Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1030/10.0TJLSB-C.L1-7
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PENSÃO DE REFORMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Para efeito de impenhorabilidade, o conceito de “bens imprescindíveis à economia doméstica” deverá aferir-se perante as condições sociais económicas médias, sendo o padrão de dignidade ou de necessidades essenciais evolutivo.
2. No processo de insolvência, o produto do salário, ou pensão de reforma auferidos pelo insolvente após a declaração de insolvência, encontra-se fora do conjunto de bens e direitos susceptíveis de apreensão para a massa.
3. A criação da figura da exoneração do passivo restante pressupõe que a afectação do rendimento disponível do devedor/insolvente ao pagamento de dívidas da insolvência, só possa ser efectuada no âmbito das condições previstas em tal instituto, nomeadamente, com o consentimento e por iniciativa do devedor.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

1. RELATÓRIO

  F, instaurou o presente processo especial de insolvência, requerendo que seja decretada a sua insolvência e ainda a concessão da exoneração do passivo restante.
Declarada a sua insolvência por sentença proferida a 31.05.2010, foi designado dia para assembleia de apreciação do relatório.
No âmbito de tal assembleia, foi proferido despacho a:
1. indeferir o pedido de que não sejam apreendidos os bens móveis constantes do inventário incluído no relatório junto aos autos, por os mesmos não serem imprescindíveis à economia doméstica;
2. indeferir o requerimento do insolvente de levantamento da apreensão de 1/3 da sua reforma, com fundamento em que, ressalvados os 2/3 previstos no art. 824º, nº1, al. b) do CPC, pode ser apreendido para a massa insolvente 1/3 da pensão auferida pelo insolvente, que assim se deverá manter nos termos do disposto nos arts. 36º, nº1, al. g) e 150º, nº1, ambos do CIRE, até ao terminus do prazo da liquidação.
 Inconformado com tal decisão, o insolvente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. O douto despacho sob recurso que ordena a apreensão dos bens móveis que compõem o recheio da residência do insolvente constantes do inventário de fls. 234 viola os arts. 46º, nº2 do CIRE e 822º, f), do CPC, porquanto foi adoptada uma visão minimalista do conceito de bens imprescindíveis à economia doméstica.
2. A expressão “bens imprescindíveis à economia doméstica” representa um conceito jurídico indeterminado, pelo que, esse conceito para ser aplicado necessita de ser integrado à luz dos valores sociais, económicos e culturais vigentes na nossa sociedade.
3. Em obediência ao princípio da dignidade humana, princípio este que também representa um conceito jurídico indeterminado.
4. Assim, considerar, nos dias de hoje, que bens imprescindíveis a uma economia doméstica são essencialmente a cama, fogão e frigorífico é violar esse princípio constitucional da dignidade humana na sua concepção actual, porquanto as necessidades básicas de uma família média portuguesa estão muito para além desse tipo de bens, conforme é, aliás, defendido pela nossa jurisprudência (cfr. Ac. Rel. do porto de 05.02.2001).
5. Todos os bens inventariados são imprescindíveis à economia doméstica do recorrente, de acordo com o citado critério de uma família média portuguesa, na qual se encontram mesas de sala, móveis com gavetas, roupeiros, computador e televisão.
5. De facto, em relação aos bens que constam do inventário – mesas de sala, cómoda, móvel com gavetas, roupeiro – os mesmos apenas asseguram ao recorrente uma vivência com um mínimo de dignidade.
6. E esse mínimo de dignidade, também só é assegurado mediante o acesso do recorrente a uma televisão e a um computador, dada a sua situação de dependência.
7. Na verdade, tem de atender-se à situação concreta da vida do insolvente, porquanto é um homem com graves problemas de saúde, sofrendo de doença de Parkinson, de diabetes Mellitus do tipo dois e de doença bipolar, encontrando-se, por via disso, reformado por invalidez.
8. Quanto ao LCD o mesmo é de gama baixa, conforme resulta do valor atribuído ao mesmo pela Srª. Administradora de insolvência – 100 €.
9. Assim, os bens que compõem o recheio da residência da insolvente são insusceptíveis de apreensão, nos termos dos arts. 46º, nº2, do CIRE,  e art. 822º, al. f) do CPC.
10. O douto despacho recorrido, no que respeita à manutenção da apreensão de 1/3 da pensão de reforma do insolvente violou o art. 84º, nº1, do CIRE e interpretou erradamente o disposto no art. 46º do CIRE.
11. Está apreendida para a massa insolvente a quantia de 426,19 €, ficando o recorrente com a quantia de 637,70 € para fazer face a todas as suas despesas, valor esse manifestamente insuficiente, atendendo às elevadas despesas que tem de suportar mensalmente, as quais ascendem a cerca de 1.200,00 €.
12. Como defende a nossa jurisprudência, é insusceptível de apreensão para a massa insolvente os rendimentos provenientes do trabalho do insolvente ou da sua pensão de reforma por velhice ou invalidez, porquanto o legislador separou esse tipo de rendimentos dos demais bens pertença do insolvente.
13. De facto, o processo de insolvência tem natureza jurídica diferente do processo de execução, porquanto no processo de insolvência o insolvente fica numa situação muito mais gravosa, atendendo a que fica privado da administração e disposição de todos os seus bens presentes e futuros.
14. Assim, o douto despacho violou o art. 84º nº1 do CIRE e interpretou erradamente o disposto no art. 46º do CIRE, interpretação essa que viola os princípios constitucionais da defesa da dignidade humana e do direito ao recebimento da retribuição pelo trabalho desenvolvido, consagrados nos arts. 1º, 58º, 59º, nº1, al. a) e 2, al. a) da CRP, e art. 70º do CC.
Conclui, requerendo que, na procedência do recurso:
- sejam declarados insusceptíveis de apreensão para a massa insolvente os bens móveis que compõem o recheio da residência do insolvente;
- seja ordenado o levantamento da apreensão de 1/3 da pensão de reforma do insolvente.
  Não foram apresentadas contra alegações.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
            Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, e apesar da extensão das mesmas, por deficiente cumprimento do estipulado nos ns. 1 e 2, do art.685º-A, do CPC, as questões a decidir são, unicamente as seguintes:
1. Susceptibilidade de apreensão para a massa dos bens móveis que constituem o recheio da residência do insolvente.
2. Susceptibilidade de apreensão de 1/3 da pensão de reforma do insolvente.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
            A - Matéria de Facto com interesse para a questão em apreço:
            1. Declarada a insolvência do recorrente, o Sr. Administrador de insolvência procedeu à apreensão dos seguintes bens móveis, que fazem parte do recheio da residência do insolvente:
- Uma mesa de centro de sala grande – 50,00 €;
- uma mesa de centro de sala – 30,00 €;
- uma cómoda pequena com gavetas e duas portas – 100,00 €;
- 1 televisão LCD – 100,00 €;
- uma base para TV sem portas – 25, 00 €;
- uma mesa e uma cadeira – 50,00 €;
- um computador – 100,00 €;
- uma mesa com duas gavetas – 50,00 €;
- um móvel com duas gavetas e duas portas – 50, 00 €;
- um roupeiro com três portas – 80,00 €;
- uma máquina de secar roupa – 100,00 €;
- uma TV da marca Sony – 50,00 €;
- Quatro quadros com motivos diversos – 200,00 €;
- uma consola com tampo de vidro acrílico  e duas pedras mármores – 100,00 €.
Procedeu-se ainda à apreensão de 1/20 de um prédio rústico e a 1/3 da pensão mensal de reforma auferida pelo insolvente, no valor de 426,19 €.
B – O direito.
Dispõe o art. 46º do CIRE:
1. A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
2. Os bens isentos de penhora só são os integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.
“Da conjugação do nº1 com o nº2 resulta que, em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor susceptíveis de avaliação pecuniária mas tão só os que forem penhoráveis e não excluídos por disposição especial em contrário, acrescidos dos que, não sendo embora penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a impenhorabilidade não seja absoluta[1]”.
1. Susceptibilidade de apreensão para a massa dos bens móveis que constituem o recheio da residência do insolvente.
Pretende o recorrente que os bens que compõem o recheio da residência do insolvente são insusceptíveis de apreensão, por se tratarem de bens imprescindíveis à economia doméstica, nos termos do art. 822, al. f), do CPC.
Segundo al. f) do art. 822º do CPC, são absolutamente impenhoráveis os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na residência permanente do executado, salvo se se tratar de execução destinada ao pagamento do preço da respectiva aquisição ou do custo da sua reparação.
A actual redacção de tal norma foi introduzida pelo DL nº 325-A/95, sendo que na redacção anterior, constava que “não podiam ser penhorados”:
“(…)
f) Os utensílios imprescindíveis a qualquer economia doméstica;
g) Objectos indispensáveis para cama e vestuário do executado, da sua família e pessoal doméstico”.
Ou seja, os bens anteriormente descritos na al. g), deixaram de ser autonomamente referidos, continuando a ser impenhoráveis na medida da sua indispensabilidade a qualquer economia doméstica (sendo que os respeitantes ao pessoal doméstico do executado, hoje dificilmente caberão em tal conceito, por se tratar actualmente de um luxo).
São impenhoráveis, para salvaguarda dos interesses vitais do executado, os bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida, sendo que a imprescindibilidade não se afere pelo tipo de economia doméstica do executado: tem de se verificar relativamente a qualquer economia doméstica, o que implica o recurso a um padrão mínimo de dignidade social[2].
Já para Lopes do Rego o padrão de dignidade deverá aferir-se perante as condições sociais e económicas “médias[3]”, sendo impenhoráveis os bens de que não seria razoável privar o executado e o seu agregado familiar, por ser inexigível privar o devedor de tais bens ou utensílios para assegurar a realização do interesse do credor.
“Para efeito de impenhorabilidade, o conceito de “bens imprescindíveis a uma economia doméstica” tem variado ao longo da história, de acordo com o grau de desenvolvimento social, cultural e económico, e o padrão das necessidades essenciais para uma família deve aferir-se em função do nível sócio-cultural e económico de qualquer família média portuguesa[4]”.
  Temos assim que, o padrão de dignidade ou de necessidades essenciais, sendo evolutivo, deverá aferir-se, com maior elasticidade e discricionariedade do julgador, pelo que na sociedade actual é humanamente exigível.
Assim, em nosso entender, actualmente, a televisão, o frigorifico, o computador, a mesa da cozinha, a mesa de sala e as cadeiras onde o agregado se senta diariamente para fazer as suas refeições, ou até mesmo a cómoda onde são guardadas as roupas do agregado constituirão bens essenciais à economia doméstica, só se encontrando-se excluída tal essencialidade se tratarem de objectos valiosos ou decorativos, e sem utilidade na satisfação das necessidades básicas, como, por ex., uma vitrine de exposição de objectos ou colecções, um sofá ou móveis existentes num compartimento só utilizado quando há visitas, o mobiliário de um escritório, etc.
Por outro lado, a lei prevê ainda um outro fundamento de impenhorabilidade com interesse para a questão da penhorabilidade dos bens móveis apreendidos.
Segundo a al. c) do art. 822º, do CPC, são absolutamente impenhoráveis os objectos cuja apreensão seja ofensiva dos bons costumes ou careça de valor económico pelo seu diminuto valor venal.
E, dever-se-ão considerar carecer de valor económico sempre que seja previsível que a sua alienação dê azo a despesas superiores ao valor que se lhe é atribuído.
Face às considerações expostas, e da análise do inventário em causa, constata-se que todos os bens móveis apreendidos (ou a apreender) na residência do executado (com excepção dos “quatro quadros com motivos diversos”, uma “máquina de secar roupa”, uma “consola com tampo de vidro acrílico e duas pedras mármores”), seriam de considerar impenhoráveis por força da al. f), do art. 822º, face ao padrão das necessidades essências a uma família,
sendo que, aqueles que eventualmente pudessem levantar algumas dúvidas sobre se seriam de integrar ou não no conceito de imprescindibilidade para a economia doméstica – como a mesa de centro de sala, uma televisão LCD, uma base para TV, um computador, uma TV da marca Sony, sempre seriam de considerar impenhoráveis, por força da al. c), face ao diminuto valor que lhes é aí atribuído – 30,00 €, 100,00 €, 25 €, 100,00 €, 50,00€, respectivamente.
Com efeito, o valor que lhes é atribuído aponta para que se trate de bens com bastante tempo de uso, sendo do conhecimento comum que os bens penhorados ou apreendidos acabam por ser vendidos a valor muito inferior ao da avaliação. Por outro lado, chocará a desproporção entre o valor pelo qual muitas vezes são vendidos, quase sem relevância para o credor, face às utilidades que dele retira o devedor (é frequente nos nossos tribunais a venda de um veículo automóvel por 25 €, veículo este que servia as necessidades de deslocação do executado, mas cujo produto acaba por não chegar sequer para pagar as despesas do encarregado da venda, situação que nos surge como imoral).
E, à luz de tais considerações, entendemos que a apreensão de uma máquina de secar roupa, avaliada em 100,00 €, também se não justifica.
Face às considerações expostas, será de revogar, nesta parte, a decisão recorrida, determinando-se a não apreensão dos bens móveis existentes na residência do insolvente e que se mostram inventariados, com excepção dos “quatro quadros com motivos diversos” e a “consola com tampo de vidro em acrílico e duas pedras mármores”.
            2. Susceptibilidade de apreensão de 1/3 da pensão de reforma do insolvente.
Segundo o art. 81º do CIRE (tal como dispunha o nº1 do art. 147º do CPEREF), a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
“De acordo com o art. 46º, nº1, a massa insolvente é constituída, salvo disposição em contrário, pelos bens actuais do insolvente (todo o património do insolvente à data da declaração de insolvência) e pelos bens futuros do insolvente (todos os bens que o insolvente for adquirindo na pendência do processo de insolvência)(…)[5]”.
Da conjugação do art. 46º com o art. 81º do CIRE, resultará, assim, que a massa insolvente abrange bens e rendimentos, que não estejam isentos de penhora, tanto os existentes à data da declaração de insolvência, como os adquiridos na pendência do processo[6].
Aqui chegados, levanta-se a questão da sujeição da remuneração auferida pelo insolvente às regras gerais da penhora, nomeadamente da penhorabilidade de 1/3 e da livre disponibilidade dos restantes 2/3, ao abrigo do disposto no art. 824º do CPC, encontrando-se a jurisprudência e a doutrina dividas quanto à resposta a dar à mesma.
Para Sousa Macedo[7], os rendimentos auferidos pelo falido não devem estar sujeitos a esta regra, porque, por um lado, tal constituiria um desincentivo ao exercício de qualquer actividade profissional pelo falido que se encontraria sob a ameaça do desconto de um terço do seu valor e, por outro lado, razões de humanidade impedem a aplicação desta solução geral do direito processual civil executivo nos casos em que esses rendimentos sejam necessários para a sua subsistência e do seu agregado.
E, de forma a conciliar a satisfação dos interesses dos credores com as necessidades básicas do falido, Sousa Macedo propunha a seguinte solução: “a parte dos rendimentos (isto é, a parte de 1/3 dos rendimentos) que se revele indispensável à subsistência do falido permanece intocável; a parte que a exceda integrará a massa falida, competindo ao juiz, em cada caso concreto, determinar de acordo com um critério de equidade o quantum que ficará sujeito à penhora[8]”.
Segundo Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, acima dos valores considerados penhoráveis pelo art. 824º do CPC, os bens ou rendimentos que sejam adquiridos pelo devedor, nele expressamente incluindo a parte da remuneração do trabalhador que não seja impenhorável, entram para a massa, ficando-lhe interdita a sua alienação ou cessão, mesmo que a aquisição seja posterior ao encerramento do processo (art. 81º, nº2)[9].
Já do exposto por Oliveira Ascensão, in “Efeitos da Falência Sobre a Pessoa e Negócios do Falido[10]”, se extrai a ilação da impenhorabilidade total da remuneração recebida pelo falido: partindo da existência de um património do falido, um património remanescente e geral, que se contrapõe à massa falida como património autónomo e separado, defende que o património do falido será composto “pelos bens impenhoráveis, pelos proventos que angariar, a remuneração que lhe for arbitrada em consequência do auxílio que preste ao liquidatário judicial (art. 143º,n3, C.F.), os alimentos que lhe forem atribuídos; os rendimentos dos cargos sociais que lhe seja autorizado a exercer (art. 148º/2), e o que angariar se os efeitos patrimoniais da falência forem levantados nos termos do art. 238º/1, C.F..”
Quanto à jurisprudência, tem-se dividido essencialmente entre:
- os que entendem que a apreensão abrange todos os bens susceptíveis de penhora, sem sujeição a qualquer regime especial, vigorando no processo de insolvência as regras gerais constantes dos art. 822º sobre a impenhorabilidade relativa de certos bens – cfr, entre outros, Acórdãos do Tribunal de Guimarães de 12.07.2006 e 14.0.09.2006, Acórdão da Relação de Lisboa de 29.07.2010[11], e Acórdão do STJ de 15.03.2007[12];
- e os que defendem que, no processo de insolvência, não podem ser apreendidos a favor da massa insolvente os rendimentos auferidos pelo insolvente no exercício da sua actividade laboral e após a declaração de insolvência, designadamente os salários, as prestações periódicas a título de aposentação ou de regalia social, ou pensão de natureza semelhante – cfr., entre outros, Acórdãos da Relação de Coimbra de 24-10-2006 e 06-03-2007, e Acórdãos da Relação do porto de 23-03-2009 e 26-03-2009.
Estes últimos baseiam tal impenhorabilidade na consideração de que, enquanto no processo executivo, o executado tem uma mera indisponibilidade relativa dos bens ou direitos penhorados, não ficando inibido de auferir os proventos ou rendimentos dos restantes bens ou mesmo de os alienar na sua plenitude, na falência o falido deixa de poder alienar quaisquer dos seus bens ou de fruir a respectiva rentabilização, “não se compreendendo que os credores ainda pudessem pagar-se, a partir da declaração de falência, do produto do trabalho que permite ao falido, não apenas fazer face aos efeitos negativos desta, como conduzir a regularização da sua vida pessoal, para poder encetar novas iniciativas económicas após a respectiva reabilitação[13]”.
Segundo o Acórdão do TRC de 06.03.2007, foi intenção do legislador “poupar o falido do dever de entregar à massa falida os proventos ou rendimentos por ele entretanto auferidos com o seu trabalho, separando-os dos outros meios de garantia patrimonial dos credores”.
Ora, independentemente de tais argumentos permanecerem válidos face ao regime introduzido pelo CIRE, este código veio introduzir uma inovação – a exoneração do passivo restante (arts. 235º e ss., do CIRE) –, que nos vem impor nova reflexão sobre a apreensibilidade para a massa do salário do insolvente, após a declaração de insolvência.
A exoneração do passivo restante (benefício concedido unicamente ao devedor/pessoa singular) implica que, durante o período de cinco anos subsequente ao encerramento do processo, os rendimentos do devedor, com excepção de valores destinados a garantir a sua base de vida familiar e profissional, vão ficar afectados ao pagamento dos créditos não satisfeitos no processo de insolvência, mediante cessão a um fiduciário.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objectivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações[14]”.
Ora, como articular e compatibilizar a possibilidade de apreensão dos salários, pensões e outras prestações de natureza semelhante com a amplitude prevista no art. 824º do CPC, após a declaração da insolvência, e mesmo após o encerramento do processo, com o referido instituto de exoneração do passivo restante?
A ser permitida tal apreensão, e por se tratar de um rendimento periódico e renovável mensalmente, deparamo-nos, desde logo, com as seguintes questões:
- a ser admitida, poderia sempre perdurar, pelo menos, até ao termo da liquidação dos demais bens, liquidação que, na maior parte dos casos se prolonga por vários anos;
- e, após o termo da liquidação dos demais bens apreendidos, poderá o processo de insolvência permanecer em aberto, com o objectivo de se continuar a proceder à apreensão mensal de parte de tal salário, até à liquidação integral dos créditos[15]?
A aceitar-se tal apreensibilidade, “os processos de insolvência, por um lado, perdurariam ad eternum, tendo em conta que normalmente o valor dos créditos é elevado e os montantes dos descontos realizados é relativamente reduzido – a não ser que ocorresse uma de duas situações possíveis: ou o devedor falecesse ou ficasse, por ex., desempregado – o que contraria frontalmente os princípios de celeridade subjacentes a este tipo de processo e, por outro, dificultaria a reabilitação do falido[16]”.
Se o administrador pode proceder ele próprio, e mesmo contra a vontade do insolvente, à apreensão de parte do salário, enquanto perdurar o processo de insolvência (e poderá, eventualmente, perdurar enquanto houver salário e dívidas da insolvência) qual o sentido de premiar o insolvente com a concessão deste benefício – de extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que tal benefício é concedido – caso ele, voluntariamente, ceda o seu rendimento disponível durante os cinco anos seguintes ao encerramento?
A criação da figura da exoneração do passivo restante pressupõe que a apreensão do rendimento disponível do devedor/insolvente só possa ser efectuada no âmbito das condições previstas em tal instituto, nomeadamente:
- com o consentimento e por iniciativa do devedor;
- e tendo por contrapartida o benefício de limpar do seu nome, extinguindo todas as suas dívidas restantes.
A apelação terá, assim, de proceder, quanto ao levantamento da apreensão da pensão de reforma do insolvente.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em, julgando parcialmente procedente a apelação, revogar a decisão recorrida, determinando-se:
- a não apreensão dos bens móveis existentes na residência do insolvente e que se mostram inventariados, com excepção dos “quatro quadros com motivos diversos” e a “consola com tampo de vidro em acrílico e duas pedras mármores”;
- o levantamento da apreensão de 1/3 da pensão de reforma do insolvente.
Sem custas, uma vez que o apelante, não deu causa ao recurso, tendo dele retirado vencimento quase integral, não tendo sido apresentadas contra-alegações.

Lisboa, 16 de Novembro de 2010

Maria João Areias
Luís Lameiras
Roque Nogueira (vencido conforme declaração junta)

Vencido, por entender, e já ter entendido, no acórdão proferido em 29/7/2010, na apelação nº 682/09.8TBLNH.D.L1, de que fui relator, que a massa insolvente abrange, além do mais, os bens e direitos que o devedor adquire na pendência do processo e que não estejam isentos de penhora, pelo que, sendo impenhoráveis dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado, ou das prestações periódicas pagas a título de aposentação, nos termos do disposto no art.824º, nº1, als.a) e b), do C.P.C., nada impede, em princípio, que se proceda à penhora, e, assim, à apreensão para a massa insolvente, do terço restante. Embora também tenha entendido que compete ao juiz determinar em cada caso, com base num critério de equidade, o montante que ficará sujeito à apreensão, tendo em conta o que se revelar indispensável à subsistência do insolvente, assim se conciliando a satisfação dos interesses dos credores com as necessidades básicas do devedor.
Assim, apenas concederia parcial provimento ao recurso, não considerando, sem mais, insusceptível de apreensão 1/3 da pensão de reforma do insolvente.
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[1] Cfr., Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Júris,Vol. I, pag. 224.
[2] Cfr., José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora 2003, Vol. 3º, pag. 349.
[3] Cfr., “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, pag. 546.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2000, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp.
[5] Cfr. Maria do Rosário Epifânio, “Manual do Direito da Insolvência”, Almedina, 2009, pag. 87.
[6] Cfr., Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, Lisboa 2008, pag. 340 (nota 6 ao art. 81º), e Luís A. Carvalho Fernandes, “Efeitos Substantivos Privados da Declaração de Insolvência”, in “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, Quid Juris, pag. 196, nota 11.
[7] Cfr., Manual do Direito das Falências, Almedina 1968, Vol. II, pag. 61 e 62.
[8] Cfr. Posição citada por Maria do Rosário Epifânio, in “Os efeitos Substantivos da Falência”, Publicações da Universidade Católica 2000, pag. 117, à qual declara aderir, chamando-se, contudo a atenção para o facto de na sua obra posterior, “Manual De Direito da Insolvência”, continuando a reproduzir a posição de Sousa Macedo, já não declara a ela aderir, não tomando posição expressa sobre a questão.
[9] Cfr., “Direito da Insolvência”, Almedina, Janeiro 2009, pag. 203.
[10] Estudo publicado na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 55, Dezembro de 1995, pag. 653, e ainda in Revista da FDUL, Vol. XXXVI, pag. 328.
[11] Disponíveis in http://www.dgsi.pt.
[12] Acórdão disponível in CJ Ano 2007, T1.
[13] Cfr., Acórdão da Rel. Coimbra de 24.10.2006, relatado por Freitas Neto.
[14] “Exoneração Do Devedor Pelo Passivo Restante”, estudo publicado na Revista THEMIS, Rev. da FD da UNL, 2005, Edição Especial “Novo Direito da Insolvência”, pag. 167.
[15] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, defendem que o nº2 do art. 182º do CIRE exclui a possibilidade de a liquidação se manter aberta apenas e só pela expectativa dos rendimentos gerados pela actividade do insolvente – cfr., “Código da Insolvência e (…)”, pag. 602.
[16] Cfr., Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-03-2009, relatado por Maria José Simões, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp.