Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3077/17.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
CONTRATO DE EMISSÃO DE CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
CRÉDITO DOCUMENTÁRIO IRREVOGÁVEL
AUTONOMIA DO CRÉDITO DOCUMENTÁRIO FACE AO NEGÓCIO-BASE
Nº do Documento: RP201711143077/17.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 792, FLS 57-67)
Área Temática: .
Sumário: I - Os procedimentos cautelares conservatórios ou antecipatórios visam obstar ao prejuízo grave decorrente do retardamento na satisfação de um direito ameaçado.
II - O contrato de emissão de crédito documentário é um contrato atípico, assente numa relação triangular, que envolve o credor e o devedor, como titulares do contrato-base, e o banco ao qual o devedor solicita, na fase de negociação do contrato-base, o pagamento ao credor, mediante a mera apresentação de documentos por parte deste.
III - Nos casos típicos de compra e venda internacional a estipulação de um crédito documentário irrevogável, sujeito a um regime legal de autonomia face ao negócio-base, justifica-se plenamente, tendo em conta que que o mesmo assumirá uma dupla função de meio de pagamento e de garantia de tal pagamento.
IV – Esta autonomia do crédito documentário face ao negócio-base obsta a que o comprador possa, com base em alegação de cumprimento defeituoso, invocar a exceptio non adimpleti contractus e, com este fundamento, obter a suspensão do pagamento do crédito documentário, mediante notificação dirigida ao Banco emissor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3077/17.6T8VNG.P1
Comarca: [Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia (J1); Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunto: Fernando Samões
Adjunto: Vieira e Cunha

Sumário
I - Os procedimentos cautelares conservatórios ou antecipatórios visam obstar ao prejuízo grave decorrente do retardamento na satisfação de um direito ameaçado.
II - O contrato de emissão de crédito documentário é um contrato atípico, assente numa relação triangular, que envolve o credor e o devedor, como titulares do contrato-base, e o banco ao qual o devedor solicita, na fase de negociação do contrato-base, o pagamento ao credor, mediante a mera apresentação de documentos por parte deste.
III - Nos casos típicos de compra e venda internacional a estipulação de um crédito documentário irrevogável, sujeito a um regime legal de autonomia face ao negócio-base, justifica-se plenamente, tendo em conta que que o mesmo assumirá uma dupla função de meio de pagamento e de garantia de tal pagamento.
IV – Esta autonomia do crédito documentário face ao negócio-base obsta a que o comprador possa, com base em alegação de cumprimento defeituoso, invocar a exceptio non adimpleti contractus e, com este fundamento, obter a suspensão do pagamento do crédito documentário, mediante notificação dirigida ao Banco emissor.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
“B..., LDA.”, sociedade com sede na Rua ..., n.º ..., ..., Vila Nova de Gaia, instaurou o presente procedimento cautelar comum contra “C..., LTD”, sociedade com sede em ..., ..., ..., e “BANCO D..., S.A.”, sociedade com sede na Rua ..., n.º ..., Porto, pedindo que se ordenasse à 2º Requerida o não pagamento do crédito documentário contratado por si até ao montante de USD 52.455,00 (CDI ........ de 29/08/2016) com o valor de USD 51.362,08, correspondendo a € 48.157,22, de que é beneficiária a 1ª Requerida, mediante notificação da respetiva decisão a proferir no âmbito desta providência.
Alega, em síntese, que, em 18 de agosto de 2016, acordou com a 1ª Requerida comprar-lhe uma quantidade aproximada de 70.000 metros de tecido, no valor de USD 52.455,00, a pagar, a pagar no prazo de 120 dias a partir do conhecimento do embarque, mediante carta de crédito livremente negociável com qualquer banco de ....
Expõe que, em 20 de agosto de 2016, a 2ª Requerida emitiu a carta de crédito, de onde resulta ser o crédito documentário irrevogável; o pagamento dever ocorrer 120 dias a partir da expedição e da data do conhecimento do embarque; ser a beneficiária a aqui 1ª Requerida; as quantidades e os preços unitários dos tecidos a adquirir; como última data de envio o dia 18 de outubro de 2016 e a sua disponibilização em qualquer banco no Paquistão, mediante a apresentação de documentos.
Afirma que a 1ª Requerida fez embarcar a mercadoria em dezembro de 2016, com alterações, acordada entre ambas, quanto aos tecidos fornecidos e ao preço da mercadoria, que ficou alterado para USD 51.362,08.
Diz que, quando as mercadorias lhe foram entregues em 09 de fevereiro de 2017, verificou que os tecidos não se encontravam conformes às amostras determinantes da sua aquisição, evidenciando diferentes tonalidades da cor entre rolos, diferentes toques entre rolos, fio de trama irregular e encolhimento de cerca de 6 % à largura. Bem como que deu conta destes defeitos à 1ª Requerida em 09 de março de 2017.
Alega que os tecidos em causa se destinavam a ser utilizados em forros de casacos e calças, mas que, em face dos defeitos que evidenciam, não lhes pode dar esse destino ou qualquer outro no âmbito da sua actividade de produção de acessórios para a indústria de vestuário.
Declara ter contactado a 2ª Requerida, que lhe comunicou não aceitar da sua parte qualquer revogação da ordem de pagamento.
Alega complementarmente que, se a 2ª Requerida realizar o pagamento, perderá o valor do fornecimento, com imprevisibilidade da cobrança do crédito respetivo no Paquistão e com a possível consequente impossibilidade de ter meios para assegurar os pagamentos correntes da sua empresa, designadamente com salários e impostos.
Dispensou-se a citação prévia das Requeridas e procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas.
Proferiu-se decisão, com a seguinte parte final decisória: “Face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, ordena-se ao Banco D...,SA, com sede na Rua ..., ..., ....-..., Porto, a suspensão do pagamento do crédito documentário contratado pela requerente até ao montante de USD 52.455,00 (CDI ........ de 28/08/2016) com o valor de USD 51.362,08, de que é beneficiária “C..., Ltd”, até ao trânsito em julgado de decisão final a instaurar contra a requerida para fixação dos direitos da requerente relativamente ao fornecimento dos materiais aqui em causa.”
As Requeridas foram notificadas nos termos legais.
Inconformada com esta decisão, a 1ª Requerida recorreu, terminando com as seguintes
Conclusões:
I. Na carta de crédito documentário nasce uma obrigação autónoma e independente, com as características de abstração e literalidade, que o banco deve cumprir, independentemente do incumprimento defeituoso do contrato base.
II. Foi apenas com base em eventual cumprimento defeituoso e eventuais prejuízos daí resultantes que foi requerida a presente providência cautelar, não tendo a Recorrida sequer alegado que o incumprimento defeituoso por si exposto representasse fraude, pelo que sempre teria ficado por provar o respetivo elemento psicológico e que se traduz na intenção de enganar a contraparte.
III. Apenas se pode requerer e o Tribunal deferir uma providência cautelar deste teor, se se alegar e provar manifesta fraude ou abuso evidente e já não nos casos de mero cumprimento defeituoso.
IV. O cumprimento defeituoso dum contrato de compra e venda não configura o conceito de fraude ou abuso evidente, pelo que não se verificam os pressupostos legais da providência requerida nestes autos.
V. No caso dos autos, à Requerente não assiste o direito de invocar a exceção de não cumprimento do contrato.
VI. O justo receio fundamento da presente providência tem de ser apoiado em factos que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
VII. A douta sentença de que se recorre não deu como provado qualquer facto que demonstre o fundado receio da Recorrida de que a demora na resolução do pleito lhe traga prejuízo irreparável.
VIII. Ponderada a factualidade alegada e provada, designadamente a falta de prova da necessidade da medida cautelar para prevenir riscos atinentes à demora no processamento da ação principal, a pretensão da Requerente não se ajusta à situação de "periculum in mora" necessária à proteção antecipada do aparente direito (de crédito) - artº 362º, nº 1, do CPC.
IX. A Recorrida e Requerente da providência aceitou, quando solicitou ao banco Requerido a emissão de crédito documentário, que o mesmo se regesse pelas Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários emitidos pela Câmara de Comércio Internacional (última versão publicação UCP 600).
X. O Tribunal violou o estipulado pelas Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários emitidos pela Câmara de Comércio Internacional nomeadamente o estipulado nos artigos 1º a 5º, que estabelecem o carácter autónomo do crédito documentário relativamente às relações entre requerente e beneficiário.
XI. A Requerente não denunciou tempestivamente à 1ª Requerida a existência de qualquer vício nos produtos vendidos, pois que demorou um mês para o fazer.
XII. A decisão proferida não fez correta interpretação e aplicação das disposições legais e convencionais aplicáveis, havendo por isso violação do disposto nos artºs 428º nº1 e 1157º do CCivil, 362º, nº 1, do CPCivil, 1º a 5º, 6.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 16.º e 20.º-a) das RUU e art.º 471 do CComercial.
A Requerente apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto e pela confirmação da sentença recorrida.
Foi proferido despacho a admitir o recurso interposto, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A única questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste na apreciação da legalidade da ordem judicial de suspensão do pagamento do crédito documentário.
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III – FACTOS PROVADOS DA DECISÃO RECORRIDA[1]

1) Em 2016 a requerente e a requerida “C..., Limited”, estabeleceram entre si que a segunda venderia à primeira tecidos.
2) Tais tecidos correspondiam aos que se passam a mencionar: a. “Herringbone Dennier”, tingido, tecido preto – 35.000 metros da referência 30/150, com as medidas 82/64, 60 PC (70:30), ao preço por metro de 0,75 USD; b. “Herringbone Dennier”, tingido, tecido natural – 700 metros da referência 30/150, com as medidas 82/64, 60 PC (70:30), ao preço por metro de 0,65 USD; c. “Sulzerloom” preto – 25.000 metros da referência 40/40, com as medidas 96/52, 60 PC (52:48) ao preço por metro de 0,775 USD; d. “Sulzerloom” preto – 3.000 metros da referência 40/40, com as medidas 96/52, 60 PC (65:35) ao preço por metro de 0,76 USD.
3) Tudo no total de USD 52.455,00.
4) A requerente e a requerida “C...” convencionaram igualmente que o pagamento ocorreria no prazo de 120 dias a partir da data do conhecimento do embarque, mediante carta de crédito.
5) O “Banco D..., SA” emitiu a carta de crédito, conforme documento junto em audiência, denominado “swift crédito documentário e que aqui se dá por reproduzido.
6) Das condições da mesma resultava, designadamente: a. Ser o crédito documentário irrevogável; b. O pagamento dever ocorrer 120 dias a partir da expedição e da data do conhecimento do embarque; c. Ser a beneficiária a aqui requerida “C...”; d. As quantidades e os preços unitários dos tecidos a adquirir, tal como referido no artº 2º; e. Como última data de envio o dia 18 de Outubro de 2016; f. Carta de crédito ser disponibilizada em qualquer banco no Paquistão, mediante apresentação dos documentos.
7) Entretanto, a requerente exigira à requerida a recepção e a aprovação das amostras dos tecidos a adquirir, para que houvesse total conformidade entre estes e aquelas.
8) Na comunicação da requerente à requerida de 24 de Outubro de 2016, aquela transmite que há discrepâncias nas amostras relativamente ao pretendido, pede uma solução para tais problemas e insiste que não sejam enviados os bens sem a sua permissão.
9) Mais concretamente refere que: a. Quanto ao tecido “Herringbone Dennier” preto i. Que a contextura é de 82 x 62 e que deveria ser de 82 x 64; ii. Que o peso é de 105 g/m2 e deveria ser de 110 g/m2; b. Quanto ao tecido “Herringbone Dennier” natural i. Que a contextura é de 84 x 60 e que deveria ser de 82 x 64; ii. Que o toque é muito suave, pretendendo que o toque fosse igual ao da última compra; iii. Que a cor é muito branca pretendendo a mesma cor da última compra; iv. Que o peso é de 107 g/m2 e deveria ser de 110 g/m2; v. Que o fio de trama é muito irregular, tem muitos defeitos e que as fibras migraram para fora do tecido; c. Quanto ao tecido “Sulzerloom” preto i. Que a contextura é de 100 x 48 e deveria ser de 96 x 52; ii. que o toque é muito duro e áspero e que pretendia um tecido com mais volume e mais suave, igual ao da compra anterior.
10) Em 15 de novembro de 2016 a requerida “C...” refere à requerente ter tomado boa nota das instruções da mesma e que processara os bens cuidadosamente e em conformidade
11) A requerente, em 17 de novembro de 2016, manifestou à requerida a sua satisfação pelo que lhe fora transmitido mas diz-lhe necessitar de amostras novamente para verificar.
12) A requerente acabou por receber as amostras em 13 de Dezembro de 2016 e pediu o esclarecimento à requerida se os tecidos correspondentes àquelas amostras correspondiam aos bens prontos a enviar relativamente à encomenda realizada e coberta pelo CDI ........, sendo este o número que identifica a carta de crédito a que se aludiu anteriormente.
13) A requerida respondeu afirmativamente, pedindo autorização para o envio das mercadorias.
14) Como tais amostras estavam conforme ao por si pretendido a requerente deu a sua anuência ao envio pela requerida das mercadorias.
15) A requerida fez embarcar a mercadoria em dia do mês de dezembro, mencionando-se no conhecimento de embarque a data de 25 de dezembro de 2016.
16) Por acordo entre a requerente e a requerida, os tecidos fornecidos pela segunda à primeira não foram os inicialmente previstos e supra referidos.
17) Não foi fornecido o tecido mencionado na alínea d) do ponto 2. 18) E, quanto aos restantes, foram fornecidas as quantidades que se passam a mencionar: a. “Herringbone Dennier”, tingido, tecido preto – 33.367 metros; b. “Herringbone Dennier”, tingido, tecido natural – 6.944 metros; c. “Sulzerloom” preto – 28.159 metros.
19) Pelo preço total de € 51.362,08 USD.
20) As mercadorias referidas em 18) foram entregues à requerente em 9 de fevereiro de 2017, após terem chegado ao porto ....
21) O “Sulzerloom” preto apresentava diferentes tonalidades da cor entre rolos, visíveis a olho nu, e diferentes toques entre rolos, por o acabamento não ser uniforme.
22) O “Herringbone Dennier” preto apresentava: a. O fio de trama irregular e as fibras a migrarem para fora do tecido; b. Diferentes tonalidades da cor entre rolos visíveis a olho nu; c. A suavidade do toque era igual à da amostra que fora recusada; d. Apresentava encolhimento de cerca de 6% à largura.
23) O “Herringbone Dennier” natural apresentava: a. Fio de trama irregular; b. As fibras a migrarem para fora do tecido; c. A suavidade do toque era igual à da amostra que fora recusada.
24) A requerente deu conta destes defeitos à requerida em 9 de março de 2017.
25) A requerente, previamente a esta comunicação, submeteu a exame várias amostras, retiradas dos rolos recebidos, nos laboratórios de Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal, fazendo-as comparar com as amostras que recebera da requerida e que aprovara.
26) Esses exames consistiram nos designados “Medida da Cor” e “Solidez do Tinto à Fricção a Seco e à Fricção Húmida”.
27) Como se constata, o comportamento das amostras nos casos de solidez do tinto foi o seguinte: a. “Herringbone” Amostra 3221 – 3-4 (a seco) – 1-2 (a húmido) Amostra 3223 – 3-4 (a seco) – 2-3 (a húmido) Amostra 3224 – 4 (a seco) – 1-2 (a húmido) b. “Sulzerloom” Amostra 3225 – 4 (a seco) – 2-3 (a húmido) Amostra 3226 – 4 (a seco) – 1-2 (a húmido) Amostra 3227 – 4 (a seco) – 2 (a húmido).
28) O padrão mínimo de qualidade impõe, no manchamento a seco, um valor mínimo de 4 e, no manchamento a húmido, um valor mínimo de 3-4.
29) E, em comparação com a amostra, é aceite um desvio máximo de diferença entre cores de 1,0.
30) Sucede que nos seis ensaios realizados os desvios foram de 1,68, 0,87 e 1,44 no “Sulzerloom” e de 2,19, 2,32 e 1,10 no “Herringbone”.
31) A requerida, perante a reclamação da requerente, invocou a saída de um colaborador para se manifestar desconhecedora do assunto.
32) Tendo ainda proposto à requerente que aceitasse os tecidos tal como se encontravam, e que aceitasse ser compensada do respectivo desvalor em futuras encomendas, o que a requerente não aceitou.
33) Os tecidos aqui em causa, abstraindo dos defeitos que apresentam, são próprios para forros de casacos e calças e era esse o destino que a requerente lhes pretendia dar.
34) No contexto dos defeitos que os mesmos apresentam a requerente não só não lhes pode dar esse destino, como tão pouco lhe pode dar qualquer outro no âmbito da sua actividade – produção de acessórios para a indústria de vestuário – admitindo tão só poder revender a um outro grossista ou importador que trabalhe com tecidos com defeito, o que não é o seu caso.
35) O Banco D... propõe-se enviar o valor do respectivo preço para a requerida, não aceitando da parte da requerente qualquer revogação da ordem de pagamento.
36) O valor em causa é significativo no plano do funcionamento da empresa requerente que fabrica artigos para a indústria de confecção e que se encontra gravemente afectada pelo encerramento e falência de seus clientes.
37) A ocorrer o débito da quantia correspondente ao crédito documentário contratado a requerente poderá deixar de ter meios para assegurar os pagamentos correntes inerentes ao seu funcionamento – salários e impostos.
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IV – LEGALIDADE DA ORDEM JUDICIAL DE SUSPENSÃO DO PAGAMENTO DO CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
Como se viu, estamos em presença de um procedimento cautelar comum.
Os procedimentos cautelares conservatórios ou antecipatórios visam obstar ao prejuízo grave decorrente do retardamento na satisfação de um direito ameaçado.
Estabelecem-se no art.º 362.º do Código de Processo Civil[2] os seus requisitos gerais: aparência da titularidade do direito invocado e fundado e iminente receio de lesão de tal direito.
Assim, competia à Requerente - antes de mais e em primeira linha – alegar e provar factos de onde resultasse, ainda que indiciariamente, a existência de direito tutelado.
A este respeito, a 1ª Requerida sustenta, no presente recurso, que na carta de crédito documentário nasce uma obrigação autónoma e independente, com as características de abstração e literalidade, que o banco deve cumprir, independentemente do incumprimento defeituoso do contrato base.
Defende que apenas se pode requerer e o Tribunal deferir uma providência cautelar deste teor, se se alegar e provar manifesto fraude ou abuso evidente. Bem como que o cumprimento defeituoso dum contrato de compra e venda não configura o conceito de fraude ou abuso evidente, pelo que não se verificam os pressupostos legais da providência requerida nestes autos.
Sustenta, por outro lado, que a douta sentença de que se recorre não deu como provado qualquer facto que demonstre o fundado receio da Recorrida de que a demora na resolução do pleito lhe traga prejuízo irreparável.
Vejamos:
Menezes Cordeiro define crédito documentário como[3] “a situação jurídica pela qual um banqueiro se compromete, perante um seu cliente, a pagar uma certa quantia a um terceiro mediante a entrega, por este, de determinados documentos.”
O correspondente contrato de emissão de crédito documentário trata-se de um contrato atípico, tendo como figuras típica mais próximas o contrato de prestação de serviços e o contrato de mandato comercial sem representação[4].
Assenta numa relação triangular, que envolve o credor e o devedor, como titulares do contrato-base, o um banco ao qual o devedor faz uma solicitação para pagar ao credor.
Estruturalmente contempla duas modalidades: crédito revogável, hipótese em que o banqueiro emitente pode, a todo o tempo, modificar ou revogar o crédito, e crédito irrevogável.
Rege-se pelas regras do Código Comercial e, supletivamente, pelas regras do contrato de prestação de serviços e do contrato de mandato civil, constantes dos art.º 1155.º e ss. do Código Civil. Cumulativamente, é comum as partes remeterem para o regime das Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários[5].
No caso em apreciação, considerou-se indiciariamente provado que, em 2016 a requerente e a requerida “C..., Limited”, estabeleceram entre si que a segunda venderia à primeira tecidos.
Mais se considerou que a requerente e a requerida “C...” convencionaram igualmente que o pagamento ocorreria no prazo de 120 dias a partir da data do conhecimento do embarque, mediante carta de crédito.
Deu-se especificamente como provado que o “Banco D..., SA” emitiu a carta de crédito, conforme documento junto em audiência, denominado “swift crédito documentário” e que aqui se dá por reproduzido.
Ora, da análise do dito documento, junto a fls. 85 e ss., resulta - tal como se incluiu na matéria de facto provada - ter sido constituído sob a forma de crédito irrevogável e tendo como beneficiária a aqui 1ª Requerida, que o pagamento devia ocorrer 120 dias após a data de envio, até ao montante máximo de USD 52.445,00. Mas resulta igualmente que as partes fixaram como regras aplicáveis ao mesmo “UCPURR última versão” (sic).
A questão central dos autos é a de apreciar da legalidade da ordem judicial de suspensão do pagamento do crédito documentário ou, noutra perspetiva, ponderar da livre revogabilidade do contrato de crédito documentário dos autos.
A análise do regime previsto no Código Civil, designadamente no n.º 2 do art.º 1170.º aponta claramente no sentido da proibição da revogação, ao determinar que o mandato não pode ser revogado se tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro. Isto, tendo obviamente em conta que o crédito documentário dos autos foi um contrato estabelecido primordialmente no interesse do terceiro fornecedor dos tecidos (aqui Recorrente).
Mas, se dúvidas houvesse, ficariam irremediavelmente dissipadas com a análise das Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários que – como se viu – são aplicáveis ao contrato dos autos.
Com efeito, o art.º 4.º dos RUU/2007, prevê: “Um crédito é, pela sua natureza, um negócio distinto da venda ou de outro contrato no qual se possa basear. Os bancos não ficam, de modo algum, afetados ou vinculados por tal contrato, mesmo quando qualquer referência ou equivalência a ele sejam incluídas no crédito. Consequentemente, a vinculação de um banco de pagar, de negociar ou de cumprir qualquer outra obrigação referente ao crédito não fica sujeita a ações ou a defesa do ordenante resultantes do seu relacionamento com o banco emitente ou com o beneficiário.”
Nos casos típicos de compra e venda internacional, como o dos presentes autos, a estipulação de um crédito documentário irrevogável, sujeito a este regime legal de autonomia face ao negócio-base, justifica-se plenamente, tendo em conta que que o mesmo assumirá uma dupla função de meio de pagamento e de garantia de tal pagamento.
Refere, a este propósito, Menezes Cordeiro[6]: “O crédito documentário já foi considerado o “sangue” das relações comerciais internacionais. Efetivamente, ele permite o estabelecimento profícuo de relações comerciais entre pessoas que não se conhecem. Muita riqueza circula e multiplica-se graças à teia de relações bancárias.” Para, mais à frente, concluir que “Podemos referir a “abstração” para documentar a independência do crédito em relação ao negócio de base. (…). Tal obrigação repousa na convenção concluída entre o mandante e o banqueiro emitente, convenção essa que, muito claramente, lhe fixa o conteúdo e os limites.”
Explica, no mesmo sentido, Gonçalo Andrade e Castro[7]: “O crédito documentário assenta o seu êxito como forma de pagamento nas transações comerciais internacionais na confiança que a intervenção de um banco (ou de vários bancos) confere ao beneficiário.”
Ora, no caso em apreciação, o que a Requerente alegou – e provou indiciariamente – foi que as mercadorias foram entregues com diversas desconformidades, designadamente diferentes tonalidades da cor entre rolos, diferentes toques entre rolos, fio da trama irregular e encolhimento à largura. Bem como que estas irregularidades impediam que os ditos tecidos fossem destinados a forros de casacos e calças ou a qualquer outro no âmbito da sua atividade de produção de acessórios para a indústria de vestuário.
Isto é, a Requerente veio alegar o cumprimento defeituoso – o fornecimento da coisa comprada com defeito – e o direito de não cumprir a sua prestação de pagamento do preço. Invoca, pois, a exceptio non adimpleti contractus.
No entanto, dada a natureza irrevogável do contrato de emissão de crédito documentário, esta faculdade não se pode considerar aqui exercitável.
A forma concreta ajustada para efetivação do pagamento não passa pela entrega do preço pela compradora à vendedora, já que o valor do preço foi previamente entregue ao Banco.
O Banco apenas tem que examinar os documentos, e não as prestações que estejam na base do negócio. Após exame dos documentos que representam a aquisição das mercadorias, o banco opta por pagar o crédito ao vendedor ou recusar o pagamento do mesmo, mas apenas nas hipóteses de não conformidade de tais documentos ou da verificação de fraude na documentação apresentada pelo vendedor.
Especificamente quanto à verificação de uma situação de fraude, explica Mónica Jardim[8] que “A fraude é constituída pela falsidade ou alteração de um dos documentos que o beneficiário tem de apresentar ao banco para que este efetue o pagamento. Consequentemente, a fraude justifica a recusa de pagamento no estrito quadro do crédito documentário, sem se tornar necessária qualquer referência ao contrato base.”
No mesmo sentido, refere Calvão da Silva[9] “o Banco tem o poder-dever de verificar os documentos apresentados pelo vendedor, em origem a constatar se os mesmos são aparentemente conformes aos enumerados na carta de crédito, sem irregularidades manifestas ou grosseiras. Trata-se, pois, de uma verificação ou exame formal, sem que o Banco tenha de controlar a conformidade dos documentos com os bens vendidos: o Banco desconhece o conteúdo exato da compra e venda e não tem meios nem competência técnica para controlar diretamente a desse contrato. Mais: a eficácia do crédito documentário requer mesmo que o beneficiário possa pedir o pagamento contra a apresentação dos documentos aparentemente conformes com os exigidos na carta de crédito, sem que o Banco possa intrometer-se na execução da venda.”
Ou seja, o crédito documentário é, pela sua própria natureza, uma operação autónoma e distinta da venda. O Banco apenas pode recusar o pagamento em casos limite de fraude ou abuso evidente, relacionados com vícios formais dos documentos ou de casos-limite de completa ausência de entrega dos bens, se forem do conhecimento da instituição bancária.
Assim sendo, em casos como o presente restará ao comprador, apesar e após o pagamento pelo Banco, instaurar uma ação de indemnização tendo por causa de pedir os invocados vícios e defeitos e os danos daí decorrentes.
Aliás, esta tese da irrevogabilidade do crédito vem sendo defendida pela jurisprudência de forma reiterada e constante, designadamente em casos idênticos ao destes autos.
Assim, cita-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/05/11, tendo como Relator Gregório Silva Jesus[10], onde se decidiu: “O crédito documentário irrevogável goza das características da abstração e literalidade, comuns aos títulos de crédito, devendo o banco cumprir a sua obrigação de pagar, excetuando as situações de divergência dos documentos com as condições estipuladas – cf. art.º 9.º, al. a) e 14.º, al. d) das RUU – e de fraude ou abuso evidente por parte do beneficiário, que ponham em causa aquele crédito. (…). No âmbito do funcionamento do crédito documentário irrevogável não é possível recorrer à figura da exceptio non adimpleti contractus que permite à parte credora, em virtude do cumprimento defeituoso da prestação pela outra parte (traduzido no fornecimento da coisa comprada com defeito) exercitar o seu direito de não cumprir a sua parte (pagamento do preço).”
Bem como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/04/06, tendo como Relator Bettencourt de Faria[11], onde se decidiu: “Se o pagamento do preço numa compra e venda é feito através de crédito documentário irrevogável, o facto da coisa vendida apresentar defeitos não permite à compradora invocar a exceção de não cumprimento para não pagar, uma vez que a sua prestação, esse pagamento do preço, é como já se encontrasse cumprida. Nem releva a má fé com que o vendedor terá atuado, dado que o art.º 3.º das Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários prescreve que o compromisso de um banco de pagar não pode dar lugar a reclamações pelo ordenador resultantes das suas relações com o beneficiário.”
Ainda o Acórdão desta Relação de 16/09/10, tendo como Relator Pinto de Almeida[12] onde se refere que “Do crédito irrevogável nasce uma obrigação autónoma e independente que o banco deve cumprir mesmo que o ordenante entre em estado de impotência económica ou haja incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato principal, salva a hipótese de fraude do beneficiário, a qual constitui remédio excecional e de caráter residual, a utilizar com extrema reserva.[13]
A conclusão é, portanto, a de que no caso dos autos não existem factos provados de onde resulte, ainda que indiciariamente, a existência do direito tutelado.
Esta conclusão prejudica a apreciação do outro fundamento de recurso, referente à alegada falta de prova do periculum in mora.
Conclui-se, portanto, pela procedência da apelação, com a inerente revogação da decisão dos autos.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso da Recorrente/Requerida, revogando-se a decisão final da providência e julgando-se improcedente a providência cautelar.
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Custas a cargo da Requerente - art.º. 527.º do C.P.Civil.
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Notifique e registe.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)

Porto,14 de Novembro de 2017
Lina Baptista
Fernando Samões
Vieira e Cunha
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[1] Consignando-se que na mesma decisão inexistem factos não provados.
[2] Doravante apenas designado por C.P.Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] In Direito Bancário, 6ª Edição, 2016, Almedina, pág. 712.
[4] Veja-se Menezes Cordeiro (ob. cit. pág. 728 e 729) que define este contrato como uma prestação de serviço bancário e Gonçalo Andrade e Castro (in O Crédito Documentário Irrevogável, 1999, Universidade Católica Portuguesa, pág. 130) e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/09/09, tendo como Relator Hélder Roque (proferido no Processo n.º 406/09.0 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão) definem o mesmo como um contrato de mandato.
[5] Conjunto de regras aprovadas, em 1933, em Viena, pelo Congresso da Câmara de Comércio Internacional e, sequencialmente, revistas em longo dos autos, tendo sido a última em 2007. Menezes Cordeiro, na obra citada acima (fls. 722) defende que os RUU “operam como cláusulas contratuais gerais para as quais remetem os concretos contratos de crédito documentário.”
[6] Ob. cit. pág. 715 e ss.
[7] In O Crédito Documentário Irrevogável, 1999, Universidade Católica Portuguesa, Pág. 31.
[8] In A Garantia Autónoma, 2002, pág. 295.
[9] In “Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque” in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano II, Tomo 1, 1994, pág. 20.
[10] Proferido no Processo n.º 2773/04.2TJVNF.P1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[11] Proferido no Processo n.º 06B705 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[12] Proferido no Processo n.º 2773/04.2TJVNF.P1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[13] No mesmo sentido, vejam-se ainda os Acórdãos desta Relação de 15/05/12, tendo como Relatora Anabela Dias da Silva, proferido no Processo n.º 4496/09.5TJVNF.P1 e de 05/11/01, tendo como Relator Sousa Leite, proferido no Processo n.º 0230/798, todos disponíveis em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.