Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7277/2008-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: DENÚNCIA CALUNIOSA
DIFAMAÇÃO PRODUZIDA EM JUÍZO
FALSO TESTEMUNHO
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
CONSUMPÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. Os depoimentos prestados em diligências processuais penais são necessariamente dirigidos a terceiros pelo que a obrigatoriedade de prestar depoimento como testemunha não inclui a obrigatoriedade de o depoimento ter um determinado conteúdo, pelo que não se mostra excluída a possibilidade do preenchimento do tipo de difamação.
2. O facto de o Arguido, quando presta declarações em diligência processual penal, não estar obrigado a dizer a verdade, não afasta, só por si, a possibilidade de difamar/denunciar caluniosamente um terceiro ou um co-arguido.
3.Quando, prestando declarações, o Arguido ultrapassa o âmbito dos actos por si praticados e imputa a prática de actos a outra pessoa (sendo que tais declarações podem até ser valoradas para condenar co-arguidos, pelo que assumem a dimensão material de um testemunho), deixa de estar protegido por aquela possibilidade, pelo que pode cometer crimes contra a honra dessa pessoa.
4. A testemunha quando é chamada a depor cumpre um dever que é imposto por lei, pois, em princípio, não se pode recusar a depor, e tem a obrigação de falar com verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho, previsto no art.º 360º do C.P., realizando um interesse legítimo, e que radica no dever mais geral inerente a uma sociedade livre e solidária de denunciar a prática de um crime de que se tem conhecimento
5. Nesta posição, mesmo sabendo que com o seu depoimento pode lesar o bem jurídico protegido com a norma, a testemunha não pode recusar-se a depor.
6. Ora, quem age no âmbito do cumprimento de um dever, estando obrigado a falar com verdade, mostra-se indiferente ao facto de as suas revelações poderem ou não atingir a honra e consideração do visado, pelo que, nestas circunstâncias está afastada a possibilidade do agente, ao imputar factos que em si são difamatórios, querer ferir ou atingir a honra e consideração do visado.
7. Está assim afastado o dolo em qualquer das suas modalidades (art.º 14º, do CP) e afastada a ilicitude da sua conduta por agir no cumprimento de um dever legal pelo que, depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados à pessoa visada sejam em si difamatórios, nunca lhe poderá ser imputado o crime de difamação.
8. Sempre que alguém imputar a outrem, perante autoridade ou publicamente, com intenção de que contra ele se instaure procedimento, factos ofensivos da sua honra ou consideração, com consciência da falsidade da imputação, comete o crime de denuncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365º do CP, em concurso aparente com o crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do CP, sendo este consumido por aquele.
9. Estando o bem jurídico protegido pelo tipo do art.º 180º do CP (difamação) também protegido pelo tipo do art.º 365º do CP (denúncia caluniosa), sendo que este tipo protege ainda outros bens jurídicos, para além de que este é mais gravemente punido do que aquele, há que concluir que, quando se verifiquem, concomitantemente, os restantes elementos do tipo da difamação e da denúncia caluniosa, este tipo consome aquele.
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA



TEXTO INTEGRAL:
            Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
            No 4º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, despacho de 06/05/2008, constante de fls. 2004 a 2009, foi decidido não pronunciar os Arg.[1] (1) F…, (2) L…, (3) J…, (4) D…, (5) N…, (6) R… e (7) C[2], com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[3], respectivamente, de fls. 863, 868, 881, 887, 892, 897 e 967), pelos crimes de difamação e injúria, p. e p.[4] pelos art.º 180° e 181° do CP[5], de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360° do CP, e de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365° do CP.
            Findo o inquérito, o MP[6], prolatou o despacho de fls. 1403 a 1417, de 11/10/2005, no qual determina o arquivamento dos autos, relativamente aos crimes de falsidade de testemunho e de denúncia caluniosa, e ordena a notificação do Assistente para, querendo, nos termos do disposto no art.º 285º/1 do CPP[7], deduzir acusação particular, relativamente aos crimes de difamação e injúria.
            Perante tal despacho, o Assistente A…, com os restantes sinais dos autos (cf. fls. 612), deduziu a acusação particular de fls. 1440 a 1461, contra os Arg. supra identificados, acusando cada um deles da prática de um crime, na forma continuada, de difamação e injúria, p. e p. pelos art.º 180° e 181° do CP, e, pelo requerimento de fls. 1480 a 1513, pediu a abertura de instrução, relativamente aos crimes de falsidade de testemunho e de denúncia caluniosa.
            Por sua vez, os Arg. F… , L… , J… , D…, N… e R… requereram a abertura de instrução, relativamente aos crimes de difamação e injúria, de cuja prática o Assistente os acusou.
            Finda a instrução, foi proferido o despacho de não pronúncia supra referido.
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            Inconformado, veio o Assistente interpor recurso de tal despacho, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 2083 a 2126, com as seguintes conclusões:
A) “O presente recurso vem interposto da decisão instrutória de fls. 2004 a 2009 dos presentes autos, que não pronuncia os Arguidos F… e outros pelos crimes de denúncia caluniosa, falsidade de testemunho e difamação.
B) Na verdade, através da leitura dos depoimentos citados nos arts. 5º a 115º do pressente recurso, verifica-se que as contradições próprias e as contradições com as versões fantasiosas dos restantes Arguidos, são muito evidentes e retiram qualquer credibilidade aos referidos depoimentos.
C) Assim, estão preenchidos os pressupostos objectivos do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º CP, os Arguidos, perante autoridade, denunciaram o Recorrente de crimes de abuso sexual de menores, com a intenção que contra ele fosse instaurado procedimento,
D) Ao que acresce a agravação do nº 4 do referido artigo, na medida em que em consequência das declarações produzidas, o Recorrente ficou privado da sua liberdade durante 4 meses, dado que ficou sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
E) Estão também preenchidos os elementos subjectivos do referido tipo de crime, dado que os Arguidos tinham consciência da falsidade da sua imputação, reiterando a falsidade das imputações durante, pelo menos, os anos de 2003 e 2004.
F) Estão também preenchidos os pressupostos objectivos do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º CP, na medida em que os Arguidos, na qualidade de testemunhas, perante o tribunal e funcionário competente (Polícia Judiciária, Ministério Público e, mais tarde, Juiz de Instrução Criminal) para receber os referidos depoimentos como meio de prova, prestaram depoimentos falsos.
G) Estão também preenchidos os elementos subjectivos do referido crime, na medida em que os Arguidos tinham consciência que as suas declarações eram objectivamente falsas.
H) Releva que a falsidade se refira ao essencial da declaração, o que se verifica no caso sub judice.
I) Andou bem a decisão recorrida ao entender que estavam preenchidos os pressupostos do crime de difamação, mas o mesmo já não se pode afirmar relativamente à inclusão de uma causa de exclusão da ilicitude e ao interesse público legítimo.
J) Efectivamente, o interesse público legítimo e o exercício de um direito, só existem se os depoimentos forem integralmente verdadeiros e completos, o que não se verifica nos depoimentos acima descritos, pelo que a referida causa de exclusão da ilicitude não pode produzir qualquer efeito.”.
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O Ex.m.º Magistrado do Ministério Público, pela peça de fls. 2205 a 2208, respondeu, pugnando pela confirmação integral do despacho recorrido.
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            Responderam os Arg. C… , nos termos de fls. 2198 a 2204, Ricardo Oliveira, nos termos de fls. 2224 a 2236, e os restantes Arg., nos termos de fls. 2238 a 2248.
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            Neste Tribunal o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a resposta do MP na primeira instância, pugnou pela improcedência do recurso (fls. 2236 a 2269).
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            A esta posição responderam o Assistente (fls. 2328 a 2326) e o Arg. C…  (fls. 2278 a 2281), mantendo, no essencial as posições já assumidas nos autos.
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            Com estas respostas juntaram o Arg. C... e o Assistente, respectivamente, os documentos de fls. 2281 a 2237 (um artigo científico subscrito pelo Assistente, na revista dos Instituto de Ciências Sociais/Instituto da Juventude, onde, na nota 11 de fls. 46, o Assistente afirma ter entrevistado alguns jovens da …, em 1992) e 2337 a 2357 e 2358 a 2458 (notificação do Assistente do despacho de arquivamento proferido no inquérito n.º 1774/04.5TDLSB, relativo à forma como o Assistente tomou conhecimento de que era suspeito no “Processo ...”, e sentença que condenou o Estado a pagar uma indemnização ao Assistente, por ter estado sujeito a prisão preventiva no “Processo ...”).
            Todos os Arg., com excepção do Arg. C..., se vieram opor à junção requerida pelo Assistente (cf. fls. 2467 e ss e 2473 e ss.).
            A decisão instrutória baseia-se na análise de toda a prova produzida durante o inquérito e até ao encerramento da instrução (art.º 308º/1 do CPP).
            Por isso, no recurso interposto de despacho de não pronúncia o tribunal ad quem também só pode sindicar esse despacho por referência à prova produzida até ao encerramento da instrução e não a outra que se produza após o encerramento da instrução.
            Assim, nesta decisão não serão levados em contra os referidos documentos.
            Também se não ordena o seu desentranhamento uma vez que, mesmo em caso de confirmação do despacho de não pronúncia, há a possibilidade de o processo chegar a julgamento e, nesse caso, já tais provas seriam admissíveis[8].
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É pacífica a jurisprudência do STJ[9] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[10].
Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que a questão fundamental que o Assistente invoca como fundamento do seu recurso é a de que existem nos autos indícios suficientes de que os Arg. praticaram os crimes de denúncia caluniosa, falsidade de testemunho e difamação.
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            Cumpre decidir.
            Compete ao juiz de instrução não exercer a acção penal, mas sim comprovar a decisão de acusar ou arquivar o processo. Na verdade, nos termos do disposto no art. 286º/1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
            O actual CPP, no art.º 283º/2, considera "… suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.".
            A definição do que deve entender-se por suficientes indícios contida neste preceito, bem como no art.º 308°/1 do CPP, é idêntica à que, no âmbito do CPP de 1929, havia sido colhida pela Jurisprudência e pela Doutrina, que por indícios suficientes entendia vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.
            Por outro lado, e como é sabido, a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341°/1 CC[11]) e é, normalmente apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127° CPP).
            Ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência que aqui se segue de perto (cfr. v.g. Ac. da Relação de Coimbra no Processo n.º 2447/99), uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodíctica nem, por outro lado, a mera probabilidade de verificação de um facto.
            E assenta na certeza subjectiva, relativa ou histórico-empírica do facto, ou dito de outro modo:
a) No alto grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil" p. 191; Antunes Varela, "Manual de Processo Civil", p. 421);
b) No grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o facto respectivo (Anselmo de Castro, "Direito Processual Civil Declaratório, III", p. 345);
c) Na consciência de um elevado grau de probabilidade - convicção –assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões (Castro Mendes, "Do Conceito de Prova em Processo Civil" p. 306 e 325);
d) Na convicção - objectivável, raciocinada (baseada na intuição e na reflexão e motivável - para além de toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida, mas apenas a dúvida fundada em razões adequadas (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I," p. 205).
            Donde poder concluir-se que a ausência de dúvida razoável pressuposta na condenação, consiste na exclusão da verosimilhança da inocência: não há motivos afirmativos da inocência ou, havendo-os, são afastados pelo julgador por falta de credibilidade racional.
            Divide-se actualmente a doutrina entre duas posições sobre o que são indícios suficientes: a que entende que o juiz deve pronunciar o Arg. quando pelos elementos de prova recolhidos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que tenha cometido o crime do que não o tenha feito e que, portanto, a lei não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento, bastando-se com um juízo de indiciação (Prof. Germano Marques da Silva); a que equipara a convicção de quem acusa ou pronuncia com a convicção de quem julga e condena (Dr. Carlos Adérito Teixeira)[12].
            Não tomando nós posição definitiva sobre esta questão, adoptamos para já a primeira destas posições, isto é, a de que existem indícios suficientes quando é maior a probabilidade de o Arg. vir a ser condenado do que a de vir a ser absolvido.
Isto posto, analisemos então a questão suscitada pelo Recorrente.
A prova constante dos autos aqui em análise é constituída, essencialmente, pelos depoimentos e declarações que os Arg. prestaram (no “Processo ...”, com o NUIPC 1.718/02.9JDLSB, no processo com o NUIPC 474/00.0TAOER e nestes autos, quer durante o inquérito quer durante a instrução); pelas declarações do Assistente; pelos depoimentos das testemunhas; pelos exames sexuais e as perícias da personalidade feitos aos Arg., e pelos documentos juntos aos autos.
Os 1º a 6º Arg. afirmaram ter sido vítimas de abusos sexuais perpetrados pelo Assistente. O 7º Arg. afirmou ter visto o Assistente em vários dos locais onde se praticavam actos sexuais com jovens da ....
Sendo certo que, quanto aos depoimentos e declarações dos 1º a 6º Arg. (e entre estes e os do 7º Arg.), existem as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo Assistente, analisemos a relevância das mesmas.
Antes do mais, importa ter em conta que, pelo menos, os 1º a 6º Arg. foram, repetidamente, vítimas de abusos sexuais, quando tinham entre 12 a 15 anos de idade, o que resulta, desde logo, claramente, dos exames sexuais a que foram sujeitos (cf. fls. 1035 a 1042, 1057 a 1067, 1083 a 1090, 1106 a 1113, 1114 a 1122 e 1138).
            Quanto a tais depoimentos e declarações importa ter em consideração que os Arg. foram repetidamente perguntados sobre a matéria, durante um largo período de tempo:
O 1º Arg. foi ouvido por 20 vezes, além de ter participado numa acareação (com a Arg. B…) e em 4 reconhecimentos (de locais onde terão ocorrido os abusos sexuais), entre 16/12/2002 e 03/01/2005, perante diversas entidades (fls. 74 a 181, 716 a 718, 861 e 862);
O 2º Arg. foi ouvido por 10 vezes, além de ter participado em 5 reconhecimentos (de locais onde terão ocorrido os abusos sexuais), entre 16/01/2003 e 07/01/2005, perante diversas entidades (fls. 182 a 214, 727 a 729 e 866);
O 3º Arg. foi ouvido por 8 vezes, além de ter participado num reconhecimento (de local – a casa de … - onde terão ocorrido os abusos sexuais), entre 03/01/2003 e 14/01/2005, perante diversas entidades (fls. 221 a 239, 719 a 723, 744, 769 e 879);
O 4º Arg. foi ouvido por 10 vezes, além de ter participado em 2 reconhecimentos (um de local onde terão ocorrido os abusos sexuais – a casa do 7º Arg., e de várias fotografias de indivíduos que teriam sido autores de abusos), entre 20/01/2003 e 21/01/2005, perante diversas entidades (fls. 240 a 277, 724 a 726 e 885);
O 5º Arg. foi ouvido por 7 vezes, entre 24/06/2003 e 21/01/2005, perante diversas entidades (fls. 300 a 315, 730 a 733 e 889 a 891);
O 6º Arg. foi ouvido por 4 vezes, entre 18/06/2003 e 21/01/2005, perante diversas entidades (fls. 281 a 296, 894 e 895);
O 7º Arg. foi ouvido por 9 vezes, além de ter participado em 2 acareações (com o Assistente e com o Arg. G…) e em 1 reconhecimento (de local onde terão ocorrido os abusos sexuais – a casa de …), entre 16/12/2002 e 03/01/2005, perante diversas entidades (fls. 74 a 181, 716 a 718, 861 e 862).
É sabido que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele se afasta (na sua realidade objectiva), pela reelaboração mental do mesmo que, consciente ou inconscientemente, vai fazendo.
Os primeiros 6 Arg. tinham idades compreendidas entre os 16 os 19 anos (o 7º Arg. tinha entre 47 e 49 anos) de idade, quando depuseram. O que relataram reportava-se a factos que teriam ocorrido entre 1998 e 2002 (salvo quanto ao 6º Arg. que relata factos que teriam ocorrido em 1993), quando tinham entre 12 e 15 anos de idade.
Todos os Arg. revelaram grandes inibições e dificuldades em relatar os factos[13], quer pelo esforço que, certamente, fizeram ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foram vítimas, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhes provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para as suas auto-imagens[14].
As perguntas foram feitas por pessoas diferentes e em momentos processuais diferentes[15]. Isso implica que as perguntas também foram diferentes ou feitas de maneira diferente e com objectivos diferentes, conforme a fase da investigação em que foram feitas.
Os depoimentos em análise não foram gravados, mas transcritos por quem os tomou. Resulta da experiência comum que quem transcreve declarações, não o faz nos seus precisos termos, ordenando o que escreve de acordo com o que lhe parece mais lógico, procedendo a sínteses, conforme o que lhe parece ser relevante, e eliminando aquilo que julga não ter importância.
Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações transcritas contenham as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo Assistente, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.
Por tudo isto, desde logo, concluímos que de tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que os Arg. mentiram.
É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, como se afirmou no Ac. da Relação de Lisboa de 08/10/2003, in www.dgsi.pt, processo 7002/2003-3 (que revogou a prisão preventiva aplicada ao Assistente no referido “Processo ...”), mas não mais do que isso.
Pelo contrário, outros elementos apontam no sentido de que os factos relatados pelos Arg. não eram falsos: desde logo, como referimos, os exames reveladores de que foram objecto passivo de coito anal repetido; as perícias sobre as suas personalidades, que admitem a veracidade global dos relatos (cf. fls. 1021 a 1034, 1043 a 1056, 1068 a 1082, 1123 a 1137 e 1150 a 1161), salvo quanto ao 5º Arg., que considera que o relato é bastante provável, mas não exclui a possibilidade de contaminação dos factos (cf. fls. 1091 a 1105); os reconhecimentos dos locais onde teriam ocorrido tais abusos (vários Arg., em ocasiões diferentes e isoladamente, reconhecem vários dos locais onde terão sido vítimas de abusos sexuais).
Seria, pois, necessária a existência de provas positivas dessa falsidade (por exemplo, de que era materialmente impossível a prática dos factos porque Assistente ou Arg. se encontravam em locais afastados; de que havia alguma limitação física que impedia um e outros de praticarem actos de cariz sexual; de que os Arg. haviam admitido ter inventado globalmente os factos relatados; de que os Arg. tinham um especial interesse em incriminar o Assistente e os restantes acusados no “Processo ...”; de que os Arg. tinham sido pagos ou aliciados por terceiros para incriminar estes, etc.), para que o tribunal pudesse concluir por ela.
Ora o que existe é prova (docs. de fls. 1657 a 1661 e 1799 a 1865 – listagem das chamadas recebidas e efectuadas pelo telemóvel do Assistente) de que o Assistente não contactou através do seu telemóvel os Arg. (sendo que vários deles afirmaram que o Assistente telefonava a alguns deles, para que se organizassem os contactos sexuais com os Arg.).
Mas isso não prova, só por si, que esses contactos não tenham existido, prova só que não foram feitos do telemóvel do Assistente.
Também existe prova de que na vez que o Assistente aceita que foi almoçar à ..., da parte da tarde esteve noutros locais, o que implicava que não estivesse no local onde um dos Arg. afirma ter estado com ele (docs. de fls. 773 a 780). Mas não existe prova de que o Assistente só tenha almoçado dessa vez na ....
O Assistente negou a prática dos factos que lhe foram imputados pelos Arg..
Dos depoimentos das testemunhas X… e Y… resulta que, quando com eles falou, o 6º Arg. mencionou vários abusadores, mas não o Assistente. Trata-se de mais uma inconsistência, cujas razões e consequências já supra expusemos.
A testemunha Z… resulta que o 1º Arg. “é muito mentiroso”, mas isso não prova que tenha mentido neste caso.
Os depoimentos dos Drs. T…, S… e U…, Magistrados do MP, que investigaram e deduziram acusação no “Processo ...”, não contêm qualquer elemento que permita apontar no sentido de que os Arg. mentiram.
Os depoimentos dos Drs. TT…, TU…, TV…, TZ…, TS… e  TR…, não contêm qualquer elemento objectivo (para além das próprias convicções) que permita apontar no sentido de que os Arg. mentiram.
            Temos que concluir que com estes elementos de prova subsistiria em julgamento uma dúvida fundamental insanável sobre se os Arg. tinham mentido, o que, por aplicação do princípio in dubio pro reo levaria que tal se desse como não provado. Era, pois, muito mais provável darem-se tais factos como não provados do que como provados.
            Isto elimina desde logo a possibilidade de pronunciar os Arg. pelos crimes de falso testemunho e de denúncia caluniosa.
            Na verdade, o elemento típico central do crime de falsidade de testemunho reside na falsidade da declaração[16] e o crime de denúncia caluniosa “… só estará preenchido … quando, comprovadamente, a pessoa denunciada não tiver cometido o facto (…) por que o agente pretende vê-la perseguida.[17], sendo certo que se não indicia suficientemente nem uma coisa nem outra.
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            Coloca-se agora a questão de saber se não teriam as condutas dos Arg. preenchido também o tipo de difamação (já que não existem duvidas de que as imputações feitas são, objectivamente, atentatórios da honra e consideração do Assistente[18]), o que seria muito relevante porque, nos termos do disposto no art.º 180º/2-a) do CP, caberia então aos Arg. a prova da verdade das imputações que fizeram ao Assistente e, como a não fizeram, deveriam ser pronunciados por essa crime.
            Queremos, desde já, dizer que consideramos que os depoimentos prestados em diligências processuais penais são necessariamente dirigidos a terceiros e que a obrigatoriedade de prestar depoimento como testemunha não inclui a obrigatoriedade de o depoimento ter um determinado conteúdo, pelo que não será por essa via que afastaremos a possibilidade do preenchimento do tipo de difamação.
            Além disso, consideramos que o facto de o Arg., quando presta declarações em diligência processual penal, não estar obrigado a dizer a verdade, não afasta, só por si, a possibilidade de difamar/denunciar caluniosamente um terceiro ou um co-arguido. Na verdade, quando, prestando declarações, nelas o Arg. ultrapassa o âmbito dos actos por si praticados e imputa a prática de actos a outra pessoa (sendo que tais declarações podem até ser valoradas para condenar co-arguidos, pelo que assumem a dimensão material de um testemunho), deixa de estar protegido por aquela possibilidade, pelo que pode cometer crimes contra a honra dessa pessoa[19]. Não será, pois, também por aqui, que afastaremos a punição do 7º Arg., por difamação/denúncia caluniosa, pelas imputações que faz ao Assistente (uma vez que nunca poderia ter praticado o crime de falso testemunho, dada a sua qualidade de Arg.).
            Isto posto, importa realçar a perplexidade que causa a possibilidade de alguém se queixar da prática de um crime e, no caso de tal queixa não vir a conduzir a uma condenação, ser ver na contingência de ser obrigado a provar a sua verificação, sob pena de ser condenado, civil ou penalmente, por difamação.
            Várias soluções jurisprudenciais se têm tentado para obviar à verificação de tais situações.
            Assim, no acórdão da Relação de Lisboa de 16/07/2008, relatado pela Sr.ª Desembargadora Conceição Gonçalves, in www.dgsi.pt, processo 9613/2007-3, decidiu-se que o ónus da prova da verdade das imputações não incumbe à testemunha[20].
            Por outro lado, o Ac. do STJ de 18/11/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro João Bernardo, in www.dgsi.pt, processo 08B3227, resolveu a questão por recurso à figura do conflito de deveres[21].
            No mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 18/12/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt, processo 08A2680[22].
            Uma tal solução de recurso às causas de exclusão da ilicitude levanta dificuldades de determinação de qual a que teria aplicação a este tipo da casos[23].
            De qualquer forma, parece-nos que o problema se reconduz a uma questão de integração no tipo e de concurso aparente.
            Vejamos.
            No crime de difamação, o bem jurídico típico é a honra e consideração da vítima (numa concepção dual fático-normativa[24]).
            Por sua vez, “No direito português vigente tudo concorre a favor da interpretação que erige os interesses individuais em bem jurídico típico, reservando aos valores da realização da justiça (eficácia, autoridade, legitimação) uma tutela reflexa ou complementar.[25], ou seja, o bem jurídico típico no crime de denúncia caluniosa é também a honra e consideração da vítima.
            Assim, seguindo esta lição do Prof. Costa Andrade, concluímos que sempre que alguém imputar a outrem, perante autoridade ou publicamente, com intenção de que contra ele se instaure procedimento, factos ofensivos da sua honra ou consideração, com consciência da falsidade da imputação, comete o crime de denuncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365º do CP, em concurso aparente com o crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do CP, sendo este consumido por aquele.
            Na verdade, estando o bem jurídico protegido pelo tipo do art.º 180º do CP (difamação) também protegido pelo tipo do art.º 365º do CP (denúncia caluniosa), sendo que este tipo protege ainda outros bens jurídicos, para além de que este é mais gravemente punido do que aquele, há que concluir que, quando se verifiquem, concomitantemente, os restantes elementos do tipo da difamação e da denúncia caluniosa, este tipo consome aquele[26].
            Nesse sentido se pronuncia o Prof. Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, III, Coimbra Editora, 2001, p. 554: “§ 82 Também os problemas do concurso resultam em boa medida prejudicados logo ao nível do bem jurídico. A adopção de um bem jurídico individual predetermina, desde logo, as relações com os crimes contra a honra (arts. 180° ss.), por princípio subsumíveis na figura e no regime do concurso aparente (ex vi especialidade. Para uma fundamentação mais desenvolvida, Hirsch, Schröder-GS 1978 321 ss.). Isto ao contrário da solução de corrente da teoria da realização da justiça, que seria naturalmente uma solução de concurso ideal. Solução que é, de resto, sustentada pela jurisprudência e doutrina maioritária alemãs, ao abrigo da teoria da alternatividade (…).”.
            É claro que se esse alguém, em vez de imputar factos, formula juízos de valor sobre outrem, já não preenche, por regra, o tipo de denúncia caluniosa, uma vez que as declarações e depoimentos versam sobre factos, nos termos do disposto nos art. 128º/1, 140º/2 e 145º/3 do CPP[27].
            Sendo assim, nunca os Arg. poderiam, no presente caso (em que, para além do mais, não formularam juízos de valor sobre o Assistente), ser condenados por crimes de difamação, mas, tão-só, por crimes de denúncia caluniosa.
            E como já vimos, não existem indícios suficientes de que tenham praticado este crime.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos totalmente improcedente o recurso e, consequentemente, confirmamos o despacho recorrido, assim não pronunciando os Arg..
Vai o Recorrente condenado nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC, nos termos do disposto no art.º 87º/1-b)/3 do CCJ[28].
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

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Lisboa, 26/03/2009

 (Abrunhosa de Carvalho)
 (Dr. Cid Geraldo)

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[1] Arguido/a/s.
[2] A partir de agora referir-nos-emos aos Arg. pelo número correspondente a esta ordem, por forma evitar a fastidiosa repetição dos mesmos que, além do mais, tornaria mais difícil a ocultação dos seus nomes, em caso de publicação deste acórdão.
[3] Termo de Identidade e Residência.
[4] Previsto e punido.
[5] Código Penal.
[6] Ministério Público.
[7] Código de Processo Penal.
[8] Efectivamente, existem duas posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a natureza do despacho de não pronúncia: uma que entende que a não pronuncia não impede a reabertura do inquérito (defendida por Germano Marques da Silva) e outra que entende que faz caso julgado material, pelo que os respectivos factos não podem ser de novo sujeitos a julgamento (defendida por Frederico Lacerda da Costa Pinto). Quanto a esta questão cf. a informação doutrinal e jurisprudencial feita por Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2008, pp. 625 e ss..
[9] Supremo Tribunal de Justiça.
[10] Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP.
[11] Código Civil.
[12] Quanto a esta questão cf. a informação doutrinal e jurisprudencial feita por Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2008, pp. 621 e ss..
[13]Nessa situações, quão difícil também se torna perceber o que realmente se passou no silêncio dos quartos. Quão delicado é falar com estes menores que nos aparecem assustados e titubeantes e a quem é penoso pedir explicações sobre actos tão vilipendiantes. O interrogatório de um menor deve, assim, revestir, uma extrema delicadeza, havendo que tentar perceber os silêncios, os esgares, os sorrisos nervosos, as hesitações, os olhares, as entrelinhas no discurso de um menor nesta situação.”. “ O menor violentado na sua sexualidade deixa de poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria história sonhada, projectada ou construída. A história que lhe vão impor ultra-passa-o em velocidade e substância, deixa de ser "sua" para passar a ser aquela que não lhe ensinaram, para a qual não pediram sequer um assentimento seu que fosse. De si, apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da garagem mal iluminada, um "não" ouvido nas paredes da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De si, apenas urna imagem de um corpo usado como vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento e dor, tantas vezes silenciada em nome de um amor maior...
(Dr. Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, respectivamente, p. 61 e 62 e 43).
[14]E aí restam os depoimentos sofridos, contidos, às vezes infantil e naturalmente contraditórios e incoerentes, das vítimas dos abusos e as demais provas testemunhais circunstanciais – há que dizer, neste jaez, que à Justiça de Menores basta a denúncia séria e minimamente fundamentada para que se despoletem os mecanismos necessários à imediata protecção da vítima, ficando para a Justiça Penal o apuramento de todo um conjunto de pormenores relevantes à descoberta da verdade material. É por demais evidente a prudência que se deve ter na condução do interrogatório de uma vítima de abuso sexual, assente que para ela é doloroso denunciar quem lhe é querido ou uma situação que ainda não compreendeu muito bem, imbuída por sentimentos de preconceituosas moralidades, herdadas de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar de forma saudável como corpo e com o sexo. Para essa vítima, é sempre um segredo que tem de ser revelado.”. (Dr. Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, p. 79 e 80).
[15]Importa equacionar a necessidade de existirem regras específicas para a inquirição dos menores vítimas, para o registo e validade dos seus depoimentos, bem como para o modo de os poder contraditar, num adequado balanceamento entre a exigência do apuramento da verdade, os direitos da criança e os direitos do arguido; investir na formação dirigida a magistrados e membros dos órgãos de polícia criminal; assegurar uma adequada assessoria técnica. … Tenho para mim que esta (a valoração da prova) tem de ser encarada como uma questão maior da nossa prática judiciária, importando que seja promovido o conhecimento actualizado sobre as técnicas de entrevista e inquirição das crianças sobre o estado das investigações quanto a alguns frequentes pré juízos, como sejam: que as crianças não são tão boas como os adultos na observação e relato dos acontecimentos que lhes respeitam; que têm propensão para fantasiar acerca das questões sexuais; que são altamente sugestionáveis; que têm dificuldade em distinguir a realidade da fantasia; que têm propensão para confabular.” (Dr. Rui do Carmo, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, p. 74 e 96, nota 39).
Perante estas considerações, o contexto físico e pessoal da inquirição deve ser cuidadosamente trabalhado. Deve ser um espaço aconchegante e confortável, longe da agitação e da conotação policial, que não favoreça o encontro e o cruzamento com o agressor, podendo o menor estar acompanhado de um adulto da sua confiança, por ele escolhida para a audição, embora esta pessoa tenha de ser neutra (Carmo, 2000; Hamom,1988; Somers & Vandermeersch,1998). A entrevista não pode assumir um aspecto inquisitório, que retrai a vítima, e deve conter desde logo a referência a todos os elementos informativos essenciais: "o primeiro exame convém que seja minucioso, o que igualmente permitirá a recolha de vestígios susceptíveis de desaparecerem ou se atenuarem com o decurso do tempo" (CEJ, 1991, p.12). O recurso ao registo em vídeo das inquirições (Carmo, 2000), com aviso do registo e aceitação da vítima, e uma entrevista bem conduzida evitam a sucessão e a repetição de inquirições, servindo um único registo para todas as fases do processo.”. (Prof. Isabel Alberto, na mesma obra a p. 81 e 82).
Daí que haja a necessidade das entidades que procedem aos interrogatórios destas vítimas estarem munidas de cautelas e de conhecimentos bastantes sobre a arte de interrogar uma criança, de forma a que consigam interpretar esgares, silêncios, hesitações, monossílabos, um simples "sim" ou um simples "não", a construção frásica, a clareza do discurso, as pausas, as interrupções, as emoções e sentimentos que a criança evidencia (vergonha, culpa, tristeza, alegria, alívio, ansiedade), a labilidade e o distanciamento emocionais, o olhar, a postura, o sorriso, a colocação das mãos, o grau de sugestionabilidade, os seus desenhos, o seu comportamento com os brinquedos, o seu comportamento sexualizado, o tipo de pressão ou coerção a que pode estar sujeito, o contexto da sua revelação inicial...
Tais interrogatórios não se devem repetir para que a criança não tenha de injustificadamente reviver as cenas de um passado que quer definitivamente esquecer, sem prejuízo da tomada complementar de declarações sempre que o seu interesse superior o demandar, embora se considere, tal como o faz Razon (L. Razon, in “Famille incestueuse et confrontation à la justice; de l’acte à la parole. Dialogue – Recherches cliniques et sociologiques sur le couple et la famille”, 1999, p.10) que "o primeiro depoimento é a maior parte das vezes o mais desenvolvido, argumentado, logo credível ".”. (Sublinhado nosso. Dr. Paulo Guerra, na mesma obra a p. 83 e 84).
[16] Cf. a. Medina de Seiça, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, III, Coimbra Editora, 2001, p. 536.
[17] Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, III, Coimbra Editora, 2001, pp. 473 e ss..
[18] Cf. acórdãos do STJ citados nas notas seguintes.
[19] Neste sentido parece pronunciar-se o Prof. Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, III, Coimbra Editora, 2001, p. 534: “Porque, apesar de tudo, o exercício do direito de defesa tem de respeitar o limite da liberdade dos outros (…), já será diferente nos casos em que o arguido, ao negar, contra a verdade, os factos, acaba por agravar a situação da testemunha, para além do limiar da mera negação e das suas implicações expostas ou implícitas. Como acontece quando, pela introdução de factos novos (isto é, diferentes daqueles que lhe são imputados e pretende negar) ou pela falsificação de meios de prova, o arguido cria o perigo concreto de perseguição (injusta da vítima). A título de exemplo: para além de negar os factos por que vem acusado, o arguido declara, contra a verdade, que os agentes da polícia que procederam ao seu interrogatório o submeteram a tortura, agressões ou maus tratos.”.
[20] Esse acórdão foi tirado sobre declarações igualmente prestadas no “Processo ...”. Dele citamos: “Como já o dissemos, a testemunha quando é chamada a depor cumpre um dever que é imposto por lei, pois, em princípio, não se pode recusar a depor, e tem a obrigação de falar com verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho, previsto no art.º 360º do C.P. Nesta posição, mesmo sabendo que com o seu depoimento pode lesar o bem jurídico protegido com a norma, a testemunha não pode recusar-se a depor. O depoente cumpre assim um dever legal (cfr. art.º 31º, nº 2, al. c), C.P.), realizando um interesse legítimo, e que radica no dever mais geral inerente a uma sociedade livre e solidária de denunciar a prática de um crime de que se tem conhecimento. Ora, quem age no âmbito do cumprimento de um dever, estando obrigado a falar com verdade, mostra-se indiferente ao facto de as suas revelações poderem ou não atingir a honra e consideração do visado, pelo que, nestas circunstâncias está afastada a possibilidade do agente, ao imputar factos que em si são difamatórios, querer ferir ou atingir a honra e consideração do visado. Está assim afastado o dolo em qualquer das suas modalidades (art.º 14º, do CP) e afastada a ilicitude da sua conduta por agir no cumprimento de um dever legal. Assim, depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados à pessoa visada sejam em si difamatórios, nunca lhe poderá ser imputado o crime de difamação. Tal só sucederá se a testemunha prestar um depoimento falso, com a consciência dessa falsidade. Neste caso, resultaria evidente o intuito doloso, havendo de concluir-se que o depoente agiu com o intuito de ofender o visado, estando igualmente afastada a eximente da ilicitude, pois faltando á verdade, a testemunha não cumpriu o dever legal previsto pela norma. Assim, se no decurso da investigação os elementos de prova recolhidos forem de molde a demonstrar que a testemunha mentiu, tendo consciência da falsidade das imputações, ou seja, que declarou factos contrários aos factos do mundo exterior por si conhecidos, e com a consciência de que tais imputações são difamatórias, incorrerá, pois, na prática do crime de difamação.

Diga-se, por último, que não faz qualquer sentido a discussão trazida pelo recorrente quanto a definir a quem compete o ónus de prova da falsidade ou veracidade das imputações, empurrando tal ónus para os arguidos, a quem, na sua óptica e interesse, incumbia a prova da verdade das imputações, e não conseguindo aqueles fazer tal prova teriam de ser responsabilizados por tais imputações. Ora, nada de mais errado, pois a prova dos elementos constitutivos de um crime compete ao Estado e ao Assistente nas vestes de acusador. A existência ou não de indícios da prática de um crime há-de emergir no seio da investigação, dos elementos de prova cariados para os autos, apreciados segundo o princípio estabelecido no art.º 127º do CPP e pelos princípios gerais de direito. Como sabemos nem todas as investigações permitem a recolha de “indícios suficientes” da prática do crime denunciado, mas o que se não pode é subverter as regras de investigação criminal, colocando, neste caso, a cargo do depoente a prova da verdade dos factos.
E se é certo que o art. 180º, nº 2, alínea b), do C.P. expressamente onera o arguido com a prova da veracidade da imputação, importa não esquecer nunca que nesse caso o agente faz a prova da veracidade para que a conduta não seja punível (situação em que o crime se mostra perfectizado). Só que no caso em apreço, e retomando o que dissemos supra, os arguidos agiram no cumprimento de um dever, o dever de prestar depoimento enquanto testemunhas. Nessa particular posição, não faria o menor sentido estar ainda a onerá-lo com a prova da veracidade das suas afirmações. Ele não decidiu livremente prestá-las. Foi coercivamente levado a tal, coerção que se manifestou não só na necessidade de prestar as declarações, como ainda na sujeição ao dever de verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falsidade de testemunho. E, sendo certo que ninguém teria a ousadia de defender que num eventual inquérito pela prática de um crime de falsidade de testemunho, recairia sobre o arguido o ónus de provar que falou com verdade, por ser por demais evidente que seria ao MP que caberia provar que ele mentiu, donde, pela mesma forma, no inquérito por difamação, decorrente dessa alegada falta à verdade no depoimento prestado, se não pode fazer recair nos ombros do arguido o fardo da prova da verdade das suas afirmações.
Se assim fosse, seria coarctar a liberdade e obrigação de denúncia de crimes, pois ninguém se disporia a prestar o seu depoimento sem primeiro saber se tinha meios para provar a verdade dos factos.
O absurdo traduzir-se-ia em impor ao depoente que fizesse a prova daquilo que a investigação penal, como neste caso, não conseguiu.”.
[21] “… VII – Nos termos do artigo 1.º da CRP, Portugal é uma República soberana, baseada, além do mais ali referido, na dignidade da pessoa humana. Dispondo o artigo 25.º n.º1 que a integridade moral das pessoas é inviolável, sendo a todos – de acordo com o artigo seguinte – reconhecidos os direitos ao bom nome e reputação. Ainda no mesmo Diploma, o artigo 16.º, n.º2 impõe que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devam ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A qual, no artigo 12.º, dispõe que ninguém sofrerá ataques à sua honra e reputação. A CEDH – a que Portugal está vinculado – não tutela especificamente, no plano geral, o direito à honra, mas não o ignora, no artigo 10.º, n.º2, ao consignar as restrições à liberdade de expressão. Já no plano da lei ordinária, intitula-se o capítulo
VI do Código Penal, de “Crimes Contra a Honra”, ali se consignando vários crimes correspondentes à violação desse direito. Por sua vez, o artigo 70.º do Código Civil refere a protecção dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua personalidade física ou moral. Estatuindo o artigo 484.º que, quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, responde pelos danos causados. Estes preceitos são secundados por muitos outros, reportados, por regra, já a vertentes em que o direito à honra, ou melhor, a sua violação, se enquadra em domínios específicos da actividade social, como a imprensa.
VIII – Toda esta estatuição vai no sentido da protecção da honra, mas recorre a terminologia que leva, ou pode levar, a algumas dúvidas. Assim, a Constituição, depois de aludir à dignidade e integridade moral das pessoas, fala em “bom nome e reputação”, a Declaração Universal dos Direitos do Homem em “honra e reputação”, a CEDH a “protecção da honra ou dos direitos de outrem” o Código Penal, depois de aludir, na designação do capítulo, apenas a “honra”, alude no texto dos tipos legais que cria, a “honra e consideração” para o Código Civil referir o “crédito ou o bom nome de qualquer pessoa”. Variações terminológicas que continuam nas várias disposições legais que referimos na parte final do número anterior. Cremos, todavia, que, não obstante todas as variações terminológicas, podemos lidar com um conceito lato de “honra”, colhendo a vantagem de não nos dispersarmos, seguindo de modo mais linear para o que nos interessa no presente acórdão.
IX – A honra abrange a honra interna e a honra externa (assim, Faria e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 603, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, III, 143 e Oliveira Mendes, o Direito à Honra e a Sua Tutela Penal, 20). A primeira corresponde à consideração por si próprio, à auto-estima. A segunda reporta-se à ideia que os outros têm de nós e consequente projecção no ego de cada um. Quer uma, quer outra, correspondem a direitos de personalidade, existindo porque existe a pessoa. Mesmo a impossibilidade de ter consciência de si próprio e, consequentemente, de avaliar a auto-consideração não contradiz esta afirmação, mantendo-se o direito à honra, com os contornos adequados à situação concreta do seu titular. Esta realidade base não é contudo, por via de regra, suficiente para o julgamento. Muitas vezes a ela acrescentam-se realidades que levam ao ampliar do conteúdo original do direito à honra. Assim, o direito de alguém – inerente a ele enquanto pessoa - pode ser acrescentado ou intensificado pelo desempenho de certos cargos, pelo exercício de profissões (cfr-se o artigo 184.º do Código Penal), por deficiências físicas ou psíquicas, devido a outras situações de especial vulnerabilidade, etc. E pode a situação objectiva até afastar a relevância normal de certas expressões, à partida, ofensivas (p.ex. uma obscenidade dirigida a alguém numa caserna de soldados pode não merecer censura jurídica). Por outro lado, a actuação que deve ser apreciada no sentido de se saber se atinge ilicitamente o direito à honra, pode ter sido levada a cabo de modos muito variados. À distinção da lei penal entre actuação para com a pessoa visada e actuação para com terceiro (pouco importante, aliás, quanto ao que aqui nos importa), há que acrescentar a actuação através da comunicação social, em denúncia às autoridades e outras. Estes vários modos de actuação trazem inerentes outros valores – de tutela constitucional também – que conduzem a um ponderar específico sobre a linha demarcante entre a licitude e a ilicitude. (2)
Daqui decorre que existe um ponto abaixo do qual a linha demarcadora entre a licitude e a ilicitude duma ofensa à honra não pode baixar. Tem ela de passar acima do mínimo de dignidade do ser humano enquanto tal. Mas mais decorre que, acima de tal ponto, essa linha passa a ser indeterminada, havendo que atender a múltiplos factores, mormente ao conflito com outros direitos de consagração legal ao mesmo nível hierárquico. O que determina um necessário esforço jurisprudencial. A distância entre a lei e o caso concreto passa a ser particularmente grande, havendo todo um caminho a percorrer pelo julgador em ordem a, naquele caso, aferir da licitude ou da ilicitude.
X – Chegámos, então, ao patamar a partir do qual podemos examinar a nossa questão. Assim, temos a dignidade dos autores/recorridos e as ofensas que os visaram, vertidas, na sua esmagadora maioria, em cartas a Procuradores da República, quer aqui, quer na Alemanha. Não se levantam dúvidas de que muitas das expressões por eles usadas naquelas cartas encerram ofensas à dignidade deles. Tendo-o feito, todavia, em missivas a Procuradores da República, surge a questão – que constitui o ponto essencial das alegações dos recorrentes – de saber se não teve lugar causa de justificação que afaste a ilicitude. Os Procuradores da República, quer aqui, quer na Alemanha, são titulares da acção penal e as cartas a eles dirigidas, como as referidas na enumeração factual, encerram uma denúncia criminal ou um fornecer de informações em processo penal. Tanto mais que, quer no nosso país (artigo 246.º, n.º1 do CPP), quer na Alemanha (§ 158.º da Strafprozessordnung, o Código de Processo Penal alemão) (3) é livre a forma de denúncia.
Se, na notícia do crime, se refere a pessoa do autor, está-se a atingir este na sua honra, porque se lhe está a imputar um acto criminoso. Mas a tutela da honra, tem aqui de ceder perante o interesse, manifestamente superior, do exercício do direito - e, nalguns casos, mesmo de cumprimento de um dever - de denunciar às autoridades a verificação dum evento criminoso. Há, assim, nesta especificidade, uma linha de fronteira entre o lícito e o ilícito que não pode passar pela renúncia da imputação a outrem de um crime. Valem, então, aqui – no seguimento do artigo 20.º da CRP - os artigos 31.º, n.º2 b) conjugado com o artigo 180.º, n.º2 a) do Código Penal. Não será ilícita a denúncia se o denunciante se contiver dentro dos limites que a lei lhe faculta para exercer o seu direito ou para realizar interesses legítimos. Sendo ainda importante para interpretar estes preceitos – chamado, se necessário pelo caminho da subsidiariedade estabelecido no artigo 4.º do CPP – o artigo 154.º, n.º3 do Código de Processo Civil (“não é considerado ilícito o uso de expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”). Um dos limites radica-se na distinção entre “factos” e “juízos de valor”. O artigo 241.º do CPP alude a “notícia do crime” e o que seja “crime” está na alínea a) do artigo 1.º, a ele escapando juízos de valor que possam provir do denunciante. Mais claro é ainda o já citado § 158.º do Código de Processo Penal alemão, ao referir que: “A denúncia dum facto delituoso ou a acusação podem junto do Ministério Público…”, dispondo no n.º2 que “Nos factos delituosos, cujo procedimento depende de queixa…”. (4) Estamos perante a distinção entre “facto” e “juízo” de Faria e Costa (ob. cit., página 609) ou entre “Tatsachenbehauptung” e “Meinungsäusserung” “(5). feita por Gerda Müller (6) no seu artigo, publicado em 1.9.2008, em Versicherungsrecht, ano 59, n.º25, pág. 1142. Por aqui se vê, então, que um dos limites do lícito quanto a denúncias criminais – ou em geral a comunicações ao M.P.º para efeitos de inserção em processo penal - se cifra na referência a factos e na abstenção relativa a juízos de valor. Com isto não querendo dizer que toda a referência a factos seja, por si lícita. Pelo contrário, no limite, até pode integrar um crime de denúncia caluniosa. O que queremos dizer é que, quando o denunciante ou, no plano geral, aquele que faz uma comunicação do MºP.º entra em juízos de valor deixa de estar escudado pelas referidas normas (neste sentido, a propósito do n.º2 do artigo 180.º do CP, Oliveira Mendes, ob. cit., 62 e o Ac. do Tribunal Constitucional de 11.7.2007, que pode ser consultado no sítio do respectivo Tribunal).
A esta conclusão também se chega pela atenção ao princípio da necessidade referido expressamente no aludido preceito do Código de Processo Civil e que têm sido objecto de atenção em acórdãos deste tribunal sobre a matéria (em www.dgsi.pt, pode consultar-se, exemplificativamente, o de 18.1.2006, Processo n.º 4221/05, 3.ª Secção), assim como no referido supra do Tribunal Constitucional. Visando a perseguição criminal ou a sua intensificação, os réus só tinham que fornecer aos Procuradores os factos em que assentava a sua denúncia, não carecendo de fazer referências valorativas, genéricas e despidas, por isso, de qualquer sequência a nível criminal. Assim, quando na carta ao Procurador de Bayreuth, referem que os agora recorridos são “mestres perfeitos da arte de saber fingir”, “conseguem enganar qualquer pessoa”, um deles “sabe como criar um sentimento de compaixão, facto pelo qual ele consegue aumentar os volume das doações a favor da Organização dele” ou quanto na carta ao Procurador de Vila do Porto se referem que “na minha opinião também sofre de grave demência” e muitas outras cuja transcrição dispensamos, atenta a enumeração factual feita supra, situaram-se fora do escudo protector dos ditos preceitos que consubstanciam a mencionada causa de justificação. …”.
[22] “… Sabido é que toda a participação criminal dirigida contra pessoa certa contém, ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração, já que a imputação de factos penalmente ilícitos é, objectivamente, lesiva da auto estima e da imagem social.
O artigo 70.º do Código Civil tutela o direito à honra, consagrando-se, no artigo 484.º, a ressarcibilidade das ofensas ao bom-nome, situação também penalmente consagrada no capítulo VI do Código Penal.
Princípios que traduzem o direito à integridade moral e à dignidade das pessoas constante do artigo 25.º, n.º 1 da Constituição da República.
Daí que, e como princípio-base, todo o ataque à honra individual seja susceptível de integrar um acto ilícito, gerador da obrigação de indemnizar como pressuposto, que é, quer da responsabilidade civil, quer da responsabilidade criminal.
Movendo-nos em sede de participação penal, não podem olvidar-se os seguintes princípios: a) o acesso aos Tribunais para fazer valer um direito que está constitucionalmente garantido (artigo 20.º da Constituição da República); b) participar criminalmente pode, em certos casos, constituir um dever, cujo incumprimento será, por si, a comissão de um ilícito penal; c) a participação não pode ser feita com a consciência da falsidade da imputação (artigo 365.º do Código Penal).
Detalhando,
a) A todos é garantido o acesso à Justiça – “O acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” – de acordo com o n.º 1 do citado artigo 20.º da Constituição da República.

Este preceito tem contornos definidos que se desdobram em direito de acção (“direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever … do mesmo órgão sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada”), direito do processo (“direito de vista do processo” incluindo “a possibilidade de consulta dos autos”), o direito a uma decisão judicial atempada (“sem dilações indevidas”) o direito a um processo justo, o direito a um processo de execução e o direito ao recurso (expresso no duplo grau de jurisdição). – cf. Profs. V. Moreira e G. Canotilho – “Constituição da República Portuguesa Anotada” – 3.ª Ed., 163 e 164.
Note-se, contudo, que não é segura a tutela constitucional do 2º grau de jurisdição fora da área penal.
E não se olvide que todos têm o direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente perante um tribunal imparcial.
b) Mas participar criminalmente pode ser também um dever quando a inacção implique um incumprimento funcional (artigo 242.º do Código de Processo Penal) ou se puder integrar uma forma de comissão de crime.
Vejam-se os artigos 10.º, n.º 2, 360.º e 369.º da lei penal substantiva.
O ponto 16 do preâmbulo do Código Penal de 1982 referia que “ligada a uma ideia pedagógica, norteada pelo fermento da participação de todos os cidadãos na vida comum, consagra-se em termos limitados a equiparação da omissão à acção. Desta forma a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o comitente recaía um dever jurídico que pessoalmente obrigue a evitar esse resultado.”
E em determinadas situações a denúncia é determinante para evitar, impedir, ou dificultar o evento criminoso.
c) Finalmente, “quem por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento.” comete o crime de denúncia caluniosa.
Este artigo 365.º do Código Penal, corresponde ao artigo 408.º (redacção de 1982 alterada pela Reforma Penal de 1995 – Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), e foi lido pela jurisprudência (v.g. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 1995) como sendo a administração da justiça o interesse protegido pela incriminação, que não os “meramente pessoais dos visados”. (in Conselheiro Victor de Sá Pereira e Dr. Alexandre Lafayette – “Código Penal Anotado e Comentado”, 2008, 882.
Mas o Prof. Costa Andrade (apud “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, Tomo III, 523) assim explana:
“Numa primeira aproximação de índole político-criminal e teleológica, ressalta liquida a caracterização da “denúncia caluniosa” como uma infracção de “dopplenatur” ou pluridimensional. A sua incriminação e punição visa prevenir a actividade inútil e infundada das instâncias formais contra pessoas inocentes. O que resulta em tutela tanto do individuo como da realização da justiça. O problema está em precisar os termos em que o legislador plasmou normativa e positivamente este programa. E consequentemente, qual a topografia destes interesses na área de tutela e qual o seu estatuto na perspectiva do bem jurídico típico.”
Conclui, depois, pela confluência de dois interesses, privilegiando, contudo, os individuais e ficando os valores da realização da justiça sob “tutela reflexa ou complementar”.
Entretanto os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Dezembro de 1983 (BMJ 332-332), de 9 de Janeiro de 1997 (CJ-VI-1-172) e de 29 de Março de 2000 – 99P628, já decidiram pela protecção não só do interesse que tem a administração da justiça em que o procedimento criminal contra determinada pessoa seja sinceramente requerido, como do interesse dos acusados contra o prejuízo resultante de acusações maliciosas.
Crê-se ser esta a orientação a merecer acolhimento por fazer apelo a ambos os interesses (colectivos e individuais) colocando-os em paridade e acentuando certa componente ética que deve estar presente na denúncia, ou imputação, da prática de um crime.
Embora, de certo modo, fora da economia deste acórdão, as precedentes considerações podem relevar para que se defenda a manutenção do direito de denúncia em estritos limites de boa fé e probidade, sabendo que a imputação temerária e dolosa de prática de crime pode não só lesar a honra do visado como perturbar o funcionamento da máquina judiciária.
A lei penal só incrimina a denúncia falsa se dolosamente formulada.
Isto é, não está em causa saber se, a final, se concluiu pela inocência do denunciado, só importando que, “ab initio”, o denunciante conheça a inverdade dos factos avançados para suporte da denúncia.
Crime doloso em duas vertentes pois terá de haver “consciência de falsidade da imputação” e “intenção de que contra (o denunciado) se instaure procedimento”.
Fora de causa está o dolo eventual (cf. nas actas da comissão revisora, o Prof. Eduardo Correia e o Conselheiro Maia Gonçalves).

2.1- Afirmámos antes que toda a denúncia criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos idóneos para caracterizarem um comportamento criminoso, podendo, no limite, constituir um meio perverso de agressão.
Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se, porém, o direito à denúncia como “iter” de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante.
O diferendo resolve-se em sede de conflito de direitos.
Arredadas, desde logo, as situações de denúncia caluniosa, este Supremo Tribunal, em recente Acórdão de 18 de Novembro de 2008 – 08B3227 – decidiu que deve “prevalecer o direito de denúncia sobre o contraposto direito à honra do denunciado.”
Mas detenhamo-nos um pouco mais sobre a figura da colisão de direitos, com acolhimento no artigo 335.º do Código Civil.
O Prof. Menezes Cordeiro conceptualiza-a em sentido amplo, (“haverá colisão de direitos quando um direito subjectivo, na sua configuração ou no seu exercício, deva ser harmonizado com outro ou com outros direitos”) e em sentido estrito (“ocorre sempre que dois ou mais direitos subjectivos assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si.”) apud “Da Colisão de Direitos”, in “O Direito”, 137, 2005, 38; cf. ainda, Dr.ª. Elsa Vaz de Sequeira, “Dos pressupostos da colisão de direitos no Direito Civil” (2004).
Tratando-se de direitos iguais ou da mesma espécie os titulares devem ceder reciprocamente em termos de que ambos produzam os seus efeitos, “sem maior detrimento de qualquer das partes”; se “desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”, prevalência a ser aferida caso a caso.
No Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Outubro de 2008 – 08 A 3005 – deste mesmo relator – assim se expôs:
“Tratando-se de direitos de espécie diferente irá prevalecer aquele que tutela interesse superior, tendo sido dada primazia aos direitos de personalidade e, de entre esses, aos mais antigos. (cf. o n.º 2 do artigo 335.º do Código Civil, “o que deva considerar-se superior” e v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 2000 – CJ/S.T.J VIII-42-45 – de 27 de Maio de 2004 – CJ/S.T.J XII, 2.º - 71-74 – de 14 de Outubro de 2003 – 03 A 2249 onde o, aqui 2.º adjunto, Conselheiro Alves Velho, ponderou: (…) que não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento. Se, ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se.” e de 15 de Março de 2007 – 07B585).”
O Acórdão deste Supremo Tribunal, de 9 de Maio de 2006 – 06 A636 – reportando-se ao citado artigo 335.º do Código Civil, decidiu:
“Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos.”
Assim sendo, e estando perante direitos desiguais, por de espécie diferente, prevalece o que, em abstracto, for de considerar superior.
Ora, a tutela da honra terá de ceder perante o exercício do direito – e, como vimos, em certos casos, o cumprimento do dever de denunciar criminalmente.
Para garantir a estabilidade, a segurança, a paz social no Estado de Direito, há que assegurar ao cidadão a possibilidade, quase irrestrita, de denunciar factos que entende serem criminosos.
E dizemos “quase irrestrita” por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos.
Estes devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado.
Se tais juízos de valor ou epítetos integrarem “a se” uma ofensa à honra, então a denúncia pode, mas só por essa razão, ser ilícita cedendo o respectivo direito perante a honra (desnecessária e gratuitamente lesada) do denunciado. (cf., v.g., o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 2008 e Prof. Costa Andrade (ob. cit. 531 – “A comunicação tem de ter factos por conteúdo. Não relevam para o efeito meras opiniões, conclusões pessoais, juízos de valor ou qualificações jurídicas”).
2.2- Com esses limites, aliás reflectidos no n.3 do artigo 154.º do Código de Processo Civil (hoje n.º 2 com o Decreto-lei 329-A/95 de 12/12), (“não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”) a denúncia criminal não integra um facto ilícito, pois que a eventual lesão da honra surge justificada por praticada no regular exercício de um direito.
É o que, também, já resultava do artigo 13.º do Código Civil de 1867 (… “que não passou ao novo Código, mas desse facto não é licito inferir que o principio, no que tem de válido, não haja sido acolhido no actual sistema” – Prof. Pessoa Jorge, in “Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, 194), resultando de quem exerce uma actividade, ao abrigo de um direito subjectivo, vê a sua conduta justificada não incorrendo em responsabilidade aquiliana, por falta do requisito ilicitude.
Claro que no exercício do direito não se exclui o dever geral de diligência, devendo haver abstenção se o acto praticado puder, previsivelmente, e sem causa, lesar os direitos de outrem. É a restrição ao princípio “quid jure suo utitur nemini facit injuriam”.
Restrição ainda, e como é óbvio, quando o exercício se traduz em situações que a lei expressamente consagra como perigosas (v.g., artigo 493.º, n.º2 e 1347.º do Código Civil).
É o chamado “risco permitido” já que, na óptica penalista do Prof. Cavaleiro de Ferreira, “pode prever-se em abstracto que o exercício de certas actividades normais e lícitas é susceptível de causar desastres” (in “Direito Penal”, I, 1969, p. 296).
Assim, o exercício regular do direito (sem aqui abordar a figura do abuso – artigo 334.º do Código Civil) é uma causa de exclusão da ilicitude (ou causa de justificação “stricto sensu”) na medida em que o facto típico é o exercício ou a realização do direito, resultando a justificação de que esse exercício se contém nas fronteiras do conteúdo intrínseco do direito. (Não se olvidem, contudo, os n.ºs 2 e 3 do artigo 271.º da Constituição da República).
E o dever geral de diligência no caso de denúncia, ou participação criminal, e arredando a tipificação acima exposta da denúncia caluniosa, deve ser analisado casuisticamente na ponderação da natureza mais ou menos notória do crime imputado, da sua complexidade ou sofisticação, da tecnicidade, da necessidade de perícias para a averiguação e investigação e até dos putativos agentes (autoria singular, co-autoria ou associação criminosa).
Não se despreze, outrossim, que o cidadão comum, cada vez menos crente na isenção da fisiologia institucional em matéria de prevenção penal, antes confia no distanciamento e na imparcialidade do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal, o que torna mais frequente, como recurso último, o pedido da sua intervenção.
[23] Nesse sentido cf. Taipa de Carvalho, in “Direito Penal Parte Geral”, II, Publicações Universidade Católica, Porto, 2004, pp. 252 e ss.: “§ 752 É maioritariamente defendido que o conflito de deveres pressupõe dois (ou mais) deveres jurídicos de acção. Pois as hipóteses de conflito entre um dever jurídico de acção e um dever jurídico de omissão reconduzir-se-ão e serão resolvidas pelo direito de necessidade. Assim, se, p. ex., um pai vê os seus dois filhos a afogar-se e só pode salvar um, há um conflito de deveres -, já. se um médico, com o objectivo de evitar que a mulher de um seu paciente, que tem sida, seja por este contaminada, se vê na "obrigação" de a informar da doença do marido dela (violando o dever de sigilo profissional), não estaremos diante de uni conflito de deveres, mas sim de direito de necessidade: a acção do médico, que configura o tipo legal de violação do segredo (art. 195.°), está justificada, porque o interesse ou bem jurídico sacrificado (a reserva da vida privada do seu cliente) é inferior ao interesse a salvaguardar, que é a saúde e a vida da mulher isto, pressupondo que não havia outro meio (porque o marido e doente se recusava a informar ele próprio a mulher) de informar a mulher e, assim, de afastar os riscos que esta corria. § 753 Mas pode haver situações que nem são de verdadeiro conflito de deveres, nem são de verdadeiro direito de necessidade, mas como que configuram uma figura intermédia entre estas duas causas de justificação. São as situações que poderios designar por dever-direito de necessidade. Estas situações verificam-se quando sobre determinada pessoa (seja ela médico, pai ou cidadão anónimo) recai o dever jurídico (funcional, de garante ou de auxílio) de praticar uma acção, para salvar uni bem jurídico em perigo, mas a prática desta acção salvadora implica a violação do dever jurídico-penal de não lesar (dever geral de omissão) bens jurídicos de terceiros. Nestas situações, temos: dever jurídico, na medida em que, e desde que sobre a pessoa em causa recaia o dever de praticar a acção salvadora do bens em perigo; direito de necessidade, uma vez que os pressupostos da justificação da acção lesiva dos bens jurídicos de terceiros, e necessária à salvaguarda do bem em perigo e em relação ao qual existe o dever jurídico de acção, são os pressupostos do direito de necessidade (art. 34.º). Pois que, o facto de sobre determinada pessoa recair um dever jurídico de salvar determinado bem em perigo não pode obrigar o terceiro a ter de suportar lesões dos seus bens jurídicos, para além do que lhe é exigível em nome do princípio da solidariedade humana, em que se fundamenta o direito de necessidade. Assim, não há unia situação de verdadeiro conflito de deveres nem de verdadeiro e exclusivo direito de necessidade, quando a única máquina cárdio-pulmonar está ligada a um doente que, mesmo que lhe seja desligada por algum tempo, não corre risco de morte ou de lesão grave da sua saúde, e o médico a desliga desse doente para a ligar a um sinistrado que, a não lhe ser ligada essa única máquina, corre risco sério de morte. Nesta hipótese, o medico deve aplicar a máquina ao sinistrado, e o desligar a máquina do doente está justificado (mesmo que tal implique algum agravamento da situação deste doente, desde que não implique, como se disse, um risco de lesão grave da sua saúde) porque foi para salvar um interesse superior e porque não foi violada a cláusula impeditiva da acção salvadora, constante da al. c) do art.:34 °.”.
[24] Cf. Prof. Faria e Costa, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, I, Coimbra Editora, 2001, p. 607.
[25] Prof. Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, III, Coimbra Editora, 2001, p. 527.
[26] Nesse sentido, citamos a lição do Prof. Eduardo Correia, in “Unidade e pluralidade de infracções”, Almedina, 1983, pp. 130 e ss.: “ II) Consunção — As relações de parentesco que se estabelecem entre os diversos preceitos penais não se resumem, porém, naquelas que logo se surpreendem pela mera comparação dos elementos constitutivos dos tipos de crime descritos na lei.
Depois de esgotadas as que desse confronto resultam e se olharmos os valores ou bens jurídicos que os diferentes tipos legais de crime respiram ou referem, também descobriremos entre eles laços da dependência mais estreita. Alguns desses bens jurídicos são formados pela fusão de dois ou mais valores que já vários preceitos penais protegem, outros resultam de se acrescentar um elemento novo ao valor ou bem jurídico doutro tipo, e outros ainda são entre si diversos só porque exprimem_ no plano criminal a específica significação de diferentes formas ou graus da ofensa de uni mesmo interesse ou valor (v. g., crimes de perigo e de dano).
Entre tais valores ou bens jurídicos verificam-se, assim, relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros. Ora isto não pode deixar de ter importância quando procuramos determinar aquelas relações de hierarquia entre os preceitos das quais pode resultar a exclusão da eficácia de alguns em benefício de outros. Se na verdade se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma certa situação de facto, diversos tipos de crimes, encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações, pode suceder que a reacção contra a violação concreta do bem jurídico, realizada pelo tipo enfermado pelo valor menos vasto, se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos.
Quando isto acontece, as disposições penais vêm a encontrar-se numa relação de consunção: uma consome já a protecção que a outra visa. E como não pode oferecer dúvidas que a mais ampla, a lex consumens, tem em todo o caso de ser eficaz, é manifesto, sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem, que a menos ampla, a lex consumta, não pode continuar a aplicar-se.
A consideração das relações entre bens jurídicos que enformam as normas criminais permite, assim, descobrir este outro princípio de exclusão de um de vários preceitos em benefício de outro: lex consumens derogat legi consumatae.
E esta relação distingue-se claramente da especialidade. Não de certo no seu fundamento lógico-valorativo – ambas elas se apoiam afinal no princípio ne bis in idem —, mas no pro-
cesso por que se determina, na forma por que se estrutura. A de especialidade, como vimos, é directamente apreensível pela mera comparação dos elementos constitutivos dos diferentes tipos legais. A de consunção, pelo contrário, exige uma investigação para além da descrição legal dos crimes, supõe um apelo às relações de mais e de menos entre os bens jurídicos que dominam os preceitos.
Apelo que, de resto, tão somente lhe abre o caminho. A sua eficácia depende ainda da contingência de a situação de facto ser subsumível a vários preceitos tendo por objecto bens jurídicos que se encontrem em tal relação, e também de que no caso concreto a protecção que um realizaria seja realizada pelo outro. O que a faz logo distinguir, num segundo aspecto da especialidade. De facto, supondo esta relação a repetição de todos os elementos constitutivos de um crime no outro, ela tem necessariamente de se verificar todas as vezes que se aplique a lex specialis. Pelo contrário, nem pelo facto da verificação de uma relação de parentesco entre bens jurídicos de diversos tipos pode fazer-se derivar, da realização do tipo dominado pelo bem jurídico mais complexo, a necessária realização concorrente do tipo enformado pelo bem jurídico menos complexo. O mais que sucede é que, quando se realiza o primeiro, também normalmente se realiza o segundo.
Deste modo, a eficácia da consunção não só está dependente da circunstância de efectivamente concorrerem dois preceitos cujos bens jurídicos se encontrem numa relação de mais para menos, mas ainda de que, no caso concreto, a protecção visada
por um seja esgotada, consumida pelo outro, coisa que nem sempre acontece. Enquanto, pois, a especialidade se pode afirmar em abstracto, só em concreto se pode afirmar a consunção de um preceito pelo outro. …”.
[27] Neste sentido, cf. Prof. Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, III, Coimbra Editora, 2001, p. 531: “… Não relevam para o efeito as meras opiniões, conclusões pessoais, juízos de valor ou qualificações jurídicas. Não está, contudo, excluída a possibilidade de os factos serem enunciados sob formulações jurídicas que na linguagem corrente valem como asserções de factos; “roubou”, “burlou”, “violou”, “falsificou documentos”, etc. Ponto é que as formulações jurídicas assumam no contexto em que são utilizadas o significado de enunciados de factos concretos ou concretamente referenciáveis: E não meras generalizações não consubstanciadas em factos do género “A é um ladrão”.”.
[28] Código das Custas Judiciais.