Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1246/08.9TASNT.L1-5
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: ARMA BRANCA
ARMA PROIBIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Iº A caracterização de um objecto como arma proibida tem a ver com as suas características (grau de perigosidade) e com a utilização ou afectação normal delas;
IIº Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas), não se transformando numa arma branca proibida pelo simples facto de ser desviada dessa sua aplicação/afectação definida;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – 5ª SECÇÃO (PENAL)

I-RELATÓRIO
1.1- Nos termos do artº 311º nº1 do CPP, no âmbito do processo crime nuipc 1246/08.9TASNT.L1 do Tribunal de Sintra- JMIC- 4º Juiz, 2ª sec, por despacho de 14.02.2011, a Exmª Srª Juíza, após distribuição do processo com acusação proferida pelo MºPº contra dois arguidos, entendeu que esta era manifestamente infundada por considerar que os factos narrados naquela não constituíam crime e, em consequência, rejeitou-a.
A sobredita acusação referia a seguinte factualidade e qualificação:

       No dia 27 de Janeiro de 2008, o arguido A... dirigiu-se à localidade de R..., tendo-se envolvido em desentendimentos com um outro jovem residente naquela localidade que acabou por se apropriar de um boné do arguido A....

       Insatisfeito com tal situação e pretendo reaver o referido boné o arguido A... contactou telefonicamente o seu irmão D..., o arguido B... e um outro jovem de nome C..., pedindo aqueles que se deslocassem à localidade de R... para irem ter consigo, o que aqueles anuíram.

       O arguido A... pediu então ao arguido B... que levasse consigo duas facas com lâminas grandes pois pretendia entrar em confronto com os elementos do grupo de jovens de R... para reaver o boné que lhe tinha sido retirado, o que o arguido B... concordou.

       Então, o arguido B... a pedido do arguido A... , agindo sempre de forma livre , deliberada e conscientemente muniu-se de duas facas que transportou no interior do seu vestuário e quando chegou junto do arguido A... entregou a este ultimo uma das facas ficando com a outra na sua posse.

       Efectivamente e nesse mesmo dia , os dois grupos de jovens vieram a envolver-se em discussão na Rua ... em R... e na sequência desse desentendimento , C... que o arguido A... tinha chamado à localidade de R... e que se encontrava munido de uma arma de fogo de calibre 6,35mm veio a assassinar dois indivíduos- O... e o irmão do arguido A... , o D…, tendo a conduta daquele estado na origem do processo com o nº 187/08.4 GISNT em que o C... foi condenado pelo duplo homicídio. 

       Na sequência da deslocação das autoridades policiais ao local e porque os arguidos A... e B... ficaram junto do corpo moribundo do D... junto da Estação de Caminhos de Ferro de R..., veio a ser apreendido na posse dos mesmos as referidas facas que o arguido B...  tinha transportado desde a localidade do Ca... para R....

       As facas apreendidas conforme auto de apreensão de fls. 3 dos autos tinham 28 (vinte e oito) centímetros de lâmina e 13 (treze) centímetros de cabo, sendo facas que no total tinham 41 cm de comprimento.

       Os arguidos B... e A... sabiam que não estavam autorizados a deter e a transportar na via publica facas daquelas dimensões.

       Ambos os arguidos B... e A... tinham o firme propósito e intenção de utilizar as facas que lhes foram apreendidas no confronto que procuraram com o grupo de jovens de R....
10º
       O arguido B... durante o confronto entre ambos os grupos de jovens retirou a faca do interior do vestuário e ostentou-a na direcção dos jovens do grupo de R....
11º
       Os arguidos B... e A... sabiam que as condutas que assumiram eram proibidas e punidas por Lei Penal e agiram sempre de forma voluntária, livre e conscientemente.
       Ao agirem da forma descrita os arguidos B... e A... incorreram na prática como autores materiais, cada um ,  de um  crime de detenção de arma proibida p’ e p’ pelo artº 86º nº 1 alª d) com referência ao disposto na alínea f) do nº 2 do artº 3º e artº 2º nº 1 alinea l) , todos da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, em vigor à data dos factos e de aplicação mais favorável aos arguidos nos termos do disposto no artº 2º nº 4 do Código Penal .

Por sua vez, aquele despacho teve o teor seguinte:
“O Tribunal é o competente.
Nos presentes autos o M.P. deduziu acusação contra os arguidos A… e B... pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artº 2º, nº 1, al. m) [al. l) na redacção actual (L. 17/2009 de 6/6)], com referência ao artº 3º, nº 2, al. f) e 86º, nº 1, al. d) da Lei nº 5/2006, com as alterações das Leis nº 59/2007 de 4/9 e 17/2009 de 6/5.
Subjacente a esta acusação, em resumo, os seguintes factos: no dia 27/1/2008, na Rua ..., os arguidos traziam consigo duas facas de cozinha com lâmina de 28 cm de comprimento, bem sabendo os arguidos que tal detenção lhes estava legalmente vedada.
Nos termos dos citados preceitos:
Entende-se por arma branca todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões – artº 2º, nº 1, al. m).
São armas, munições e acessórios da classe A as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção – artº 3º, nº 2, al. f).
Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, transferir, guardar, comprar, adquirir  a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da al. a) do nº 7 do artº 3º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da al. b) do nº 7 do artº 3º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projécteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão (...).

O exposto permite-nos concluir que as facas apreendidas e objecto da acusação são armas brancas, com aplicação definida – visto o auto de apreensão constatamos tratar-se de vulgares facas de cozinha.
Assim sendo, a faca de cozinha  não é uma arma proibida no sentido pretendido pelo legislador, pois que tem aplicação definida, ainda que o seu detentor a possua com desvio das suas propriedades ou da sua habitual finalidade.
Neste sentido permitimo-nos citar a seguinte Jurisprudência:
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/2/2009, in www.dgsi.pt: é neste preciso segmento que estão abrangidas as armas brancas a que se refere o artº 2, nº 2, al. l), da mesma Lei, ou seja, as que não estão afectas ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção, desde que possam ser usadas como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.
No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 4/3/2008 in www.dgsi.pt: para que a detenção ou porte de arma de outras armas brancas a que alude a al. d) do nº 1, do artº 86º constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos: 1) ausência de aplicação definida; 2) capacidade para o uso como arma de agressão; 3) falta de justificação para a posse. A expressão «sem aplicação definida” usada na al. d) do nº 1 do citado artº 86º não se restringe, com o devido respeito, aos instrumentos, abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos (...) O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.
O exposto para concluir que as facas de cozinha  objecto dos presentes autos e respectiva acusação não são armas proibidas, nos termos dos preceitos citados.
Assim,
Nos termos do artº 311º, nº 1 do C.P.P., recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, tal podendo suceder sempre que os factos não constituam crime – artº 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. d) do C.P.P..
Da exposição que antecede, claro fica que a acusação deduzida nos presentes autos deve ser rejeitada, por manifestamente infundada, pois que os factos na mesma narrados não constituem crime.
Pelo exposto e sem outros inúteis considerandos, rejeito, por manifestamente infundada, a acusação proferida nestes autos.
Notifique.
Após trânsito, conclua, a fim de ser dado destino aos objectos.”


1.2–Inconformado com esta  decisão , recorreu o MºPº dizendo em conclusões da motivação apresentada:

“A falta de indícios não pode em nosso entender, ser apreciada pela Mma. Juiz a quo, a não ser em sede de julgamento não consubstanciando fundamento legal para rejeição da acusação do Ministério Público, tornando o despacho recorrido ilegal.
A posse de uma faca, ainda que construída com a finalidade de ser usada para fins culinários, cuja lâmina tenha comprimento igual ou superior a  10 cm, integra o crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artº, 2° n° 1, alª 1) (à data da prática destes factos, correspondendo actualmente à alínea m), tendo em conta a alteração introduzida pela. Lei 17/2009, de 6 de Maio) e o artº t. 86° n° 1 alª. d ) da Lei n° 5/2006 de 23 de Fevereiro
Decidindo como o fez, a douta decisão recorrida fez incorrecta interpretação e errónea aplicação dos artigos 311.º, nºs 2,, alínea a) e 3, alínea d) do Código de Processo Penal, 2° n° 1, al. 1) (à data da prática destes factos, correspondendo actualmente à alínea m), tendo em conta a alteração introduzida pela Lei 17/2009, de 6 de Maio), e artº. 86° n° 1 al. d) da Lei n° 5/2006 de 23/2, preceitos esses que, nessa conformidade, foram violados.
Deve a douta decisão recorrida ser revogada, e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos e designe data para audiência de discussão e julgamento.
Termos em que, em face do exposto, deve ser concedido provimento ao recurso interposto.»

1.3- Nenhum dos arguidos respondeu ao recurso.
        
1.4- O recurso foi sustentado pela Exmª subscritora do despacho recorrido e admitido com regime de subida nos autos, de imediato e com efeito devolutivo.

Remetido a esta Relação, o MºPº emitiu parecer acompanhando a posição da motivação de recurso.

1.5- Após exame preliminar, foram os autos remetidos os autos à Conferência cumprindo agora decidir.

II- CONHECENDO

2.1-O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP  [1].
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[2].
Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis no âmbito dos poderes desta Relação.

2.2-Estão em apreciação e, em síntese, as seguintes questões:

A Mmª Juíza apreciou a acusação quanto aos indícios existentes analisando a prova recolhida nos autos, o que lhe estava vedado em sede de saneamento do processo?

Os factos constantes da acusação, manifestamente, constituem ou não o crime imputado aos arguidos?

2.3-  A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

         O MºPª encerrou o inquérito produzindo a já referida acusação contra os arguidos A… e B... (idºs nos autos).
Segundo a acusação, os arguidos A... e B..., direcionados para a recuperação de um boné daquele, do qual um terceiro se apropriara, e com a intenção de delas se servirem para ajudar a tal recuperação, envolveram-se em confrontos com um grupo de indivíduos, do qual acabou por resultar a morte, provocada por disparos de C..., indivíduo que o A... ali chamara para com eles cooperar e resolver o assunto do boné, muniram-se de duas facas, apreendidas no local em que a policia os encontrou junto ao corpo de uma das vitimas.
 Essas facas foram apreendidas e examinadas, tendo sido classificadas como facas de cozinha e tendo, cada uma, 28 cm de lâmina e 13 centímetros de cabo, com um comprimento total de 41 cm.
Os factos correram em 27 de Janeiro de 2008.
Considera o MºPº que tal detenção corresponde a crime de detenção de arma proibida nos termos do artº 86º nº 1, alª d), com referência à alª f) do nº2 do artº 3º e do artº 2º, nº1 alª l) da Lei 5/2006, de 23 de  Fevereiro, em vigor à data dos factos e de aplicação mais favorável aos arguidos, ex vi do artº 2º nº 4 do CP.
Perante tais factos  e, ao contrário do que afirmou o MºPº no seu recurso, apenas perante a descrição de tais factos, sem recurso a qualquer tipo de análise dos indícios subjacentes, considerou-se no despacho recorrido que se tratava de armas brancas, de aplicação definida, vulgares facas de cozinha, cujo desvio de finalidades ou de propriedades pelo detentor não as abrangeria por si mesmo   no conceito de arma proibida, no sentido pretendido pelo legislador.
Quid juris?

Em relação à primeira das questões em análise, a resposta só poderá ser negativa, pois a Exmª Srª Juíza não decidiu sobre a inexistência de incriminação legal senão na base pura dos factos que o MºPº considerou na acusação como estando suficientemente indiciados, não apreciando para tal a prova que conduziu à dita suficiência dos indícios que lhe estariam ou não subjacentes.
Resolvida fica, assim, esta primeira problemática.
 Mas será que é evidente e manifesto que, ainda assim, mesmo perante os factos indiciados, estes não se integram na prática de um crime e, nomeadamente, do crime imputado de detenção de arma proibida?
Passamos assim de imediato à segunda questão.
A interpretação da alª. d) do n.º1 do art. 86.º da Lei n.º 5/2006 deve ser feita num sentido menos lato do que aquele que os seus termos, em princípio, poderiam consentir e que o ilustre recorrente aqui veementemente defende. É o que manifestamente se impõe face ao "princípio da necessidade", da máxima importância e com consagração constitucional no art. 18.º n.º 2 da CRP.
Com efeito, ele “...obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais" [3]e dirige-se tanto ao legislador como ao intérprete.
Ou seja, para que a detenção ou porte de “outras armas brancas” a que alude a alª. d) do n.º1 do art. 86.º constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos:
1) Ausência de aplicação definida;
2) Capacidade para o uso como arma de agressão;
3) Falta de justificação para a posse.

Dispunha a Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na versão aplicável à data dos factos , na redacção dada pela  Lei n.º 59/2007, de 04/09:

Artigo 2.º
Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação e com vista a uma uniformização conceptual, entende-se por:

1 - Tipos de armas:

(…)
l) – (actual alª m na red.actual, da Lei nº 12/2011)
Arma branca' todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões;

E, nos termos do Artigo 3.º-  (Classificação das armas, munições e outros acessórios)
1 - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.
2 - São armas, munições e acessórios da classe A:
 (…)
f) As armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção;
(…)

Artigo 4.º (Armas da classe A)
1 - São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A.
(…)

Artigo 86.º (Detenção de arma proibida)
 1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projécteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias. ( na redacção actual, a punição é a de pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias)
(…) “
Estamos perante um tipo de crime de perigo comum e abstracto, pois as condutas que contempla não carecem de lesar, de forma directa e imediata, qualquer bem jurídico, bastando a probabilidade de ocorrência de um dano contra um objecto indeterminado. O bem jurídico protegido é a segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas, engenhos e matérias explosivas, de forma a evitar perturbação da ordem e segurança públicas, atentando particularmente contra a vida e a integridade física (cfr. Anotação ao art.°. 275.°, Comentário Conimbricense, Tomo II, 891).
Figueiredo Dias (in Sumários 1975, 146) caracteriza estes crimes de perigo abstracto como 'todos aqueles em que o perigo não constitui ele próprio elemento do tipo, mas «motivo da proibição» '.
Do exposto, resulta que se trata de armas brancas, atendendo ao tamanho das lâminas superior a 10 cm, capazes de serem usadas como instrumento de agressão sem que os arguidos tivessem justificado a sua posse para fins lícitos. Contudo, o problema reside em saber se a sua aplicação era ou não definida. E era. Tratava-se de aplicação a fins domésticos, como facas de cozinha que eram. Embora, sem dúvida, retiradas tenham sido, mesmo temporariamente, desse uso culinário.
Qualquer faca de cozinha pode ser susceptível de ser usada para a prática de agressões. Como o pode ser uma qualquer outra arma afectada ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais e desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico sejam objecto de colecção.
O facto de serem desviadas do contexto em que se inserem ou da aplicação/afectação definida, desvio esse para outros fins quer lícitos quer ilícitos, não as transforma por si em armas brancas proibidas. Se assim não fosse, o legislador, que tão pormenorizado foi no catálogo e definições consignadas, tê-lo-ia dito. Ora, não deve o intérprete presumir do texto da lei penal mais do que o legislador quis expressar-se nem encontrar incriminações em aspectos que, porque duvidosamente legislados, por isso mesmo, na dúvida, não podem ser objecto de interpretações extensivas ou analógicas na formulação de tipos penais, sob pena de violação do princípio da legalidade quer em sentido formal (nullum crimen sine lege scripta) quer na vertente da determinabilidade (nullum crimen sine lege certa) quer, ainda, na vertente da proibição  analógica (nullum crimen sine lege stricta), consagrado no artº 29º nº 1 da CRP e nos artºs 1º-1 e 2 e artº 2º- nº1 do CP.
Se a intenção do legislador tivesse sido a de punir o uso de facas, como as dos autos, de aplicação a fins domésticos, quando desviadas da sua afectação normal, então teria sido fácil fazê-lo e , em vez de, no artº 86º alª d) citado ter usado a expressão: “outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”, bastaria ter eliminado a expressão “sem aplicação definida”, já que, então, mesmo as armas que houvessem sido desviadas da sua afectação definida, v.g. para fins ilícitos, no elenco das excepções, seriam sempre armas proibidas porquanto e desde que susceptíveis de uso como armas de agressão e o portador não justificasse a sua posse.
A nosso ver, o que o legislador pretendeu foi evitar punições generalizadas por posse de objectos (milhares ou mesmo milhões) que estejam afectados a fins definidos no elenco da lei, ainda que utilizáveis contextualmente ou pontualmente fora das ditas finalidades, preocupando-se essencialmente com a punibilidade em relação aos objectos cuja particularidade e características de aplicação não definida, acentuam a sua particular perigosidade, por si mesmas.
Não é a intenção de uso ilícito fora do contexto inicial da sua aplicação definida que impõe a sua proibição mas, antes, o carácter objectivo da sua conformação a aplicações não definidas que acentua a sua perigosidade, mais do que aquele desvio de afectação.
Concordamos, pois, com a base jurisprudencial citada na decisão recorrida (AC TRE de 4/3/2008 [4] e Ac TRG de 9/2/2009.
A ela acrescentaremos ainda, no mesmo sentido, o Ac RL de 08-10-2009- Procº 279/03.6GBBNV da 9ª Secção- Desembargadores Abrunhosa de Carvalho - Cid Geraldo.  )

 Seguindo de perto este último, nele se apontaram razões bastantes para também agora se decidir como na instância recorrida se julgou.

 Assim, citando deste os segmentos mais relevantes,  mutatis mutandis:

“É consabido, por outro lado, que a interpretação e a aplicação deste conceito de 'armas brancas', proibidas pelo art. 3.°, n.° 1, alínea f) do Decreto-Lei 207-A/75, de 17 de Abril, em articulação com a incriminação de condutas previstas no art. 275° n° 3 do Código Penal, foi controversa, gerando decisões díspares, questionando-se, precisamente, se as armas brancas, designadamente facas e navalhas, deveriam ser revestidas de 'disfarce' para serem consideradas 'armas proibidas', ou se o 'disfarce' referido na citada alínea f) era atributo exclusivo das armas de fogo aí mencionadas.
Esta questão, que dividiu a doutrina e a jurisprudência, despoletou a publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 4/2004 (in Diário da República – I Série –A, n.° 112, de 13 de Maio de 2004), nos termos do qual: 'Para efeito do disposto no artigo 275. 0, n.° 3 do Código Penal, uma navalha com 8,5 cm ou 9,5 cm de lâmina só poderá considerar-se arma branca proibida, nos termos do artigo 3.° n. ° 1 alínea J) do Decreto-Lei n.° 207-A175, de 17 de Abril, se possuir disfarce e o portador não justificar a sua posse '.
Em conformidade com este douto Acórdão algo tem de acrescer à arma branca, seja faca, navalha ou outro instrumento cortante, independentemente do comprimento da lâmina, para que possa ser considerada arma proibida. E esse algo mais é precisamente o já aludido 'disfarce', conforme a alínea O do n.° 1 do artigo 3.°.
E por 'disfarce' entende-se qualquer 'dissimulação da arma a tal ponto que até poderá confundir-se com qualquer outro objecto ou instrumento de todo inócuo em termos de perigosidade ', estando, normalmente, subjacente a esta dissimulação a intenção deliberada de ocultar a natureza da arma e, desse modo, agravar a sua intrínseca perigosidade.
É, pois, este carácter insidioso, de surpresa, que reduz as capacidades de defesa que integra a classificação de arma proibida (cf. douto acórdão da Relação de Lisboa, de 12.9.2007, in http//www.dgsi.pt).
Considera-se, portanto, na senda daquele douto Acórdão Uniformizador, que a perigosidade oculta acaba por ser mais agressiva, pois, quando usada com recurso ao elemento surpresa, reduz ou impossibilita a defesa da vítima.
Neste sentido, o Acórdão do STJ de 7 de Março de 1996 (Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, Acórdãos do STJ, IV, p. 227) decidiu que 'Arma com disfarce é aquela que encobre a sua verdadeira natureza, ou dissimula o seu real poder '.
Realce-se, ainda, que o douto Acórdão uniformizador não visou expressamente definir o tamanho da lâmina para caracterizar a proibição da arma, antes versando sobre a exigência de disfarce ou não, conforme os doutos arestos contraditórios que determinaram a sua publicação. A referência à medida da lâmina é meramente circunstancial, como se decidiu no douto acórdão da Relação de Coimbra de 6.12 de 2006, publicado no referido site, cujo teor, a este respeito, se subscreve na íntegra, onde se refere, no que ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência respeita, (...) que não toma posição sobre o comprimento da arma branca, designadamente sobre s e tem de ser superior a 8,5 cm ou 9,5 cm. Mas apenas sobre a questão em que divergiam os acórdãos fundamento – saber se a arma branca, para efeito do crime em questão, tinha de ter ou não 'disfarce'.
 A questão ou thema decidendum era apenas a exigência do disfarce na arma branca e não o comprimento da lâmina (.) Assim, para que os factos integrem o referido crime de detenção de arma proibida, p e p pelo art. 275 n° 1 e 3 do C. P., por referência à alínea J do n° 1 do art. 3° DL 207-A/75 de 17.4, ou teremos que estar perante uma arma branca com qualquer disfarce dissimulados da sua natureza (.) ou então perante um qualquer instrumento sem aplicação definida mas apto a ser usado como arma letal de agressão sem que o portador justifique a sua posse '.
Daí a necessidade que legislador teve de empregar um maior rigor na definição da arma branca proibida nos arts. 2° e. 86° n.° 1 d), da Lei n.° 5/2006, rigor a que aquele douto Acórdão de fixação de jurisprudência já apelava, designadamente, no que concerne, também, ao tamanho da lâmina.
Aquela interpretação foi também a acolhida nos doutos acórdãos da Relação de Guimarães de 24.5.2004, da Relação do Porto, de 13.12.2006, declarando-se, neste último douto aresto que ' Não é arma proibida uma simples faca com cabo de 13 cm e lâmina de 19 cm'.
No mesmo sentido, e já ao abrigo da legislação vigente, decidiram os doutos acórdãos da Relação de Évora de 4.3.2008 e da Relação de Guimarães de 9.2.2009, todos publicados no mesmo site, referindo-se no primeiro que 'Uma faca de cozinha tem aplicação definida (..) Sendo indubitavelmente uma arma branca, porque tem uma lâmina com mais de 10 cm de comprimento, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma proibida' e no segundo aresto também se declarou que ' A detenção de uma faca de cozinha não integra o crime de detenção de aram proibida (...) independentemente do comprimento da lâmina ou da superfície cortante '.
Harmonizando, pois, o douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência com as razões que motivaram a decisão que contempla, conclui-se que, na situação em apreço, a detenção da arma, atenta a sua natureza, com aplicação definida, facto que é do conhecimento comum, pois trata-se de uma faca de cozinha, sem qualquer disfarce, independentemente do tamanho da lâmina, não constitui ilícito penal, ainda que o detentor não justifique a sua posse, pois, detendo um objecto de aplicação definida não tem de a justificar. (…)

Por fim, não se diga também, em desespero de causa, que a acusação não invocou a natureza de facas de cozinha para que se possa dizer que as mesmas não o eram, já que remete a sua classificação para o auto de exame pericial de fls 3, o qual  refere tal afectação expressamente.

Em suma:
A caracterização de um objecto como arma proibida tem a ver com as suas características (grau de perigosidade) e com a utilização ou afectação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.
Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal. Sendo indubitavelmente uma arma branca, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida.
A faca de cozinha é, por conseguinte, um objecto que pode excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão contra pessoas, mas não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal. A sua perigosidade é evidente, por ser um instrumento corto-perfurante, mas a sua integração no contexto espacial da sua utilidade retira-lhe as características de arma proibida, ainda que possa ser considerada arma para outros fins.

III- DECISÃO
3.1.- Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.

3.2- Sem Taxa de justiça  por dela estar isento o MºPº.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2011

Relator: Agostinho Torres;
Adjunto: Luís Gominho;
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[1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95
[2]  vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e  o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de  Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335; e ainda  jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.
[3] Cfr Cf. Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português", Editorial Notícias, pág. 84
[4]In:  http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/2fa610ab9caec9ed80257408003d791e?OpenDocument
“(…) : A expressão “sem aplicação definida”, usada na alª. d) do n.º1 do citado art. 86.º, não se restringe, com o devido respeito, aos “instrumentos”, abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos. Com efeito, o legislador inclui na classe A as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas (ou seja, as armas sem aplicação definida). E inclui também na classe A quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressãocf. alª. f) e g) do n.º2 do art.3.º. São essas as outras armas brancas, engenhos ou instrumentos cuja aquisição, detenção, transporte ou uso se quis proibir. A ser assim, como pensamos que é, para que a detenção, uso e porte de outras armas brancas, para além das especificadas na alª. d) do n.º1 do citado art. 86.º constitua crime, impõe-se concomitantemente, o preenchimento, entre outros, dos referidos três requisitos. Não apenas um, ou dois, mas os três.
4 - Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal. Sendo indubitavelmente uma arma branca, porque tem uma lâmina com mais de 10 cm de comprimento, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida. 5 - O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida. (…) “