Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | HIGINA CASTELO | ||
Descritores: | ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/05/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | O processo de jurisdição voluntária destinado à atribuição da casa de morada de família, constante do artigo 990.º do CPC, serve para a atribuição da casa de morada de família ou para a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos dos artigos 1793.º (imóvel próprio do outro cônjuge ou de ambos) e 1105.º (imóvel arrendado pelo outro cônjuge ou por ambos) do Código Civil, e pressupõe uma das seguintes situações: divórcio, ainda que em curso; separação judicial de pessoas e bens, ainda que em curso; rutura da união de facto. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acórdão os juízes na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório “A”, autora nos presentes autos de atribuição da casa de morada de família que deduz contra “B”, notificada do despacho de indeferimento liminar, proferido em 04/02/2025, e com ele não se conformando, interpôs o presente recurso. A autora intentou contra o réu a presente ação para atribuição da casa de morada de família, com processo especial, alegando que são casados no regime da separação de bens, desde 2003, e que têm um filho comum, nascido em 2006, portanto, maior, mas a estudar no 12.º ano, e com a mãe residente; desde que o réu saiu de casa e foram reguladas as responsabilidades parentais, em 2017, que o mesmo incumpre sistematicamente com a pensão de alimentos devida ao filho; a autora aufere o salário mínimo, vive na casa de morada de família, sozinha com o filho, desde que o réu deixou o lar em 2017 e não tem condições para arrendar outra casa. Termina pedindo que a ação seja julgada procedente por provada e que seja atribuída à autora o uso exclusivo da casa de morada de família, para que possa regularizar junto da Câmara Municipal de Cascais, através da Cascais Envolvente o arrendamento em seu nome. A autora não chega a afirmá-lo, mas fica implícito no que alega e decorre de documentos juntos que a casa de morada de família é uma habitação social que tem por senhoria “Cascais Envolvente” e por arrendatário o réu. A ação foi originalmente deduzida por apenso a processos tutelares, tendo, em primeiro despacho, sido ordenada a sua distribuição como processo autónomo. Redistribuído o processo foi, de imediato, proferido o seguinte despacho: «Nos presentes autos vem a Autora requerer que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegando residir com a mesma o filho do casal, que o Réu saiu de casa na sequência a apresentação de queixa crime por violência doméstica e que não tem condições para arrendar outro imóvel, carecendo, por isso, de permanecer no mesmo. A atribuição da casa de morada de família traduz-se num direito de utilização exclusiva, por parte de um dos ex-cônjuges, daquela que foi a morada onde se centrou a vida familiar durante o casamento, sendo o decretamento do divórcio pressuposto para prolação de decisão sobre a atribuição da casa de morada de família. Efetivamente, a atribuição da casa de morada de família é uma das consequências a fixar na sequência do divórcio, sendo apenas admitida antes da sua prolação, a título provisório, na pendência da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge (e nos próprios autos de divórcio). Sucede que, dos elementos constantes dos autos, Autora e Réu permanecem casados, não se verificando, pois, o preenchimento de tal pressuposto, o que impede o conhecimento dos autos. Assim, e sem necessidade de expender mais considerações, indefere-se liminarmente o peticionado, por falta de fundamento legal, e consequentemente absolve-se o Réu da instância. Registe e notifique. Custas pela Autora, pelo mínimo legal (sem prejuízo do apoio judiciário que venha a ser concedido).» A autora não se conforma e recorre, concluindo da seguinte forma: «I - A presente decisão não pode de deixar de ser uma decisão surpresa, pois encontra-se violado o nº 3 do art. 3º do CPC, e a proibição de decisões-surpresa pretendeu uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios. II - A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº 1 do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. III - Pelo que estamos no âmbito de uma decisão surpresa que lesa os direitos da Autora, nomeadamente o direito a um processo justo, equitativo, violando assim o preceito constitucional plasmando no artigo 20 da CRP, que a todos é garantido o acesso à justiça. Estando em causa o artigo 20 n.º 1, 4 e 5 da CRP. III - É, ainda, uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o nº 3, do referido artigo 3º. IV – Há nulidade da sentença prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil quando se verifica falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta, encontrando-se violada a norma jurídica. V - Ora no caso completo há absoluta falta de fundamentos e fundamentação, como deriva da leitura da mesma. Em consequência, verifica-se a situação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. VI - Sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, a sentença é nula, de harmonia com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil. VII - A causa de nulidade prevista nesta alínea está em correspondência direta com o artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. Estabelece-se nesta norma que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. VIII - Por seu turno, o excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conhece de questões que não tendo sido colocadas pelas partes, também não são de conhecimento oficioso. IX - A nulidade por excesso de pronúncia, prevista no artº 615º, nº 1, d) do C.P.C, não se reporta aos fundamentos considerados pelo magistrado para a prolação de decisão, mas antes afere-se pelos limites da causa de pedir e do pedido. X - Os processos de jurisdição voluntária, nos quais se inserem os pedidos de atribuição de casa de morada de família, não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, não estando limitado pela concreta alegação das partes, podendo adotar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cfr. o disposto nos artºs 986º e segs. do C.P.C.) XI - O artº 1793º do C.C. visa a proteção da família, como ela é constitucionalmente garantida pelo artº 67º da Constituição, pelo que existindo filhos do ex-casal e constituindo o direito a uma residência condigna um direito inalienável das crianças, que cabe aos seu progenitores assegurarem no limite das suas capacidades (conforme resulta ainda do princípio 4º da Declaração Universal dos Direitos da Criança (Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959, e artº 27º da Convenção sobre os Direitos da Criança, Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990), o interesse que deve prevalecer na decisão a proferir é o destes menores.» Não há contra-alegações a considerar. Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito. Objeto do recurso Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões: a) A decisão recorrida constitui uma decisão-surpresa, proferida com violação do devido contraditório? b) A decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia? c) A decisão recorrida está errada? II. Fundamentação de facto Os factos a considerar são os que constam do relatório. III. Apreciação do mérito do recurso Por via da presente ação, a autora, casada com o réu – mas separada de facto do mesmo por ele ter abandonado a casa de morada de família, onde a autora permanece com o filho de ambos – pede que o tribunal lhe atribua a casa de morada de família, da qual o réu é arrendatário. A atribuição da casa de morada de família ao cônjuge ou ex-cônjuge não proprietário ou não proprietário único (casos em que o imóvel é propriedade do outro cônjuge ou é propriedade de ambos os cônjuges), ou ao cônjuge não arrendatário ou não arrendatário único (casos em que o imóvel é arrendado pelo outro cônjuge ou por ambos) está prevista nos artigos 1793.º e 1105.º do CC, respetivamente, nos termos que adiante se transcrevem. Repare-se que o artigo 1793.º está integrado na subsecção IV, epigrafada «Efeitos do divórcio», da secção «Divórcio» do capítulo «Divórcio e separação judicial de pessoas e bens» do livro do CC intitulado «Direito da família». O disposto no artigo 1793.º é aplicável não apenas aos casos de divórcio, mas também aos casos de separação judicial de pessoas e bens, por força do disposto no artigo 1794.º do CC, e aos casos de rutura da união facto por remissão expressa do artigo 4.º da Lei 7/2001, de 11 de maio (na redação vigente que, para aquele artigo, é a introduzida pela Lei 23/2010, de 30 de agosto). O artigo 1105.º do CC, por seu turno, faz parte da divisão intitulada «Transmissão» da subsecção «Disposições especiais do arrendamento para habitação» da secção «Arrendamento de prédios urbanos» do capítulo do destinado ao contrato locação (inserido no título «Dos contratos em especial» do livro «Direito das obrigações» do CC). Este artigo 1105.º aplica-se não apenas aos casos de divórcio e de separação judicial de pessoas e bens, conforme nele diretamente previsto, mas também aos de rutura da união facto por remissão expressa do artigo 4.º da citada Lei 7/2001. ARTIGO 1793.º (Casa de morada da família) 1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuge se o interesse dos filhos do casal. 2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem. 3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária. Artigo 1105.º Comunicabilidade e transmissão em vida para o cônjuge 1 - Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles. 2 - Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes. 3 - A transferência ou a concentração acordadas e homologadas pelo juiz ou pelo conservador do registo civil ou a decisão judicial a elas relativa são notificadas oficiosamente ao senhorio. A disciplina de ambos os artigos aplica-se aos casos de divórcio – o 1793.º pela sua inserção sistemática, e o 1105.º por previsão do artigo –, de separação judicial de pessoas e bens – o 1793.º por remissão do 1794.º, e o 1105.º por previsão do artigo –, e de rutura da união de facto – ambos por remissão do artigo 4.º da Lei 7/2001. No direito adjetivo, há um processo de jurisdição voluntária destinado à atribuição da casa de morada de família, constante do artigo 990.º do CPC que passamos a transcrever: Artigo 990.º Atribuição da casa de morada de família 1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito. 2 - O juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.ºs 1, 7 e 8 do artigo 931.º, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º 3 - Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo. 4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso. O descrito procedimento serve, conforme dele consta, para a atribuição da casa de morada de família ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos dos antes vistos artigos 1793.º (imóvel próprio do outro cônjuge ou de ambos) e 1105.º (imóvel arrendado pelo outro cônjuge ou por ambos) do Código Civil. No caso dos autos, o imóvel é arrendado pelo réu, cônjuge marido, pelo que nada a autora poderia requerer ao abrigo do artigo 1793.º do CC. Ao abrigo do artigo 1105.º também não, por ora, pois, como vimos, a atribuição da casa de morada de família pressupõe uma das seguintes situações: divórcio, ainda que em curso; separação judicial de pessoas e bens, ainda que em curso; rutura da união de facto. Ora, a autora é casada como o réu e não está em curso nenhuma ação de divórcio, nem de separação judicial de pessoas e bens. Assim sendo, o tribunal a quo indeferiu liminarmente a petição. Invoca a autora que se tratou de uma decisão-surpresa, pela qual o tribunal a quo se pronunciou sobre questão não suscitada e sem que nada fizesse prever a decisão tomada. Entende a autora que houve violação do dever de observar o contraditório, conforme estabelecido no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, e que a decisão assim tomada enferma de nulidade por excesso de pronúncia. Começando pelo fim, concordamos que uma decisão subsumível ao conceito doutrinário de decisão-surpresa, por apreciar e decidir questão sem que tenha sido dada à parte oportunidade de sobre ela se pronunciar, corresponde a uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC) e não a uma nulidade processual por omissão da regra do contraditório. Tal omissão apenas se torna relevante por força da decisão-surpresa, sendo a prolação desta que constitui ato ferido de nulidade. Neste sentido, em vários escritos, Miguel Teixeira de Sousa, v.g. «Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária», comentário de 22/09/2020 ao acórdão do STJ de 02/06/2020, proc. 496/13.0TVLSB.L1.S1, e «Por que se teima em qualificar a decisão surpresa como uma nulidade processual?», comentário de 12/10/2021, ambos no Blog do IPPC, em https://blogippc.blogspot.com. Conclui o autor: «Em suma: cabe reafirmar – agora até com argumentação reforçada – que uma decisão-surpresa constitui um vício próprio e autónomo que determina a nulidade dessa decisão por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC)». Este entendimento está presente na jurisprudência, como, por exemplo, no Ac. STJ de 23/06/2016, proc. 1937/15.8T8BCL.S1, disponível em www.dgsi.pt; neste acórdão é citado outro, além de doutrina (Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 3.ª ed., pág. 25, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., pág. 52), incluindo textos mais antigos que os acima citados de Miguel Teixeira de Sousa. O que o tribunal a quo fez foi apreciar a suficiência dos factos alegados na petição para, a provarem-se, conduzirem à procedência da ação. E concluiu negativamente, e bem, como vimos. O tribunal não fez mais do que apreciar a questão que a autora lhe submeteu: saber se, com os factos alegados pela autora, a ação podia proceder. Ainda que a decisão fosse nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, passaríamos à apreciação do mérito da decisão recorrida, por duas razões: primeiro, porque tendo a recorrente, em sede de alegações de recurso, tomado posição sobre a questão que fundamentou a decisão da primeira instância, já não se verificaria agora o impedimento da surpresa; segundo, por força da regra da substituição ao tribunal recorrido, consagrada no artigo 665.º do CPC (ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação). Retomando e dando por reproduzido tudo quanto começámos por expor, os factos que a autora alegou – nomeadamente porque casada com o réu, não judicialmente separada de pessoas e bens, e não correndo ação de divórcio, nem de separação judicial de pessoas e bens –, não se reconduzem aos pressupostos necessários à procedência do pedido. IV. Decisão Face ao exposto, julga-se a apelação totalmente improcedente, confirmando a decisão objeto de recurso. Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Lisboa, 05/06/2025 Higina Castelo Arlindo Crua António Moreira |