Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
358/08.3ECLSB.L1-9
Relator: FÁTIMA MATA-MOUROS
Descritores: CONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
JOGO DE FORTUNA E AZAR
PROCESSO SUMÁRIO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 - Na tensão dialéctica entre a liberdade e a segurança o conceito constitucional de forças de segurança não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P.)
A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) foi criada pelo DL n.º DL 237/2005, de 30 de Dezembro. Subsequentemente, o DL 274/2007, de 30 de Julho aprovou a orgânica da ASAE, mantendo as atribuições gerais inicialmente previstas para esta autoridade.
Entre as atribuições gerais previstas no primeiro diploma não se previam, todavia, as competências actualmente contempladas nas als. z) a ab) do art. 3.º/2 do DL 274/2007.
As novidades constantes do DL 274/2007 contemplam a atribuição de poderes de órgão e autoridade de polícia criminal, decorrente do art. 15º e a concessão do direito de uso e porte de arma ao pessoal de inspecção da ASAE contemplado no art. 16.º do DL n.º 274/2007.
Constituindo a criação, definição de tarefas e direcção orgânica das forças de segurança é matéria de lei, perante o quadro normativo exposto, a alínea aa) do art. 3.º DL 274/2007, ao atribuir à ASAE a competência para desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, não pode deixar de enfermar de inconstitucionalidade orgânica, por violação de reserva de lei da AR.

2 – No caso dos autos a arguida, ora recorrente, chegou a ser detida pela ASAE, tendo sido também esta autoridade que a libertou.
O art. 272.º/2 da CRP impõe que em sede de direitos fundamentais, a polícia só pode agir dentro dos limites autorizados pela lei, devendo, pois, resultar também da lei todas as medidas restritivas de direitos que uma força policial pode utilizar, sendo que entre os actos de polícia que traduzem restrições de direitos fundamentais conta-se sem dúvida a detenção.
A sujeição das medidas de polícia ao princípio da tipicidade legal colhe o seu último fundamento no princípio democrático.
A afirmação de que a actuação da ASAE no âmbito do processo penal surge sempre subordinada à direcção de uma autoridade judiciária, ignora todo o campo de actuação cautelar deixado aos órgãos de polícia criminal também no âmbito do inquérito criminal com incidência nos direitos fundamentais dos visados. É neste ponto que reside, indubitavelmente, a justificação para a imposição de acto legislativo.
Conclui-se, assim, que também o art. 15.º do DL 272/2007 na parte em que confere poderes de órgão e autoridade de polícia criminal à ASAE, em conjugação com a atribuição que é feita pelo mesmo diploma de competência para prevenir e reprimir certos crimes enferma de inconstitucionalidade orgânica.

3 - O art. 381.º/1 do CPP prevê as situações em que há lugar a julgamento em processo sumario. Considerando a inconstitucionalidade orgânica acima afirmada, nenhuma das previsões ali em referência cobre a situação dos autos,
E sendo assim, manifesto é que o julgamento em processo sumário realizado importou a nulidade insanável estabelecida no art. 119.º/f) do CPP
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1 - No processo sumário n. 358/08.3ECLSB.L1 do 2.º Juízo Criminal de Almada foi a arguida A… submetida a julgamento vindo a ser condenada, por sentença proferida em 30/10/2008,
a) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, previsto e punido pelos artigos 1°, 3° e 108°, do Decreto-lei n.º 422/89 de 02/12, com as alterações decorrentes do Decreto-lei n.º 10/95 de 19/01, na pena de 90 (noventa) dias de prisão, que se substitui por igual número de dias de multa, e 50 (cinquenta) dias de multa, ou seja, na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz a multa global de €840,00 (oitocentos e quarenta euros).

2 - Inconformada com aquela condenação, a arguida interpôs recurso da mesma, pugnando pela sua revogação e subsequente absolvição.
Da motivação apresentada extraiu as seguintes conclusões:

a) A sentença recorrida padece do vício de uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois as testemunhas limitaram-se a referir o que consta do auto de notícia; ora para além do que ali consta, nada mais acrescentaram, isto é, questionadas sobre como obtiveram conhecimento desses factos, responderam que tinha sido a recorrente a referir-lhes os elementos que do auto constam.
b) Dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, da documentação gravada em cassete se encontra junto aos autos e de acordo com o princípio da imediação previsto no art.° 355.° do C. P. P., somente se pode retirar como factos que a máquina encontrava-se no estabelecimento em causa e nada mais.
c) A recorrente pugna pela alteração da decisão sobre a matéria de facto, devendo julgar-se como não provados os factos descritos 3 a 12.
d) Nada foi esclarecido e nada foi apurado sobre a qualidade da recorrente naquele estabelecimento e o que ali fazia ou que funções desempenhava.
e) O Tribunal "a quo" limitou-se a considerar uma pretensa "confissão" da recorrente em pleno inquérito (início do processo) e a transpô-la para a audiência de julgamento e sem que a recorrente sequer tivesse prestado declarações em julgamento ou existisse qualquer outra prova (documental) que a essa conclusão levasse, condenando-a por essa pretensa "confissão" no início do processo; confissão esta de factos que nem sequer foram dados como provados, como a quem pertence exploração do estabelecimento e em consequência do jogo em causa e percurso lógico dedutivo para se considerar como provado que a recorrente pretendia explorar num determinado local, que não lhe pertencia, um jogo que sabia ser de fortuna ou azar!
f) Não é possível, no modesto entender da recorrente que uma decisão de facto sobre o conhecimento da recorrente do caracter ilegal da máquina e a vontade livre de praticar a exploração da mesma no estabelecimento em causa, seja fundamentada nos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento, atento a que estas testemunhas elas próprias nem sequerem conseguiram fazer a distrinça dos jogos de forrtuna ou azra das modalidades afins de fortuna ou azar (voltas 03.45) e nem sequer referenciaram qualquer matéria relacionada com o elemento subjectivo do tipo do crime por que a recorrente foi condenada. As testemunhas limitaram-se a referir o local onde o jogo se encontrava e nada mais, não esclarecendo igualmente qualquer perícia sobre o jogo, pois essa perícia nem sequer existiu nos presentes autos.
g) O Tribunal "a quo" na sentença recorrida violou as normas constantes dos art.°s 127.° do C. P. P., porque socorreu-se no princípio constante deste artigo, mas sem prova para livremente apreciar; violou o art.° 355.° do C. P. P. pois considerou para a condenação da recorrente provas que não foram produzidas em audiência de julgamento; violou o art.° 133.°, n.° 1, al. a) do C. P. P. pois entendeu que as testemunhas poderiam substituir-se à recorrente na reprodução de informações que lhe foram dadas de supostas qualidades e funções, supostamente desempenhadas pela recorrente no estabelecimento em causa, permitindo que a recorrente na qualidade de arguida se transformasse em testemunha contra si própria.
h) A sentença recorrida erra quanto à qualificação do jogo em causa, já que qualifica tais jogos como de fortuna ou azar, quando na realidade tais jogos devem ser qualificados como modalidades afins de fortuna ou azar, e neste sentido os Doutos Ac.s do Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 26/10/1994, in www.dgsi.pt ; do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 14/07/1999, in www.dgsi.pt , numa modalidade de jogo afim de fortuna ou azar exactamente igual à dos presentes autos, sendo este Douto Aresto muito esclarecedor acerca desta matéria; Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, nos Recursos n.°s 7974/98, da 3.a Secção, de 11710/2000, Rec. 4140/97, 3.a Secção, de 12/11/1997, Rec. 442/96, 3.a Secção, de 29/10/1997 e de entre muitos outros 9689/04, da 3.a Secção, de 16/02/2005.
i) Não se provou que fosse proprietário do mesmo e não se provou que obtivesse lucros com a máquina, assim como não se provou que tivesse acordado seja com quem for a colocação de tais máquinas em qualquer estabelecimento.
j) Falece assim a verificação do elemento objectivo, e tal resulta tão somente da leitura e análise da sentença recorrida, por verificação do erro na apreciação da prova, por ausência absoluta de prova no que respeita à possibilidade de se considerar como provado o facto assinalado sob o n.° 3.
K) Na sentença recorrida verifica assim a existência do vício de erro na apreciação da prova, constituindo esta a 1.a questão a ser apreciada em sede de recurso;
L) A 2.a questão a ser apreciada em sede de recurso é a inconstitucionalidade arguida da interpretação conferida pelo tribunal "a quo" aos art.°s 355.°, n.° 7 do art° 356.°, e n. 2 do art.° 357.°, todos do C. P. P., em que o tribunal "a quo" entende que são válidas as declarações prestadas pelas testemunhas em violação do direito ao silêncio da recorrente, porque as testemunhas reproduziram conversas informais, não reduzidas a escrito, que lhes foram, supostamente, transmitidas pelo recorrente, à data da fiscalização, em violação do art.° 32.° da C. R. P., pois em sede de julgamento não poderiam ter sido reproduzidas essas conversas, atenta a proibição da leitura de eventuais declarações do recorrente que viessem a ser reduzidas, posteriormente, a escrito.
m)          A                recorrente      formula             a         seguinte declaração de
inconstitucionalidade, para efeitos de recurso para o Tribunal Constitucional em caso de não decisão pela não inconstitucionalidade da interpretação que a esses mencionados artigos foi conferida pelo tribunal "a quo": "Verifica-se serem inconstitucionais os art.°s 355.°, n.° 7 do art.° 356.° e n.° 2 do art.° 357, todos do C. P. P., por violarem o art.° 32.° da C. R. P., quando sejam interpretados no sentido de as declarações informais do arguido ou de quem seja provável vir a ser constituído como tal, sem estarem reduzidas a auto, prestadas perante órgãos de policia criminal, sejam reproduzidas em sede de audiência de julgamento, sem consentimento do próprio arguido ou do provável arguido."  

n) Igualmente se verifica que foi dado como provado que a recorrente agiu livre, deliberada e tinha consciência de que a sua actuação constituía a prática de um crime (factos dados como provados sob os n.°s 9 a 12).
o) O acima concluído permite de forma clara, verificar a existência do vício previsto na al. c) do n.° 2 do art.° 410.° do C. P. P., esta a 3.a questão a apreciar em sede do presente recurso;
p) A recorrente conclui que a sentença recorrida violou as normas constantes dos art.°s 374.°, n.° 2 do C. P. P.; 1.0, 3.°, 4 . °, n.° 1, al.s f) e g) e 108.° do D. L. 422/89 na redacção do D. L. 10/95; igualmente violou o art.° 127.° do C. P. P., porque utilizou as regras de experiência comum numa situação em que se encontrava vedada essa possibilidade, ou seja, através de tais regras é imputada à recorrente a verificação do elemento subjectivo, cujos conhecimentos para essa imputação são nulos e inexistentes e esse conhecimento do tema do jogo em causa não resulta de quaisquer regras de experiência comum, assim se dando cumprimento ao disposto na al. a) do n.° 2 do art.° 412.° do C. P. P.;
q) A recorrente conclui ainda que foram violados os art.°s 355.°, n.° 7 do art.° 356.°, n.° 2 do art.° 357.°, todos do C. P. P. e art.° 32.° da C. R. P., decorrendo da interpretação destes art.°s uma inconstitucionalidade já arguida em sede de alegações e cujas conclusões se encontram nas presentes motivações de recurso.
r) A recorrente conclui que uma vez que os factos 3 a 12 deveriam ter sido dados como não provados, por ausência de prova, não existe a necessidade legal de referir que provas impõem decisão diversa da tomada, assim como que provas devem ser renovadas para que decisão de facto diversa fosse tomada. O DL 274/2007, de 30/07 que cria a ASAE é organicamente inconstitucional pois viola a CRP nas als. d) e u) do seu art.° 164.°, na medida em que cria, no entender do Governo um orgão de polícia criminal com competências próprias para inclusivamente deter cidadãos e lavrar autos de notícia, como o foi o caso nos presentes autos.
u) Em matéria de criação de órgãos de policia criminal com as competências próprias da ASAE em matéria de CPP, tal criação deverá sempre ocorrer pela Assembleia da República e não pelo Governo, conforme sucedeu com o DL 274/2007 de 30/07. Ora, desde logo os inspectores da ASAE que lavraram o auto de notícia convolado em acusação e que procederam à detenção da recorrente, não o poderiam ter feito, por não terem poderes como orgão de polícia criminal atenta a inconstitucionalidade do DL 274/2007, de 30/07 que prevê no seu art.° 15.° essas atribuições e qualificações.
v) Ainda que se considere que a denúncia do crime poderia em causa poderia ter sido feita pelos inspectores da ASAE que foram as testemunhas neste processo, sempre alegará a recorrente que a forma de processo nunca poderia ter sido a sumária, pois a mera denúncia da, suposta, prática do crime em causa nestes autos ainda que em flagrante delito não determinaria nunca que o processo pudesse seguir a forma de processo sumária, nos termos do art.° 381.° e seguintes do CPP.
x) Não sendo os inspectores da ASAE que procederam à denúncia e à detenção órgãos de polícia criminal, porque o DL 274/2007 é inconstitucional, não poderiam ter procedido à detenção da recorrente e esta nunca poderia ter sido julgada em processo sumário, ocorrendo portanto desde logo uma nulidade insanável nos termos do art.° 119.°, al. f) do CPP.

3 - Respondeu o Ministério Público em primeira instância, entendendo que o recurso deve improceder, mantendo-se a sentença recorrida, e extraindo as seguintes conclusões da sua resposta:

1ª - O D.L. nº 274/2007 de 30/07, na parte em que atribui à ASAE poderes de autoridade e a define como órgão de polícia criminal, não é organicamente inconstitucional, por não versar sobre a matéria da competência exclusiva da Assembleia da República prevista no artº 164º da C.R.P.;
2ª - Da leitura da factualidade dada como provada e respectiva subsunção jurídica decorre que o tribunal a quo investigou toda a matéria de facto relevante, à luz dos elementos típicos do crime em apreço nos autos, não se descortinando na matéria de facto dada como assente qualquer insuficiência ou incompletude com reflexo na decisão da causa, pelo que não se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do nº 2 do artº 410º do C.P.P.;
3ª - Da leitura da sentença recorrida – designadamente na parte atinente à matéria de facto provada e aos meios de prova determinantes da convicção do tribunal – não resulta que o tribunal tenha considerado provados factos que, manifestamente, de harmonia com as regras da lógica e da experiência comum, estejam incorrectos ou não possam ter acontecido da forma descrita, não se verificando, pois, o vício do erro notório na apreciação da prova previsto na al. c) do nº 2 do artº 410º do C.P.P;
4ª - Os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelos Inspectores da ASAE que procederam à acção de fiscalização que culminou com a apreensão do equipamento de jogo em causa nos autos não se cingiu à reprodução de conversas informais nesse âmbito mantidas com a Recorrente, pelo que tal depoimento não constitui meio proibido de prova, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 61º nº 1 al. d), 355º, 356º nº 7 e 357º nº 1 al. a) e nº 2 do C.P.P.;
5ª - Os factos julgados provados quanto à qualidade, detida pela Recorrente, de exploradora do estabelecimento comercial e, consequentemente, do equipamento de jogo, o modo de funcionamento do jogo e a natureza monetária dos prémios atribuídos encontram inteiro suporte nas declarações prestadas em audiência de julgamento pelas testemunhas, no teor do auto de notícia por elas elaborado e nessa sede confirmado e nas fotografias que acompanham aquele auto;
6ª - A factualidade dada como provada relativamente ao conhecimento, por parte da Recorrente, das características e modo de funcionamento do jogo desenvolvido pelo equipamento e da ilicitude da sua exploração não autorizada, resulta igualmente da ponderação conjugada do concreto tema de jogo em causa, das características exteriores do equipamento e das regras da experiência comum;
7ª - Na verdade, a percepção de que determinado equipamento desenvolve um jogo de fortuna ou azar não exige especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, podendo ser atingido pelo homem médio de acordo com as regras da experiência comum, afigurando-se existir um conhecimento generalizado da proibição da exploração não autorizada de jogos de fortuna ou azar, particularmente quando estes atribuem prémios em dinheiro;
8ª - Para a convicção de que esse conhecimento se verificava igualmente no presente caso, milita também a circunstância, relatada pelas testemunhas e constante dos factos provados, de o placard contendo os prémios a atribuir se encontrar dissimulado, oculto no verso de um calendário.
9ª - Da descrição do modo de funcionamento do jogo em causa nos autos - constante dos factos dados como provados na sentença recorrida - resulta inequivocamente que o seu resultado advém exclusivamente da sorte, em nada dependendo da perícia ou da habilidade do jogador;
10ª - Dos factos dados como assentes na sentença recorrida resulta ainda que o jogo em apreço foi simplesmente colocado à disposição das pessoas em estabelecimento comercial, a fim de aí ser procurado para a respectiva prática, tratando-se pois de jogo de fortuna e azar, cuja exploração fora dos locais legalmente autorizados é punida como crime, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1º, 3º e 108º do D.L. nº 422/89 de 02/12, na redacção introduzida pelo D.L. nº 10/95 de 19/01;
11ª - Não estamos, pois, perante uma “operação oferecida ao público” caracterizadora de “modalidade afim de jogo de fortuna ou azar”, nos termos do artº 159º nº 1 do D.L. nº 422/89 de 02/12, pois não existiu promoção directa junto do público;   
12ª - O tribunal a quo apreciou correctamente a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, em moldes inteiramente consentidos pelo artº 127º do C.P.P., e a sentença recorrida interpretou e aplicou correctamente as normas cabíveis ao caso, não violando qualquer preceito legal ou constitucional.


4 - O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, diferentemente do entendimento sufragado pelo ministério público em primeira instância, entende que o recurso deve proceder, sendo de declarar nula a condenação e devolver os autos à ASAE nos termos do art. 164.º/2 do DL n.º 422/89, de 2/12 (republicado pelo DL n.º 10/95, de 19/1), invocando os seguintes fundamentos:
Quanto ao alegado pelo arguido, é de manter a posição veiculada pelo Ministério Público em 1.a instância, quanto à inconstitucionalidade suscitada quanto à intervenção da A.S.A.E., nomeadamente, da mesma não se verificar quanto à competência para aquela proceder à fiscalização e instrução do presente procedimento.
No entanto, é de constatar que no jogo em causa, constituído por "raspadinhas" e cartaz, havia um resultado que era expresso em pontuações correspondentes à devolução da quantia empregue, ou a prémios, constituídos por camisolas ou calções e, ainda que estivesse também incluído um prémio final de € 50 — assim, cfr. pontos 1 a 8 da matéria de facto -, o que parece afastar a subsunção criminal efectuada.
Com efeito, parece indubitável que no dito jogo se desenvolvia uma tema característico da lotaria instantânea, o que afasta que se enquadre entre as "modalidade afins dos jogos de fortuna e azar", por força do disposto no art. 161.° n.° 3 do Decreto-Lei n.° 422/89, de 2112, republicado pelo Dec.-Lei n.° 10/95, de 19/1, também não parecendo que lhe seja aplicável a contra-ordenação prevista no art. 163.° que, quanto ao previsto no art. 161.° não pode deixar de se referir às proibições constantes dos seus n.°s 1 e 2.
Acontece que o dito jogo de lotaria, incluindo a instantânea, encontra-se autorizado em exclusivo à Santa Casa da Misericórdia pelo art. 1.° do D.L. 314/94 de 23.12.94.
Aliás, já anteriormente se entendia que tal integrava a contravenção prevista no art. 28.° do Dec. n.° 12790, de 30/11/26, na redacção dos Dec. 17737, de 6/11/29 e Dec.-Lei n.° 131/82, de 23/4.
O C. Penal de 1886 dava, aliás, a definição de lotaria, nos termos do art. 270.° §2, penalizando a violação da sua proibição com mera multa.
É certo que no cap. VI do Dec.-Lei n.° 48912, de 18/3/69, veio a mesma a ser enquadrada entre as "modalidades afins do jogo de fortuna ou azar", pois no art. 43.° se definem as mesmas como "as operações de oferta ao público em que a esperança de ganho reside essencialmente na sorte".
No entanto, mais se explicitava ainda no § 2.° deste último diploma que "quando houver a emissão de bilhetes, a autorização será sempre condicionada pela proibição da sua venda em estabelecimentos onde se vendam bilhetes de lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa".
E era o art. 59.° desse mesmo diploma que estabelecia ainda a seguinte punição: "os que, sem a necessária autorização ou em desconformidade com o condicionalismo estabelecido, promoverem qualquer das modalidades a que se refere o artigo 43.0, bem como os que as facilitarem, serão punidos com multa de 1 000$ a 50 000$, elevada ao dobro em caso de reincidência".
Tal multa sofreu a actualização do Dec.-Lei n.° 131/82, de 23/4, correspondendo então a contravenção.
Pela Resolução n.° 97/2003, de 1/8, veio a ser previsto, nomeadamente:
VI) Manutenção do exclusivo dos jogos sociais na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com alteração do regime de criação e regulação dos jogos no que respeita à respectiva deslegalização;
E:
XIII) Substituição de sanções penais por sanções contraordenacionais e aumento substancial das coimas, como forma de desincentivo do jogo ilícito em máquinas, senhas e jogos paralelos aos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com responsabilização do titular dos meios utilizados, mas também do titular do local onde se encontrem os referidos meios;(... ).»
Crê-se que foi nesse âmbito que veio a estabelecer-se no art. 2.° da Lei n.° 30/06, de 11 de Julho, que procedeu ainda à conversão das transgressões ainda existentes — e em que o presente caso se enquadraria - em contra-ordenações, a seguinte punição como contra-ordenação:
"a) A promoção, organização ou exploração, independentemente dos meios utilizados, nomeadamente o electrónico, de concursos de apostas mútuas, lotarias nacional e instantânea ou outros sorteios idênticos aos concedidos em regime de exclusivo à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com violação deste regime.
Assim, e atenta esta nova legislação parece ter-se derrogado a anterior previsão constante da Lei do Jogo, de acordo com o previsto na dita Resolução, ainda que nem toda a nesta prevista tenha sido já publicada, nomeadamente, a referente ao jogo ilícito em máquinas que continua a ser criminalizada.
No entanto, parece que esta nova legislação não podia deixar de ser tida como a aplicável ao caso dos autos, a impedir a subsunção criminal efectuada.

        5 – Cumprido o disposto no art. 417.º/2 do CPP, e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
           
II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

2. São as seguintes as questões colocadas à apreciação deste tribunal de recurso:

a) Nulidade prevista no artº 119º al. f) do Código de Processo Penal decorrente da inconstitucionalidade orgânica do D.L. nº 274/2007 de 30/07;
b) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova (artº 410º/2ª) e c) do C.P.P.);
c) Impugnação da matéria de facto apurada por violação do disposto no artº 356º nº 7 do C.P.P.;
d) Errada qualificação jurídica dos factos.

3.Os elementos relevantes para a decisão são os seguintes:

3.1. Foram os seguintes os factos que serviram de fundamento à condenação do arguido em primeira instância:
1 - No dia 01 de Outubro de 2008, cerca das 15:10 horas, a arguida encontrava-se no interior do “Café…”, situado na Rua …, …, na Trafaria.
2 - Ali atendia os clientes, servia os produtos por estes solicitados e recebia os decorrentes pagamentos.
3 - Com o seu conhecimento e adesão encontrava-se no estabelecimento, sobre uns expositores, um placard que à primeira vista aparentava ser um mero calendário, mas em cujo verso tem as menções “De Nuevo”, “Tiro da sorte > Total = 100”, “Roda da sorte > Total = 100”, “3x50”, “6x10”, “2x25”, “20x5”, “3x20”, “15x3”, “3x15”, “20x2”, “Remate final” e “todos os números terminados em 2 tem direito a 1€”.
4 – Abaixo das duas primeiras menções, dispõe de dois conjuntos de figuras geométricas, de 4 por 3, que possuem inscritas a imagem de uma t’shirt, a vermelho, no primeiro conjunto, e a imagem de uns calções, também a vermelho, no segundo conjunto.
5 - Por baixo das últimas menções, dispõe ainda de um outro conjunto de círculos, de 8 por 9, que têm inscrito números a vermelho e subscritos a branco os mesmos números. Esta numeração começa em 1 e seque numa sequência especial até 4311. As figuras das t-shirts, dos calções da menção ‘Remate Final” e a numeração inscrita nos círculos encontra-se sobre material, de cor cinzenta, passível de ser raspado pondo a descoberto outros números, tudo como melhor ilustrado pelas fotos a fls. 7 a 10.
6 - Sobre o balcão do estabelecimento no seu lado interior, do lado direito do acesso este, existia uma caixa de cartão, contendo umas tiras de papel.
7 - As tiras apresentam quatro imagens iguais, servindo de fundo às inscrições: “1=4 Raspadinhas,” “Tente a sua sorte...”; e “Raspe a superfície opaca e se for premiado com N.°, Camisola ou Calções, consulte o Cartaz.” Mostram também um quadrado de material de cor cinzenta passível de ser raspado e, abaixo deste, um número de série AA-0459, tudo como melhor ilustrado pelas fotos a fls. 3 e 4 para a caixa e fls. 5 e 6 para as tiras de papel, vulgo raspadinhas.
8 - O jogo é materializado nos supra-referidos componentes, com um resultado totalmente aleatório, e funciona do seguinte modo:
 - O jogador adquire do explorador um talão/raspadinha pela importância de €1,00.
 - No talão/raspadinha, o jogador raspa os 4 quadrados a cinzento. Caso nalgum dos 4 quadrados exista um número a terminar em ‘1”, o jogador entrega o talão/raspadinha ao explorador que o confronta com a grelha de círculos do placard.
 - O jogador raspa então o círculo do placard correspondente ao número descoberto no talão/raspadinha, fazendo aparecer no círculo um outro número.
 - O número que aparecer no círculo em questão corresponde ao prémio em euros.
 - Mas se nalgum dos 4 quadrados do talão/raspadinha existir um número a terminar em “2”, o jogador entrega o talão/raspadinha ao explorador que lhe devolve €1,00, ou troca aquele talão/raspadinha por um novo.
 - Ainda, caso algum dos 4 quadrados do talão/raspadinha tenha o desenho de uma camisola ou de uns calções, o jogador é convidado a raspar, correspondentemente, das figuras geométricas, um octógono ou uma quadrícula do placard, à sua escolha, ganhando o valor em euros equivalente ao número que ficar a descoberto.
 - Finalmente, o último jogador a comprar “raspadinhas” é convidado a raspar o círculo do placard com a indicação “Remate Final”, ganhando €50.00.
9 – A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente.,
10 – Bem sabendo que no seu estabelecimento comercial não podia possuir e colocar à disposição dos seus clientes o jogo mencionado, o qual pelas suas características de funcionamento e prémios monetários atribuídos só pode ser explorado em locais especialmente destinados à sua prática.
11 – Apesar de tal conhecimento a arguida quis deter e retirar lucros do referido jogo.
12 – Bem sabendo a sua conduta proibida por lei.
13 - A arguida não tem antecedentes criminais registados.

Factos Não Provados:
Nenhum com relevância para a presente decisão.
3.2. – Na motivação da decisão de facto expendeu-se na decisão recorrida:
No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração critica e conjunta dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento.
Assim,
O tribunal fundou a sua convicção no Auto de Apreensão a fls. 11 e 12, nas fotografias a fls. 3 a 10 e nas declarações das testemunhas B… e C…, inspectores da ASAE, os quais fiscalizaram o estabelecimento da arguida e apreenderam o material de jogo – raspadinhas e o cartaz –, e que prestaram o seu depoimento de forma isenta e credível, descrevendo o jogo e afirmando que as raspadinhas estavam no balcão e o cartaz exposto no estabelecimento, acessíveis ao público.
As testemunhas esclareceram, igualmente, que a arguida estava no estabelecimento, atrás do balcão, se lhes apresentou e identificou como o explorador do estabelecimento, conhecendo perfeitamente o estabelecimento.
Das regras de experiência comum se extrai, atentas as características do jogo – raspadinhas – que o mesmo é um jogo de fortuna ou azar, o qual só pode ser desenvolvido nos locais especialmente destinados para o efeito.
Por último cumpre referir que, a circunstância de a arguida se ter recusado a prestar declarações, não dando uma visão pessoal dos factos, não a pode prejudicar, mas também não pode colher benefícios do seu silêncio.
Relativamente aos antecedentes criminais o tribunal baseou-se no teor do Certificado de Registo Criminal junto a fls. 18.

3.3 – Por sua vez, no que respeita ao enquadramento jurídico-penal, é o seguinte o teor da decisão recorrida:

A arguida encontra-se acusada da prática de um crime de exploração ilícita de jogo de fortuna do azar, previsto e punido pelo artigo 108º por referência aos artigos 1º, 3º, todos do Decreto-lei n.º 422/89 de 02/12, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n. ° 10/95 de 19/01, nos termos do qual “Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até dois anos e multa até 200 dias.”
O Decreto-lei n.º 422/89 define no seu artigo 1º a definição de jogos de fortuna ou azar como sendo “aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”.
No artigo 3º, n.º 1, do mesmo diploma, consigna-se que “a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidos nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por D.L. ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6º a 8º”.

Podemos referir como elementos constitutivos do tipo de crime de exploração ilícita de jogo:
- a exploração de jogos de fortuna ou azar (objecto da acção),
- processada por qualquer forma (modo da acção),
- fora dos locais legalmente autorizados (ofensa do bem jurídico tutelado),
- existência de dolo, em qualquer das suas modalidades (elemento subjectivo).

Os objectivos do Estado nesta matéria assentam, fundamentalmente, na defesa da honestidade das explorações, no combate ao jogo clandestino, na obtenção de receitas públicas e na dinamização turística das regiões onde estão instalados os casinos.
Dos factos que resultaram provados infere-se claramente que as “raspadinhas” em apreço nos presentes autos desenvolvem um jogo enquadrável nesta previsão, sendo que o desenvolvimento do referido jogo em nada é influenciado pela destreza, perícia ou habilidade do jogador, decorrendo, sim, de modo automático e aleatório, estando o resultado dependente unicamente da sorte.
Para a consumação deste crime basta a colocação de jogos em estabelecimento, dirigindo-se o público a esse local para a prática do jogo, sendo aliás o elemento de “operação oferecida ao público” que distingue o jogo de fortuna ou azar das modalidades afins, como decidido no Acórdão da Relação do Porto de 5 de Fevereiro de 1997, in CJ 1997, I, página 249. As modalidades afins supõem sempre a procura e oferta ao público por parte dos respectivos promotores, e não a mera colocação dos jogos em estabelecimentos onde o público se dirige para a sua prática (Ac. RP de 26/09/2007, Relator Ernesto do Nascimento, in www.dgsi.pt).
Citando o douto Acórdão da Relação de Évora supra referido, “a materialização da exploração da máquina em causa basta-se com a colocação em lugar público e em termos funcionais da referida máquina, de modo a proporcionar aos eventuais interessados, utilizadores, a sua utilização [...]”
Por outro lado, a utilização da expressão “por qualquer forma” imediatamente antes das palavras “fizer a exploração”, [...] como fórmula abrangente que é, significa que é irrelevante para a existência do crime a forma como se processa a exploração, o que se compreende, atendendo a que o interesse jurídico tutelado é de ordem pública e que são visadas actividades marginais à economia legal, o jogo clandestino.”
Trata-se, assim, de um tipo de crime que não exige uma execução vinculada, podendo a conduta típica assumir várias formas de execução.
Não é elemento do tipo legal do crime de exploração de jogo de fortuna ou azar que o jogador tenha ganho ou perda de natureza económica consoante o resultado do jogo, porquanto o legislador quis prevenir o mero perigo de isso se poder verificar. Daí que os jogos proporcionados por máquinas com resultados dependentes exclusivamente ou fundamentalmente do acaso sejam considerados de fortuna ou azar, quer paguem, quer não paguem, directamente, prémios em dinheiro ou em fichas, sendo o seu uso confinado às salas de jogo autorizadas (Ac. RP de 27/02/2008, Relator Francisco Marcolino, in www.dgsi.pt).
Assim, estando o material apreendido – raspadinhas e cartaz – no estabelecimento comercial livremente acessível ao público, ou seja, às pessoas que lá se dirigissem, bem sabendo a arguida que no seu estabelecimento comercial não podia possuir e colocar à disposição o referido jogo, o qual pelas suas características de funcionamento só pode ser explorado em locais especialmente destinados à sua prática – o resultado do jogo desenvolvido em nada pode ser influenciado pelos respectivos jogadores, estando totalmente dependente da sorte do jogo -, agindo livre, deliberada e conscientemente, temos que estão reunidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito imputado à arguida.
4. Cumpre apreciar e decidir.
Na apreciação das diversas vertentes em que se desdobra o referido thema decidendi proposto pelo recurso, impõe a lógica e, também, a própria economia processual que, liminarmente, se equacione a verificação das nulidades invocadas, porquanto, se alguma existir essa conclusão determinará, necessariamente, a dispensabilidade de encarar as demais.
Em obediência a estes critérios de precedência importa, pois, analisar antes do mais a questão da nulidade prevista no artº 119º al. f) do Código de Processo Penal decorrente da inconstitucionalidade orgânica do D.L. nº 274/2007 de 30/07, de resto suscitada também em primeiro lugar na linha das questões colocadas no presente recurso.

a) Nulidade prevista no artº 119º al. f) do Código de Processo Penal decorrente da inconstitucionalidade orgânica do D.L. nº 274/2007 de 30/07;

Pretende a recorrente que o DL 274/2007, de 30/7, diploma que criou a Autoridade de Segurança alimentar e Económica (ASAE) está ferido de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva absoluta de competência legislativa estabelecida nas alíneas d) e u) do art. 164.º da CRP, sublinhando ser da competência da AR a criação de órgãos de polícia criminal.
            Por virtude da referida inconstitucionalidade, não podia a ASAE proceder à detenção da ora recorrente, nem, em consequência, o processo poderia ter seguido a forma de processo sumário. Em conformidade com esta fundamentação, conclui pela verificação da nulidade insanável, traduzida no emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei (no caso o art. 381.º/1 do CPP), nulidade esta prevista no art. 119.º/f) do CPP.
Contrapõe o MP (na resposta apresentada ao recurso em 1.ª instância) que a ASAE não é uma força de segurança, possuindo antes a natureza de serviço central da administração directa do Estado dotado de autonomia administrativa, com a missão, além do mais, da fiscalização e prevenção do cumprimento da legislação reguladora do exercício das actividades económicas nos sectores alimentar e não alimentar, e a atribuição, entre outras, de “Desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito” – arts. 1º nº 1 e 3º nº 1 e nº 2 al. aa) do D.L. nº 274/2007 de 30/07. Mais invoca que em parte alguma do aludido diploma a ASAE é definida como força de segurança, ao contrário do que sucede, por exemplo, nas leis orgânicas da P.S.P. ou da G.N.R. (Lei nº 53/2007 de 31/08 e Lei nº 63/2007 de 06/11, respectivamente), sendo que como “forças de segurança” deverão apenas ser entendidas as entidades com a função de manutenção da segurança e ordem públicas, manifestamente não compreendida nas atribuições da ASAE. 
           
            Apreciando:
Antes do mais, e tal como observado foi pelo MP, na resposta ao recurso apresentada em 1ª instância, não faz sentido a invocação feita pela recorrente da alínea d) do art. 164.º da CRP, como fundamento da inconstitucionalidade orgânica do diploma que criou, ou melhor dotou de uma orgânica a Autoridade de Segurança alimentar e Económica, reportando-se o segmento normativo em referência à organização da defesa nacional e das Forças Armadas.
            Já a alínea u) do citado art. 164.º da CRP, igualmente invocada pela recorrente como fundamento da inconstitucionalidade invocada, se reporta à reserva exclusiva de competência da AR para legislar em matéria do «regime das forças de segurança».
            Como tem sido notado pela doutrina e jurisprudência constitucional, o regime das forças de segu­rança mereceu a cautela na Lei Fundamental de reserva de competência legislativa face ao papel essencial que aquelas forças desempenham no funcionamento da vida em sociedade num Estado de direito e à possibilidade de a sua actividade afectar direi­tos e liberdades dos cidadãos.
A Constituição não ignorou que na tensão dialéctica entre a liberdade e a segurança a actividade das forças de segurança interna justifica especiais preocupações relativamente a outros sectores da Administra­ção Pública.
O Tribunal Constitucional teve recentemente ocasião de se debruçar sobre a amplitude daquela actividade a propósito precisamente da delimitação do campo de aplicação da alínea u) do citado art. 164.º, concluindo que «sendo esta actividade de elevada importância e risco que está na mira das referidas directrizes constitucionais, o conceito constitucional de forças de segurança não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P.)», como se salientou no Ac. do TC 304/2008, de 30 de Maio (disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, bastará seguir com atenção toda a fundamentação expendida naquele acórdão do Tribunal Constitucional, bem como nas várias declarações de voto no mesmo expressas, para não poder deixar de se concluir pela inevitável aplicabilidade da mesma ao caso aqui em apreço.

Se não vejamos:
            A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) foi criada pelo DL n.º DL 237/2005, de 30 de Dezembro, que extinguiu do mesmo passo a Inspecção Geral das Actividades Económicas, a Agência Portuguesa de Segurança Alimentar, I.P., e Direcção geral de Fiscalização e Controlo da Qualidade Alimentar.
Subsequentemente, o DL 274/2007, de 30 de Julho revogou o referido DL 237/2005, com excepção dos seus arts. 32.º, 35.º e 36.º (v. art. 18.º do DL 274/2007).
            Este último diploma, que aprovou a orgânica da ASAE, manteve as atribuições gerais inicialmente previstas para esta autoridade, com «alguns ajustamentos» como se lê no respectivo preâmbulo.      
Entre as atribuições gerais previstas no primeiro diploma em referência não se previam, todavia, as seguintes competências actualmente contempladas nas als. z) a ab) do art. 3.º/2 do DL 274/2007 e que aqui se reproduzem:
«A ASAE prossegue as seguintes atribuições:
(al. z) Proceder à investigação e instrução de processos por contra-ordenação cuja competência lhe esteja legalmente atribuída, bem como arquivá-los sempre que se verificar que os factos que constam dos autos não constituem infracção ou não existam elementos de prova susceptíveis de imputar a prática da infracção a um determinado agente;
(al. aa) Desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, I. P.;

(al. ab) Colaborar com as autoridades judiciárias nos termos do disposto no Código de Processo Penal, procedendo à investigação dos crimes cuja competência lhe esteja especificamente atribuída por lei».
Com efeito, no art. 5.º do DL 237, referente às atribuições da ASAE, não havia nenhuma norma equivalente às citadas als. z), aa) e ab).
            Entre as novidades constantes do DL 274/2007, relativamente ao seu antecessor DL 237/05 contam-se ainda a atribuição de poderes de órgão e autoridade de polícia criminal, decorrente do art. 15º e a concessão do direito de uso e porte de arma ao pessoal de inspecção da ASAE contemplado no art. 16.º do DL n.º 274/2007. Segundo a primeira das referidas disposições legais, a ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal. Por sua vez, o art. 16.º do DL n.º 247/2007 prevê ainda: «O pessoal de inspecção e os dirigentes dos serviços de inspecção tem direito a possuir e usar arma de todas as classes previstas na Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com excepção da classe A, distribuídas pelo Estado, com dispensa da respectiva licença de uso e porte de arma, valendo como tal o respectivo cartão de identificação profissional».
            Perante este quando normativo, manifesto se afigura não poder esta polícia deixar de considerar-se incluída no conceito constitucional de «forças de segurança» constitucionalmente adoptado na alínea u) do art. 164.º. Competindo à ASAE, nos termos do art. 3.º/aa) «desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito», não se vê que outro entendimento pudesse propugnar-se.
            Neste exacto sentido se pronunciou, de resto, o recente e já acima aludido Ac. TC 304/2008, proferido em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade suscitada pelo Presidente da República referente à remissão para portaria em matéria de fixação das com­petências das diversas unidades da PJ, nos termos do n.º 2, do artigo 22.º, do Decreto n.º 204/X, da Assembleia da República. Com efeito, pode ler-se na fundamentação daquele acórdão:
« (…) competindo à PJ, nos termos do artigo 4º, do Decreto sob análise, além do mais, uma actividade de prevenção e detecção criminal, não pode esta polícia deixar de estar incluída no conceito constitucional de “forças de segurança”(vide, neste sentido, PEDRO LOMBA, em “Sobre a teoria das medidas de polícia administrativa”, em “Estudos de direito de polícia”, 1º volume, pág. 191-192, ed. de 2003, da A.A.F.D.L., JOÃO RAPOSO, em “Direito policial I”, pág. 43 e 49, da ed. de 2006, da Almedina, e GUE­DES VALENTE, em “Teoria geral do direito policial”, pág. 18, da ed. de 2005, da Almedina), independentemente das discussões que suscite uma qualifi­cação conceptual apurada deste tipo de polícia (vide um relato desta polémica na doutrina nacional e estrangeira em “A questão das polícias municipais”, de Catarina Sarmento e Castro, pág. 97-104, da ed. de 2003, da Coimbra Editora)».
Hoje «ninguém duvida que a “criação, definição de tarefas e direcção orgânica” das forças de segurança é matéria de lei», como resulta ainda sublinhado na declaração de voto expressa pelo Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro.
De resto, o alcance da referida alínea u), do artigo 164.º, da C.R.P., já fora objecto de análise pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 23/2002, em sede de fiscalização preventiva da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana. Também ali se concluiu estarem incluídas na referida alínea «as regras definidoras daquilo que é comum e geral às forças de segurança, as grandes linhas da regulação, a definição dos serviços, organizações ou forças que devem compor as forças de segurança, finalidades e os princípios básicos funda­mentais relativos, verbi gratia, à definição do seu sistema global, complexo de poderes, funções, competências e atribuições de cada serviço, força ou organização, inter-relacionação, projecção funcional interna e externa e, ainda, os princípios básicos relativos à interferência das forças de segu­rança com os direitos fundamentais dos cidadãos».
            Perante este quadro de exigência constitucional, manifesto se afigura que a alínea aa) do art. 3.º DL 274/2007, ao atribuir à ASAE a competência para desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, enferma de inconstitucionalidade orgânica, por violação de reserva de lei da AR.

            Mas ainda por um outro prisma se afigura ser desconforme à CRP a referida atribuição de competência à ASAE prevenir e reprimir o jogo ilícito: a reserva de lei para as medidas de polícia estabelecida no art. 272.º/2 da CRP. Dispõe, com efeito, a referida norma constitucional: “as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário”. 
Trata-se de mais um sinal inequívoco de cautela constitucional expressada diante a séria possibilidade da actividade policial interferir de forma especialmente intensa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, visando a exigência de tipificação legal limitar, tanto quanto possível, o espaço de discricionariedade na actuação policial em áreas que colidam com os direitos dos cidadãos.
Em sede de direitos fundamentais, a polícia só pode, portanto, agir dentro dos limites autorizados pela lei. Ora, desta exigência constitucional contida no art. 272.º/2 da CRP decorre também a necessidade de definição na lei quais as medidas restritivas de direitos que uma força policial pode utilizar.
A «especial qualificação e sensibilidade da matéria justifica a consagração duma competência concorrente da Assembleia da República e do Governo, que não exclua a possibilidade de intervenção dos representantes directos do povo na sua definição e exija a produção de acto normativo dotado de maiores garantias de participação e sujeito a maior controlo. A actividade de garantir a segurança dos cidadãos, assegurando-lhe o gozo tranquilo das liberdades e direitos que lhes assistem, é demasiado importante no funcionamento do Estado de direito, para que a definição do regime específico de cada um dos organismos que têm essa missão seja deixada a uma normação administrativa», como se lê ainda no já acima citado Ac. do TC 304/2008, considerandos, de resto, reforçados também na declaração de voto expressa pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues, ao sublinhar que «a sujeição das medidas de polícia ao princípio da tipicidade legal colhe o seu último fundamento no princípio democrático: no princípio que demanda que sejam representantes do povo, sujeitos a escrutínio político e parlamentar, a eleger as medidas de polícia, na medida em que a utilização destas é susceptível de restringir os direitos e liberdades dos cidadãos que representam».
            Ora, entre os actos de polícia que traduzem restrições de direitos fundamentais conta-se sem dúvida a detenção. No caso dos autos a arguida, ora recorrente, chegou a ser detida pela ASAE, tendo sido também esta autoridade que a libertou, mediante a notificação logo assegurada para comparecer no dia seguinte no Tribunal da Almada para ser submetida a julgamento em processo sumário, ao abrigo do disposto no art. 385.º/3 do CPP. E tal como a libertou ao fim de apenas uma hora, poderia tê-la mantido detida, ao abrigo do disposto no n.º 1 da mesma disposição legal, se houvesse razões para crer que não se apresentaria perante a autoridade judiciária no prazo indicado. Razões necessariamente apreciadas pela ASAE, na qualidade de órgão de polícia criminal que lhe foi conferida pelo DL 274/2007 (art. 15.º).
Não se diga, assim, que pelo facto de a actuação da ASAE no âmbito do processo penal se inserir numa actividade de órgão de polícia criminal, esta surgir sempre subordinada à direcção de uma autoridade judiciária. Uma tal afirmação ignoraria todo o campo de actuação cautelar deixado aos órgãos de polícia criminal também no âmbito do inquérito criminal com incidência nos direitos fundamentais dos visados. E é neste ponto que reside, indubitavelmente, a justificação para a imposição de acto legislativo: a essencialidade da matéria a regular traduzida no impacto da actividade policial na esfera de liberdade dos cidadãos.
            Impõe-se, assim, concluir, mais uma vez, pela inconstitucionalidade orgânica do art. 15.º do DL 272/2007 também na parte em que confere poderes de órgão e autoridade de polícia criminal à ASAE, em conjugação com a atribuição que é feita pelo mesmo diploma de competência para prevenir e reprimir certos crimes.

            Aqui chegados, forçoso será concluir em conformidade.
            Na verdade, nos termos do art. 381.º/1 do CPP, «são julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito (…) a) quando à detenção tiver procedido qualquer autoridade judiciária ou entidade policial; ou b) quando a detenção tiver sido efectuada por outra pessoa e, num prazo que não exceda duas horas, o detido tenha sido entregue a uma das entidades referidas na alínea anterior, tendo esta redigido auto sumário da entrega».
            Nenhuma das previsões em referência cobre a situação dos autos, considerando a inconstitucionalidade orgânica já acima afirmada. Atente-se que o auto de notícia que está na origem do julgamento em processo sumário foi redigido também por inspectores da ASAE, sendo que, de qualquer forma, a arguida não foi entregue nas duas horas subsequentes à detenção a uma autoridade judiciária.
E sendo assim, manifesto é que o julgamento em processo sumário realizado importou a nulidade insanável estabelecida no art. 119.º/f) do CPP (pronunciando-se sobre questão idêntica, também no sentido da verificação da referida nulidade quando se realiza julgamento em processo sumário sem se verificar uma detenção realizada por autoridade judicial ou policial, v. Ac. RC de 15 de Março de 2006, bem como Ac. RP de 7 de Março de 2001, ambos citados in Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, em anotação ao art. 381º). E a razão de ser daquela nulidade absoluta está à vista: a dispensa da realização do inquérito no processo sumário deve-se ao valor atribuído ao auto de notícia lavrado que este é sempre por uma autoridade judiciária ou policial.
Perante o conhecimento da primeira questão, prejudicado fica o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso.

Perante o desfecho dos autos, não deixará de se consignar que, não se ignorando que a nossa Constituição atribui uma grande amplitude de competência legislativa ao Governo, diferentemente do que acontece na maior parte dos sistemas políticos democráticos (cfr., por todos, Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, 3ª ed., p. 649, bem como Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V – Actividade constitucional do Estado, 3.ª ed., Coimbra, 2004, p. 321), não passa tão pouco, já despercebida, a preocupação evidenciada por alguns constitucionalistas, em torno desta preponderância do Governo no exercício da função legislativa. Divergindo do Professor Paulo Otero, «na parte em que o mesmo admite que, à luz da legitimidade democrática, se tornou politicamente natural no sistema político-governativo instituído pela Constituição de 1976 não só a atribuição de uma competência legislativa comum ao Governo como a própria atribuição de esferas ou graus de competência legislativa reservada» José de Melo Alexandrino contrapõe: «pela nossa parte, nem juridicamente, nem institucionalmente, nem politicamente, nem culturalmente nos parece normal o acervo de poderes legislativos atribuídos e exercidos pelo Governo no ordenamento constitucional vigente: (1) se, de facto, nessa zona da Constituição portuguesa, se regista uma impermeabilidade às concepções liberais, esse facto não pode ser visto senão como uma anomalia (ou seja, como sobrevivência de elementos antiliberais, antiparlamentares e antidemocráticos, incompatíveis com o tipo de Estado constitucional a que julgamos pertencer); (2) se, de facto, se confirmar a efectiva subordinação do Parlamento às preferências e aos interesses do Governo (ou aos do líder do partido governamental), não pode haver outra conclusão que não a de um funcionamento em desequilíbrio do sistema de governo, que mais não seja por via dessa persistente menorização do Parlamento» (José de Melo Alexandrino, «A Preponderância do Governo no Exercício da Função Legislativa» Texto destinado à comemoração da publicação do n.º 50 da revista Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação, subordinado ao tema “Legislação no século XXI”, disponível in www.fd.ul.pt) .]           
                                                        *
III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção deste Tribunal da Relação em:
Julgar procedente o recurso.
Julgando inconstitucional os arts. 3º/aa) e 15.º do DL 274/2007, de 30 de Julho por violação do art. art. 164.º/u) da CRP, declarar nulo o julgamento realizado em processo sumário, revogando-se, em consequência a sentença recorrida, devendo os autos baixar à 1ª instância onde caberá decidir do destino a dar à notícia da infracção e aos bens apreendidos.
Sem tributação.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – art. 94º, nº 2 do C.P.Penal)

                                                           *
Lisboa, 25 de Junho de 2009


                                                          (Maria de Fátima Mata-Mouros)


                                                                          (João Abrunhosa)