Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
158/2000.L1-6
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO DE IMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O contrato-promessa só confere, em regra, um direito de crédito ao promitente-comprador – o direito à celebração do contrato prometido e definitivo – e que, ainda que haja tradição da coisa para o mesmo, este não passa de um “detentor ou possuidor precário” nos termos e para os efeitos do artigo 1290.º, convindo conjugar esta norma com as contidas nos artigos 1253.º, que define aquele conceito e 1265.º (inversão do título da posse, que no caso dos autos não ocorreu), todos do mesmo texto legal, o que é impeditivo, em tese geral, da prescrição aquisitiva da mencionada coisa.
II – Um crescente número de situações anómalas ou invulgares, que tem vindo a ser julgado pelos nossos tribunais, obrigou, contudo, a uma inflexão nessa posição de princípio, por se revelar, cada vez mais, redutora, inadequada e injusta para com os direitos do promitente-comprador.
III – Importa distinguir o contrato-promessa, que só tem a virtualidade de produzir efeitos jurídicos de natureza creditícia, do acto de entrega do imóvel ao promitente-comprador, que se reconduz a um acordo jurídico diverso daquele negócio, apesar de, muitas vezes, coincidente formal e temporalmente com o mesmo.
IV – É juridicamente possível e admissível que, no âmbito de um contrato-promessa, em que houve, paralelamente, tradição da coisa e desde que verificadas determinadas circunstâncias, que indiciem, suficientemente, esse propósito e realidade, o promitente-comprador exerça poderes de facto sobre o bem em causa (“corpus”) com o “animus” correspondente ao direito de propriedade ou a outro direito real menor (que se presume, nos termos do artigo 1268.º, número 1 do Código Civil), posse essa, em nome próprio, que, desde que desenvolvida pública, pacificamente e pelo período de tempo legalmente imposto, é susceptível de consubstanciar a prescrição aquisitiva da coisa possuída, passando o respectivo possuidor ou os seus sucessores a serem titulares, em termos originários, do direito real em questão.
V – Tal aquisição originária (usucapião) sobrepõe-se à aquisição derivada do mesmo prédio, ainda que esta última se encontre registada na Conservatória do Registo Predial competente.
( Da responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

A - LDA, instaurou, em 10/03/2000, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário (reivindicação de propriedade) contra B , residente na Praça, n.º 20, 2.º L, pedindo, em síntese, que o Réu seja condenado no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a aludida fracção, na respectiva entrega do imóvel e no pagamento de indemnização, a título de danos pela privação do uso da fracção, correspondente a quantia de Esc. 100.000$00, por cada mês - contados desde a data da aquisição e até à efectiva entrega - acrescida de juros de mora sobre tal montante.
(…)
Foi então proferida nova sentença, a fls. 822 e seguintes, com data de 6/08/2010, em que, em síntese, foi decidido o seguinte:
“Face ao exposto, julga-se a presente acção improcedente por não provada e, em consequência absolve-se o Réu dos pedidos contra si formulados.
Julga-se a acção reconvencional procedente, por provada e, em consequência, decide-se:
a) Reconhecer a aquisição da propriedade pelo Réu, por usucapião, sobre a fracção "FT", 2.º Andar, letra L, terceira zona, parte habitacional, Bloco Poente ou Bloco A, do prédio sito na Praça, n.º 2, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de …, sob a ficha n.º 00000/151189, freguesia da …;
b) Declarar extinto o direito da Autora sobre o referido imóvel a ordenando o cancelamento da respectiva inscrição (apresentação 39/98827).
Custas a cargo da Autora. Registe e notifique.”
*
A Autora, notificada de tal decisão final, veio, a fls. 835, interpor recurso de apelação, que foi admitido a fls. 840, tendo sido determinado a sua subida imediata, nos próprios autos e fixado o efeito meramente devolutivo.
A Apelante veio, a fls. 344 e em 19/10/2007, interpor recurso de apelação dessa sentença judicial.
O juiz do processo admitiu, a fls. 348, o recurso de apelação interposto, tendo determinado a sua subida imediata, nos próprios autos e fixado o efeito meramente devolutivo.
(…)
II – OS FACTOS
1 - O direito de aquisição da fracção correspondente ao 2.º andar L – 3.ª zona parte habitacional - Bloco Poente ou Bloco A - destinado a habitação, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º …, encontra-se inscrito a favor da Autora desde 27/8/1998, por compra a C , LDA." - Alínea A);
2 - Por escritura pública de 15/6/98, realizada no 2.º Cartório Notarial de …, D e E, na qualidade de gerente da sociedade " …..ESTABELECIMENTO DE Leilões, LDA" que outorga na qualidade de mandatário judicial nos autos de execução fiscal n.º 349/93/102946, em que é penhorada da sociedade " ….. & IRMÃOS, LDA.", e F e G , que outorgam na qualidade de gerentes e em representação da sociedade " A , LDA" declararam os primeiros que, pelo preço de Esc. 34.225.000$00, que declararam já recebido, vendem à sociedade representante dos 2.ºs outorgantes, entre outras fracções identificadas na respectiva escritura, a fracção autónoma designada pelas letras "FT" correspondente ao 2.º andar L – 3.ª zona parte habitacional, Bloco A, destinada a habitação, com o valor patrimonial correspondente a 1.018.368$00 e que corresponde ao preço de sete milhões, quinhentos e cinquenta mil escudos, e os segundos declaram que aceitam para a sociedade, sua representante, o presente contrato - Alínea B);
3 - Por acordo escrito datado de 14/4/78, “… & IRMÃOS, LDA., como promitente vendedor e B , como promitente-comprador, declaram entre si celebrar o contrato promessa de compra e venda constante de fls. 61 dos autos, nos termos do qual a primeira contraente declarou ser dona do 2.º andar L - Bloco SIL - A, …, e nessa qualidade promete vender ao segundo contraente o referido andar pelo preço de Esc. 1.350.000$00, declarando ter recebido nessa data como sinal e pagamento total a quantia de Esc. 1.350.000$00 - Alínea C);
4 - Consta ainda do acordo referido em C) que a escritura de compra e venda será celebrada no prazo de 90 dias a contar da data de registo da constituição da propriedade horizontal na respectiva Conservatória e que "a cave do edifício não faz parte dos bens comuns do prédio pelo que este contrato não dá qualquer posse na referida área" e ainda que "todos os encargos com a transacção, serão da conta do promitente-comprador, assim como a sua quota-parte das despesas com a manutenção do prédio logo que elas existam, nomeadamente: taxa de saneamento, Contribuição Predial, ordenado da porteira, conservação de elevadores, energia eléctrica, etc." - Alínea D);
5 - Por acordo escrito datado de 21/7/80, …& IRMÃOS, LDA., como promitente vendedor e B , como promitente-comprador, declaram entre si celebrar o contrato promessa de compra e venda constante de fls. 108 dos autos, nos termos do qual a primeira contraente declarou ser dona do 2.º Andar L - Bloco SIL - A, sito …, e nessa qualidade promete vender ao segundo contraente o referido andar pelo preço de Esc. 3.350.000$00, declarando ter recebido nessa data como sinal e pagamento total a quantia de Esc. 3.350.000$00 - Alínea E);
6 - Do acordo referido em E), consta ainda:
- A escritura será celebrada até ao dia 21/7/81, devendo a promitente vendedora avisar o promitente-comprador, com pelo menos 8 dias de antecedência, do local e hora;
- A cave do edifício não faz parte dos bens comuns do prédio pelo que este contrato não dá qualquer posse na referida área. Além da cave, toda a zona comercial e terraços da mesma, ao nível do 1.º andar poderão sofrer as alterações que convenham à 1.ª promitente, dando-lhe esta o destino que entender, podendo até nestas áreas comuns, ceder acessos a outros prédios.
- As áreas comuns poderão também ser alteradas de acordo com os interesses da promitente vendedora.
- Todos os encargos com a transacção, serão da conta do promitente-comprador que fica autorizado desde já a ocupar o andar - Alínea F);
7 - A constituição da propriedade horizontal relativa ao prédio onde se integra a fracção referida em A), foi registada em 11/9/79 - Alínea G);
8 - Em 19/9/86 foi registada uma penhora sobre a fracção referida em A), efectuada em 18/9/86, em execução movida pela Fazenda Nacional contra …&IRMÃOS, LDA. - Alínea H);
9 - Em 27/1/94 foi registada uma penhora sobre a fracção referida em A), efectuada em 30/11/93, em execução movida pela Fazenda Nacional contra …& IRMÃOS, LDA. – Alínea I);
10 - A fracção descrita em A) corresponde à fracção "FT" - art. 1.º;
11 - Os Réus têm habitado a fracção, dela retirando proveitos próprios - art.º 3.º;
12 - Contra a vontade da Autora - art.º 6.º;
13 - O valor das rendas correntes no mercado habitacional para uma fracção equivalente à fracção referida em A) é de cerca de 75 a 80 mil escudos - art.º 8.º;
14 - Desde a aquisição da fracção que a Autora tem contactado os Réus para que este procedessem à entrega daquela, livre e devoluta de pessoas e bens - art.º 9.º;
15 - O mandatário judicial da Autora enviou carta registada ao Réu, com aviso de recepção, para que este devolvesse a fracção que ocupa - art.º 10.º;
16 - Os Réus não responderam a tal carta que foi devolvida com indicação de "não reclamada" mas com aviso de recepção assinado e datado - art.º 11.º;
17 - Os Réus também não responderam a carta que com o mesmo conteúdo lhes foi enviada, sob registo, datada de 1/2/2000 - art.º 12.º;
18 - O preço da prometida venda, referida em C), no valor de Esc. 1.350.000$00, foi pago integralmente no acto de outorga do contrato dando a vendedora quitação - art.º 13.º;
19 - A escritura de compra e venda não foi logo celebrada por não estar ainda registada a constituição de propriedade horizontal sobre o prédio, o que só veio a acontecer em 11/9/1979 - art.º 14.º;
20 - Uma vez que o preço estava integralmente pago, o andar pronto a habitar e a casa que o Réu habitava anteriormente (sótão do Café …) prestes a ser demolida para construção de um novo edifico (o actual edifício …), a vendedora entregou ao Réu, naquela data, as chaves do andar - art.º 15.º;
21 - Razão pela qual foi estipulada a cláusula 7.ª do contrato referido na al. D) - art.º 16.º;
22 - Pelo que o Réu, a sua falecida mulher e a recém-nascida filha do casal, Ana…., mudaram de imediato para o andar dos autos, nele passando a ter instalada a sua economia familiar - art.º 17.º;
23 - Aí dormindo, tomando as suas refeições e recebendo os seus amigos e familiares, desde então - art.º 18.º;
24 - Aí nasceu o 2.º filho do casal – Ricardo…. - art.º 19.º;
25 - Aí faleceu a sua mulher - art.º 20.º;
26 - Aí tem o Réu continuado, ininterruptamente, a viver com os dois filhos e com a sua mãe que, após a morte da sua mulher, veio viver com ele - art.º 21.º;
27 - Entretanto, em 1980, a vendedora, alegando não poder celebrar a escritura do andar por não ter disponibilidade para pagar o distrate da hipoteca que onerava o prédio, propôs ao Réu uma correcção do preço de venda do andar, uma vez que o imobiliário se tinha entretanto valorizado - art.º 22.º;
28 - O Réu aceitou o aumento do preço, que passou a Esc. 3.350.000$00, tendo sido celebrado um segundo contrato, tendo o Réu pago de imediato a diferença e o vendedor dado a quitação da totalidade do novo preço - art. 23°;
29 - Mantendo-se o Réu e a sua família na utilização ininterrupta do andar dos autos desde 1978 - art.º 24.º;
30 - A vendedora continuou porém a não outorgar a escritura nem expurgou a respectiva hipoteca - art.º 25.º;
31 - O Réu alertou a leiloeira "….. ESTABELECIMENTOS DE LEILÕES, LDA" que outorgou a escritura referida em B), para a situação como mandatária para a venda, através de carta registada com A/R, em 12/10/1995 - art.º 26.º;
32 - Foi unicamente a grave situação económica e financeira da …& IRMÃOS LDA que não permitiu distratar a hipoteca e posteriormente levantar a penhora e outorgar a escritura definitiva como foi sempre sua intenção - art.º 27.º;
33 - A sociedade vendedora chegou mesmo, posteriormente, a outorgar procuração irrevogável a favor do Réu, mandatando-o para celebrar escritura de venda do andar consigo próprio, confirmando de novo que as contas entre ambos estavam regularizadas - art.º 28.º;
34 - O Réu não pagou a SISA que era devida - art.º 30.º;
35 - O Réu requereu a penhora da fracção referida em A), no processo n.º 1087/85 que correu termos na 1.ª Secção do 3.º Juízo Cível da Comarca de …, não tendo sido nomeado depositário, mas sim um terceiro - art.º 31.º;
36 - O Réu tinha conhecimento das penhoras efectuadas sobre o andar referido em A) - art.º 32.º;
37 - Na data referida em C), a sociedade "… & IRMÃOS, LDA" entregou as chaves da fracção aqui em causa ao Réu - art.º 33.º;
38 - Desde a data mencionada no artigo que antecede, o Réu passou a viver na fracção - art.º 34.º;
39 - No convencimento de que esse andar lhe pertencia - art.º 35.º;
40 - O que ocorreu de forma continuada - art.º 36.º;
41 - À vista de toda a gente - art.º 37.º;
42 - Sem a oposição de ninguém, à excepção da Autora, nos moldes da presente acção - art.º 38.º;
43 - Os condóminos, vizinhos, amigos e conhecidos do Réu consideram-no dono do andar dos autos - art.º 39.º;
44 - No momento em que outorgou o contrato referido em C) e recebeu da …& IRMÃOS, LDA o andar dos autos, o Réu actuou no convencimento de que não lesava o direito de outrem - art.º 40.º.

Factos não provados ou provados restritivamente:
(…)
III – O DIREITO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 690.º e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
A – REGIME PROCESSUAL APLICÁVEL
(…)
B – MATÉRIA DE FACTO
(…)
C – RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
A única questão que se suscita no âmbito deste recurso é, tão-somente, a seguinte: o Réu adquiriu, por força da posse continuada do prédio dos autos desde 14/4/78 e do instituto da usucapião, o direito de propriedade sobre o mesmo, sobrepondo-se tal aquisição originária à aquisição derivada decorrente da venda judicial do mesmo prédio à aqui Autora, sendo certo que entre aquele momento e tal transmissão no quadro de uma execução fiscal, concretizada em 15/06/1998, decorreram mais de 20 anos?
Escusado será dizer que nos encontramos face a mais um caso de confronto entre os legítimos interesses de um promitente-comprador que já vive no imóvel há mais de 33 anos e os interesses antagónicos e também legítimos de um posterior adquirente, desde a referida data, do direito de propriedade sobre a fracção que foi prometida vender ao primeiro, reclamando ambos em simultâneo o estatuto de proprietário sobre aquela.
Ambos vítimas de um mercado imobiliário excessivo e muito variável, enxameado de casas para vender e de empresas de construção civil, muitas delas, como se usa dizer, de vão de escada, e que, sustentadas essencialmente no crédito bancário próprio e de terceiros, não conseguem enfrentar os altos e baixos desse mesmo mercado, deixando, por muitos e largos anos, bastantes contratos-promessa por cumprir, dada a impossibilidade de distratarem as hipotecas que sobre esses imóveis incidem e onde já habitam os promitentes-compradores, ao mesmo tempo que os seus credores procuram, através da venda coerciva desses mesmo prédios, recuperar, até onde é possível, os valores que tais empresas lhes devem.     
É este o (triste) quadro que subjaz e explica o litígio dos autos, sendo considerável o número de casos semelhantes que os nossos tribunais têm sido chamados a dirimir. 
C1 – CONTRATO-PROMESSA E POSSE
A causa de pedir invocada pela Autora é complexa e radica-se na circunstância de ter comprado, no âmbito de uma venda executiva, a fracção dos autos, tendo liquidado o preço que lhe foi pedido e registado em seu nome tal aquisição, encarando o Réu como um ocupante sem título legítimo e bastante para a partir daquele acto de transmissão onerosa continuar a utilizar o dito imóvel, ao passo que a defesa do Réu se alicerça na sua qualidade de promitente-comprador do prédio em questão, na sequência de um contrato-promessa celebrado, em 26/11/1974, entre ele e a empresa …& IRMÃOS, LDA., construtora e dona do mesmo e na posse ininterrupta, pública, pacífica e de boa-fé desde aquela data até, pelo menos, à data da sua citação no quadro dos presentes autos, dado ter ocorrido a tradição do andar na altura da concretização do referido negócio jurídico, conjunto de factos que, na sua perspectiva, lhe permitem a aquisição da propriedade do mesmo por usucapião.
Sabe-se, com efeito, que o contrato-promessa só confere, em regra, um direito de crédito ao promitente-comprador – o direito à celebração do contrato prometido e definitivo – e que, ainda que haja tradição da coisa para o mesmo, este não passa de um “detentor ou possuidor precário” nos termos e para os efeitos do artigo 1290.º (“Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”), convindo conjugar esta norma com as contidas nos artigos 1253.º, que define aquele conceito, e 1265.º (inversão do título da posse, que no caso dos autos não ocorreu), todos do mesmo texto legal, tornando-se fácil, em tese geral, defender a impossibilidade do Réu beneficiar da prescrição aquisitiva por ele reclamada nestes autos (cf., neste sentido, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias do Cumprimento “, 5.ª Edição, Novembro de 2006, Almedina, páginas 226 e seguintes, muito embora, no último parágrafo da página 233, admita excepções; ver, também, Carlos Ricardo Soares, “Contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma - Guia prático”, 3.ª Edição, Agosto de 2005, Almedina, páginas 159 e seguintes, com referência à inúmera jurisprudência aí elencada e que se encontra dividida, como a nossa doutrina, quanto a estas questões).
Impõe-se, contudo, referir que um crescente número de situações anómalas ou invulgares, que tem vindo a ser julgado pelos nossos tribunais, obrigou a uma inflexão nessa posição de princípio, por se revelar, cada vez mais, redutora, inadequada e injusta para com os direitos do promitente-comprador.   
Salvador da Costa em “Os Incidentes da Instância”, Almedina, 1999, páginas 185 e 186, a este propósito, diz o seguinte (ainda que a propósito da possibilidade do promitente-comprador poder ou não embargar de terceiro face a uma penhora da fracção prometida):
“Há quem entenda que o promitente-comprador com direito à execução específica, isto é, o direito correspondente à aquisição da propriedade da coisa, independentemente de haver ou não haver tradição da coisa ou direito de retenção, pode deduzir embargos de terceiro contra o acto de penhora da coisa prometida alienar operado em acção executiva instaurada por quem não disponha de garantia real.
O direito à execução específica é o poder de o promitente-comprador obter decisão que produza a os efeitos da declaração do promitente vendedor em mora, ou vice-versa.
Não concordamos com essa posição, porque o promitente adquirente da coisa que entretanto foi penhorada é mero titular de um direito de crédito que não pode prevalecer sobre o direito real de garantia de cumprimento obrigacional derivado do acto de penhora.
Mas se o promitente-comprador registou a acção tendente a realizar o direito de execução específica antes de o exequente haver registado o acto de penhora, ou se se tratar de contrato promessa com eficácia real, parece que poderá deduzir embargos de terceiro contra aquele acto.
Se o promitente-comprador for realmente um possuidor, como é o caso do tradiciário de uma fracção predial que pagou a quase totalidade do preço e requisitou, em seu nome, a ligação da água e da energia eléctrica, agindo como se fosse dono dela, já é defensável que possa embargar de terceiro.
O êxito dos referidos embargos ficaria, porém, condicionado ao facto de o embargado não pedir o reconhecimento do direito de propriedade a que alude o n.º 2 do artigo 357.º, ou de o haver pedido sem êxito.
Mas importa ter presente que da traditio resulta, em regra, para o promitente-comprador um direito pessoal de gozo que não comporta o animus domini, pelo que não é um possuidor, salvo se a sua acção em relação à coisa revelar, nos termos do artigo 1265.º do Código Civil, inversão do título de posse.” (sublinhados nossos - cf. também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/1996, em CJ, Ano IV, Tomo 3.º, página 109, citado pelo Dr. Salvador da Costa).
Esta posição do Juiz Conselheiro Salvador da Costa parece permitir, ainda que em situações raras e excepcionais, que os promitentes-compradores possam possuir em nome próprio e na convicção de serem titulares do direito real correspondente aos actos de posse pelo mesmo desenvolvidos, tese essa que encontra acolhimento em alguns Acórdãos dos nossos tribunais superiores.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/1996, processo n.º 96A362, relator: Fernando Fabião, em www.dgsi.pt e BMJ n.º 461, páginas 457 e seguintes, no seu sumário, atesta o seguinte:

I – Em contrato-promessa de compra e venda de imóvel, a tradição da coisa para o promitente-comprador, acompanhada de factos que traduzam o "animus sibi habendi", transfere a respectiva posse para este, sem necessidade de registo, podendo ele defender a sua posse mediante embargos de terceiro em execução movida contra o promitente-vendedor, ainda que tenha havido penhora registada.
II – Efectivamente, a tradição da coisa para o promitente-comprador, após este ter feito o pagamento integral do respectivo preço, recebido as chaves e ocupado o imóvel em que passou a fazer obras de beneficiação, traduz o "animus sibi habendi" acompanhado do corpus, ainda que, no título inicial do contrato-promessa, se haja estipulado que a posse só seria transmitida após a escritura definitiva de compra e venda.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/03/2004, processo n.º 04B362, relator: Abílio Vasconcelos, em www.dgsi.pt, por seu turno, defende o seguinte (sumário): 

I – Na análise do conceito de posse deparam-se dois elementos: o "corpus", consistente no exercício de poderes de facto sobre a coisa e o "animus" que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos poderes exercidos.
II – A tradição da coisa, por via do contrato-promessa de compra e venda, para o promitente-comprador, confere a este o acesso à tutela possessória desde que aquela tradição seja seguida da prática, por aquele, de actos próprios de quem age em nome próprio.
Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/05/2006, processo n.º 06A1128, relator: Azevedo Ramos, que se pode encontrar no mesmo local, afirma o seguinte (sumário):

(…) V – Todavia, são concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse.
V – É o caso do promitente-comprador, emigrante em França, que se encontra no gozo de um apartamento que lhe foi entregue pelo promitente vendedor, mostrando-se já paga a totalidade do preço e que desfruta desse apartamento em vários períodos do ano, com a família e amigos, aí estabelecendo a sua residência em Portugal, procedendo ao pagamento do respectivo imposto municipal sobre o imóvel, do consumo de electricidade e do condomínio, tendo a coisa sido entregue ao embargante pelo promitente vendedor, há cerca de vinte anos, como se sua fosse já e sendo nesse estado de espírito que o promitente-comprador lá estabeleceu a sua residência em Portugal e praticou diversos actos correspondentes ao direito de propriedade, em nome próprio, com a intenção de exercer sobre ele o direito real correspondente.
VI – À relevância da posse do embargante não obsta a nulidade resultante da inobservância da forma legal do contrato promessa de compra e venda, pois um acto jurídico nulo tem o valor de imprimir à posse o seu carácter, sendo por ele que se há-de averiguar qual o animus do adquirente.
(cf., ainda, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/03/1999, em CJSTJ, 1999, Tomo I, páginas 137 e seguintes, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/11/2007, processo n.º 07A3674, relator: Urbano Dias e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/02/2004, processo 6313/2003-2, relatora: Maria José Mouro, em www.dgsi.pt; também Calvão da Silva, “Sinal e Contrato-Promessa”, Novembro de 2007, 12.ª Edição, Almedina, página 237, Nota 55, Menezes Cordeiro, “A Posse – Perspectivas dogmáticas actuais”, Almedina, 1997, página 77, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, obra citada, último parágrafo da página 233 e Carlos Ricardo Soares, obra citada, páginas 163 e seguintes, quer no que toca admissão de situações de genuína posse por parte do promitente-comprador, como no que se refere a alguma da jurisprudência aí indicada).
Importa talvez referir que alguns Arestos, como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/01/2005, Processo n.º 04A4411, relator: Lopes Pinto, em www.dgsi.pt, distinguem o contrato-promessa, que só tem a virtualidade de produzir efeitos jurídicos de natureza creditícia, do acto de entrega do imóvel ao promitente-comprador, que reconduzem a um acordo jurídico diverso daquele negócio, apesar de, muitas vezes, coincidente temporalmente com o mesmo.
O sumário do Acórdão em questão refere o seguinte, a este respeito:

II – A traditio é uma convenção autónoma, não se confunde com o contrato-promessa, muito embora o acompanhe com bastante frequência. Do contrato-promessa de compra e venda não resulta a transferência do direito de propriedade pelo que a posse decorrente da entrega em que se traduz o acordo de traditio, subsequente e em razão daquele contrato-promessa, não é titulada.
III – Pela traditio os actos materiais que antes, enquanto simples detentor, exercia em nome alheio, como intermediário do possuidor, passaram, presuntivamente, a ser por si praticados por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

Ouça-se, também, do mesmo tribunal superior, o Aresto de 17/04/2002, processo n.º 07A480, relator: Alves Velho, também em www.dgsi.pt (sumário):

- A eventual posse do promitente-adquirente não emerge do contrato-promessa, alheia que é ao respectivo objecto, mas de um outro acordo negocial e da efectiva entrega do bem pelo promitente-alienante;
- Em regra, o promitente-comprador exercerá sobre o bem um direito pessoal de gozo, semelhante ao do comodatário, mas que lhe não confere a realidade da posse, nem mereceu ainda equiparação legal.
- Sendo embora essa a regra, pode efectivamente haver posse do promitente-adquirente, o que sucederá quando, obtido o corpus pela tradição, a coberto da pressuposição de cumprimento do contrato definitivo e na expectativa fundada de que tal se verifique, pratica actos de posse com o animus de estar a exercer o correspondente direito de proprietário em seu próprio nome, ou seja, intervindo sobre a coisa como se sua fosse.
- Não é, assim, possível qualificar dogmaticamente como mera posse precária ou como verdadeira posse a detenção exercida pelo promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido em que é beneficiário de traditio, havendo de ser o acordo de tradição e as circunstâncias relativas ao elemento subjectivo a determinar a qualificação da detenção.
- (…)                                

(cf., igualmente e no mesmo local, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/1998, processo n.º 98B709, relator: Sousa Dinis, no mesmo local e de 3/03/2005, processo n.º 05B002, relator: Oliveira Barros, bem como Ana Prata, “O contrato-promessa e o seu regime civil”, Almedina, Agosto de 2001, páginas 830 a 832 e a doutrina e jurisprudência por essa autora referidas no respectivo ponto – contra, Miguel Mesquita, “Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro”, 2.ª Edição Revista e Aumentada, 2001, páginas 150 e seguintes, com maior relevância para o teor das páginas 177 e seguintes).
C2 – CONTRATO-PROMESSA, TRADIÇÃO DO IMÓVEL, POSSE E USUCAPIÃO
A sentença recorrida, bem como o Apelado, defendem que se verificou a aquisição, por usucapião, do prédio, dado o Réu e os seus familiares terem tido a posse do mesmo durante mais de 15 anos de uma forma titulada, pacífica, pública e de boa fé.
O principal obstáculo a tal tese é o relativo à possibilidade do promitente-comprador, em determinadas condições, já acima referidas e analisadas, poder exercer sobre a coisa, objecto mediato do contrato-promessa, uma posse em nome próprio (“corpus” e “animus”), correspondente ao exercício de um direito real de gozo, questão essa a que, em determinados casos, tem de ser dada resposta afirmativa.
Logo, constatada essa posse (por oposição à mera detenção) e desde que reunidos os demais pressupostos juridicamente reclamados para a aquisição por usucapião, conforme o disposto nos artigos 1251.º, 1263.º, alínea a) e 1258.º a 1262.º do Código Civil, não vislumbramos impedimento legal a que o promitente-comprador possa vir a ser instituído originariamente na titularidade do direito de propriedade ou de outro direito real menor de gozo sobre o bem prometido vender.   
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/05/2003, processo n.º 03B901, relator: Ferreira Girão, afirma, no seu sumário, de uma forma muito impressiva, isso mesmo:    

I – A tradição da coisa em consequência de contrato-promessa de compra e venda, mesmo unilateral, confere a posse quando circunstâncias especiais a revelem, como é o caso da coisa ser entregue ao promitente-comprador como se fosse sua e neste estado de espírito ele pratica diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade;
II – A boa fé no instituto da posse é de natureza psicológica, completamente desligada do justo título referido no artigo 476 do Código Civil de 1867, traduzindo-se no desconhecimento de se estar a lesar ou prejudicar terceiros, sendo o momento relevante para disso aquilatar, nos termos do artigo 1260 do Código Civil vigente, o da aquisição da posse;
III – A posse de boa fé, subsistindo por mais de 15 anos, confere a aquisição da coisa por usucapião, nos termos do artigo 1296 do Código Civil, ao promitente-comprador, mesmo que este não tenha pedido expressamente, na reconvenção que deduziu para tal efeito, o cancelamento do registo predial da coisa a favor do autor – reconvindo.

Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/07/2003, Processo 4591/2003-2, relator: Silveira Ramos, reitera tal tese: 
 
I – Em embargos de terceiro, averiguados os requisitos da usucapião, deve ser reconhecido como fundamento, a posse que aquela conduz.
II – A posse conferida ao abrigo de contrato-promessa de compra e venda, devidamente formalizado (art. 410,2 C.C.), com tradição da coisa vendida, a que coube direito real de retenção (art. 755,1,f) C.C.), com satisfação da quase totalidade do preço, e a actuação posterior de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (art. 1251 C.C.), faz presumir o “ animus ".

Pensamos, em suma, que é juridicamente possível e admissível que, no âmbito de um contrato-promessa, em que houve, paralelamente, tradição da coisa e desde que verificadas determinadas circunstâncias, que indiciem, suficientemente, esse propósito e realidade, o promitente-comprador exerça poderes de facto sobre o bem em causa (“corpus”) com o “animus” correspondente ao direito de propriedade ou a outro direito real menor (que se presume, nos termos do artigo 1268.º, número 1 do Código Civil), posse essa, em nome próprio, que, desde que desenvolvida pública, pacificamente e pelo período de tempo legalmente imposto, é susceptível de consubstanciar a prescrição aquisitiva da coisa possuída, passando o respectivo possuidor ou os seus sucessores a serem titulares, em termos originários, do direito real em questão.

C3 – CONTRATO-PROMESSA DOS AUTOS, TRADIÇÃO DA FRACÇÃO E AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO
Chegados aqui, resta-nos averiguar se o Réu logrou alegar e provar os factos conducentes a uma posse sobre o andar prometido vender, bem como os restantes requisitos legalmente exigidos para a verificação da aquisição por usucapião do mesmo.
Os artigos 1251.º, 1252.º, 1257.º e 1263.º do Código Civil, a respeito do instituto da posse, estatuem o seguinte:
(…)
Impõe-se lembrar, por outro lado, os factos dados como provados e relativos à entrega e posterior utilização da fracção prometida vender por JOSÉ  e sua família, formada por sua esposa e pelos seus dois filhos (tendo um nascido já quando ali se encontravam a viver) e que são os seguintes:
(3, 4, 5, 6, 7, 10, 11, 18 a 33, 37 a 44)
A materialidade transcrita, referente ao período de tempo que medeia entre a entrega do bem imóvel e a venda do mesmo (20 anos e 2 meses, sendo de 20 anos certos, se tivermos em consideração o acto do pagamento do preço por parte da Autora, que ocorreu em 14/04/1998 – cf. Doc. de fls. 274 a 290, emanado da Repartição de Finanças de Setúbal), caracteriza-se da seguinte forma:
- Pagamento da totalidade do preço acordado (primeiro, no valor de Esc. 1.350.000$00 e, posteriormente, em 1980, no valor total de Esc. 3.350.000$00);
- Não marcação pela promitente-vendedora …& IRMÃOS, LDA da respectiva escritura de compra e venda, apesar de tal marcação ser uma incumbência contratual daquele, não o tendo feito por razões do seu foro exclusivo, derivadas das dificuldades financeiras e económicas que sentiu e que a impediram de distratar a hipoteca que incidia sobre aquele andar e que conduziram à penhora do mesmo, entre outros seus bens de mesma natureza;
- Não oposição por parte da referida empresa …& IRMÃOS, LDA relativamente à utilização como habitação permanente daquele prédio durante esse espaço de tempo, denotando-se antes o contrário, não só através no acto da entrega das chaves da dita fracção e da imediata autorização de ocupação do prédio, como no clausulado constante dos dois contratos-promessa, no que toca às despesas de condomínio, contribuição predial, taxa de saneamento, energia eléctrica, etc., que ficaram a cargo do promitente-comprador (tudo indicando que as relativas ao condomínio ficariam dependentes da prévia constituição da propriedade horizontal, o que veio a acontecer em 11/09/1979) como finalmente na passagem por aquela e a favor do Réu, em 17/06/1993, de uma procuração irrevogável e com poderes especiais para este poder contratar, em nome e representação da mesma, consigo próprio, com vista a firmar o contrato definitivo de compra e venda (este último procedimento tem, em nosso entender, como aliás, para o anterior Acórdão deste mesmo Tribunal da Relação de Lisboa proferido nos autos, um significado e alcance muito diversos, senão mesmo opostos, aos defendidos pela Autora nas suas alegações, pois é um sinal inequívoco da forma como a dita empresa via o Réu, na sequência do(s) negócio(s) celebrado(s) e da situação jurídica criada na sequência de tais contratos-promessa, ou seja, como o genuíno e definitivo dono do andar em causa – cf. Documentos juntos a fls. 60 a 62 e 108 e 109 - contratos-promessa, estando um certificado e outro sendo mera cópia -, 240 e 242 – certidão da procuração.      
- Residência fixa e continuada, com o seu uso quotidiano pelas pessoas que nele viveram e ainda vivem, tendo nascido já durante tal utilização o segundo filho do casal e igualmente falecido, em momento posterior, o cônjuge do Réu – cf. Atestado de Residência de fls. 63, datado de 24/05/2000;
- Julgamos ser possível presumir, nos termos dos artigos 351.º e seguintes do Código Civil, o pagamento dos diversos encargos (água, electricidade, telefone, seguros e demais despesas resultantes da normal utilização do andar), sendo o mesmo presumido, porque relativamente a quase todas essas despesas não foi feita prova documental da sua liquidação, com excepção dos encargos do condomínio – cf. recibos juntos a fls. 765 a 770, referentes ao período de 1989 a 1997 e que não brigam com aqueles juntos pela Autora a fls. 718 a 722, por respeitarem a um período posterior – 1999 em diante);
- As aludidas ocupação e utilização foram feitas de forma titulada – a tradição da coisa acha-se expressamente prevista e autorizada nos dois contratos-promessa, nos moldes particulares acima referidos -, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (até à aquisição derivada do andar pela Autora), nomeadamente, da promitente-vendedora e sua dona formal (…& IRMÃOS, LDA), no convencimento de que a fracção era do Réu e que não se achava a prejudicar nenhum direito de terceiro.
Contrapor-se-á ao conjunto de factos acima reproduzido e às conclusões que dele extraímos, estes outros que os parecem infirmar, por indiciarem actos e declarações de teor e significado diversos, impeditivos da aludida pose em nome próprio ou reveladores de que o Apelado, afinal, actuou na convicção de que o dito prédio não lhes pertencia mas sim aquela sociedade, sendo ele e a sua família meros e simples detentores daquele:
(1, 2, 8, 9, 11, 12, 14 a 17, 34 a 36 e 42)
No que toca à aquisição e registo da compra pela Autora do prédio, bem como às cartas enviadas ao Réu, convidando-o a deixar o mesmo e onde aquela manifestava a sua oposição a tal utilização (Pontos 1, 2, 11, 12, 14, 15, 16, 17 e 42 – cf. ainda os Documentos juntos, como n.º 1, a fls. 8 a 28 – certidão da Conservatória do Registo Predial -, como n.º 2, a fls. 28 a 37 – escritura de compra e venda – como n.ºs 3 e 4 – cartas envidas ao Réu), constata-se que tais actos aconteceram após o recurso do mencionado prazo de 20 anos, ou seja, daquele período máximo legalmente previsto para a prescrição aquisitiva (artigo 1296.º do Código Civil, para a posse não titulada e de má-fé), o que, salvo melhor opinião, lhe retiram qualquer efeito jurídico impeditivo nesta matéria da usucapião.
Também a circunstância do Réu não ter liquidado o Imposto da Sisa (Ponto 34 – cf. também resposta das Finanças de …, junta a fls. 274 a 290 – alínea a)] não nos impressiona pois não só se achará já prescrita tal dívida, a liquidar, pelo menos, no quadro da celebração do segundo contrato-promessa (pois este consome e substitui, em termos de preço, o primeiro), como, de qualquer maneira, tal omissão de índole tributária, a existir, não constitui facto impeditivo à verificação da referida aquisição originária por via da usucapião (o mais que poderá acontecer, caso a referida prescrição não se tenha verificado, é as Finanças virem agora reclamar ao Réu tal Imposto da Sisa ou o que o substituiu a partir de 1/01/2004).
Abordando agora a questão das duas penhoras incidentes sobre a fracção dos autos, dir-se-á que a primeira, efectuada em 18/09/1986 e registada em 19/09/1986, viu esta inscrição caducar em 22/04/1997 – cf. certidão da Conservatória do Registo Predial de fls. 8 a 28 -, vindo a segunda a concretizar-se em 30/11/1993 e a ser registada em 27/01/1994, dela derivando a venda executiva feita à Autora, tendo o Réu conhecimento delas (cf. Pontos 8, 9 e 36), em datas não apuradas.
A efectivação de tais penhoras pela Fazenda Nacional (uma delas, pelo menos, em nome da Caixa Geral de Depósitos) não tem a virtualidade de interromper ou suspender o decurso do prazo legal para a mencionada prescrição aquisitiva, nem tais actos de índole fiscal (direitos reais de garantia) possuem a virtualidade de modificar a convicção do Réu e dos seus familiares e os elementos da posse em nome próprio já acima enumerados, sendo certo que, como que aconteceu quanto à primeira apreensão judicial, a sua efectivação não significa necessariamente a transmissão posterior do imóvel penhorado a terceiros, sendo com ela que se afecta, em termos definitivos, a situação jurídica do bem apreendido e se atinge o objectivo primordial da acção executiva e: o pagamento coercivo da quantia exequenda e demais encargos, através da venda judicial do prédio, a não ser que ocorra entretanto a sua liquidação voluntária ou qualquer outra causa para a sua não realização no quadro daquela execução (por exemplo, a sua suspensão, nos termos do artigo 871.º do Código de Processo Civil, ou a declaração de insolvência do executado, conforme artigos 870.º do mesmo diploma legal e 88.º e 89.º do CIRE).
Afigura-se-nos mesmo que tais penhoras não constituíram surpresa para o recorrido, atentas as dificuldades económicas e financeiras sentidas pela promitente-vendedora …& IRMÃOS, LDA e que a impediam de distratar a hipoteca incidente sobre a dita fracção e celebrar o contrato definitivo de compra e venda da mesma, tendo o mesmo, designadamente através das acções judiciais, declarativa (onde a promitente vendedora foi, tão-somente, condenada a pagar ao aqui Réu o dobro do sinal, no valor de Esc. 6.700.000$00, por incumprimento do dito contrato-promessa, sem que haja qualquer pedido e/ou decisão de resolução deste último, e reconhecido o direito de retenção sobre a fracção prometida vender, até ser pago aquele montante,) e executiva (onde foi dada à execução tal sentença, com vista à cobrança coerciva da aludida quantia e juros de mora, com a penhora do dito andar e a nomeação como fiel depositário de outra pessoa que não o exequente), propostas pelo Réu contra aquela, conforme ressalta da certidão de fls. 246 e seguintes, garantir, na medida do possível e até onde a lei e a interpretação que da mesma era feita pela nossa doutrina e jurisprudência, a sua posição e estatuto jurídicos relativamente à mesma (impõe-se dar um especial realce ao direito de retenção reconhecido ao aqui Apelado, que lhe permitia continuar na posse do imóvel).
Neste ponto temos de acompanhar o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 488 a 505 e datado de 20/03/2007, quando afirma o seguinte:
“Contrariamente ao defendido pela Apelada, os actos levados a cabo pelo Réu consubstanciados no facto de ter intentado uma acção de condenação contra a promitente-vendedora (em 22.11.85, pedindo a restituição do sinal em dobro, nela lhe tendo sido reconhecido o direito de retenção sobre a fracção pelo pretendido crédito), ter executado a respectiva sentença e registado até a penhora sobre o imóvel, terão de ser devidamente enquadrados pois que não podem deixar de ser considerados como actos meramente formais, isto é, enquanto expedientes jurídicos para esgotar todos os meios de defesa dos respectivos interesses, atentas as razões que se encontravam subjacentes à não realização da escritura por parte da sociedade promitente-vendedora.
Por conseguinte, não podem ser entendidos como comportamentos neutralizadores (porque antagónicos) da conduta que o Réu assumia a nível fáctico e que se caracterizava, conforme vimos, pela prática reiterada de actos materiais com intenção de actuar por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre o andar.
Encontra-se por isso demonstrado que o Réu, desde a celebração do contrato-promessa - Abril de 1978 -, tem a posse do andar reivindicado nos autos.” 
Importa cruzar todo o quadro fáctico resumido e analisado (do qual se destaca a prática permanente de actos materiais de utilização e gozo da fracção autónoma prometida vender, traduzidos na vivência quotidiana, pessoal e familiar da mesma) com o regime legal transcrito, conforme interpretado pela doutrina e a jurisprudência acima transcrita e referida, sobressaindo do mesmo a presunção da existência de “animus”, ou seja, do convencimento do exercício da posse em nome próprio por parte daquele ou daqueles que exercem os poderes de facto sobre a coisa.
A este respeito, ouça-se Mota Pinto, “Direitos Reais”, Almedina, 1976, página 191: “O facto de a lei exigir o “corpus” e o “animus” para efeito de haver posse implica que o possuidor tenha de provar a existência dos dois elementos – um material, um psicológico – para poder, por exemplo, adquirir por usucapião ou lançar mão das acções possessórias.
Ora, esta prova poderá ser muito difícil. Como é que o possuidor prova o “animus”? Pois bem, para lhe facilitar as coisas, a lei estabelece uma presunção. A lei diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto.
Daqui decorre que, sendo necessário o “corpus” e o “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste” (cf. também, cf. Durval Ferreira, “Posse e Usucapião”, 2.ª Edição, Almedina, páginas 38 e seguintes e demais doutrina aí mencionada).    
A presunção legal em questão e a sua hipotética ilisão ou não por parte da Autora, nos termos e para os efeitos dos artigos 342.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil, nem sequer tem de ser chamada à colação, no caso em análise, por não se suscitarem dúvidas legítimas e plausíveis acerca da efectiva e positiva verificação de tal elemento.
Julgamos ter ficado provado, manifesta e objectivamente, que JOSÉ e a sua família actuaram na convicção de que a fracção em causa era materialmente deles e de que os actos nela e sobre ela realizados era feitos em nome próprio e por serem, materialmente, seus proprietários.
Está, portanto, demonstrado nos autos, com suficiente nitidez e segurança, que o Apelado e a sua família desenvolveram uma posse em nome próprio, titulada (cf., a este respeito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa acima transcrito e proferido também no âmbito desta acção, com o qual concordamos, atento o teor específico dos dois contratos-promessa nessa matéria - pagamento integral do preço, entrega imediata das chaves, autorização para o Réu e a sua família ali residirem, transferência para estes últimos de despesas gerais referentes ao andar, reforço de tal ideia com o segundo contrato-promessa e passagem mais tarde de uma procuração irrevogável a favor do Apelado – contra tal posição, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima transcrito, de 25/01/2005, Processo n.º 04A4411, relator: Lopes Pinto), de boa fé, pública, pacífica e sem oposição de ninguém até, pelo menos, à data da transmissão derivada dos autos (cf. a este respeito, os artigos 1251.º, 1263.º, alínea a) e 1258.º a 1262.º do Código Civil – cf. Durval Ferreira, obra citada, páginas 272 a 288 e Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 3.º Edição, 2000, Quid Júris, páginas 263 a 287, relativamente às características da posse).
Importa recordar que, muito embora a nossa doutrina e jurisprudência não exigem que a posse seja desenvolvida de forma ininterrupta, continuada e permanente sobre a coisa, num permanente contacto físico com a mesma, bastando a prática de acto ou actos que a indiciem suficientemente (cf., quanto a esta questão, Durval Ferreira, obra citada, páginas 128 a 141, Carvalho Fernandes, obra citada, páginas 265 a 267 e Mota Pinto, obra citada, páginas 181 e seguintes, acerca do “corpus”), encontra-se, nos autos, quanto à situação em análise e ao longo do tempo que mediou entre 1978 e 2000, uma efectiva e constante “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito” (artigo 1263.º, alínea a) do Código Civil).        
Logo, tendo em atenção o disposto nos artigos 1293.º a 1297.º do Código Civil, com especial relevância para o estatuído no artigo 1296.º (“não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé”), afigura-se-nos que o Réu adquiriu, ao fim de 15 anos, ou seja, em 14 de Abril de 1993, a propriedade sobre o prédio reivindicado nos autos, sobrepondo-se esta última (aquisição originária) à propriedade da Autora, derivada da aquisição derivada daquele (cf. certidão do registo predial junta a fls. 15 e seguintes) – neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03/02/1999, Processo n.º 98B1127, relator: Noronha do Nascimento, e do Tribunal da Relação do Porto de 21/06/2005, Processo n.º 0522982, relator: Mário Cruz, em www.dgsi.pt. (faça-se notar que mesmo o prazo máximo de 20 anos conferiria ao Réu tal aquisição originária da fracção).  
Sendo assim, pelos fundamentos acima expostos, o presente recurso de apelação tem de ser julgado improcedente, com a confirmação da sentença recorrida.                                     
Sumário
I – O contrato-promessa só confere, em regra, um direito de crédito ao promitente-comprador – o direito à celebração do contrato prometido e definitivo – e que, ainda que haja tradição da coisa para o mesmo, este não passa de um “detentor ou possuidor precário” nos termos e para os efeitos do artigo 1290.º, convindo conjugar esta norma com as contidas nos artigos 1253.º, que define aquele conceito e 1265.º (inversão do título da posse, que no caso dos autos não ocorreu), todos do mesmo texto legal, o que é impeditivo, em tese geral, da prescrição aquisitiva da mencionada coisa.
II – Um crescente número de situações anómalas ou invulgares, que tem vindo a ser julgado pelos nossos tribunais, obrigou, contudo, a uma inflexão nessa posição de princípio, por se revelar, cada vez mais, redutora, inadequada e injusta para com os direitos do promitente-comprador.
III – Importa distinguir o contrato-promessa, que só tem a virtualidade de produzir efeitos jurídicos de natureza creditícia, do acto de entrega do imóvel ao promitente-comprador, que se reconduz a um acordo jurídico diverso daquele negócio, apesar de, muitas vezes, coincidente formal e temporalmente com o mesmo.
IV – É juridicamente possível e admissível que, no âmbito de um contrato-promessa, em que houve, paralelamente, tradição da coisa e desde que verificadas determinadas circunstâncias, que indiciem, suficientemente, esse propósito e realidade, o promitente-comprador exerça poderes de facto sobre o bem em causa (“corpus”) com o “animus” correspondente ao direito de propriedade ou a outro direito real menor (que se presume, nos termos do artigo 1268.º, número 1 do Código Civil), posse essa, em nome próprio, que, desde que desenvolvida pública, pacificamente e pelo período de tempo legalmente imposto, é susceptível de consubstanciar a prescrição aquisitiva da coisa possuída, passando o respectivo possuidor ou os seus sucessores a serem titulares, em termos originários, do direito real em questão.
V – Tal aquisição originária (usucapião) sobrepõe-se à aquisição derivada do mesmo prédio, ainda que esta última se encontre registada na Conservatória do Registo Predial competente.


IV – DECISÃO 
Por todo o exposto, nos termos do artigo 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o presente recurso de Apelação interposto pela apelante A , LDA, confirmando-se, nessa medida, a sentença recorrida
*
Custas do presente recurso a cargo da Apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 6 de Outubro de 2011 
    
José Eduardo Sapateiro
Teresa Soares
Ana Lucinda Cabral