Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
158/20.2T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO LUÍS CARVALHÃO
Descritores: CONTRATO INTERNACIONAL
LEI APLICÁVEL
SALÁRIO ACORDADO
INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA
Nº do Documento: RP20230123158/20.2T8MTS.P1
Data do Acordão: 01/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; ALTERADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Nada obsta a que o salário seja negociado e previsto num valor anual global, assim como não é imperativo que o pagamento dos subsídios de férias e de Natal sejam pagos de uma vez só.
II - No entanto, em contrato internacional, ao qual se aplica a lei irlandesa, para se concluir que foi acordado o pagamento dos subsídios de férias e de Natal no valor do salário acordado, impõe-se que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, o possa deduzir do acordo realizado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de apelação n.º 158/20.2T8MTS.P1
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Matosinhos – J3



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AA (Autora) instaurou contra “R...)” (Ré) a presente ação, com processo comum, pedindo
a) a condenação da Ré no pagamento do valor global de €81.470,96 relativos aos subsídios de férias (€17.487,98) e de Natal (€17.487,98) não pagos durante a vigência do contrato, acrescidos dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, bem como da formação não ministrada (€1.339,45), das retribuições não pagas durante o período de inatividade (€43.667,58) e de 11 dias de férias não gozados (€1.487,97);
b) no tocante ao período de inatividade, caso não se considere o valor total, deverá a Ré ser condenada em 20% desse valor, ou seja, a 20% de €43.667,58 no total de €8.733,51, reconhecendo-se a existência de um contrato de trabalho intermitente.
c) a condenação da Ré no pagamento, ainda, do valor de €2.000,00 a título de danos não patrimoniais acrescidos dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento;
Fundou o seu pedido alegando, em síntese, que, sendo competentes os tribunais portugueses e aplicável a Lei Portuguesa, a Ré durante a vigência do contrato de trabalho (entre 12/02/2010 e 28/01/2019) nunca lhe pagou subsídio de férias nem subsídio de Natal, bem como nos últimos 3 anos não tem registo de lhe ter proporcionado formação; acresce que a Ré solicitou à Autora que durante determinados meses não recebesse qualquer remuneração, o é ilícito; com a situação de tensão com a Ré, que levaram à saída da Autora como trabalhadora da Ré, sofreu danos não patrimoniais indemnizáveis.

Foi realizada «audiência de partes», e, frustrada a sua conciliação, foi notificada a Ré para poder contestar, apresentando contestação na qual alegou, em resumo, que por acordo com o Sindicato do Pessoal de Voo da Aviação Civil, a Ré concordou em passar a aplicar a legislação nacional às relações laborais com os trabalhadores alocados a bases em Portugal, a partir de fevereiro de 2019, sendo antes desse período a relação laboral regida pelas leis da Irlanda e a sua avaliação sujeita aos tribunais irlandeses; concluiu dever a ação ser julgada totalmente improcedente.

Foi realizada «audiência prévia», sendo determinada a inquirição de testemunhas com vista à apreciação da competência internacional, sendo depois proferido despacho a julgar improcedente a exceção de incompetência internacional invocada pela Ré.
Foi fixado o valor da ação em €33.470,96.
Foi proferido despacho saneador, sendo dispensada a identificação do objeto do litígio bem como a enunciação dos temas de prova.

Realizada «audiência de discussão e julgamento», foi determinado fosse solicitado ao Gabinete de Direito Comparado informação sobre legislação laboral da República da Irlanda em vigor em janeiro de 2020, e após foi proferida sentença decidindo julgar a ação parcialmente procedente, e em consequência:
i) condenar a Ré a pagar à Autora:
a) a retribuição dos dias de férias não gozadas nos anos de 2010 a 2018 por referência ao período de 22 dias de férias anual, ponderando o período anual de trabalho concreto prestado pela autora a partir do ano de 2012 e a retribuição concretamente auferida pela Autora em cada um daqueles anos (de 2010 a 2018), a liquidar posteriormente;
b) a compensação retributiva correspondente a 20% da retribuição base pelos períodos de inatividade nos anos de 2012 e até à cessação do contrato de trabalho, a ser calculada por referência à retribuição base auferida pela Autora em cada um desses anos e aos concretos períodos de inatividade em cada, a liquidar posteriormente;
c) a quantia correspondente a 55 horas de retribuição (por formação profissional não ministrada), a calcular por referência à retribuição que a Autora auferia aquando da cessação do contrato de trabalho, a liquidar posteriormente;
ii) absolver a Ré do demais peticionado.
Não se conformando com a sentença proferida, dela veio a Autora interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[1]:
A. Sem prejuízo da factualidade provada, o Mto Julgador a quo considerou que apesar da Recorrente nunca ter acordado na celebração de qualquer pacto de jurisdição, nem ter aceite o afastamento da aplicação da lei portuguesa, os factos apurados não permitiam concluir por qualquer conduta censurável ou reprovável da Recorrida.
B. Assim, considerou que por força da convenção e do disposto no n.º 1 do artigo 8.º do Regulamento, a lei aplicável ao contrato seria a lei irlandesa mas, no entanto, esta primazia da lei não poderia privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha seria aplicável – a lei portuguesa.
C. Concluiu, ainda, que a legislação laboral portuguesa contém inúmeras disposições imperativas, inderrogáveis e imutáveis pelo contrato individual de trabalho mas, contrariamente ao que seria lógico, veio a assumir a posição de que resultou ter sido vontade das partes incluir na retribuição acordada todas as variantes que poderia influir no valor final da retribuição, apesar de ter dado como provado que a Autora não teve qualquer influência ou poder de negociação na elaboração do contrato.
D. Assim, veio a julgar improcedente o pedido de pagamento de subsídio de férias e de Natal com fundamento de que ponderando que na legislação portuguesa nada obsta a que o salário seja negociado e previsto num valor anual global e que a retribuição acordada entre as partes não fica aquém do valor do salário mínimo nacional nem das retribuições anuais previstas para o setor na contratação coletiva existente à data, é de considerar que a mera ausência de previsão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal não importa uma derrogação material à lei substantiva imperativa portuguesa e à proteção que nela se pretende alcançar.
E. Efetivamente parece-nos indiscutível que a lei irlandesa priva o trabalhador da proteção que lhe é conferida pela lei portuguesa por disposições não derrogáveis, no que concerne aos subsídios de férias e de Natal.
F. Com efeito as disposições do Código do Trabalho que preveem os subsídios de férias e de Natal revestem natureza imperativa e não podem ser afastadas por vontade das partes, a não ser em sentido mais favorável, constituindo prestações obrigatórias (artigo 3.º, n.º 4 do C.T.)
G. Assim, sem dúvida que a lei laboral portuguesa confere ao trabalhador uma proteção mais ampla do que aquela que resultaria da aplicação da lei irlandesa que nem sequer prevê qualquer tipo de pagamento a título de subsídios de férias e de Natal.
H. Também não se aceita que se considere mais favorável a lei que assegura ao trabalhador um maior rendimento pois nesse caso estamos a falar de matérias retributivas que constituem o sinalagma do trabalho prestado o que não se coaduna com a natureza dos subsídios.
I. Quanto ao subsídio de férias, sendo as férias concebidas como um facto de equilíbrio bio psíquico do trabalhador, implicando uma rutura no quotidiano laboral e extralaboral que redunda num acréscimo de despesas para o trabalhador e respetiva família, o respetivo subsídio surge para possibilitar que o trabalhador enfrente este previsível aumento de gastos.
J. Quanto ao subsídio de Natal, consiste o mesmo numa prestação pecuniária paga ao trabalhador durante a quadra natalícia, visando assegurar a este último uma disponibilidade financeira que lhe permita enfrentar o acréscimo de despesas tradicionalmente associado a esta época do ano.
K. Assim, tendo estas prestações previstas nos artigos 263.º e 264.º do C.T. uma natureza distinta da retribuição mensal paga como contrapartida do trabalho prestado nos termos do artigo 258.º do mesmo Código, e sendo apenas a esta que se refere a retribuição mensal garantida (a qual não dispensa no sistema jurídico português o pagamento de um valor igual nas alturas próprias a título de subsídio de férias e de Natal) não pode a comparação de regimes ser efetuada apenas por reporte à retribuição mínima mensal garantida prevista em cada um dos sistemas jurídicos.
L. A Recorrida tem vindo[2] a sustentar, e pela primeira vez em Portugal um Juiz veio a perfilhar deste entendimento, que uma vez que o salário anual fixado pelas Partes é superior ao valor mensal de €600,00 (RMMG), a lei irlandesa é mais favorável do que a lei Portuguesa.
M. Se compararmos os valores da retribuição praticados pelas companhias aéreas portuguesas, verificamos, que os Comissários de Bordo que nela prestam serviço têm uma retribuição mensal de valor semelhante ao do Recorrente e a esta acrescem os subsídios de férias e de Natal de valor igual (à, pelo menos, retribuição base).
N. As normas que consagram aqueles subsídios são normas imperativas mínimas, na medida que delas decorre a obrigatoriedade do seu pagamento, e a sua correspondência a, pelo menos, a retribuição base mensal e diuturnidades do trabalhador.
O. Porque assim é, julgamos que a Recorrida não logrou demonstrar que o regime jurídico irlandês é mais favorável à aqui Recorrente do que a aplicação do regime jurídico português, no que tange à (não) aplicação do subsídio de férias e subsídio e Natal, sendo reconhecido por todos que estes estão consagrados em normas de natureza imperativa que, salvo o devido respeito, caracterizam a ordem jurídica laboral do Estado Português e a individualizam face às demais ordens jurídicas laborais dos diversos Estados que compõem a mapa mundial.
P. Nestes termos, inexistem dúvidas de que a Lei irlandesa “escolhida” pelas partes priva efetivamente o trabalhador da vantagem pecuniária que lhe é conferida por disposições da Lei Portuguesa não derrogáveis por acordo, em matéria de subsídios de férias e de Natal pelo que andou mal o tribunal a quo ao decidir em sentido contrário.
Q. Pelo que, face ao exposto, nesta matéria a sentença agora em crise merece censura, pelo que deverá ser revogada nesta parte, condenando-se a Recorrida no pagamento dos subsídios de férias, de Natal nos exatos termos peticionados, sem prejuízo de posterior incidente de liquidação.

A Ré apresentou resposta, sem formular conclusões, concluindo dever o recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Requereu se suscite o reenvio prejudicial, como previsto no art.º 267º, al. b) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), dado se colocar a questão do confronto entre o âmbito de proteção conferido pela legislação irlandesa (escolhida pelas partes) e pela legislação portuguesa no âmbito remuneratório, convocando-se, para sua resolução, a aplicação do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), nomeadamente o seu número 1, e a factualidade dos autos poderá suscitar a existência de uma dúvida razoável devido à inexistência de jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) nesta matéria.
Juntou cópia de sentença proferida em 15/02/2021 no Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz 8 (procedimento cautelar de suspensão de despedimento coletivo, processo nº 1820/21.8T8LSB), e dois pareceres de Professores Universitários [um, datado de 20/10/2020, subscrito pelos Profs. João Leal Amado e Milena Silva Rouxinol, outro, datado de 05/11/2020, subscrito pela Profª. Maria do Rosário Palma Ramalho].

Foi proferido despacho a mandar subir o recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos, sendo o efeito meramente devolutivo.

O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer (art.º 87º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho), pronunciando-se no sentido de ser rejeitado o pedido de reenvio prejudicial para o TJUE formulado pela Recorrida e, bem assim, de o recurso não obter provimento, sendo referido essencialmente o seguinte:
AA, veio interpor recurso jurisdicional da douta sentença proferida pela Mmª. Juíza do Juízo do Trabalho de Matosinhos – Juiz 3 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que tendo julgado a presente ação parcialmente procedente, não atendeu o pedido de afastamento da lei escolhida pelas partes, para que fosse aplicada a lei portuguesa para pagamento de subsídios de férias e de Natal (não previstos na legislação irlandesa) e nos quais decaiu.
Tendo em consideração o constante das conclusões formuladas pela Recorrente, as quais delimitam o objeto do presente recurso jurisdicional, constata-se que a mesmo veio atacar a douta sentença recorrida, impugnando a matéria de direito.
Pugna pelo pagamento de tais subsídios nos termos por si peticionados.
A Recorrida R... DAC contra-alegou, de modo proficiente, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
Sugere a questão de reenvio prejudicial perante o TJUE, para apreciação do âmbito de proteção conferido pela legislação irlandesa, escolhida pelas partes, em confronto com a legislação portuguesa, na componente remuneratória, com regimes diversos. A Recorrente, de nacionalidade portuguesa, desempenhou funções de tripulante de cabine para com a Recorrida, uma companhia aérea, de nacionalidade irlandesa. Os regimes legais em apreciação convocam a aplicação do art.º 8.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008.
Mais juntou dois pareceres provenientes de três ilustres académicos, em abono da sua tese.
Quanto a esta questão do reenvio prejudicial, antes de mais, afigura-se-nos que terá de ser abordada, preliminarmente, em ordem a ser averiguada da sua pertinência ou não, pois que, caso a seja decidida a favor da Recorrida, terá de ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art.ºs 269.º n.º 1 alínea c) e 272.º CPC, até ulterior resolução pelo TJUE.
A questão em causa não se nos mostra, por agora, pertinente, considerando os termos em que vem sugerida pela Recorrida e o que merece a nossa discordância.
Para tal efeito, haverá que se considerar que a Recorrida não põe em causa a teleologia da norma do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008 e nem se suscitam dúvidas interpretativas a seu respeito, por ser clara.
Esta norma foi interpretada e aplicada, sem divergência, na sentença recorrida e na esteira dos Acórdãos do TJUE, C-152/20 e C-218/20, ECLI:EU:C:2021:600 (cfr. https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=EF7A078DD2E5F695AC830F9151463378?text=&docid=244192&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=106186), que nela se mencionam e que sustentam uma harmonia adequada entre as conveniências das partes signatárias de um contrato de trabalho, no que diz respeito a “regras não derrogáveis por acordo” – cfr. seu ponto nº 27 e quanto às conclusões do advogado-geral.
No caso em apreço, o Direito da União foi aplicado, com o mesmo sentido com que o TJUE interpretou e analisou a sua validade, estando afastada qualquer dúvida quanto à sobredita norma regulamentar que é diretamente aplicável.
Deve improceder, pois, ser indeferida esta pretensão da Recorrida – cfr. Acórdãos do STJ de 17/03/2016 e de 12/01/2021 (cfr. www.dgsi.pt).
Isto posto, ressalvado o respeito devido por melhor opinião em contrário, nenhum reparo ou censura há que ser feito à douta sentença recorrida, que, deverá ser confirmada, atento o rigor dos fundamentos que nele foram consignados e que determinaram a improcedência da questão sob escrutínio e a cuja tese se adere.
Os factos em questão foram criteriosamente fixados, tendo em consideração o alegado nos articulados e os elementos probatórios que os sustentaram. Mais foi feita a devida apreciação crítica e fundamentação de direito para improceder a pretensão em causa, com a devida aplicação do Direito da União Europeia, no que à aplicação das normas dos art.ºs 3º, nº 1, e 8º, nºs 1 e 2 do Regulamento (CE) n.º 593/2008, diz respeito. Apoia-se em jurisprudência do Tribunal de Justiça, aqui aplicável e como acima se viu.
Com efeito, da sentença recorrida não se pode concluir, ao contrário da pretensão da recorrente, que tenha havido lesão dos seus interesses remuneratórios. Não se provou que esta tenha sido prejudicada com a aplicação da lei irlandesa, de cuja aplicação resultou o objetivo de salvaguardar os seus proventos e em detrimento da legislação portuguesa. Aritmeticamente, com se vê da motivação da sentença, beneficia de uma majoração de 34,5% no confronto dos dois regimes salariais em comparação.
O contrato de trabalho em causa foi validamente sujeito à lei irlandesa, tendo sido redigido em língua inglesa e recebido em .... Na parte que ora importa, resultou um regime remuneratório que desconhece os subsídios portugueses em apreciação. Nos termos do art.º 10º do Regulamento em análise, o contrato em causa foi aceite por ambas as partes que reconheceram a sua validade formal e substancial. A Recorrente conhecia a natureza do contrato de trabalho em apreço, cujas condições aceitou durante a sua vigência, sem que haja reclamado ou requerido à Recorrida a alteração dos seus requisitos, designadamente remuneratórios. Outrossim, da sua execução, não resulta que hajam sido postos em causa princípios informadores da ordem pública portuguesa – cfr. Luís de Lima Pinheiro, O Novo Regulamento Comunitário sobre a Lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) – uma introdução, págs. 621, 631e 641, https://portal.oa.pt/upl/%7Becc8c284-43f7-449b-85da-d008ab992ec7%7D.pdf.
A opção da Recorrente, pela lei irlandesa, não a privou da proteção que as normas portuguesas lhe poderiam garantir, no caso das que se mostram derrogáveis por acordo, como sejam as que internamente atribuem os subsídios de férias e de Natal (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 396/2011, de 21/09/2011, que aqui se chama à colação – in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110396.html).
Como está afastado por parte da Recorrida um comportamento ilícito, com referência ao tempo de execução do contrato de trabalho, cuja relação laboral perdurou entre 12/02/2010 e 28/01/2019 e neste segmento.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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Do reenvio prejudicial:
Como questão prévia, importa ver se é de desencadear o reenvio prejudicial, como pretende a Recorrida.
A Recorrente discorda da sentença proferida na parte em que julgou improcedente o pedido de pagamento de subsídio de férias e de Natal que havia formulado.
O tribunal a quo considerou, em face do disposto no art.º 8º do Regulamento Roma I [3], ser aplicável ao contrato de trabalho celebrado entre as partes a lei irlandesa por tal ter sido escolhido pelas partes, mas essa escolha das partes não pode privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei portuguesa, escrevendo, para julgar improcedente aquele pedido, o seguinte:
Quanto ao pagamento dos subsídios de férias e de Natal é evidente que o contrato de trabalho celebrado entre as partes não prevê seu pagamento, já que na lei irlandesa inexiste a obrigação de seu pagamento.
No entanto, a conclusão da aplicação da lei portuguesa neste aspeto há de resultar da ponderação do nível de proteção concedida ao trabalhador por cada uma das leis.
No contrato de trabalho (datado de 12/02/2010), sob a epígrafe “salário”, a cláusula 8ª acordaram as partes o seguinte:
8.1 Você receberá um salário base anual bruto de €10.200,00 (dez mil e duzentos euros). O salário será acumulado dia a dia e deverá ser pago após o vencimento em prestações mensais de igual valor no dia 28 de cada mês para a sua conta bancária.
8.2 A sua remuneração total foi calculada para incluir um prémio por todas as horas associadas ao serviço de voo; incluindo, mas não se limitando a, relatórios pré e pós-voo, atrasos e todas as tarefas a bordo, incluindo o uso do sistema portátil EPOS. O seu salário também inclui um prémio pelo trabalho aos domingos e feriados.”
No acordo datado de 27/01/2012, sob a epígrafe “salário”, a cláusula 6ª estipulava o seguinte:
6.1 Você receberá um salário base mensal bruto de €908,00 (novecentos e oito euros) por cada mês em que opere. O salário será acumulado dia a dia e deverá ser pago após o vencimento no dia 28 de cada mês para a sua conta bancária.
6.2 A sua remuneração total foi calculada para incluir um prémio por todas as horas associadas ao serviço de voo; incluindo, mas não se limitando a, relatórios pré e pós-voo, atrasos e todas as tarefas a bordo, incluindo o uso do sistema portátil EPOS. O seu salário também inclui um prémio pelo trabalho aos domingos e feriados.
Neste último acordo, que constitui uma alteração ao contrato de trabalho originário, foi prevista a prestação de trabalho em regime sazonal por um período de nove meses por ano, o que terá determinado que a retribuição passasse a estar prevista por cada mês de trabalho.
Destas disposições convencionais resulta ter sido vontade das partes incluir na retribuição acordada todas as variantes que poderia influir no valor final da retribuição, já que expressamente assim o referem nos pontos 8.2 e 6.2 dos contratos, respetivamente.
Naturalmente não foi prevista a questão dos subsídios de férias e de Natal já que foi escolhida pelas partes a lei irlandesa, e é ainda certo que quando foi celebrado o contrato de trabalho originário a Autora estava afeta à base de ... (pelo que inexistia a conexão com a lei portuguesa).
Tendo sempre presente o princípio da liberdade contratual, a apreciação do nível de proteção da autora tem de ser ponderada por referência à formação da vontade contratual das partes.
A retribuição anual acordada pelas partes correspondia a um valor mensal de €850,00 (€10.200,00/12).
Em Portugal, no ano de 2010 a remuneração mínima mensal garantida ascendia a €475,00 (DL nº 5/2010, de 05 de janeiro), à qual, acrescendo os subsídios de férias e natal, correspondia a um valor mensal de €554,17.
Para o setor de aviação, verifica-se que aquele montante de €850,00, se insere dentro da média (ou acima dela) de retribuição mensal (mesmo ponderando a atribuição dos dois subsídios anuais) prevista para os tripulantes de cabine nos anos iniciais de carreira das empresas de aviação civil a operarem em território nacional que, na data, haviam celebrado acordos de empresa com o SNPVAC: TAP, S.A. (BTE n.º 8, de 08/04/2019), SATA Internacional, S.A. (BTE nº 46, de 15/12/2008) e Portugália, S.A. (BTE, n.º 20, de 29/5/2010).
Por outro lado, é ainda de ponderar que do disposto no art.ºs 263º, n.º 1, e 264º, n.º 3, do Código do Trabalho, nada obsta que as partes acordem no pagamento de tais subsídios de forma diversa da prestação única comumente praticada.
Deste modo, ponderando que na legislação portuguesa nada obsta a que o salário seja negociado e previsto num valor anual global e que a retribuição acordada entre as partes não fica aquém do valor do salário mínimo nacional nem das retribuições anuais previstas para o setor na contratação coletiva existente à data, é de considerar que a mera ausência de previsão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal não importa uma derrogação material à lei substantiva imperativa portuguesa e à proteção que nela se pretende alcançar.
Como tal, inexiste fundamento para afastar a aplicação da lei irlandesa, pelo que improcede nesta parte o peticionado.
A redação do art.º 8º do Regulamento Roma I, com a epígrafe «contratos individuais de trabalho», é a seguinte:
1. O contrato individual de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas partes nos termos do artigo 3º. Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos nºs 2, 3 e 4 do presente artigo.
2. Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Não se considera que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando o trabalhador estiver temporariamente empregado noutro país.
3. Se não for possível determinar a lei aplicável nos termos do nº 2, o contrato é regulado pela lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador.
4. Se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do indicado nos n.ºs 2 ou 3, é aplicável a lei desse outro país.
A Recorrida, como se deixou expresso supra, solicitou se desencadeie o reenvio prejudicial, como previsto no art.º 267º do TFUE, sugerindo, como ponto de partida, sejam formuladas as seguintes questões:
Num contexto em que não está em causa que a remuneração anual prevista no contrato é superior ao valor mínimo compulsório de remuneração garantida pela lei do país que seria aplicável na ausência de escolha, já considerando nessa remuneração anual dois subsídios adicionais sensivelmente equivalentes a uma remuneração mensal cada, previstos nesta lei, colocam-se as seguintes questões:
a) Deve um sistema que prevê o pagamento da remuneração anual em catorze prestações mensais, de acordo com o previsto pela lei do país que seria aplicável na ausência de escolha (doravante referida como “lei subsidiária”), ser considerado como proporcionador de uma maior proteção do que o pagamento dessa remuneração anual em doze prestações mensais, conforme estipulado no contrato de trabalho sujeito a uma lei escolhida pelas partes que não prevê um sistema de catorze prestações?
b) Se a resposta a a) for positiva, quando, nos termos da lei subsidiária, o pagamento em catorze prestações puder ser sujeito a um acordo entre as partes que determine o pagamento em doze prestações, esse direito enquadra-se no âmbito de “disposições não derrogáveis por acordo” estabelecido no n.º 1 do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008?
c) Se as respostas às questões a) e b) forem positivas, a aplicação da lei subsidiária às matérias relativas ao regime de remuneração significa que os trabalhadores podem beneficiar da remuneração anual, acordada no contrato de trabalho regido por uma lei escolhida pelas partes, dividida e paga em catorze prestações no ano?
Ou será que a aplicação da lei subsidiária, significa que os trabalhadores podem exigir o pagamento adicional dos dois subsídios – de Natal e de férias – com o resultado de que os trabalhadores em causa beneficiariam de uma remuneração anual superior à dos trabalhadores que estão exclusivamente sujeitos a qualquer uma das leis?
O «reenvio prejudicial» está previsto no art.º 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), cujo teor é o seguinte:
O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) sobre a interpretação dos Tratados;
b) sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.
O «reenvio prejudicial» é o mecanismo processual pelo qual o órgão jurisdicional nacional pede ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) – intérprete máximo do Direito da União –, que se pronuncie, de forma a ficar esclarecido sobre o correto entendimento, ou se for caso disso validade, das disposições europeias que condicionam a solução do litígio concreto que foi chamado a julgar.
Ou seja, há uma questão que um órgão jurisdicional nacional de um Estado Membro considera necessária para a resolução de um litígio que tem a resolver, mas uma questão relativa à interpretação, ou à apreciação da validade, do Direito da União (com exceção da apreciação de validade dos Tratados), não tendo por objeto as regras de direito nacional dos Estados Membros[4].
Assim, podemos dizer que se uma disposição de “direito derivado”[5] da União Europeia a aplicar suscitar dúvidas na sua interpretação impor-se-á submeter a questão ao TJUE, mas este Tribunal não resolve o “litígio nacional” apenas decide sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade de um ato da União.
In casu, estando decidido (sem ser posto em causa) que ao contrato celebrado entre as partes é aplicável a lei irlandesa, como foi convencionado (cfr. ponto 25 dos factos provados), tem aplicação o nº 1 do art.º 8º do Regulamento Roma I, estando subjacente a este art.º 8º, como refere Anabela Susana de Sousa Gonçalves[6], a tentativa do legislador em reequilibrar a relação jurídica laboral, através de um tratamento mais favorável à parte negocialmente mais débil, o que, de resto, está em consonância com o referido no considerando 23 (do preâmbulo) do Regulamento Roma I [cuja redação é a seguinte: no caso dos contratos celebrados com partes consideradas vulneráveis, é oportuno protegê-las através de normas de conflitos de leis[7] que sejam mais favoráveis aos seus interesses do que as normas gerais].
Mas a questão que é posta em recurso não contende com a interpretação do art.º 8º do Regulamento Roma I, pois o mesmo refere claramente (2ª parte do nº 1) que a escolha da lei não pode … ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável.
Na verdade, aquilo que está em agora causa é saber se a retribuição paga à Autora, prevista no contrato celebrado, privou a Autora/trabalhadora da proteção que lhe confere a lei portuguesa [a lei que seria aplicável se as partes não tivessem escolhido a lei irlandesa] ao prever o pagamento de subsídios de férias e de Natal, ou, dito de outra forma, se o acordado pelas partes afastou o regime imperativo relativo a esses pagamentos.
Sendo assim, não se nos afigura que saber se a retribuição acordada entre as partes na prática configura o afastamento da proteção conferida pela lei portuguesa ao prever o pagamento dos subsídios de férias e de Natal constitua caso que justifique «reenvio prejudicial».
Em suma, não se aciona o «reenvio prejudicial» porque não se vê que, na situação concreta destes autos, se preencham os pressupostos para tal.
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FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada[8], sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, aquilo que importa apreciar e decidir neste caso é saber se a Autora tem direito a receber da Ré subsídios de férias e de Natal porque, estando o seu pagamento previsto em disposições da lei portuguesa não derrogáveis por acordo das partes, não pode ser considerado ter sido in casu feito acordo privando a Autora deles.
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Porque tem interesse para a decisão do recurso, desde já se consignam os factos dados como provados e como não provados na sentença de 1ª instância, objeto de recurso, que são aqueles a considerar [dado não ter havido impugnação da decisão sobre matéria de facto – art.º 663º, nº 6 do Código de Processo Civil].
Quanto a factos PROVADOS, foram considerados os seguintes:
1. A Autora foi admitida ao serviço da Ré, por um contrato de trabalho que teve início em 12/02/2010 e no âmbito do qual exerceu funções de Tripulante de Cabine para a Ré, ininterruptamente, até 28/01/2019, data em que a Autora comunicou à Ré a decisão de sair da empresa.
2. A Autora desempenhava as funções de Tripulante de Cabine na base aérea do aeroporto ..., sob ordens e instruções da Ré e de acordo com o horário de trabalho por esta designado.
3. Para desempenhar as suas funções, a Autora apresentava-se, todos os dias em que prestasse trabalho, junto da competente Sala dos Tripulantes (usualmente denominada “Crew Room”), no referido Aeroporto, em Portugal, a qual era disponibilizada e titulada pela Ré.
4. Os aviões da Ré encontravam-se estacionados no referido aeroporto ..., Portugal.
5. Sendo obrigatório e imperativo tal registo, sob pena de marcação de falta.
6. Nos dias em que o serviço da Autora consistisse em voos programados, a mesma deveria apresentar-se e registar a sua entrada 45 minutos antes de cada voo.
7. Reunindo com a restante tripulação nos 45 minutos que antecediam o voo, com vista a programar e configurar o dia de trabalho.
8. Nos dias em que se encontrasse de prevenção presencial deveria permanecer no aeroporto durante oito horas.
9. Nos dias em que se encontrasse de prevenção não presencial, a Autora não era remunerada se não fosse chamado a prestar trabalho, mas também não era obrigada a comparecer no Aeroporto.
10. Tendo, antes, de permanecer, em determinado período de tempo (normalmente onze horas), alerta e atenta ao telemóvel, pronta para receber chamada de urgência e disponível para se apresentar na mencionada Sala em 60 (sessenta) minutos.
11. Os superiores hierárquicos – Supervisores da Base e Chefes de Cabine – transmitiam à Autora instruções de trabalho.
12. As marcações de férias da Autora eram feitas por computador.
13. A Autora foi recrutada no âmbito de um programa europeu de recrutamento, conduzido por uma empresa de trabalho temporário.
14. Esse programa de recrutamento, onde são levadas a cabo entrevistas por toda a Europa, é conduzido a partir da sede da Ré, em ....
15. A Autora entrevistada em Portugal porque aí escolheu comparecer, sendo que nesse recrutamento candidatou-se a qualquer das bases da Ré na Europa.
16. Foi-lhe então proposto um contrato de trabalho que definia que a mobilidade era essencial, tendo esta assinado o mesmo e enviado para a sede da Ré, em ....
17. Nesse momento, e a partir de 01/09/2009, a Autora a executava trabalho com partidas e regresso, essencialmente, a ..., na Itália.
18. Mais tarde, em 25 de março de 2010, foi a Autora alocada ao aeroporto ..., no âmbito da referida mobilidade internacional que vigorava no seu contrato de trabalho.
19. No âmbito da execução do seu trabalho diário, a Autora prestava a maioria do seu trabalho num avião registado na Irlanda.
20. Em grande parte do seu tempo de trabalho, encontra-se nesse território a sobrevoar o espaço aéreo de diferentes países e espaço aéreo internacional.
21. Iniciado o seu trabalho, a Autora realizava aterragens e partidas nos mais variados países.
22. A Autora fez formação profissional fora de Portugal, nomeadamente em ..., em Inglaterra.
23. A Autora recebia todas as suas instruções, planeamento, horários, intervenções hierárquicas a partir de ..., na Irlanda.
24. A Autora abriu e recebia o seu vencimento numa conta bancária irlandesa.
25. O ponto 35.1 do contrato de trabalho celebrado entre as partes, e datado de 12/02/2010, tem o seguinte teor: “A relação de trabalho entre a R... e você será sempre regida pelas leis em vigor e conforme alteradas ao longo do tempo na República da Irlanda”.
26. Esta cláusula não foi objeto de negociação entre as partes e constava já do modelo de contrato de trabalho apresentado à Autora para assinar.
27. A Ré nunca pagou à Autora qualquer valor que identificasse como subsídio de férias ou subsídio de Natal.
28. No acordo datado de 27/01/2012, sob a epígrafe “Sazonalidade do Contrato” a cláusula 3ª tem a seguinte redação:
«3.1 A empresa tem menos necessidade de tripulantes de cabine durante o horário de voos de Inverno entre novembro e março inclusive. Você é obrigado a trabalhar por aproximadamente nove meses durante o nosso ano de voo entre abril e março anualmente. Estes nove meses serão normalmente na forma de trabalho normal entre abril e outubro, com licença sem vencimento de três meses (ou seja, geralmente entre novembro e março inclusive). Qualquer período de licença sem vencimento será escalado a critério da empresa e não necessariamente em meses consecutivos. Não há garantia de que não lhe será solicitado que opere tarefas de voo ou terrestres durante a temporada de Inverno, e o período de tempo em que não será necessário que opere tarefas de voo ou terrestres poderá ocorrer em outras épocas durante o ano, sujeito aos requisitos operacionais.
3.2 Você receberá uma notificação por escrito da licença sazonal não remunerada que lhe foi atribuída antes do início da licença. Durante quaisquer períodos de licença sem vencimento;
- a sua continuidade no emprego não será afetada;
- você não receberá nenhum pagamento (incluindo pagamento base, pagamento de voo, bónus de vendas, subsídios mensais, pagamento por doença, etc.);
- a empresa não fará contribuições PRSI em seu nome; e
- você não acumulará férias anuais.
3.3 Uma vez que este é um contrato sazonal, os períodos de licença não remunerada de Inverno planeada não constituem um período de lay off ao abrigo da Lei de Pagamentos de Despedimento de 1967-2007.»
29. A Ré facultava aos trabalhadores a possibilidade de escolherem, dentro de determinados meses, os meses que queriam estar de licença sem vencimento.
30. Nos anos de 2012 a 2018, a Autora teve, em cada um deles, dias de inatividade por força de tal licença sem vencimento.
31. O contrato de trabalho celebrado entre as partes previa o gozo anual de 20 dias de férias.
32. No contrato de trabalho celebrado entre as partes (datado de 12/02/2010), e tal como já estava previsto no contrato de 17/08/2009 (cláusula 7ª), sob a epígrafe “salário”, a cláusula 8ª estipulava o seguinte:
«8.1 Você receberá um salário base anual bruto de €10.200,00 (dez mil e duzentos euros). O salário será acumulado dia a dia e deverá ser pago após o vencimento em prestações mensais de igual valor no dia 28 de cada mês para a sua conta bancária.
8.2 A sua remuneração total foi calculada para incluir um prémio por todas as horas associadas ao serviço de voo; incluindo, mas não se limitando a, relatórios pré e pós-voo, atrasos e todas as tarefas a bordo, incluindo o uso do sistema portátil EPOS. O seu salário também inclui um prémio pelo trabalho aos domingos e feriados.
8.3 O seu salário estará sujeito a uma revisão anual no mês de abril de cada ano, apenas após a conclusão bem-sucedida do seu Período de Estágio, a critério absoluto da Empresa. As revisões salariais basear-se-ão no seu desempenho e no da Empresa. Não se aplicam ao seu contrato de trabalho quaisquer incrementos automáticos ou aumentos de salário.»
33. No acordo datado de 27/01/2012, sob a epígrafe “salário”, a cláusula 6ª estipulava o seguinte:
«6.1 Você receberá um salário base mensal bruto de €908,00 (novecentos e oito euros) por cada mês em que opere. O salário será acumulado dia a dia e deverá ser pago após o vencimento no dia 28 de cada mês para a sua conta bancária.
6.2 A sua remuneração total foi calculada para incluir um prémio por todas as horas associadas ao serviço de voo; incluindo, mas não se limitando a, relatórios pré e pós-voo, atrasos e todas as tarefas a bordo, incluindo o uso do sistema portátil EPOS. O seu salário também inclui um prémio pelo trabalho aos domingos e feriados.
6.3 O seu salário estará sujeito a uma revisão anual no mês de abril de cada ano, a critério absoluto da Empresa. As revisões salariais basear-se-ão no seu desempenho e no da Empresa. Não se aplicam ao seu contrato de trabalho quaisquer incrementos automáticos ou aumentos de salário.»
34. A Autora frequentou a formação de line check em 15/05/2016, em 24/06/2017 e 28/03/2018, cada uma com uma duração de cerca de 2 horas.
35. A Autora completou a formação de CRMS em 16/09/2016, em 03/08/2017 e 08/08/2018, sendo que cada uma destas formações anuais tem a duração de 2 dias, com 8 horas em cada dia.
36. A Autora completou formação em situação de incêndio, crew triennial recurrent training and checking - 3RT, em 10/09/2016, com uma duração de cerca de 1 hora.
37. Com data de 28/11/2019 a Ré, através da sociedade “W…, Lda.”, acordou com o Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) que “na data limite de 31 de janeiro de 2019, os contratos de trabalho dos Tripulantes de Cabine diretamente contratados pela W... referidos no artigo 1º serão regidos pela legislação laboral portuguesa”, tendo ainda acordado que tal não produz “impacto nas diferenças de entendimento da W... e do Sindicato relativamente à jurisdição e lei aplicável em relação a litígios pendentes perante tribunais portugueses”.
38. A Ré tem a sua sede em ..., República da Irlanda.

E foi considerado que NÃO se PROVOU que:
a) A Autora não tivesse tido qualquer poder de negociação na celebração do contrato de trabalho, nem lhe tivesse sido explicado qualquer cláusula que estipulasse pacto de jurisdição;
b) Durante a vigência do contrato de trabalho, a Autora auferiu a seguinte remuneração média mensal, que tem em conta que a partir de 2012 (inclusive) a Autora esteve sempre três meses de licença sem vencimento:
2010 – €1.530,00;
2011 – €1.394,11;
2012 – €1.829,53;
2013 – €1.819,73;
2014 – €2.190,00;
2015 – €1.976,95;
2016 – €2.192,09;
2017 – €2.270,23;
2018 – €2.277,32;
c) Em cada um dos anos de 2012 a 2018, a Autora tivesse tido efetivamente três meses licença sem vencimento;
d) A saída da Autora da empresa lhe tenha provocado frustração, perturbação, desgosto e ansiedade resultando na diminuição da sua qualidade de vida.
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Vistos os factos provados, importa apreciar a questão supra enunciada, de saber se a Autora tem direito ao pagamento pela Ré de subsídios de férias e de Natal, tendo-se por pacífico – porque é claro e não é questionado –, que a Ré não pagou à Autora qualquer rubrica correspondente a subsídios de férias e de Natal, porque a lei irlandesa, pela qual optaram as partes reger-se o contrato, não prevê esse pagamento.
Como é consabido, e está dito na sentença recorrida, as normas jurídico-laborais possuem, em regra, um caráter imperativo (relativamente imperativo, ou normas imperativas mínimas), dado que, em princípio, as normas legais reguladoras do contrato de trabalho só podem ser afastadas por contrato individual desde que este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador (cfr. art.º 3º, nº 4, do Código do Trabalho).
Como tem vindo o STJ a afirmar, não existe controvérsia na nossa jurisprudência de que são normas inderrogáveis da lei portuguesa, mormente para efeitos de aplicação do artigo 8º, nº 1, do Regulamento Roma I, as que respeitam à própria existência de um subsídio de férias e de um subsídio de Natal[9].
Quer isto dizer que, estabelecendo a lei (leia-se Código do Trabalho) o direito a subsídio de férias (art.º 264º do Código do Trabalho) e o direito a um subsídio de Natal (art.º 263º do Código do Trabalho), não podem por via contratual ser eliminados ou reduzidos esses direitos reconhecidos ao trabalhador pelo legislador.
Todavia, se é inderrogável o direito ao seu pagamento, já não parece que o seja a forma do seu pagamento, não sendo imperativo o pagamento de forma integral (de uma vez) [note-se que, a Lei nº 11/2013, de 28 de janeiro, estabeleceu um regime temporário de pagamento dos subsídios de Natal e de férias, prevendo o pagamento em partes – pagamento de metade e a outra metade em duodécimos, como consta dos seus artigos 3º e 4º – regime a que o Orçamento de Estado de 2018 não manteve, mas não parecendo que da não continuidade desse regime temporário (que, como consta do seu art.º 6º, suspendeu a vigência das normas constantes da parte final do nº 1 do art.º 263º e do nº 3 do art.º 264º do Código do Trabalho) resulte a impossibilidade de acordo do pagamento em duodécimos, tanto que o seu art.º 9º, nº 2 salvaguardava os acordos estabelecidos entre as partes anteriores à vigência da lei, ou seja, está implícita a aceitação de acordo das partes quanto à forma de pagamento].
O acórdão do TRL de 15/01/2020 (recurso nº 2368/18.3T8CSC.L1) – pelo que se percebe do exposto no parecer subscrito pela Profª. Maria do Rosário Palma Ramalho (junto com a resposta ao recurso) pois não se alcança que o mesmo esteja publicado [10] –, considerou que, estando previsto no Código do Trabalho o pagamento de subsídios de férias e de Natal, tratando-se de normas que não podem ser afastadas, e não tendo a empregadora demonstrado o seu pagamento, é de condenar no seu pagamento[11].
O tribunal a quo considerou que foi adotado pelas partes um sistema retributivo que, ainda que não contenha a previsão expressa do pagamento de subsídio de férias e de subsídio de Natal à trabalhadora, se apesenta mais vantajoso para a trabalhadora, referindo o seguinte:
Tendo sempre presente o princípio da liberdade contratual, a apreciação do nível de proteção da Autora tem de ser ponderada por referência à formação da vontade contratual das partes.
A retribuição anual acordada pelas partes correspondia a um valor mensal de €850,00 (€10.200,00/12).
Em Portugal, no ano de 2010 a remuneração mínima mensal garantida ascendia a €475,00 (DL n.º 5/2010, de 05 de janeiro), à qual, acrescendo os subsídios de férias e Natal, correspondia a um valor mensal de €554,17.
Para o setor de aviação, verifica-se que aquele montante de €850,00, se insere dentro da média (ou acima dela) de retribuição mensal (mesmo ponderando a atribuição dos dois subsídios anuais) prevista para os tripulantes de cabine nos anos iniciais de carreira das empresas de aviação civil a operarem em território nacional que, na data, haviam celebrado acordos de empresa com o SNPVAC: TAP, S.A. (BTE n.º 8 de 08/04/2019), SATA Internacional, S.A. (BTE nº 46 de 15/12/2008) e Portugália, S.A. (BTE, n.º 20, de 29/05/2010).
Por outro lado, é ainda de ponderar que do disposto no art.º 263º, n.º 1, e 264º, n.º 3, do Código do Trabalho, nada obsta que as partes acordem no pagamento de tais subsídios de forma diversa da prestação única comumente praticada.
Deste modo, ponderando que na legislação portuguesa nada obsta a que o salário seja negociado e previsto num valor anual global e que a retribuição acordada entre as partes não fica aquém do valor do salário mínimo nacional nem das retribuições anuais previstas para o setor na contratação coletiva existente à data, é de considerar que a mera ausência de previsão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal não importa uma derrogação material à lei substantiva imperativa portuguesa e à proteção que nela se pretende alcançar.
Como tal, inexiste fundamento para afastar a aplicação da lei irlandesa, pelo que improcede nesta parte o peticionado.
No parecer subscrito pelos Profs. João Leal Amado e Milena Silva Rouxinol (junto com a resposta ao recurso) foi considerado, em síntese, que as partes podem convencionar um valor de retribuição que apenas não pode ficar aquém do montante mínimo garantido pelas leis do trabalho portuguesas e, porque no caso o valor convencionado vai além desse valor, foi concluído que o pagamento dos subsídios de férias e Natal constituiria um bónus (rectius, dois bónus) totalmente injustificado para o trabalhador (não correspondendo à vontade das partes).
No parecer subscrito pela Profª. Maria do Rosário Palma Ramalho (junto com a resposta ao recurso), foi considerado, em resumo, que o art.º 8º do Regulamento Roma I apenas visa assegurar um nível mínimo de tutela (não um nível máximo de tutela), e, depois de fazer uma comparação entre os regimes remuneratórios dos tripulantes à luz da lei irlandesa e à luz da lei portuguesa, conclui que o regime acordado é mais favorável do que o regime que seria garantido pelas normas imperativas da lei portuguesa em matéria de remuneração em sentido amplo [destacando-se a seguinte parte da conclusão: … apreciando o regime remuneratório dos tripulantes ao serviço da R... em termos globais e atendendo também à lei irlandesa (ou seja considerando o grupo incindível de regras aplicável a estes contratos em matéria remuneratória, como se impõe), não podemos concluir que este regime seja menos favorável do que o que decorreria da aplicação da lei portuguesa, porque apesar de não contemplar especificamente o direito aos subsídios de Natal e de férias, assenta numa base remuneratória mais favorável e contempla outras prestações remuneratórias que não são previstas no ordenamento português].
Perante isto, quid juris?
Desde já se adianta que não se concorda com o raciocínio subjacente à sentença recorrida, pois, admitindo aplicar-se a lei irlandesa, abstrai do valor do “salário mínimo” estabelecido pela lei irlandesa, e vem a considerar o sistema retributivo acordado pelas partes mais vantajoso porque excede o valor do “salário mínimo” anual (pago em “14 meses”) previsto em Portugal [se bem entendemos é o raciocínio que está exposto no trecho transcrito].
É que, se é aplicável a lei irlandesa (que prevê um determinado “salário mínimo”), e por via da lei portuguesa tem direito ao pagamento de pelo menos 14 vezes esse “salário mínimo irlandês”, não se pode, parece, dizer que aquilo que releva é que a retribuição acordada entre as partes não fica aquém do valor do salário mínimo nacional (português) nem das retribuições anuais previstas para o setor na contratação coletiva existente à data (em Portugal, de acordo com os “acordos de empresa” citados).
O trabalhador celebra contrato de trabalho internacional e afinal interessa é que sejam observadas as regras como se de contrato nacional se tratasse? Não se nos afigura.
Como é sabido, no sector dos motoristas internacionais, vem-se assistindo a que bastas vezes, independentemente da legalidade dessa prática, é acordado um valor global mensal a pagar aos motoristas (calculado em função dos quilómetros percorridos), e vem-se admitindo que o empregador demonstre que foi acordado o pagamento desse valor global, que abarca as rubricas que constituem as garantias mínimas para os trabalhadores dos transportes internacionais rodoviários de mercadorias previstas no CCT do sector, desde que se revele mais vantajoso ao motorista[12].
Todavia, aí está em causa a comparação do regime remuneratório convencionado individualmente com o regime remuneratório convencionado coletivamente, enquanto que no caso que agora nos ocupa, está em causa saber se ao ser estabelecida/paga a remuneração foram afastadas, ou não tidas em consideração, normas inderrogáveis da lei portuguesa (as que preveem o pagamento dos referidos subsídios).
De todo o modo, concorda-se com a afirmação feita na sentença recorrida de que nada obsta a que o salário seja negociado e previsto num valor anual global; ponto é que nesse acordo, efetivamente esteja salvaguardada a observância das normas inderrogáveis da lei portuguesa.
E no caso em apreço está salvaguardada essa observância?
Analisados os factos provados, temos que inicialmente (em 2010) foi acordado um salário base anual, a pagar em prestações mensais (ponto 32 dos factos provados), e depois (em 2012) foi acordado o pagamento de um salário base mensal (ponto 33 dos factos provados).
Ora, desde logo se pode dizer o seguinte: se o acordo de pagamento de uma quantia anual facilita a consideração do acordo a incluir o pagamento dos referidos subsídios, já o acordo de uma quantia mensal dificulta essa consideração (pois, terá que resultar que num mês está incluída parte do 13º e 14º).
Mas vejamos.
Quer em 2010, quer em 2012, foi inserta cláusula contratual referindo que essa retribuição base (primeiro anual, depois mensal) foi calculada para incluir um prémio por todas as horas associadas ao serviço de voo; incluindo, mas não se limitando a, relatórios pré e pós-voo, atrasos e todas as tarefas a bordo, incluindo o uso do sistema portátil EPOS. O seu salário também inclui um prémio pelo trabalho aos domingos e feriados.
E daqui podemos extrair que as partes ao acordarem o pagamento, primeiro de uma retribuição base anual paga em 12 prestações mensais, depois de uma retribuição base mensal paga em cada um dos 12 meses do ano, incluiu o pagamento de subsídios de férias e de Natal como impõe a lei portuguesa?
Ora, nada está expresso e nada nos leva a apontar que tenha sido querido pelas partes, pelo que não se nos afigura que se possa concluir tal.
Como é sabido, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, sendo que em negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (art.ºs 236º e 238º do Código Civil).
E no caso não se nos afigura que esse declaratário normal deduzisse da referida cláusula estar no valor da retribuição (sobretudo a mensal) incluídos os subsídios de férias e de Natal, nem estando tal ali expresso, ainda que de forma imperfeita.
Sendo assim, tem a Autora a haver da Ré os referidos subsídios durante a pendência do contrato, por aplicação dos preceitos inderrogáveis da lei portuguesa, procedendo, pois, o recurso.
Todavia, não se apurou o valor das retribuições pagas [cfr. alínea b) dos factos não provados].
Estabelece o nº 2 do art.º 609º do Código de Processo Civil que se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
Já se entendeu que o art.º 609º, nº 2 do Código de Processo Civil [o art.º 661º, nº 2, antes da reforma do Código de Processo Civil operada pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho] não era aplicável quando os factos já acontecidos não eram provados (não estava apenas em causa saber o quantum)[13], mas tal entendimento vem sendo ultrapassado na jurisprudência, como se está explicado no acórdão do TRC de 11/10/2017[14], que, porque elucidativo, se passa a transcrever na parte pertinente:
Existiu, de facto, alguma jurisprudência que interpretava a aludida disposição legal (mais concretamente a norma do anterior CPC que lhe correspondia) nos termos em que ela foi interpretada pela 1ª instância, sustentando que apenas seria aplicável quando, no momento da sentença, ainda não fosse possível conhecer todos os factos necessários à liquidação da obrigação, não sendo, todavia, aplicável quando esses factos já haviam ocorrido e muito menos quando esses mesmos factos haviam sido alegados mas não provados. Veja-se, por exemplo, o Acórdão do STJ de 17/01/1995 [15], onde se diz que “O artigo 661º, nº 2, do Código de Processo Civil apenas permite remeter a condenação para execução de sentença quando não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, entendendo-se, porém, essa falta de elementos não como a consequência do fracasso da prova na ação declarativa, mas apenas como consequência de ainda se não conhecerem, com exatidão, as unidades componentes da universalidade ou de ainda se não terem revelado ou estarem em evolução algumas ou todas as consequências do facto ilícito no momento da propositura da ação declarativa”.
Pensamos, porém, poder afirmar que essa corrente jurisprudencial está ultrapassada [16], não merecendo acolhimento na jurisprudência mais recente do STJ e não colhendo – pensamos nós – o necessário apoio na letra da lei e no pensamento legislativo.
Com efeito, nada na letra da lei nos induz a fazer tal interpretação (restritiva), uma vez que a previsão da norma em questão reporta-se à falta de elementos para fixar o objeto ou a quantidade da condenação sem fazer qualquer distinção entre as situações em que esses elementos não existem por ainda não terem ocorrido os factos que permitiriam fixar o objeto ou a quantidade da obrigação e as situações em que esses factos já ocorreram, já são conhecidos e até foram alegados, sucedendo apenas que não foram provados. Em qualquer uma dessas situações, o Tribunal – no momento em que profere a sentença – não dispõe desses elementos e, portanto, está impossibilitado de fixar o objeto ou a quantidade da prestação e, ao que nos parece, é apenas essa circunstância que está subjacente à norma em questão.
O que ali se pretende salvaguardar é a possibilidade de o tribunal proferir uma decisão condenatória, nas situações em que, apesar de se ter apurado a existência do direito e respetiva obrigação, não se determinou o objeto ou a quantidade dessa obrigação. Ou seja, o juiz apurou a efetiva existência de uma obrigação – sabendo, portanto, que o réu terá que ser condenado – mas não apurou qual é o concreto objeto ou a quantidade exata dessa prestação – não podendo, por isso, determinar o objeto da condenação. Numa situação dessas, e como refere o Prof. Alberto dos Reis[17], “…nem seria admissível que a sentença absolvesse o réu, nem seria tolerável que o condenasse à toa, naquilo que ao juiz apetecesse. A única solução jurídica é a que o texto consagra: proferir condenação ilíquida. O juiz condenará o réu no que se liquidar em execução de sentença”.
Temos, portanto, como certo que tal disposição será aplicável a todos os casos em que o Tribunal, no momento em que profere a decisão, carece de elementos para fixar o objeto ou a quantidade da condenação, seja porque ainda não ocorreram os factos constitutivos da liquidação da obrigação, seja porque, apesar de esses factos já terem ocorrido e terem sido alegados, não foi feita a sua prova. Neste sentido se pronunciam José Lebre de Freitas [18] e Alberto dos Reis [19].
Em sentido coincidente, afirma Vaz Serra [20] que “A aplicabilidade do nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil não depende de ter sido formulado um pedido genérico; mesmo que o autor tenha deduzido na ação um pedido de determinada importância indemnizatória, se o tribunal não puder averiguar o exato valor dos danos, deve relegar a fixação da indemnização, na parte que não considerar ainda provada, para execução de sentença…”.
Nesse sentido se decidiu também no Acórdão do STJ de 22/09/2016 [21], onde se lê que “O facto de o autor ter formulado na ação declarativa de condenação um pedido de indemnização líquido não impede o Tribunal de proferir sentença de condenação em quantia a liquidar posteriormente desde que os elementos de facto, embora revelando a existência de um dano patrimonial, se mostrem insuficientes para a sua quantificação”.
Também nesse sentido, decidiu o Acórdão do STJ de 08/11/2012 [22], onde se diz que “A norma constante do nº 2 do art.º 661º do CPC, ao prever a possibilidade de condenação genérica, é aplicável aos casos em que o lesado optou pela formulação de pedido específico, liquidando logo o dano que entendia ter sofrido, considerando, porém, o julgador, a final, que, estando demonstrada a existência de um dano – e, portanto, preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil invocada – subsistem dúvidas acerca do seu exato valor pecuniário, não supríveis através do recurso a critérios ou juízos de equidade”.
Em idêntico sentido, considerou-se no Acórdão do STJ de 07/11/2006 [23], que “O art.º 661º, nº 2 do CPC tanto se aplica ao caso do autor ter formulado inicialmente pedido genérico e não ter sido possível convertê-lo em pedido específico, como ao de ele ter logo formulado pedido específico, mas não se chegarem a coligir dados suficientes para fixar, com precisão e segurança, o objeto ou a quantidade da condenação, razão pela qual a dedução inicial do pedido líquido não obsta a que a sentença condene em quantia a liquidar em execução de sentença”.
E ainda no mesmo sentido pode ver-se o Acórdão do STJ de 23/01/2007 [24], onde se entendeu que “Mesmo que o autor tenha feito um pedido específico (não genérico), a sua quantificação poderá ser relegada para liquidação em execução de sentença, caso não se tenha apurado o montante na ação, desde que nesta se tenha comprovado a existência de danos”.
Concluímos, portanto, que, para efeito de aplicação da norma citada, é irrelevante que o autor tenha formulado um pedido líquido ou específico sem que tenha conseguido provar os factos que havia alegado e dos quais dependia a fixação ou quantificação do objeto da prestação; também essa situação se insere no âmbito de previsão da norma citada e, portanto, também nesse caso o tribunal deverá condenar no que vier a ser liquidado. O que é absolutamente necessário é que se prove a existência da obrigação, uma vez que aquilo que pode ser relegado para posterior liquidação, ao abrigo da citada disposição legal, não é a existência da obrigação – porque esta, constituindo um pressuposto necessário para que seja proferida uma decisão condenatória, tem que ser previamente demonstrada – mas sim e apenas o objeto ou a quantidade dessa obrigação.
Resta, portanto, saber se está provada a existência da obrigação que é invocada pela Apelante…[25]
Em suma: sabido que é devido algo, mas sem se saber quanto, é relegado para ulterior liquidação o apuramento dess quantum (não o apurar de saber se algo é devido).
Transpondo o acabado de expor para o caso concreto, concluímos que se impõe proceder à condenação no pagamento dos subsídios de férias e de Natal enquanto vigorou o contrato de trabalho, mas, porque se desconhece o valor da retribuição em cada ano, impõe-se relegar o apuramento do concretamente devido (montante concreto) para liquidação posterior nos termos dos art.ºs 609º, nº 2 e 358º, nº 2 do Código de Processo Civil.
Procede, pois, o recurso nestes termos.
*
Quanto a custas, havendo procedência do recurso, as custas do mesmo ficam a cargo da Recorrida (art.º 527º do Código de Processo Civil).
***
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, decide-se:

I) revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu a Ré do pagamento à Autora dos subsídios de férias e de Natal, e, em substituição, é condenada a Ré a pagar à Autora os subsídios de férias e de Natal durante o período de vigência do contrato, sendo os montantes a apurar em liquidação posterior nos termos dos art.ºs 609º, nº 2 e 358º, nº 2 do Código de Processo Civil..

II) manter, no mais, a sentença recorrida.

Custas pela Recorrida, com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao RCP (cfr. art.º 7º, nº 2 do RCP).

Valor do recurso: o da ação (art.º 12º, nº 2 do RCP).

Notifique e registe.
(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)

Porto, 23 de janeiro de 2023
António Luís Carvalhão
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha

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[1] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[2] “Visto” como constava seria lapso, donde se ter retificado.
[3] Regulamento (CE) nº 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008.
[4] Vd. acórdão do TRL de 18/06/2019 e acórdão do STJ de 12/01/2021, consultáveis em www.dgsi.pt, processo nº 30690/15.3T8LSB.L1-7 e processo nº 17264/15.8T8SNT-C.L2.S1 respetivamente; podendo ainda ver-se a jurisprudência citada no “Guia prático do reenvio prejudicial” – CEJ, 2012, em www.cej.mj.pt >> e-publicações >> Outras >> Guia do Reenvio Prejudicial.
[5] Os atos unilaterais adotados pelas instituições comunitárias como previsto nos Tratados, como sejam os Regulamentos.
[6] “Os casos C... e R... e o contrato de trabalho internacional”, in Prontuário de Direito do Trabalho”, Centro de Estudos Judiciários, 2018-I, pág. 246.
[7] Como é o art.º 8º do Regulamento Roma I.
[8] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 156 e págs. 545/546 (estas no apêndice I: “recursos no processo do trabalho”).
[9] Vd. os seguintes arestos do STJ [proferidos em processos em que se apresentam como recorrentes a aqui Ré ou a sociedade “C..., Lta.”], nos quais foi decidido não admitir a revista excecional com esse fundamento [de que não existe controvérsia na nossa jurisprudência de que aquelas são normas inderrogáveis da lei portuguesa], todos consultáveis em www.dgsi.pt: de 27/10/2021 (processo nº 19733/19.1T8LSB.L1.S2); de 22/02/2022 (processo nº 2191/19.8T8PDL.L1.S2); e de 07/09/2022 (processo nº 1644/19.2T8TVD.L1-S2).
[10] Designadamente em www.dgsi.pt.
[11] Tal acórdão foi objeto de recurso, tendo em 25/11/2020 sido proferido acórdão no STJ [consultável em www.dgsi.pt, recurso nº 2368/18.3T8CSC.L1.S1], mas, como se colhe da leitura de tal acórdão, foi mantida a decisão do Conselheiro Relator de não admitir, nos termos do nº 3 do art.º 671º do Código de Processo Civil, a revista interposta pela ali Ré (“C..., Ltd”) que versava sobre a parte do acórdão do TRL que determinou o pagamento de subsídios de férias e de Natal.
[12] Vd., entre outros, os acórdãos do TRL de 12/03/2009 e de 07/10/2009 (ambos consultáveis em www.dgsi.pt, processos nº 205/06.0TTLSB-4 e nº 285-06.9TTCLD.L1-4 respetivamente), e o acórdão do STJ de 13/09/2006 (também consultável em www.dgsi.pt, processo nº 06S1535).
[13] A ideia base era a de que não se devia dar uma segunda oportunidade de prova dos factos – vd. .Manuel Salvador, Revista dos Tribunais, Ano 88º, pág. 7.
[14] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 228/15.9T8SEI.C1.
[15] Nota de rodapé (1) do acórdão, com o seguinte teor: Proferido no processo nº 085801, disponível em http://www.dgsi.pt.
[16] Nota de rodapé (2) do acórdão, com o seguinte teor: Cfr. jurisprudência infra citada.
[17] Nota de rodapé (3) do acórdão, com o seguinte teor: Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 71.
[18] Nota de rodapé (4) do acórdão, com o seguinte teor: Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª ed., pág. 682.
[19] Nota de rodapé (5) do acórdão, com o seguinte teor: Ob. cit., Vol. V, pág. 71 e Vol. I, 3ª ed., Reimpressão, pág. 615.
[20] Nota de rodapé (6) do acórdão, com o seguinte teor: RLJ, Ano 114º, pág. 309 e 310.
[21] Nota de rodapé (7) do acórdão, com o seguinte teor: Proferido no processo nº 681/14.8TVLSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[22] Nota de rodapé (8) do acórdão, com o seguinte teor: Proferido no processo nº 37/05.3TBBRR.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[23] Nota de rodapé (9) do acórdão, com o seguinte teor: Proferido no processo nº 06A3623, disponível em http://www.dgsi.pt.
[24] Nota de rodapé (10) do acórdão, com o seguinte teor: Proferido no processo nº 06A4001, disponível em http://www.dgsi.pt.
[25] Vd. também o acórdão do STJ de 18.09.2018, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 4174/16.0T8LRS.L1.S1.