo tinha 284.654 km.
D) (Facto 37.) No período que mediou entre 13 abril de 2019 e 11 de novembro de 2019, o veículo fez 74.654 quilómetros, numa média mensal superior a 10.000 quilómetros mensais.
E) (Facto 38.) A Autora não efetuou, no período entre 13 de abril de 2019 a 11 de novembro de 2019, qualquer manutenção ordinária ao seu veículo, nomeadamente mudanças de óleo, filtros, entre outros.
F) (Facto 39.) Aquando da compra do veículo ao Réu, em 13 de abril de 2019, a Autora ocultou que o iria utilizar para fazer transportes internacionais, nomeadamente para a Suíça e França, ida e volta, com viagens de regularidade semanal.
G) (Facto 40.) [Sendo este o facto 13 dos factos dados como não provados]: Nunca o réu celebraria tal pacto de garantia com a Autora se soubesse que este pretendia efetuar transportes internacionais de mercadorias com aquele veículo.
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA:
9. Não olvidando que é da competência da Autora a prova dos restantes requisitos da responsabilidade civil (facto ilícito, dano e nexo de causalidade), é verdade que, estando em causa a responsabilidade contratual, a culpa do devedor se presume, nos termos do disposto no artigo 799.º do Código Civil, cabendo ao Réu invocar factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito a que se arrogava a Autora, o que este fez, quando logrou provar no processo que em 7 meses, o veículo fez 74.654 quilómetros.
10. Recorrendo, precisamente, à mesma jurisprudência indicada pelo Tribunal a quo na sentença (Acórdão STJ de 26/04/2012), uma vez que o Réu provou que a Autora utilizou o veículo durante mais de 74 mil quilómetros em 7 meses, inverteu-se o ónus da prova, passando a Autora a ter a obrigação de demonstrar que, durante esse tempo de uso, efetuou as devidas manutenções, nomeadamente a mudança de óleos e filtros, para que o veículo pudesse funcionar devidamente. O Réu não pôde aferir se a manutenção foi devidamente efetuada pela Autora porque não tem acesso ao veículo, que se encontra à guarda da Autora. (Artigo 344.º n.º 2 do Código Civil).
11. De facto, a Autora não demonstrou ter efetuado qualquer manutenção - tanto que no requerimento que apresentou aos autos em 26/10/2020 (ref.ª citius 6648695) disse não possuir quaisquer documentos a esse título, pelo que, salvo o devido respeito, não podemos acatar a afirmação do Tribunal a quo de que “O Réu não logrou demonstrar (e tendo aqui em especial consideração a existência da garantia prestada) que a causa concreta do mau funcionamento fosse posterior à entrega da coisa ou que decorresse do uso anormal do bem”, porquanto a sua circulação, durante tantos quilómetros sem a devida manutenção regular, configura um uso altamente anormal do veículo, cuja consequência apenas pode ser a sua avaria.
12. Tal como bem vem decidindo a Jurisprudência, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/01/2019, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.Nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7e0c2eacb7e57 9298025839f00351cdc?OpenDocument, “Apurando-se que a causa da avaria se deveu a falta de cuidado do comprador/consumidor na manutenção do veículo, é de considerar afastada a presunção da falta de conformidade à data da entrega ou que se revelou posteriormente, pelo que não lhe assiste qualquer direito, nomeadamente reparatório e/ou indemnizatório”, assim como decidiu este douto Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 08/03/2019, “(…)a responsabilidade só será afastada se o garante demonstrar e provar que o mau funcionamento ou a existência dos defeitos denunciados se ficaram a dever ao mau uso feito da coisa vendida por acção dolosa ou negligente do comprador sobre a coisa que a desvirtua ou incapacita para as suas funções.”
13. Assim, o mau uso que a Autora fez do veículo constitui uma utilização altamente negligente, agravada pelo facto de se tratar de uma sociedade que tem por objecto o transporte rodoviário de mercadorias, com uma maior obrigação de manter e documentar as manutenções dos seus veículos, tendo tal utilização negligente sido a causa da avaria do mesmo, o que exclui a responsabilidade do Réu.
14. Não podemos, ainda, descurar que, ao ter ocultado ao Réu que estava a comprar um veículo “usadíssimo” para com ele fazer viagens de milhares de quilómetros por semana, levou o Réu a celebrar um pacto de garantia que, certamente, não celebraria se soubesse a verdade, o que, aliado ao mau uso, redunda na desresponsabilização do Réu.
REDUÇÃO DE PREÇO COM RECUSO A JUÍZOS EQUITATIVOS:
15. E ainda que o Tribunal a quo não tivesse decidido absolver o Réu da totalidade dos pedidos, o que apenas se admite por cautela de patrocínio, não poderia ter recorrido a um “juízo de equidade”, que nem minimamente fundamentou, para achar o valor de 3.000,00€ a título de redução do preço.
16. Afirma o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido em 10/12/2019, disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/80861c7231e16cb2802584cd0053d72c?OpenDocument , que o recurso à equidade é possível “quando se encontre esgotada a possibilidade de recurso aos elementos com base nos quais se determinaria com precisão o montante dos danos”.
17. Do mesmo modo que a Autora juntou, com a sua Petição Inicial, um “diagnóstico” de uma oficina com relato dos problemas, também deveria ter juntado um orçamento que contemplasse o custo da respetiva reparação dos danos que alegou.
18. Mesmo à falta destes elementos, tinha o Tribunal o poder de ordenar uma perícia capaz de esclarecer o custo de desvalorização do veículo ou o custo efetivo de uma reparação dos danos alegados, pelo que não lhe era lícito o recurso a um juízo de equidade para determinar tal quantificação, porque não se inteirou, minimamente, de factos concretos capazes de justificar o valor indemnizatório fixado.
19. Mas mesmo se lhe fosse lícito o recurso a um juízo equitativo, bastaria fazer uma pequena e simples pesquisa na internet, numa qualquer loja de peças online, para verificar que um filtro de partículas novo para o veículo em questão custaria entre 400€ a pouco mais de 600€, valor a que acresceriam, no máximo, 200€ a 250€ de mão-de-obra para a respetiva montagem, pelo que, nem assim, o valor fixado tem qualquer razão de ser.
INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DE USO COM RECURSO A JUÍZOS EQUITATIVOS:
20. Quanto à condenação do Réu a pagar o valor de 750,00€ a título de indemnização pela privação de uso, também aqui a Autora não demonstrou qualquer factualidade, além de que tem sido entendimento recente da jurisprudência superior que não basta a mera privação de uso para existir obrigação de indemnizar, sendo necessário alegar e provar que a privação do uso do veículo, durante um certo período, causou determinado prejuízo ao lesado.
21. Estava, assim, vedado ao Tribunal a quo o recurso a um juízo equitativo para determinação da indemnização pela privação do uso do veículo, porquanto competia à Autora a alegação e prova de tais factos, o que não fez.
22. Como tal, deveria o Tribunal a quo ter julgado a contestação do Réu totalmente procedente, por provada, devendo ter sido o Réu absolvido da totalidade dos pedidos formulados pela Autora, o que se requer a V/ Exas. que decidam, com as legais consequências.
23. A sentença recorrida viola, entre outros, o disposto no artigo 607.º n.º 4 do Código de Processo Civil e artigos 4.º, 344.º n.º 2, 483.º n.º 1 e 799.º, todos do Código Civil.
Pretende assim a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue improcedentes os pedidos formulados pela autora.
A autora, notificada das novas conclusões sintetizadas, entende que o réu não correspondeu ao convite que lhe foi efetuado no sentido de uma adequada sintetização e considera que as conclusões continuam a ser complexas e prolixas, impondo-se a rejeição total do recurso ao abrigo do art. 639º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil.
Cumpre então apreciar e decidir.
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QUESTÃO PRÉVIA
A autora/recorrida vem agora pugnar pela rejeição total do recurso nos termos do art. 639º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil, por entender que o réu/recorrente não correspondeu ao convite que lhe foi formulado no sentido de proceder à sintetização das conclusões da sua alegação recursiva.
Com efeito, não correspondendo o recorrente ao convite – e mantendo-se as deficiências que foram identificadas no anterior despacho – não se conhecerá do recurso na parte afetada.
Não pode, todavia, ignorar-se que a satisfação, mais ou menos adequada, daquele convite não pode desligar-se da necessidade de dar prevalência a aspetos substanciais em detrimento de outros de natureza formal.
Conforme escreve ABRANTES GERALDES (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 3ª ed., pág. 134) “…depois de proferir o despacho de convite ao aperfeiçoamento e de analisar a actuação do recorrente e a eventual resposta do recorrido, em vez da extracção automática de efeitos tão gravosos como a rejeição do recurso, na parte afectada pelas irregularidades, o relator deve ponderar de novo, dentro do seu prudente critério e com recurso aos princípios gerais do processo civil, qual a solução que mais se ajusta à concreta situação.”
Ora, a forma como o réu/recorrente correspondeu ao convite efetuado pelo tribunal não foi a ideal, porquanto as conclusões formuladas continuam a não satisfazer por inteiro as exigências de sintetização que são previstas no art. 639º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
Poder-se-á afirmar que se situam num patamar mínimo de síntese e, por esse motivo, e ainda porque uma eventual rejeição total do recurso seria uma solução anormalmente penalizante para o réu/recorrente, desajustada da situação concreta, ir-se-á proceder ao conhecimento “in totum” do recurso interposto.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Reapreciação da decisão da matéria de facto;
II A garantia de bom funcionamento prestada pelo vendedor (réu);
IIIO abuso do direito;
IVFixação com base na equidade dos valores referentes à redução do preço (3.000,00€) e à indemnização pela privação do uso do veículo (750,00€).
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A matéria de facto dada como provada na sentença recorrida é a seguinte:
1. A Autora é uma sociedade comercial, que se dedica, entre outras, à actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem.
2. O Réu é um empresário em nome individual, que opera no giro comercial sob a designação de “P...” e se dedica à comercialização de veículos automóveis usados.
3. No pretérito dia 13 de Abril de 2019, a Autora comprou ao Réu, um veículo ligeiro de mercadorias, da marca Mercedes, modelo ..., chassis n.º..., de cor branca, a gasóleo e matrícula ..-RP-...
4. No estado de usado e pelo preço de €13.000,00 (treze mil euros).
5. A Autora recorreu a empréstimo bancário.
6. Com efeito, em momento anterior à data da compra e venda da viatura em apreço, a Autora subscreveu um contrato de mútuo com fiança, no aludido valor de €13.000,00 (treze mil euros), junto da instituição de crédito Banco ...,
7. no seguimento do qual a Autora acordou pagar a quantia mutuada àquela instituição de crédito, em 36 prestações mensais e sucessivas, no valor mensal de €447,59, acrescido das respectivas comissões e impostos,
8. crédito este utilizado para pagar ao Réu o preço pela compra do supra citado veículo, tanto mais que, nessa mesma data subscreveu declaração dirigida à Banco ... a solicitar que o montante do financiamento fosse pago directamente ao Réu, por meio de cheque ou transferência bancária.
9. O Réu entregou à Autora um certificado de garantia, através do qual acordou com a Autora garantir pelo período de 12 (doze) meses, entre outros, a reparação gratuita ou substituição das peças do motor e da caixa da viatura.
10. Nos finais de Abril de 2019, a Autora comunicou ao Réu que a viatura estava a perder óleo pela junta da admissão, não acendia a luz da resistência, tinha permanentemente acesa a luz do filtro de partículas e em circulação perdia força motriz.
11. De imediato o Réu solicitou a viatura em causa, por forma a colocá-la na oficina, para que fossem reparados os defeitos apontados.
12. A Autora, por intermédio do mandatário subscritor endereçou email ao Réu a 17 de Maio de 2019, onde lhe dá nota que a viatura adquirida estava a perder óleo pela junta da admissão, não acendia a luz da resistência, tinha permanentemente acesa a luz do filtro de partículas e em circulação perdia força motriz e solicitou uma resolução urgente da situação.
13. Na sequência do email de 17 de Maio de 2019, o Réu prontificou-se, desde logo, por contacto telefónico com o Autor, a verificar se o veículo tinha algum problema, tendo-lhe solicitado que entregasse o veículo na oficina designada para o efeito, tendo logo dado ordem à oficina para que, em caso positivo, procedesse à sua reparação, nos termos garantidos, a expensas do Réu.
14. Em poucos dias, que ora não consegue precisar, o veículo ficou reparado e foi devolvido ao Autor, ainda nesse mês de Maio de 2019.
15. [A] Autora, por intermédio do mandatário subscritor dirige novo email ao Réu, renovando o email anterior (17/05) e concedendo o prazo de 8 (oito) dias para a reparação da viatura, sob pena de resolução contratual e pedido indemnizatório adicional pelos dias em que a viatura esteve parada.
16. Nesse mesmo dia 04 de Junho de 2019, o Réu respondeu ao mandatário da Autora, asseverando que sempre se prontificou a resolver o problema junto da oficina e que nunca se haviam recusado a resolver a situação e que se a viatura não está em condições o Sr. CC (gerente da A.) tinha de a levar novamente à oficina e reclamar, mais informando que os serviços de oficina são pelos mesmos pagos e que se o serviço não está em condições tem de ficar.
17. Ao que de imediato a Autora, por intermédio do seu mandatário e no mesmo dia 04 de Junho de 2019, respondeu ao Réu que a Autora já tinha colocado a viatura na oficina indicada pelo Réu e que, apesar disso, a mesma é-lhe devolvida com o mesmo problema e que, na sua óptica e para a resolução definitiva das anomalias, é necessário que a mesma seja reparada em oficina da marca.
18. Ao que o Réu, por intermédio do email do dia 05 de Junho de 2019, informa a Autora, por intermédio do mandatário subscritor que a reparação tem de ser feita onde foi paga, pois que para isso é que existe a garantia da oficina pelo trabalho efectuado.
19. Nessa sequência, a Autora entregou a viatura ao Réu a 09 de Julho de 2019.
20. [A] 12 de Julho de 2019 a Autora, por intermédio do mandatário subscritor, volta a interpelar o Réu, porquanto a viatura já havia sido deixada na oficina naquela ocasião e a essa data ainda não se encontrava reparada, pois que a sua falta estava a causar prejuízos à Autora, porquanto, constantemente está impossibilitada de utilizar a viatura nos transportes que tem agendados, tendo ainda sido concedido ao Réu que concluísse a reparação até 15/07/2019.
21. Na sequência do email de 25 de Julho de 2019, enviado pelo Advogado do Autor, o Réu respondeu-lhe, efectivamente, em 26 de Julho de 2019, tendo dito que a viatura estava pronta e que a Autora poderia proceder ao seu levantamento assim que o pretendesse, alertando ainda para o facto de a viatura ser usada e, como é normal, existir desgaste de determinadas peças, sendo que os problemas detectados se encontravam resolvidos.
22. A Autora a expensas próprias mandou efectuar um diagnóstico à viatura.
23. Sob o n.º 1410/19.5T8AMT do Juízo Local Cível de Amarante do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, correram uns autos de notificação judicial avulsa, em que são Requerente a aqui Autora e Requerido o aqui Réu.
24. A 17 de Outubro de 2019 foi o Réu notificado, do teor da supra citada notificação judicial avulsa, de onde consta, designadamente o seguinte:
“Termos em que requer a V. Exa. se digne ordenar a notificação judicial avulsa do Requerido, do teor do presente articulado e de que:
1. No prazo de 15 (quinze) dias deve proceder à substituição da viatura de matrícula ..-RP-.. vendida à requerente, por outra de iguais características e isenta de defeitos e anomalias que a impeçam de ser utilizada para o fim a que se destina.
Ou,
2. No mesmo prazo devolver à requerente a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), correspondente ao previsível que a mesma tenha de suportar pela reparação integral dos defeitos e anomalias denunciados, operando-se por esta forma a redução do preço.
Ou,
3. Não procedendo como se requer em 1.º e 2.º, deve considerar definitivamente resolvido o contrato de compra e venda da viatura ..-RP-.., celebrado com a requerente e deverá proceder à devolução integral do preço recebido no prazo máximo de 8 (oito) dias, sem prejuízo dos danos e prejuízos que a paralisação da viatura causou na actividade económica da requerente.
Em qualquer dos casos:
4. Deve o requerido ser notificado, para no prazo de 15 (quinze) dias, enviar para a sede da requerente, o original da factura que emitiu aquando da concretização do negócio e a que a mesma nunca teve acesso e necessita de apresentar na sua contabilidade.
Tudo com a advertência de que, caso assim não proceda, tal determinará a imediata instauração de acção judicial, com vista a obter a sua condenação e futura execução nesse sentido.”
25. Por carta datada de 29 de Outubro de 2019 e recepcionada a 30/10/2019, o Réu respondeu ao teor da notificação judicial avulsa que lhe foi efectuada, alegando para o efeito e em síntese que: os problemas detectados no veículo foram por si reparados, sem que tivesse exigido qualquer contrapartida da Autora; desconhecem o teor do relatório e não se vinculam ao mesmo; estão disponíveis para solucionar qualquer problema que surja na viatura comercial.
26. Concluem a sua missiva dizendo que não vislumbram qualquer razão para a substituição da viatura, nem mesmo para a redução do preço ou mesmo a resolução do contrato, solicitando, no entanto, a apresentação da viatura no stand para reparação das anomalias que venham a ser encontradas.
27. No pretérito mês de Novembro deixou a viatura ao encargo do Réu, para que fossem solucionados os problemas.
28. Não obstante, quando a viatura foi devolvida à Autora e após a sua utilização a luz de avarias continuava acesa, perdia óleo, indicava problemas no filtro de partículas, o veículo perdia abruptamente força motriz, não puxa, perde força e não consegue circular na via pública com segurança.
29. A viatura encontra-se actualmente aparcada, sem qualquer tipo de utilização.
30. Por força desta situação a Autora teve de reorganizar o seu trabalho.
31. A Autora é detentora de Licença Comunitária para o transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem.
32. Em pouco mais de 3 meses, a Autora fez cerca de 50.000 km na carrinha em causa.
33. O veículo aludido em 3 apresentava, em 11/11/2019, 284654km.
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Não se provaram os seguintes factos:
1. O Réu sempre tenha sabido do destino que a Autora ia dar à viatura em causa, aliás,
2. asseverou-lhe que a mesma, apesar de usada, não detinha qualquer problema ou anomalia, encontrando-se em perfeito estado de conservação e funcionamento.
3. O Réu soubesse que a viatura em apreço se destinava ao exercício da actividade comercial da Autora.
4. Que se tenha apurado, no diagnóstico feito pela Autora que os defeitos /anomalias sejam: “Luz de avaria acesa, o veículo trabalha em modo de emergência devido ao erro fixo de pressão do filtro de particular; tem também erros esporádicos de pressão no turbo e tem folga excessiva no diferencial que provoca batidas nas trocas de velocidade e zumbido em esforço”.
5. A Autora tenha necessitado da referida viatura para fazer face ao aumento do transporte rodoviário de mercadorias que faz o seu escopo social.
6. Desde a compra da viatura (Abril de 2019) até à presente data, a viatura poucas vezes tenha circulado por ordem e direcção da Autora.
7. A Autora tenha recusado o transporte de várias encomendas, porque ficou sem um meio de transporte para satisfazer esses pedidos.
8. Assim que comprou a viatura ao Réu, a Autora logo tenha tratado de proceder ao seu licenciamento junto do IMT.
9. Dada a situação que se gerou em torno da viatura em causa, e a impossibilidade definitiva da sua utilização, a Autora tenha tido de providenciar pela aquisição de nova viatura, isto é, o veículo Renault, modelo ..., de matrícula ..- XO-..,
10. viatura esta que foi adquirida para fazer face às necessidades da firma Autora e para suprir aquilo que a mesma pretendia quando comprou a viatura em causa nestes autos ao Réu.
11. Após a aquisição desta viatura, a Autora teve de providenciar pela mudança da licença de transporte rodoviário de mercadorias para esta viatura da licença que já havia sido concedida à viatura comprada ao Réu, para o que teve gastos junto do IMT e do técnico responsável.
12. Se encontre a Autora, nos dias de hoje a suportar uma prestação mensal de mais de €450,00 decorrentes do empréstimo bancário para financiar a aquisição da viatura ao Réu.
13. Nunca o Réu celebraria tal pacto de garantia com o Autor se soubesse que esta pretendia efectuar transportes internacionais de mercadorias com aquele veículo.
14. Que o veículo, após a última intervenção da Ré, continue a trabalhar em modo de emergência devido a um erro fixo de pressão do filtro de partículas, que tenha erros esporádicos de pressão no turbo; folga excessiva no diferencial o que provoca batidas nas trocas de velocidades e zumbido em esforço; e fique imobilizado de circular pelos próprios meios.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I Reapreciação da decisão da matéria de facto
O réu/recorrente, nas suas alegações de recurso, insurgiu-se contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, pretendendo que à mesma sejam aditados os seguintes factos:
- Facto 34 - O veículo em causa tem matrícula do ano 2008, sendo que quando o réu o vendeu à autora já tinha cerca de 11 anos;
- Facto 35 - Quando o veículo foi vendido pelo réu à autora, em 13 de abril de 2019, este tinha uma quilometragem de 210.000 quilómetros;
- Facto 36 - Em 11 de novembro de 2019, o veículo tinha 284.654 km;
- Facto 37 - No período que mediou entre 13 abril de 2019 e 11 de novembro de 2019, o veículo fez 74.654 quilómetros, numa média mensal superior a 10.000 quilómetros mensais;
- Facto 38 - A autora não efetuou, no período entre 13 de abril de 2019 a 11 de novembro de 2019, qualquer manutenção ordinária ao seu veículo, nomeadamente mudanças de óleo, filtros, entre outros;
- Facto 39 - Aquando da compra do veículo ao réu, em 13 de abril de 2019, a autora ocultou que o iria utilizar para fazer transportes internacionais, nomeadamente para a Suíça e França, ida e volta, com viagens de regularidade semanal;
- Facto 40 [sendo este o facto 13 dos factos dados como não provados]: Nunca o réu celebraria tal pacto de garantia com a autora se soubesse que este pretendia efetuar transportes internacionais de mercadorias com aquele veículo.
Para fundamentar este aditamento factual indica excertos do depoimento do legal representante da autora, CC, da sócia da autora, DD, e das testemunhas EE, FF e BB, para além de fazer referência a diversa prova documental [doc. nº 1 junto com a petição inicial; documento junto pelo réu no requerimento que apresentou em 9.11.2020; documento junto em audiência pela testemunha BB].
Por seu turno, nas suas contra-alegações a autora/recorrida referiu também passagens dos depoimentos prestados por CC, DD, EE e FF.
Vejamos.
a) Quanto ao facto referenciado com o nº 34 [O veículo em causa tem matrícula do ano 2008, sendo que quando o réu o vendeu à autora já tinha cerca de 11 anos] corresponde ao que se mostra alegado pelo réu no art. 12º da contestação, onde se diz que “…a carrinha…foi matriculada em maio de 2008…aquando da compra já contava com 11 anos…”.
Ora, na declaração emitida pelo réu em 13.4.2019 – doc. nº 1 junto com a petição inicial – refere-se que a viatura em causa é do ano 2008/05 e no documento junto em 26.10.2020 pelo autor – certificado de inspeção periódica, emitido pelo IMT[1] em 30.5.2019 – consigna-se que a data da sua 1ª matrícula é 28.5.2008.
O documento junto pelo réu em 9.11.2020 refere também 2008 como ano de matrícula da viatura.
Como tal, este facto deve ser aditado à factualidade provada.
b) Relativamente ao facto referenciado com o nº 35 [Quando o veículo foi vendido pelo réu à autora, em 13 de abril de 2019, este tinha uma quilometragem de 210.000 quilómetros] trata-se de matéria que não foi alegada pelo réu na contestação e que, por esse motivo, tendo também em conta o princípio da concentração da defesa na contestação – cfr. art. 573º do Cód. de Proc. Civil – não poderá ser considerado.
c) No tocante ao facto nº 36 [Em 11 de novembro de 2019, o veículo tinha 284.654 km] verifica-se que o mesmo já consta da factualidade dada como assente sob o nº 33.
d) O facto nº 37 [No período que mediou entre 13 abril de 2019 e 11 de novembro de 2019, o veículo fez 74.654 quilómetros, numa média mensal superior a 10.000 quilómetros mensais] reporta-se a matéria que não foi alegada na contestação e que, face ao teor do facto nº 32, se mostra irrelevante para a decisão da causa.
e) Quanto aos factos que o réu/recorrente pretende ver provados com os nºs 38 [A autora não efetuou, no período entre 13 de abril de 2019 a 11 de novembro de 2019, qualquer manutenção ordinária ao seu veículo, nomeadamente mudanças de óleo, filtros, entre outros], 39 [Aquando da compra do veículo ao réu, em 13 de abril de 2019, a autora ocultou que o iria utilizar para fazer transportes internacionais, nomeadamente para a Suíça e França, ida e volta, com viagens de regularidade semanal] e 40 [Nunca o réu celebraria tal pacto de garantia com a autora se soubesse que este pretendia efetuar transportes internacionais de mercadorias com aquele veículo] procedeu-se à audição dos depoimentos de que este indica excertos.
O legal representante da autora, CC, foi ouvido em declarações de parte. Disse que a autora transporta material para a Suiça e França. Acordaram a garantia normal para um carro usado – um ano com motor e caixa. Quanto à manutenção dos carros da autora disse que nuns casos fazem a 40.000 km, noutros a 25.000 km e noutros ainda a 15.000 km. Na carrinha dos autos fez mudanças de óleo. De qualquer modo referiu que aquela avaria não tem nada a ver com revisões; é tudo mecânico. Mais disse que quando fizeram o empréstimo ficou lá que o carro era para transporte de mercadorias.
A sócia da autora, DD, foi também ouvida em declarações de parte. No stand, ao verem a carrinha, disseram que era para o trabalho, para fazer transportes. A firma autora faz transporte de mercadorias, nacional e internacional. Quem tratou do crédito “foram eles” (o réu). Mais referiu que fazem as manutenções (troca de óleo), sendo um empregado da autora que trata disso, por perceber “bem daquilo”, estando a declarante sempre por perto. Esse empregado mete lá um papel a dizer que tem de mudar o óleo quando tiver x quilómetros. Na carrinha dos autos fizeram manutenção quando havia necessidade de mudar de óleo, o que aconteceu algumas vezes. Normalmente mudam o óleo de duas em duas viagens. O óleo que utilizam dá para 10.000 km.
A testemunha EE é motorista da autora e conduziu a carrinha dos autos. A autora dedica-se ao transporte de mercadorias para o estrangeiro e também em Portugal. Quanto às manutenções dos veículos disse que muitas vezes as faz, se for óleo e calços. No que se refere ao veículo dos autos referiu que chegou a fazer troca de óleo, mas não sabe quantas vezes. A altura certa para trocar o óleo era sempre que fazia 15.000 km, escrevendo-se num papel, que se deixa ao pé do motor, qual era esse momento. Também mudou calços. Tal como se mudaram filtros de ar condicionado e de óleo, mas isso é outra pessoa que vai lá fazer o serviço.
A testemunha FF por vezes trabalha com o réu, tendo estado presente quando foi feito o negócio. Foi a testemunha que mostrou a carrinha ao comprador (o gerente da autora). Este disse que a carrinha era para ele. Não falou que fazia muitos quilómetros e viagens para o estrangeiro. Mas a testemunha também não lhe fez qualquer pergunta quanto à utilização que ia dar à carrinha, embora tenha referido que “aquilo é uma carrinha de transporte”.
A testemunha BB tem uma oficina do ramo automóvel e o réu é seu cliente, mas nada disse de relevante no tocante aos pontos factuais ora em apreciação.[2]
Ora, da análise destes depoimentos, decorre que nenhum destes três factos – nºs 38, 39 e 40 – deverá ser tido como provado.
Quanto ao nº 38 embora a autora não tenha junto ao processo documentação comprovativa da manutenção do veículo após a sua aquisição, por não a possuir[3], não pode deixar de se salientar que CC e DD, ouvidos em declarações de parte, referiram que essa manutenção foi feita, designadamente no que toca à mudança do óleo, através de um seu empregado.
Por seu turno, a testemunha EE, empregado da autora, disse que no tocante à viatura dos autos fez troca de óleo e também lhe mudou os calços, tal como uma outra pessoa que lá vai mudou filtros de ar condicionado e de óleo.
Neste contexto probatório não pode ser dado como assente que após a aquisição do veículo a autora não lhe tenha feito qualquer manutenção ordinária, nomeadamente mudanças de óleo e filtros.
Quanto ao nº 39 a prova produzida em audiência não é de molde a que se dê como provado que a autora, aquando da compra, ocultou perante o réu que iria fazer com a carrinha transporte internacional de mercadorias. O depoimento da testemunha FF é insuficiente para tal efeito, sendo que, por outro lado, sempre haverá que atentar na circunstância da viatura em causa – Mercedes ... – se destinar, pelas suas próprias características, ao transporte de mercadorias.
Por último, quanto ao nº 40 nada nos autoriza a concluir, perante os depoimentos prestados em audiência que sobre a matéria ora em causa nada disseram, que o réu não teria emitido certificado de garantia se soubesse que a autora pretendia efetuar com o veículo transportes internacionais de mercadorias.
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Em suma:
A impugnação factual realizada pelo réu/recorrente obterá parcial procedência e, em consequência, será aditado à factualidade provada o seguinte facto com o nº 34:
O veículo em causa tem matrícula do ano 2008, sendo que quando o réu o vendeu à autora já tinha cerca de 11 anos.”[4]
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II – A garantia de bom funcionamento prestada pelo vendedor (réu)
Nas suas alegações de recurso, o réu sustenta que a autora tinha a obrigação de demonstrar que durante o tempo de uso fez as necessárias manutenções ao veículo, nomeadamente mudança de óleos e filtros, para que este pudesse funcionar devidamente.
Como a autora não fez prova de ter efetuado tais manutenções, entende o réu/recorrente que foi a sua utilização muito intensa e negligente que deu causa à avaria do veículo, o que exclui a responsabilidade do vendedor nessa avaria.
Contra esse entendimento se insurge, em sede de resposta, a autora que, em sintonia com a sentença recorrida, salienta a circunstância de o réu ter emitido, aquando da venda da viatura, um certificado de garantia relativamente ao funcionamento da mesma pelo período de 12 meses.
Vejamos.
Do nº 9 da factualidade provada decorre que o réu entregou à autora um certificado de garantia, através do qual, acordou com a autora garantir pelo período de 12 (doze) meses, entre outros, a reparação gratuita ou substituição das peças do motor e da caixa da viatura.
Estatui o seguinte o art. 921º do Cód. Civil, no seu nº 1:[5]
«Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.»
A garantia aqui referida é principalmente uma garantia de duração. Tanto pelo sentido usual dos termos – bom funcionamento -, como pelas origens históricas da figura, na doutrina e jurisprudência italianas, esta garantia visa de modo especial a venda de máquinas.
Importa esta garantia para o vendedor uma de duas obrigações: a de reparar a coisa ou, se a reparação não for possível e a coisa for fungível, a de a substituir.
Não se exige aqui a culpa do vendedor, nem se exige que o comprador esteja em erro, tratando-se antes do cumprimento de uma obrigação assumida no contrato - Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. III, 3ª ed., pág. 221.
Por seu turno, PEDRO ROMANO MARTINEZ (in “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos”, 2ª ed., pág. 141) escreve que “se for dada garantia de bom funcionamento, nos termos do art. 921º CC, estabeleceu-se uma responsabilidade sem culpa do vendedor. Assim, se o alienante vendeu o bem dando garantia de bom funcionamento, por força desta cláusula, sendo defeituosa a coisa, mesmo que o vendedor não tenha culpa, é responsável: trata-se de uma responsabilidade objectiva.”
A finalidade desta garantia é a de fixar um período de provação ou de “rodagem” da coisa durante o qual o vendedor se responsabiliza que na sua utilização normal e correta nenhum defeito de funcionamento ocorrerá.
Neste sentido escreve-se o seguinte no Acórdão do STJ de 26.4.2012 (proc. 1386/06.9TBLRA.C1.S1, relator Serra Baptista, disponível in www.dgsi.pt.):[6]
“Valendo por isso dizer que o vendedor assegura por certo período um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento por causa a ela inerente e dentro do uso normal da mesma.
Bastando, assim, ao comprador, beneficiário da garantia em vigor, fazer a prova do mau funcionamento da coisa durante o período de duração da garantia, sem necessidade de identificar ou de individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado, nem de provar a sua existência no momento da entrega.
Incumbindo antes ao vendedor, que queira ilibar-se de responsabilidade, fazer a prova que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa, assim ilidindo a presunção da anterioridade ou contemporaneidade do defeito (em relação à entrega) que caracteriza a garantia convencional de bom estado e bom funcionamento, sendo imputável ao comprador (v. g. má utilização), a terceiro ou devida a caso fortuito[7].
O art. 921.º não exige, assim, por banda do comprador, a identificação da causa do defeito, a anterioridade ou contemporaneidade do mesmo, nem a culpa do vendedor.
Incumbindo àquele, tão só, provar o defeito da coisa durante o prazo da garantia.”
Também no mesmo sentido escreve-se o seguinte no Acórdão do STJ de 6.9.2011 (proc. 4757/05.4TVLSB.L1.S1, relator Alves Velho, disponível in www.dgsi.pt):
“Mediante a concessão da “garantia” o vendedor assegura, pelo período da sua duração, o bom funcionamento da coisa, assumindo a responsabilidade pela sanação das avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem.
Como, nestes casos, o vendedor assume a “garantia de um resultado” bastará ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da mesma, sem necessidade de identificar a respectiva causa ou demonstrar a respectiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade (obrigação de reparação, troca, indemnização) opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa (afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento) e imputável a acto do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito. (cfr. CALVÃO DA SILVA, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4ª ed., 65; ac. STJ, de 03/4/2003 – proc. 03B809)”.
De regresso ao caso dos autos, tendo o réu como vendedor emitido garantia de bom funcionamento do veículo pelo período de 12 meses, verifica-se que a compradora (autora) logrou provar que esse veículo apresentava defeito, uma vez que este, mesmo após as reparações que lhe foram sendo efetuadas, continuava com a luz das avarias acesa, perdia óleo, indicava problemas no filtro de partículas, perdia abruptamente força motriz, não puxava, perdia força e não conseguia circular na via pública com segurança – cfr. nº 28.
Sucede que o réu (vendedor) não demonstrou que a concreta causa desse mau funcionamento fosse posterior à entrega do veículo à autora ou que decorresse de uso anormal que lhe tivesse sido dado.
Com efeito, apenas se provou que com a viatura em causa, em pouco mais de 3 meses, a autora fez cerca de 50.000 km – cfr. nº 32 -, o que significa que lhe foi conferida uma utilização intensa, mas não anormal, atendendo a que se trata de um veículo ligeiro de mercadorias de marca Mercedes, por todos reconhecida como uma marca de elevada durabilidade e fiabilidade.
Ou seja, o uso intenso dado à viatura adquirida pela autora, razoável em atenção às suas características, não é de molde a excluir a responsabilidade do réu.
E quanto às manutenções do veículo (mudanças de óleo e filtros) sempre importará referir que, tal como se expôs em I, e), não foi feita prova donde resultasse que estas não foram feitas.
Em resumo, existindo, no caso “sub judice”, garantia de bom funcionamento da viatura, pelo período de 12 meses, a compradora (autora) conseguiu provar, como lhe cabia, o seu mau funcionamento e, por outro lado, o vendedor (réu) não logrou demonstrar que a causa desse mau funcionamento fosse resultado de má utilização por parte da autora, de ato de terceiro ou decorresse de caso fortuito.
Improcede assim, neste segmento, a argumentação recursiva do réu.
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IIIO abuso do direito
O réu/recorrente, em sede recursiva, continua a sustentar que a autora agiu em abuso do direito, salientando, para tal efeito, que esta ocultou a circunstância de estar a comprar um veículo para com ele fazer viagens de milhares de quilómetros, o que, sendo conhecido do réu, faria com que este não emitisse qualquer garantia, para além de a autora não ter cumprido os planos de manutenção da viatura.
Desde logo será de referir que todos estes pontos factuais, como se alcança de I, e), foram dados como não provados, de tal forma que a explanação feita na sentença recorrida no sentido da não ocorrência de uma situação de abuso do direito não merece censura.
Vejamos.
Dispõe o art. 334º do Cód. Civil, sob a epígrafe «abuso do direito» que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»
Para que haja abuso do direito exige-se que o excesso seja manifesto. Os tribunais só podem, por isso, fiscalizar a moralidade dos atos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. MANUEL DE ANDRADE refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (in “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 63) e às “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”.
Ora, para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade. Já no que respeita ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei – cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., págs. 298/9.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respetivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos. O agir de boa-fé envolve a atuação nas relações em geral e em especial no quadro das relações jurídicas, honesta e conscienciosamente, isto é, numa linha de correção e probidade, não procedendo de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável tolera. Os bons costumes são, por seu turno, o conjunto de regras de comportamento relacional, acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade em determinado tempo.
O abuso do direito constitui, pois, uma fórmula tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas. Funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica.
No abuso do direito há uma atuação humana estritamente conforme com as normas imediatamente aplicáveis, mas que, tudo visto, se apresenta ilícita por contrariedade ao sistema, no seu todo - Cfr. MENEZES CORDEIRO, “Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “in Agendo””, Almedina, 2006, pág. 33.
Por seu lado, para ALMEIDA COSTA (in “Direito das Obrigações”, Almedina, 11º ed., pág. 83) o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Ocorrerá tal figura de abuso quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social.
No caso dos autos, quanto à eventual ocorrência de uma situação de abuso do direito, apenas se apurou que o veículo em causa, com matrícula do ano de 2008, foi adquirido pela autora no estado de usado, pelo valor de 13.000,00€, tendo uma quilometragem seguramente superior a 200.000 km.[8]
É certo que daqui resulta que o seu adquirente não poderia esperar que a prestação deste veículo fosse semelhante ao desempenho de uma viatura nova, mas se este não puxa, perde óleo, perde força abruptamente ou não circula na via pública com segurança não pode deixar de se concluir que a finalidade com que o mesmo foi adquirido se mostra frustrada.
Por isso, não é abusivo que a autora (compradora) exerça os direitos que para si resultam do disposto no art. 921º, nº 1 do Cód. Civil.
Não se ignora que na venda de automóveis usados se terá que ter em atenção o tempo da utilização precedente e a idade do veículo. Porém, se um bem usado pressupõe um desgaste normal em função da sua utilização anterior ou do tempo, esse desgaste não poderá nunca pôr em causa a sua funcionalidade e performance, tendo em consideração o fim a que o mesmo é destinado. E, o mínimo que se pode esperar de um veículo automóvel, ainda que adquirido em segunda mão, é que circule sem problemas e não que deixe de puxar, que perca óleo e que perca força abruptamente.
É inequívoco que o comprador de um automóvel usado deverá estar consciente de que o mesmo terá sido sujeito ao desgaste correspondente à sua antiguidade e aos quilómetros percorridos e que assim, por exemplo, o seu interior poderá evidenciar esse desgaste nomeadamente quanto aos estofos ou que os pneus e outras peças de desgaste mais rápido, tendo uso, poderão carecer de substituição num prazo mais curto do que se fossem novos.[9]
Todavia, impõe-se sempre que este veículo, embora usado, esteja apto a funcionar, de tal forma que se não está – e se a avaria que determina a paralisação do veículo ocorre durante o período da garantia de bom funcionamento - o comprador poderá naturalmente acionar o vendedor de acordo com o estatuído no art. 921º, nº 1 do Cód. Civil.
Por conseguinte, tal como se entendeu na sentença recorrida, a autora ao intentar a presente ação não excedeu os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, pelo que não atuou em abuso do direito.
Como tal, naufraga, também nesta parte, o recurso interposto.
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IV - Fixação com base na equidade dos valores referentes à redução do preço (3.000,00€) e à indemnização pela privação do uso do veículo (750,00€)
Por fim, nas suas alegações de recurso o réu/recorrente vem sustentar que no tocante à redução do preço do veículo a Mmª Juíza “a quo” fê-la com base na equidade, mas sem se apoiar minimamente em quaisquer factos concretos que pudessem justificar o valor fixado – 3.000,00€ -, tendo dado um “salto no desconhecido”.
O mesmo alegou o réu/recorrente quanto à verba arbitrada a título de indemnização pela privação de uso do veículo - 750,00€ -, também fixada com apoio na equidade e não ancorada em quaisquer factos concretos, designadamente por não se ter apurado quantos dias é que a autora esteve efetivamente privada do uso do veículo.
O réu, por ausência de elementos factuais que permitam sustentar estas duas verbas, pugna pela sua eliminação, admitindo, porém, quanto à redução do preço a atribuição de uma importância que não exceda os 850,00€.
Na sentença recorrida fundamentou-se a atribuição destas duas verbas pela seguinte forma:
“Entendemos que nada obsta, in casu, a recorrer a juízo de equidade.
(…) pese embora não se tenha apurado qual a concreta desvalorização do veículo, tendo em consideração todas as circunstâncias em apreço nos autos (designadamente a própria conduta das partes e as tentativas de reparação feitas pelo Réu) e sem olvidar que o momento determinado para o cálculo da redução é o da entrega, mas que no caso concreto o defeito não se manifestou de imediato, tendo permitido que a Autora fizesse os Kms em apreço nos autos, entendemos que o valor de €3.000,00, dentro de um juízo de equidade, se reputa como justo e adequado para efeitos de redução do preço.”
“No caso dos autos e atentos os factos que resultaram provados, temos que os danos se reconduzem, em suma, à imobilização do veículo, perfilhando aqui o Tribunal do entendimento, que cremos maioritário, de que a privação é geradora de dano ou prejuízo, podendo constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar e uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo disposto no artigo 1305º do Código Civil.
(…)
Desta feita entendemos que o valor equitativo a fixar para efeitos de privação do uso se cifra em €750,00 e tendo aqui, uma vez mais, em consideração a conduta das partes em todo o processo pós-venda e a utilização dada ao veículo.”
O art. 566º, nº 3 do Cód. Civil, invocado na sentença recorrida, diz-nos que «se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados».
Ora, o que se dispõe nesta norma não dispensa o lesado de alegar e provar os factos que revelem a existência de danos e permitam a sua avaliação segundo um juízo de equidade.[10]
Sobre esta norma escreve-se o seguinte no sumário do Ac. do STJ de 28.10.2010 (proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1, relator Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt.):
“O apelo a juízos equitativos para obter uma exacta e precisa quantificação de danos patrimoniais resultantes da inutilização ou privação de um bem material – consentido pelo art. 566º, nº 3, do CC – desempenha uma função meramente complementar e acessória, representando um instrumento para suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um dano, inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exacto montante – pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado, não devendo o juízo equitativo representar um verdadeiro e arbitrário “salto no desconhecido”, dado perante matéria factual de contornos manifestamente insuficientes e indeterminados.”
E no texto deste mesmo Acórdão do STJ afirma-se ainda o seguinte sobre a previsão contida no art. 566º, nº 3 do Cód. Civil, a qual supõe o preenchimento de duas condições ou requisitos:
“(…) não estar determinado apenas o «valor exacto» do dano mas terem sido provados «limites» , máximo e mínimo, para esse dano – que não podem considerar-se verificadas quando, no momento do julgamento, ocorre uma essencial indefinição acerca do valor real do dano material sofrido, pressupondo a formulação do juízo complementar de equidade uma base factual minimamente sólida e consistente sobre os valores indemnizatórios em causa: é que, se essa base consistente não existir no processo, a solução legalmente imposta é o proferimento de condenação genérica, relegando-se para ulterior tramitação incidental a concretização do montante exacto e preciso dos danos, por ser de supor que a remoção da situação de dúvida sobre o valor de tal tipo de danos possa razoavelmente ser ainda suprida por uma ulterior actividade probatória, sujeita, aliás, a um particular reforço do inquisitório (…).”[11]
De regresso ao caso dos autos, atentando-se na matéria de facto dada como provada e também na fundamentação genérica adotada pela Mmª Juíza “a quo” para justificar a atribuição equitativa das verbas relativas à redução do preço do veículo e à indemnização pela privação do seu uso, teremos que concluir que os autos não contém um suporte factual minimamente sólido e consistente para servir de base à formulação de um juízo complementar de equidade, que se destinaria a concretizar num valor pecuniário exato um prejuízo cuja dimensão sempre teria que estar, no essencial, suficientemente quantificado em função da prova produzida.
Quanto à redução do preço impor-se-á apurar, de forma pelo menos aproximada, qual o custo da reparação a que o veículo aqui em causa terá que ser sujeito para poder circular de forma satisfatória, de modo a poder cumprir a finalidade para a qual foi adquirido pela autora.
Já no que concerne à indemnização pela privação do uso do veículo importará determinar essencialmente, e também de forma tão segura quanto possível, qual o número de dias em que a autora esteve impedida de o utilizar devido às suas avarias.
Neste contexto, que se caracteriza pela indefinição no que tange às verbas relativas à redução do preço do veículo e à indemnização pela privação do seu uso, entendemos não ser adequado o apelo à equidade, mas essa inadequação não é motivo para absolver o réu de tais pedidos, conforme este pretende em sede recursiva.
A solução que se justifica é antes a da condenação genérica ao abrigo do disposto no art. 609º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil, e por ela se enveredará, o que determina a parcial procedência do recurso interposto e a consequente alteração do decidido.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo réu AA e, em consequência:
- Confirma-se a condenação do réu a pagar à autora “D..., Unipessoal, Lda.” quantias referentes à redução do preço do veículo e à indemnização pela privação do seu uso;
- Relega-se a fixação destas quantias, ao abrigo dos arts. 609º, nº 2 e 358º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil, para ulterior incidente de liquidação.
As custas do recurso e da ação serão suportadas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento que se mantém em 2/3 para a autora e 1/3 para o réu, sem prejuízo de reformulação desta proporção após incidente de liquidação.

Porto, 5.4.2022
Eduardo Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] Instituto da Mobilidade e dos Transportes.
[2] Também não se mostra relevante para estes concretos pontos factuais o documento apresentado em audiência por esta testemunha.
[3] Cfr. requerimento apresentado em 26.10.2020.
[4] Alteração que, conforme se verá adiante, nenhuma repercussão terá na decisão da causa.
[5] O regime do Dec. Lei nº 67/2003, de 8.4., referente à venda de bens de consumo e garantias a ela relativas, não é aplicável ao presente caso, uma vez que a compradora (autora) não é definível como consumidora, por se tratar de uma sociedade comercial que se dedica à atividade de transporte rodoviário de mercadorias e ter adquirido a viatura em causa nos autos para essa atividade.
[6] Citado na decisão recorrida.
[7] Cfr. CALVÃO DA SILVA, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, págs. 62/63.
[8] Embora não tenha sido dado como provado que a quilometragem da viatura à data da sua aquisição pela autora era de 210.000 km, é de concluir que a mesma superava os 200.000 km, conforme flui dos nºs 32 e 33 da factualidade assente.
[9] Cfr. Ac. Rel. Porto de 21.2.2014, proc. 1177/12.8 T2OVR.P1, relatora Maria João Areias, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 584.
[11] Neste sentido, cfr. também o Ac. Rel. Lisboa de 6.4.2017 (proc. 519/10.5 TYLSB-H.L1-2, relatora Ondina Carmo Alves, disponível in www.dgsi.pt.), onde se escreveu o seguinte: “Da conjugação do nº 3 do artigo 566º do C. Civil com o artigo 609º, nº 2 do C.P.C., não pode o Tribunal fazer uma apreciação equitativa dos danos, enquanto houver a possibilidade de esse valor ser averiguado em liquidação ulterior (anterior liquidação em execução de sentença)…”