Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
122/09.2TBVFC.L2-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: FORÇA DE CASO JULGADO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A formação de caso julgado  alarga-se para além da parte dispositiva da decisão, à resolução das questões que a sentença tenha necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada, ou seja, que são antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.
2. É pelo teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado.

3. Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
4. O abuso de direito na modalidades do venire contra factum proprium traduz-se no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.

(Sumário da Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação da Lisboa:

RELATÓRIO.

M intentou contra P, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe metade do valor real da casa vendida, mas nunca inferior a € 125.000, a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora, desde a citação e até integral pagamento.

A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese, que:

            O A. e a R. viveram em união de facto entre finais de 1995 e Novembro de 2006, dessa relação tendo nascido 2 filhas.

Ambos trabalhavam por conta de outrem, aplicando os respectivos proventos no dia-a-dia do casal, pagando todas as despesas.

Durante esse período decidiram construir a casa de ambos, o que fizeram num lote de terreno que veio a ser atribuído ao A. em partilha por óbito de seu pai e que foi colocado em nome da R., através de escritura pública de venda, por forma a que esta pedisse empréstimo para construção de habitação própria com juros bonificados, o que o A. já não podia fazer, tendo sido com o montante mutuado que iniciaram a construção.

Como este não fosse suficiente para concluir a construção da casa, o A. contraiu um outro empréstimo, do qual € 51.000 foram aplicados na conclusão da casa e compra do recheio.

Ambos os empréstimos foram pagos, indistintamente por ambos, com proventos dos seus trabalhos, enquanto viveram juntos.

Após a separação em Novembro de 2006, o A. foi viver para ...e a R. ficou com as filhas na casa comum, a qual vendeu em 11.04.2008, pelo preço declarado de € 255.000, valor que não corresponde ao seu valor real.

Desde a referida data que a R. usa em proveito próprio o preço da venda, nunca tendo entregue ao A. a sua parte, embora se tenha proposto entregar-lhe €80.000, o que o A. não aceitou.

Regularmente citada, a R. contestou, por excepção, invocando a prescrição de eventual direito do A., e por impugnação, propugnando pela improcedência da acção, caso não se julgue procedente a excepção invocada.

O A. replicou propugnando pela improcedência da excepção invocada.
Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção invocada [1], e foram elaboradas matéria de facto assente e base instrutória, as quais não sofreram reclamações.

A R. apelou da decisão que julgou improcedente a excepção de prescrição, tendo este Tribunal confirmado a decisão recorrida  [2], e interposta revista, foram tais decisões revogadas, relegando-se para final o conhecimento da invocada excepção de prescrição [3], atenta a matéria de facto controvertida relativa ao momento em que cessou a união de facto (fls. 232, 434 a 441 e 548 a 560).

Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, vindo, oportunamente, a ser proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção e, nessa conformidade, absolveu a R. P do pedido contra ela formulado.

Não se conformando com a decisão, dela apelou o A., tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1ª) Pelas razões invocadas em 1, e que por economia aqui se dão por integralmente reproduzidas, deve proceder a impugnação da matéria de facto, dando-se a resposta aos nºs 1, 2 e 3 da base instrutória a seguir transcrita

(1) provado que: sensivelmente de 1992 a NOV2006, mantiverem a relação que os unia,

(2) – Não provado.

(3) – Provado, sendo período em referência entre 1992 a NOV2006.

2ª) Com a esperada alteração da resposta à matéria de facto, e atenta a demais matéria assente, temos que a invocada prescrição da presente acção pela ré não se verifica, levando necessariamente à procedência da acção.

Sem prescindir;

3ª) O facto que está na origem do pedido do autor, é a venda da casa, património de ambos (autor e ré), e feita pela ré a terceiros, a que corresponde o direito de haver para si metade do produto dessa venda (sendo este o pedido) Ora;

4ª) A venda da casa, em questão, e de acordo com a escritura pública junta aos autos a fls. 17 e seguintes, ocorreu a 11ABR2008, sendo inquestionável que o direito do autor – e que este pretende fazer valer com a sua demanda - só emerge na sua esfera jurídica a partir da referida data. Na verdade;

5ª) A presente acção só existe por causa da referida venda e o pedido é bem concreto e específico (que seja proferida sentença que condene a ré a pagar ao autor metade do valor real da casa vendida.

6ª) O autor só estava em condições efectivas de exercer o seu direito, a partir daquela data e, nunca em momento anterior, pois que antes inexistia, obviamente, o direito, o conhecimento e o interesse em agir do autor, que veio peticionar na acção. Por isso não obstante, o Ac. do STJ (fls. 548 e ss.) já proferido nestes autos, a verdade é que o mesmo não é vinculante, bem se podendo continuar a defender a tese de que se poderia determinar a improcedência da excepção de prescrição, sem necessidade de qualquer prova dos factos alegados a esse respeito

Ademais;

7ª) Como decidiu o mesmo STJ (Ac. do STJ de 16OUT2001 in www.dgsi.pt.) «o prazo especial da prescrição por enriquecimento sem causa inicia-se no conhecimento do direito da restituição pelo seu credor», ou seja in casu, teve o seu inicio em 11ABRIL2008» (data da outorga da escritura de compra e venda da casa)

8ª) Assim não entendendo, violou a sentença recorrida o artigo 482º do CC, que deve ser interpretado de acordo com a doutrina espelhada neste acórdão do STJ.

9ª) Afirma a ré, na sua contestação na presente demanda, que “o autor deixou de partilhar fosse o que fosse com a ré em MAR2003” (fls. 30)

10ª) O invocado na contestação nos presentes autos está em contradição ao afirmado pela ré no Processo nº …/08, em que a mesma afirma que a sua relação com o autor cessou em MAR2006 (fls. 607).

11ª) O que, de acordo com as regras do senso comum, não pode ser visto como um mero lapso de escrita, mas um conveniente alterar de uma data, com vista a forçar a invocada prescrição.

12ª) Ainda que as relações entre autor e ré houvessem cessado em MAR2006 (e não NOV2006) o que não se concede e apenas se considera por mera hipótese de raciocínio, a verdade é que;

13ª) Pela citação da ré para a acção consubstanciada no referido processo nº …/08, em que o autor exprime a intenção de exercer o direito que se arroga na presente demanda, o prazo de prescrição interrompeu-se, nos termos do artigo 323º do Código Civil

14ª) O que teve como efeito a inutilização para prescrição de todo o tempo decorrido anteriormente (artigo 326º, nº 1 do CC).

15ª) Só começando a correr novo prazo para a prescrição após o trânsito em julgado da decisão que pôs termo ao mencionado processo. (artigo 327, nº 1 do CC), neste caso o Acórdão da Relação de Lisboa que transitou em 14JULH2009.

16ª) Daí a tempestividade, em qualquer caso, da presente acção e da não verificação da prescrição (no caso de se entender que a mesma tem aqui relevância - cf. O invocado supra em 3 do corpo das presentes alegações).

Do abuso do direito

17ª) Da correspondência electrónica trocada entre autor e ré (fls. 21-23) resulta que entre FEV e MAR2008 (fls.21-23), a ré aceitava pagar ao autor de imediato 80.000€00 pela “parte dele” na casa.

18ª) Ou seja, a ré reconhece ao autor um direito, que agora pretende negar, numa postura que constitui autêntico abuso do direito, o qual é do conhecimento oficioso e pode ser declarado por esse douto tribunal “ad quem”.(cf. artigo 334º do CC e AC. RL15MAR1998)

Termina pedindo a revogação da sentença recorrida, substituindo-a, por outra, que julgue a acção procedente.

A R. contra-alegou, propugnando pela improcedência da apelação e confirmação da sentença recorrida.

QUESTÕES A DECIDIR.

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC) as questões a decidir, são:

a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente os arts. 1, 2 e 3 da BI;

b) procedendo a impugnação da matéria de facto, da improcedência da excepção de prescrição e procedência da acção;

c) ainda que não proceda a impugnação da matéria de facto, da improcedência da excepção de prescrição invocada; da interrupção do prazo prescricional;

d) do abuso de direito.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

1 – A. e R. partilharam mesa, leito e a casa, vivendo como se de marido e mulher se tratasse (al. A);

2 - Tiveram duas filhas, Sara, nascida em … de Janeiro de 1998, e Sofia, nascida em … de Maio de 2003 (al. B);

3 - No período em que viveram juntos, o casal decidiu construir uma casa própria de ambos (al. C);

4 - Na sequência de partilha extrajudicial, ao A. coube um lote de terreno sito à Rua …, freguesia de …, concelho de VFC, local onde decidiram construir a casa nova (al. D);

5 - A fim de beneficiarem de juros bonificados, A. e R. acordaram que o empréstimo bancário a contrair para a construção da casa nova seria feito apenas em nome da R (al. E);

6 - Para que tal fosse possível, acordaram ainda que o lote referido em 4 fosse registado em nome da R. (al. F);

7 - Em … de Dezembro de 1998, foi registada, a título provisório, a aquisição do prédio a favor da R. (al. G);

8 - No dia 1 de Fevereiro de 1999, no Cartório Notarial de …, foi celebrada “escritura pública de compra e venda/mútuo com hipoteca”, nos termos da qual o A., sua mãe e seus irmãos, declararam vender à R., e esta comprar, o lote referido em 4 – lote 13 – pelo preço de um milhão e cinquenta mil escudos, que os primeiros declararam já ter recebido (al. H);

9 - Por meio dessa escritura, o “Banco C, S.A.”, concedeu à R. um empréstimo no valor de vinte milhões de escudos, do qual esta se confessou logo devedora, sendo um milhão e cinquenta mil escudos para o pagamento do lote 13, e os restantes para construção da moradia do casal (al. I);

10 - A casa foi construída, tendo ficado inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … descrita na Conservatória do Registo Predial de … com o nº …/… (al. J);

11 - Encontra-se registada em nome do A., desde 1995, a aquisição de uma casa de moradia sita Rua .., nº …, na freguesia de …, concelho de …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … e descrita na Conservatória do Registo Predial de P… (al. K);

12 - Em 6 de Março de 2002, o A. contraiu um empréstimo bancário no valor de €79.807,66 (setenta e nove mil oitocentos e sete euros e sessenta e seis cêntimos), tendo constituído, como garantia, uma hipoteca a casa referida em 11 (al. L);

13 - A R. declarou-se “fiadora e principal pagadora das dívidas contraídas” [pelo A.] no âmbito desse empréstimo (al. M);

14 - Desse valor, o A. usou a quantia de €28.000,00 (vinte e oito mil euros) para pagar uma dívida pessoal (al. N);

15 - Em 11 de Abril de 2008, a R. e Maria outorgaram escritura pública de compra e venda, nos termos da qual a primeira declarou vender, e a segunda comprar, pelo preço de €255.000,00 (duzentos e cinquenta e cinco mil euros), o imóvel referido em 10 (al. O);

16 - Desde sensivelmente 1992 a 27.11.2003, M e P residiram juntos nos termos referidos em 1 (arts. 1º e 2º da BI);

17 - Durante o período referido em 16, M contribuiu para o lar com despesas, dele e dos demais, a título de alimentação, roupa, formação, saúde, lazer e com o automóvel (art. 3º da BI);

18 - O valor remanescente do empréstimo referido em 12 – 51 000€ – foi usado na conclusão das obras da casa referida em 10 (art. 4º da BI);

19 - Em 1.3.1999, P transferiu para conta do autor os 1050 contos referidos em 8 (art. 5º da BI);

20 - A R. recusa-se a entregar ao Autor metade do valor referido em 15 (art. 7º da BI).

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Começa o apelante por impugnar a decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente no que respeita à resposta dada aos arts. 1º, 2º e 3º da BI.
Tendo o apelante dado cumprimento ao disposto no art. 640º, nºs 1 e 2 do CPC, e tendo os depoimentos prestados em audiência de julgamento sido gravados, nada obsta à reapreciação pretendida.
Perguntava-se nos mencionados artigos da BI:
1º- A. e R. viveram juntos desde finais de 1995 até Novembro de 2006 ?
2º- ou desde Setembro de 1992 até Março de 2003 ?
3º- Durante o tempo que viveram juntos, o A. contribuía para as despesas com a casa de morada, para a alimentação do casal e das filhas, com as despesas de vestimenta de todos, despesas de saúde e formação, bem como encargos com lazer e carro ?
Sobre tal matéria foram dados como assentes os factos consignados nos pontos 16 e 17 da fundamentação de facto.
Pretende o apelante a sua alteração, propugnando que, com base no depoimento da testemunha Maria O, a tais artigos da BI deveriam ter sido dada as seguintes respostas:

1º- provado que: sensivelmente de 1992 a NOV2006, mantiverem a relação que os unia.

2º- Não provado.

3º- Provado, sendo o período em referência entre 1992 a NOV2006.

Analisada a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, verifica-se que, sobre a matéria constante dos arts. 1º e 2º da BI, o tribunal recorrido ponderou, de forma conjugada, e detalhadamente justificada, os documentos juntos de fls. 131 a 141 (missiva enviada pelo A. à R.), e de fls. 142 a 154 (relatórios elaborados pela Seg.Soc. com base em declarações do A. e da R.), o depoimento de parte do R. (reproduzido a fls. 961 vº), e o depoimento das testemunhas Maria A, Maria F e Sónia, desvalorizando o depoimento da testemunha Maria G pelos motivos  explicados.

É certo que o tribunal recorrido nenhuma referência fez ao depoimento da testemunha indicada pelo apelante (Maria O) [4], mas como pode o apelante pretender a alteração da factualidade provada com base, apenas, no depoimento de um única testemunha, sem que ponha em causa toda a restante prova valorizada pelo tribunal recorrido, ou sem “rebater” a ponderação que o tribunal recorrido fez da mesma ?

Atente-se que a prova é um todo que deve ser ponderada e sopesada na sua análise articulada, atentas as regras da experiência e a sua verosimilhança.

O tribunal recorrido explicou, de forma muito clara e exaustiva, porque valorizou os depoimentos das referidas testemunhas Maria A, Maria F e Sónia e desvalorizou o da testemunha Maria G, referindo-se à sua razão de ciência e à forma como depuseram, não se podendo deixar de ponderar a prova documental a que fez referência e o depoimento de parte do R., bem como as circunstâncias em que se deu a ruptura da união de facto, e a que o tribunal recorrido também fez referência.

O depoimento da testemunha Maria O, pela sua razão de ciência e conteúdo, foi de tal forma que põe em causa toda a referida prova ?

Depois de analisar os documentos juntos aos autos e ouvidos os depoimentos de todas as testemunhas afigura-se-nos que não.

A testemunha Maria O é mãe do A., e referiu, por várias vezes, que não podia precisar datas, quer por serem “muitos filhos e muitos netos”, quer por a sua memória já não estar muito boa.

O apelante limita-se a “realçar” as passagens do depoimento da testemunha que considera relevantes, mas o seu depoimento, tal como o das outras testemunhas, deve ser ponderado na globalidade.

E o que resulta do depoimento da testemunha é uma grande incerteza quanto à data até a qual A. e R. viveram em união de facto, sendo certo que, embora dizendo que ainda estiveram juntos durante 2 ou 3 anos após o nascimento da filha mais nova (que nasceu em 14.05.2003), acaba por dizer que após tal nascimento (“uns meses acrescentados”) a R. ficou a viver em ...e o A. em P…, indo a ...aos fins-de-semana, “iam jantar juntos” [5].

O depoimento desta testemunha não é de molde a pôr em causa o depoimento das testemunhas Maria A, Maria F e Sónia, que depuseram no sentido constante da fundamentação do tribunal recorrido e para o qual se remete, que resulta consistente na conjugação com a prova documental supra referida e o depoimento de parte do R., e que sustenta, plenamente, a resposta dada pelo tribunal recorrido aos mencionados artigos da BI.

Não existe, pois, qualquer erro de julgamento na apreciação da prova produzida, devendo manter-se a resposta dada aos arts. 1º e 2º da BI, improcedendo, nesta parte, a apelação.

Tal como improcede relativamente à resposta dada ao art. 3º da BI.

O depoimento desta testemunha, nesta matéria, resume-se a depoimento indirecto, ao que sabia através do seu filho (o A.), que lhe dizia que cada um tinha a sua conta, mas que partilhavam as despesas, não sabendo pormenores, e afirmando que não fazia perguntas, “eram um casal”.

Em todo o caso, a resposta dada pretendeu “apenas tornar claro que a contribuição para as despesas dos demais membros do agregado respeita a todos aqueles itens e não apenas aos que no quesito se postam antes do inciso “de todos”, baseou-se na documentação junta a fls. 675 e ss., e 835 e ss. (extractos bancários), ponderadas as regras da experiência comum, conforme fundamentação de fls. 964 vº e 965, a qual se subscreve, nenhuma censura nos merecendo.

Improcede, pois, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sendo a factualidade provada a que deve ser ponderada.

2. E, assim sendo, atenta a data em que cessou a união de facto entre A. e R. (27.11.2003), mostrava-se, de facto, prescrito o direito do A. à data da propositura da presente acção (5.08.2009), por força do disposto no art. 482º do CC, não se tendo, entretanto, verificado nenhum facto interruptivo (art. 323º do CC) ou suspensivo (art. 318º do CC) daquele prazo, como decidiu o tribunal recorrido.

3. Sustenta o apelante que, mesmo sem alteração da factualidade tida por provada, ou seja, mesmo que se mantenha como data de cessação da união de facto entre A. e R. a data de 27.11.2003, deve entender-se que o direito do A. não se mostra prescrito porquanto o facto que está na origem do pedido do autor, é a venda da casa, património de ambos (autor e ré), feita pela ré a terceiros, a que corresponde o direito de haver para si metade do produto dessa venda (sendo este o pedido), e tendo a referida venda da casa, de acordo com a escritura pública junta aos autos, ocorrido a 11.04.2008, é inquestionável que o direito do autor – e que este pretende fazer valer com a sua demanda - só emerge na sua esfera jurídica a partir da referida data, não sendo vinculante o acórdão do STJ proferido nestes autos sobre esta questão.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não podemos sufragar tal entendimento.
Como se fez constar no relatório supra, invocada a questão da prescrição do direito do A. pela R., o tribunal recorrido pronunciou-se pela não verificação da referida excepção porquanto entendeu que, atento o pedido e a causa de pedir, o ponto de partida de contagem do prazo de prescrição do direito de que o A. se arroga titular era o da venda da casa, cuja metade do valor reclama, como sustenta o apelante, entendimento que veio a ser confirmado por esta Relação.

Contudo, por força de revista interposta pela R., o STJ veio a entender que “o prazo de prescrição de três anos do direito à restituição fundada no enriquecimento sem causa, dada a deslocação patrimonial do empobrecido a favor do património do enriquecido em razão da união de facto, surge com o termo da união de facto”, motivo pelo qual revogou a decisão que conheceu da excepção de prescrição invocada, por a sua apreciação depender de factualidade ainda controvertida.

Ou seja, a questão da prescrição ora suscitada pelo apelante, foi já objecto de apreciação pelo tribunal, até à última instância.

E se é certo que o STJ não decidiu em termos de se verificar ou não a referida excepção (o que não podia fazer por serem ainda controvertidos os factos sobre que deveria assentar tal conclusão), não menos certo é que decidiu que o conhecimento da excepção invocada estava dependente, apenas, de se apurar a data a partir da qual havia cessado a união de facto entre o A. e a R., afastando, expressamente, o entendimento que havia sido sufragado pelo tribunal de 1ª instância e da Relação, e, agora, represtinado pelo apelante.

A formação de caso julgado [6] alarga-se para além da parte dispositiva da decisão, à resolução das questões que a sentença tenha necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada [7].

A delimitação objectiva ou extensão do caso julgado não tem merecido entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência.

Contudo, perfilhamos o entendimento supra referido, uma vez que a “economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos pelo critério eclético que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconheceu todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado” (sublinhado nosso) [8]

É pelo teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado [9] .

E no caso, a decisão do STJ só foi a de relegar o conhecimento da excepção de prescrição por falta de elementos de facto, porque decidiu que era com o termo da união de facto que se iniciava o prazo prescricional para o A. exercer o seu direito.

Ao contrário do sustentado pelo apelante, concluímos, pois, que a decisão do STJ é vinculativa dentro do processo.

Improcede, assim, a apelação nesta parte.

Ainda nesta matéria vem o apelante referir que o invocado pela apelada “na contestação dos presentes autos está em contradição com o afirmado pela R. no P. …/08, em que a mesma afirma que a sua relação com o autor cessou em Março2006 (fls. 607), o que, de acordo com as regras do senso comum, não pode ser visto como mero lapso de escrita, mas um conveniente alterar de uma data, com vista a forçar a invocada prescrição”.

Desde logo será de referir que esta questão melhor se enquadra no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, relativamente aos arts. 1º e 2º da BI.

Contudo sempre se dirá que nenhuma razão assiste ao apelante, atento o que supra já se deixou escrito, a que se acrescenta o seguinte:

Por um lado, em causa está eventual confissão judicial que apenas releva no âmbito do processo em que foi produzida (arts. 352º, 355º, nºs 1, 2 e 3 e 356º, nº 1 do CC).

Por outro lado, apreciando livremente a questão e em conjugação com a demais prova existente nos autos, partilhamos o entendimento do tribunal recorrido de que existem vários elementos que permitem concluir que em causa está mero lapso de escrita, ao contrário do que entende o apelante.

Assim, escreveu o tribunal recorrido que “em primeiro lugar, a expressão linguística por ela usada nas duas acções é idêntica, com excepção do ano – disse nestes autos que “o A. deixou de partilhar fosse o que fosse com a R. em Março de 2003” (fls. 30); disse na acção anterior que “O A. deixou de partilhar fosse o que fosse com a R. em Março de 2006” (fls. 607) - é bem provável que a distinta alegação se resolva em mero erro de escrita. Mas isto só, assim, seria evidentemente pouco, havendo razões várias para concluir que a dita convivência comum (chamemo-la assim) cessou em Novembro de 2003, reforçando a ideia de que se tratou efectivamente de um lapso, o alegado naquela acção. Assim, e em segundo lugar, quer a R., quer o A., em entrevista que deram aos serviços sociais [10], no âmbito de regulação de responsabilidades parentais, transmitiram ao técnico competente que “o fim da união de facto coincidiu com o nascimento da menor Sofia, em 2003 (fls. 144 e 150); e o próprio A., unilateralmente, em missiva que enviou à R. em 9.05.2008, disse expressamente que saiu de casa em “2003” (fls. 131), em “Novembro de 2003” (fls. 132), mencionando ainda que ela, a R., desfrutava da casa que ele reputa comum “desde a (…) separação, há mais de 4 anos” (fls. 132). Em terceiro lugar, ainda o A., em depoimento de parte, confessou expressamente que deixou de viver com a ré desde 27.11.2003 (fls. 961 vº). …”.

Improcede, pois, a apelação, também nesta parte, ficando prejudicada a apreciação da questão de verificação da interrupção do prazo prescricional, uma vez que o apelante aprecia esta questão tendo por adquirida a data (alegada pela apelada na acção nº …/08) de Março de 2006.

4. Por último, alega o apelante que, da correspondência electrónica trocada e junta aos autos, resulta que a apelada reconhece ao A. um direito que agora pretende negar, numa postura de autêntico abuso de direito, que ao tribunal compete oficiosamente conhecer.
Estatui o art. 334º do CC que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
O legislador sufragou a concepção objectivista do abuso de direito (que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico), o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in CCAnotado, Vol. I – 2ª ed., pág. 277.
 A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Como refere Jorge Coutinho de Abreu, in Do Abuso de Direito, pág. 43, “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
Para os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 300, “A nota típica do abuso do direito reside ... na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.
E Cunha de Sá, in Abuso do Direito, pág. 101 escreve que “abusa-se do direito quando se vai para além dos limites do normal, do legítimo: exerce-se o direito próprio em termos que não eram de esperar, ultrapassa-se o razoável, chega-se mais longe do que seria de prever”. E, mais adiante (na pág. 103), analisando a noção legal de abuso de direito, refere que o mesmo se traduz “num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido”.
O abuso de direito pode revestir várias modalidades [11], entre elas, a que estaria em causa nos autos - venire contra factum proprium -, que se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.
Ora, no caso em apreço, afigura-se-nos que não se verifica tal situação (nem nenhuma das outras).

Da factualidade provada nada permite tirar tal conclusão.

Alegou o A. na PI que a R. tem perfeita consciência do seu enriquecimento à custa do A., não acordando, porém, no valor a entregar-lhe, sendo que diversas vezes depois da separação de vida em comum se predispôs a entregar ao A., como sua parte no valor da casa, a quantia de 80.000€, remetendo para os documentos juntos de fls. 21 a 23 dos autos (arts. 31 a 33º).

Contestou a R. impugnando, especificamente tais artigos (art. 22 da contestação), e esclareceu que nunca se predispôs a entregar ao A. qualquer quantia, que a proposta de 80.000€ foi apresentada por este, nunca tendo a R. aceite os termos da proposta.

Ora, dos documentos a que o apelante alude não resulta incontestável que a A. tenha reconhecido o direito do A. a receber alguma quantia como sua parte no valor da casa – a demonstrá-lo está a expressão utilizada pela R., no email de 6.02.2008, “que julgas ter direito” reportando-se a eventual entrega dos mencionados €80.000.

O que resulta dos documentos é a existência de “negociações”, com vista a uma solução extrajudicial da questão, o que não significa, ao contrário do que pretende o apelante, que a apelada tenha reconhecido o direito do A., que, na presente acção negou existir.
 Face aos elementos constantes dos autos não se pode, pois, concluir pela actuação da R. em manifesto abuso de direito, improcedendo, pois, na totalidade a apelação.
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
                                                           *
                                       Lisboa, 2014.09.23
                        (Cristina Coelho)                                          

                                       (Roque Nogueira)
                                              
                                      (Pimentel Marcos)

[1] Entendeu o tribunal que “… No caso dos autos, o A. pretende, “grosso modo”, seja reconhecido o direito a haver para si metade do valor de venda da casa de habitação que construiu e partilhou com a Ré. Ora, o facto que está na origem do pedido é a venda da casa. E a venda da casa, de acordo com a escritura pública junta aos autos, …, ocorreu a 11 de Abril de 2008. Esse é o ponto de partida de contagem do prazo de prescrição do direito de que o A. se arroga titular, …. Assim, naturalmente, impõe-se a conclusão de que o direito que o A. aqui pretende fazer valer não se encontra prescrito. …”.
[2] Subscrevendo o entendimento da 1ª instância de que, atenta a estrutura concretamente imprimida à causa de pedir e ao pedido sequencialmente formulado pelo A., este “só estaria em condições efectivas de exercer o seu direito a partir da data da venda do bem realizada pela R. e nunca em momento anterior”.
[3] Entendeu o STJ que foi em razão da união de facto que a R. adquiriu a propriedade exclusiva do imóvel, cujos custos foram suportados por ela mas também pelo A. com quem viveu em união de facto, e a causa justificativa da deslocação patrimonial do A. para a R., materializada no valor do imóvel, deixou de subsistir com a ruptura dessa relação. E concluiu que “o prazo de prescrição de três anos do direito à restituição fundada no enriquecimento sem causa, dada a deslocação patrimonial do empobrecido a favor do património do enriquecido em razão da união de facto, surge com o termo da união de facto” (sublinhado nosso).
[4] Eventualmente por não o ter valorizado, o que, não obstante, não o dispensava de lhe fazer referência e justificar aquele entendimento, como o fez relativamente à testemunha Maria G.
[5] Sendo duvidoso que o manter desse tipo de relação ainda se pudesse considerar a continuação de uma situação de união de facto, que pressupõe a comunhão de “cama, mesa e habitação”.
[6] Que no caso é material e formal.
[7] Como sustenta Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, págs. 200 a 301.
[8] Autor anteriormente citado.
[9] Entre outros, cfr. o Ac. da RP de 12.01.98, P. 9750623, rel. Desemb. Ribeiro de Almeida, in www.dgsi.pt.
[10] Em Outubro de 2009.
[11] Menezes Cordeiro in “Da Boa Fé no Direito Civil”, pág. 719 e ss., faz referência ao “venire contra factum proprium”, à “inalegabilidade de nulidades formais”, à “suppressio”, à “surrectio”, ao “tu quoque” e ao “desequilíbrio no exercício jurídico”.