Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3376/14.9T8FNC-A.L1-6
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: ARROLAMENTO
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A providência cautelar de arrolamento prevista nos art.s 403.º e seguintes do Código de Processo Civil visa conferir tutela urgente e acauteladora a direitos a brandir ulteriormente em situações de «receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos», pelo que logra proteger os direitos de ex-cônjuge que vise obviar à dissipação de depósitos bancários e dinheiro alegadamente pertencentes a ambos os elementos do casal não se justificando, pois, em tal caso, o recurso a procedimento cautelar não especificado;
- O erro na forma de processo emergente do uso indevido deste procedimento é susceptível de ser invocado em sede de oposição à providência e deve ser conhecido no âmbito da sentença que a aprecie;
- É distinta a questão da excepção de caso julgado da atinente à autoridade do caso julgado, face à distinta estrutura dos pressupostos e requisitos de sustentação, sendo que a impugnação incidente sobre o decidido relativamente a uma não atinge o definido quanto à outra.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:

SUMÁRIO:
I. A providência cautelar de arrolamento prevista nos art.s 403.º e seguintes do Código de Processo Civil visa conferir tutela urgente e acauteladora a direitos a brandir ulteriormente em situações de «receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos», pelo que logra proteger os direitos de ex-cônjuge que vise obviar à dissipação de depósitos bancários e dinheiro alegadamente pertencentes a ambos os elementos do casal não se justificando, pois, em tal caso, o recurso a procedimento cautelar não especificado;
II. O erro na forma de processo emergente do uso indevido deste procedimento é susceptível de ser invocado em sede de oposição à providência e deve ser conhecido no âmbito da sentença que a aprecie;
III. É distinta a questão da excepção de caso julgado da atinente à autoridade do caso julgado, face à distinta estrutura dos pressupostos e requisitos de sustentação, sendo que a impugnação incidente sobre o decidido relativamente a uma não atinge o definido quanto à outra.

I. RELATÓRIO                   

1. A..., com os sinais identificativos constantes dos autos,  instaurou «providência cautelar», que classificou como «não especificada», contra M... e M..., neles também melhor identificados, por intermédio da qual peticionou a apreensão de contas bancárias nas quais os Requeridos possam ter depositado o valor pecuniário que indicou, bem como do cofre alugado no banco referenciado no requerimento inicial; mais requereu a fixação de uma sanção pecuniária compulsória até à entrega efectiva da quantia que referiu pertencer-lhe. Alegou, para o efeito, que: a Requerente e o Requerido M... foram casados um com o outro encontrando-se, atualmente, divorciados; perante o início do distanciamento e conflito entre o casal que conduziu à situação de separação, o Requerido M... foi ao Banco e desviou da conta comum do casal a quantia de 560.000,00 € para uma conta aberta apenas em seu nome; a Requerente pediu ao Requerido que lhe devolvesse metade do valor levantado mas este recusou-se a entregar-lhe essa metade; nunca mais conseguiu reaver o seu dinheiro;  tem medo de que o Requerido dissipe o valor existente nas contas bancárias antes da partilha dos bens comuns do casal; a providência deve abarcar  todas as contas existentes em nome dos Requeridos em todas as instituições de crédito e ainda quaisquer outras para as quais tenham sido efectuadas transferências bancárias de avultado valor; o Requerido M... confia muito no Requerido M... e ambos, por diversas vezes, já ameaçaram que a Requerente  nunca irá ter acesso ao dinheiro, demonstrando que ambos sabem onde o mesmo se encontra; requereu, de imediato, o arrolamento dos bens comuns do casal, tendo pedido o arrolamento de todas as contas bancárias existentes; no entanto, não foi possível arrolar nenhuma conta com tais valores e o procedimento cautelar de arrolamento acabou por ser declarado extinto por inutilidade superveniente da lide, em virtude de o casal ter convertido o divórcio em mútuo consentimento; vive em estado de pânico e com medo de nunca mais conseguir reaver o seu dinheiro; quer o arrolamento quer o procedimento criminal não surtiram quaisquer efeitos práticos e preventivos, até agora; os Requeridos afirmam que a mesma nunca mais irá ver o dinheiro nem conseguirá provar a sua existência; o filho, o aqui requerido M..., é quem esconde o dinheiro num cofre bancário; com a extinção da providência de arrolamento, e sem que a verba tenha efetivamente sido arrolada, existe o justo receio de o valor em causa ser dissipado e de a requerente nunca mais o conseguir reaver; os requeridos trabalham por conta de patrão e recebem salários modestos pelo que, se o dinheiro desaparecer, ainda que se prove o direito da requerente, a mesma terá inúmeras dificuldades em recuperá-lo.

2. Foi realizada a instrução do procedimento sem audição da parte contrária, tendo sido proferida decisão que decretou:

«Pelo exposto, julga-se totalmente procedente a presente providência e, consequentemente, decide-se:

a) Apreender o saldo da conta bancária para onde foi transferido o valor de € 560.000,00, junto do M..., com os números 040.10.014748-3 e 325.10.000001-8;

b) Apreender os saldos bancários de contas tituladas pelos requeridos, em valor superior ao salário mínimo regional;

c) Apreender o cofre alugado no Banco ... em nome dos requeridos.» 

3. Os Requeridos deduziram oposição arguindo a existência de erro na forma de processo, invocando a autoridade de caso julgado, referindo ser inexistente o direito invocado, patenteando considerarem existir causa prejudicial (face ao curso de processo de inventário subsequente ao divórcio), impugnando factos e opondo-se à inversão do contencioso que divisaram como tendo sido pedida pela Requerente. Concluíram que:

«A – Deve o alegado erro na forma de processo ser julgado procedente, por provado e, em consequência, serem os Requeridos absolvidos da instância;

B – Caso assim não se entenda, ser a invocada autoridade de caso julgado considerada procedente, por provada e, em consequência, serem os Requeridos absolvidos da instância;

C – Na hipótese de ainda assim não se entender, deve então ser julgada procedente, por provada, a alegada existência de causa prejudicial e, em consequência, ser determinada a suspensão da presente instância, nos termos do artº. 272º, nº. 1 do Cód. Proc. Civ., até que seja proferida decisão nos autos de inventário subsequente ao divórcio a que alude o artº. 58º do presente articulado.

D – Se se entender que a questão é de fundo e não de forma, deve então o presente procedimento cautelar ser julgado improcedente, por não provado, devido à inexistência dos respectivos pressupostos legais, bem como dos direitos que a Requerente arvora em juízo e, em consequência, serem os Requeridos absolvidos do pedido.

E – Deve ainda ser indeferida a requerida inversão do contencioso, por não se verificarem igualmente os necessários pressupostos legais, para que a mesma seja decretada.

Tudo com as legais consequências.»

4. A Requerente pronunciou-se sobre o que considerou ser matéria de excepção do requerimento de oposição concluindo pela sua improcedência.

5. Os Requeridos suscitaram a questão da nulidade desta resposta pedindo o respectivo desentranhamento. Esta questão não foi decidida após a sua dedução mas, apenas, na sentença, tendo-se determinado a manutenção nos autos do aludido requerimento.

6. Foi designada data para a inquirição das testemunhas indicadas e realizou-se a instrução, discussão e julgamento da oposição, tendo sido proferida sentença que absolveu os Requeridos da instância e determinou o «levantamento das apreensões efectuadas nos presentes autos».

7. É desta sentença que vem este recurso interposto pela Requerente, que alegou e apresentou as seguintes conclusões e pedido:

«I. O tribunal a quo com a sentença ora recorrida violou os artº 403º, 362º, 580º 581 e 619º todos do CPC.

II. A presente providência não é de arrolamento, pois não ser pretende a mera listagem dos bens do casal.

III. Pretende-se, sim, a apreensão de um cofre e conta bancária, quer do casal quer o requerido filho do casal M....

IV. Pelo que a providência cautelar não especificada decretada não podia ter sido convertida para arrolamento, pois os fundamentos e os objectivos são diferentes.

V. A convolação de providência, entende-se, que a existir teria que ser efectuada pelo Juiz que recebeu e julgou a providência inicialmente e não pelo juiz que julga a oposição, pois é o primeiro que determina a regularidade da instância e os seus pressupostos.

VI. Acresce que, e ainda admitindo que a presente providência poderia ser convolada para arrolamento, não existe caso julgado por não existir identidade nem de pedido e causa de pedir nem identidade de sujeitos.

VII. O presente pedido consiste na apreensão de um cofre existente em instituição bancária e que foi contratado depois do divórcio e arrolamento de bens inicial, e que se encontra em nome do filho do casal, por existir justo receio de dissipação da verba que o mesmo pode conter.

VIII. O objectivo da presente providência é outro, não é o simples arrolamento dos bens mas a apreensão dos mesmos, por forma a evitar o desaparecimento dos 560.000€ pertencentes ao casal.

IX. Acresce que o arrolamento que existiu entre a requerente e o Requerido M..., foi um arrolamento especial por divórcio, apenso a um processo de divórcio, em que as partes eram apenas o casal.

X. Ora a presente providência, não obstante pretender proteger uma verba de 560.000 € pertença do casal e que se encontra desaparecida mas que foi descoberto que se encontra depositada num cofre em nome do filho do casal, não é um simples arrolamento em virtude de divórcio.

XI. E não é porque as partes não são apenas os cônjuges ou ex-cônjuges, mas porque também tem o filho do casal que ajuda o pai a ocultar a verba de 560.000 €.

XII. Pelo que não existe identidade de sujeitos.

XIII. Não existe qualquer caso julgado extensível ao requerido M..., pois o arrolamento que existiu, para além de não ter tido uma decisão material, por ter sido declarado extinto por inutilidade superveniente da lide, não atinge este sujeito.

XIV. Não se encontra reunidos os requisitos do caso julgado (art 581º C.P.C), pelo que a presente sentença tem que ser revogada por outra que profira uma decisão de mérito e para todos os sujeitos processuais.

XV. Não existe identidade das partes nas providência, pois a providência de arrolamento teve como partes o casal ou seja a requerente e o requerido M... e a presente providência além deste tem como requerido o filho do casal – M....

XVI. Nos termos do artº 580 do CPC o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, que como já referimos o presente processo não é uma repetição do anterior, tem objectivo diferente pois o pedido pretende um efeito jurídico diferente - Art 581° nº 3.

XVII. Não existe também identidade de sujeitos, pois as partes não são as mesmas. Nesta providência temos um novo sujeito o filho do casal que é detentor de um cofre que se pretende apreender, e que contra ele ou a favor não existe nenhuma sentença anterior.

XVIII. Pelo que foram violadas as normas contidas nos art.º 580 e 581° C.P.C.

XIX. Não existe caso julgado.

XX. A sentença proferida e ora recorrida em nada abalou os factos dados como provado pela sentença que decretou a providência, pelo que não existindo caso julgado, deve a presente sentença ser revogada por outra que mantenha a providência proferida.

XXI. Nestes termos e nos demais de direito, deve a sentença ora recorrida ser revogada por outra que mantenha a providência cautelar deferida a 12 de Dezembro de 2013, e que apreenda o cofre existente no Banco ... em nome de M..., bem como as contas bancárias referidas.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser admitido, analisada a questão de direito e de mérito, seja a Douta Decisão revogada e substituída por uma outra que mantenha a providência inicialmente decretada a 12.12.2013, seguindo-se os ulteriores termos até final, com as legais consequências, termos em que se fará JUSTIÇA.»

8. Os Requeridos responderam a estas alegações concluindo e pedindo:

«1ª – Constituem pressupostos gerais das providências cautelares a existência do direito de que se ocupa a acção proposta ou a propôr; que tenha por fundamento o direito tutelado; o justo e fundado receio de que outrém cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito e que o prejuízo resultante da providência não exceda o valor do dano que com ela se pretende evitar.

2ª – As providências cautelares não especificadas só podem ser requeridas quando nenhuma outra providência possa ser utilizada no caso concreto: nisto consiste o princípio da subsidiariedade dessas providências previsto no artº. 362º, nº. 1 do Cód. Proc. Civ..

3ª – O Tribunal não está adstrito à providência cautelar concretamente requerida, o que significa que pode convolar o procedimento pedido para aquele que de acordo com as alegações do requerente seja o indicado, desde que os factos alegados possibilitem a convolação, ou seja, desde que a alegação contenha todos os requisitos da providência cautelar adequada a obter a finalidade pretendida pelo requerente.

4ª – Um bem comum, enquanto não for realizada a sua divisão, tem um regime unitário, não se confundindo com a justaposição de duas propriedades distintas; aos seus titulares não pertencem direitos específicos, designadamente uma quota, sobre cada um dos bens que integram o património global.

5ª – Na partilha dos bens destinada a pôr termo à comunhão, os respectivos titulares apenas têm direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objecto da partilha.

6ª – Tendo em consideração que conforme resulta da alegação da Requerente, a mesma pretende obstar à dissipação da quantia de 560 000,00 € (Quinhentos e sessenta mil euros), tendo em vista salvaguardar a sua existência, a fim de ser partilhada, conforme deflui da letra do artº. 403º, nº. 1 do Cód. Proc. Civ. o caso enquadra-se na providência cautelar especificada de arrolamento.

7ª – Os factos alegados pela Requerente permitem a convolação da providência cautelar não especificada em providência cautelar especificada de arrolamento, já que neles estão inscritos todos os requisitos necessários ao decretamento desta última, “maxime” a existência de um direito relativo à quantia em causa, o seu interesse na conservação da mesma e o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação, nomeadamente pelo Requerido M...

8ª – A convolação a que alude a conclusão precedente insere-se no princípio da adequação formal imposto pelo artº. 547º do Cód. Proc. Civ., que determina que o Juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim de visam atingir, assegurando um processo equitativo.

9ª – A reforma do processo civil e a inequívoca opção do legislador por soluções que privilegiem aspectos de ordem substancial, desvalorizando questões de natureza formal, permite sustentar o poder/dever a que alude a conclusão precedente.

10ª – Tanto o artº. 619º, nº. 1, como o artº. 621º do Cód. Proc. Civ. referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado.

11ª – O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva através da autoridade do caso julgado, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e uma função negativa quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal.

12ª – Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente.

13ª – A autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artº. 581º do Cód. Proc. Civ., pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.

14ª – A força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

15ª – Não é a decisão enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.

16ª – A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa e bem assim que a repetição se verifique depois da primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário.

17ª – Para que se possa afirmar que se repete uma causa torna-se necessário que estejamos perante uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

18ª – Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob ponto de vista da sua qualidade jurídica.

19ª – O que releva para efeitos de identidade jurídica é a posição das partes quanto à relação jurídica processual.

20ª – Entre a presente providência cautelar não especificada e os autos de arrolamento que correram seus termos sob o nº. 259/12.0TMFUN-A pelo ex-Tribunal de Família e Menores do Funchal e actual Tribunal da Comarca da Madeira, Instância Central do Funchal, Secção de Família e Menores – J3 não há identidade de sujeitos, na medida em que nos presentes autos, o lado passivo, para além do Requerido M..., é ainda constituído pelo também Requerido M..., contra o qual é igualmente dirigido o pedido, pelo que fica afastada verificação de caso julgado.

21ª – Não obstante a instância ter sido extinta por inutilidade superveniente da lide nos autos de arrolamento que correram seus termos sob o nº. 259/12.0TMFUN-A pelo ex-Tribunal de Família e Menores do Funchal, face à conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, o acordo alcançado pelas partes não prejudica o trânsito em julgado da decisão proferida, pelo que a mesma constitui caso julgado.

22ª – O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.

23ª – O fundamento essencial do caso julgado não é de natureza lógica, mas de natureza prática; não há que sobrevalorizar o momento lógico do instituto, por muito que a ele se recorra na técnica e construção da figura.

24ª – O que se converte em definitivo com o caso julgado não é a definição de uma questão, mas o reconhecimento ou não reconhecimento de um bem.

25ª – Não obstante nos presentes autos a Requerente ter alegado que a quantia de 560 000,00 € (Quinhentos e sessenta mil euros) alegadamente dissipada pelo Requerido M... se encontra num cofre alugado em nome do Requerido M..., existe conexão entre tal cofre e a quantia em causa, cujo arrolamento já havia sido determinado no processo que corre seus termos pelo ex Tribunal de Família e Menores do Funchal, de modo que voltar a apreciar a questão do arrolamento do falado cofre reconduz-se à repetição de uma decisão já proferida, bem como do destino do respectivo processo, facultando desse modo à Requerente uma duplicação de acções com o mesmo fim.

26ª – Após a apresentação da relação de bens na acção de divórcio, a Requerente aceitou a decisão que julgou extinta a instância do arrolamento por inutilidade superveniente da lide, não tendo colocado em causa que tal decisão afectasse o direito que pretendia fazer valer com o arrolamento.

27ª – Face ao circunstancialismo descrito nos autos, a instauração da actual providência cautelar constitui violação de autoridade de caso julgado, que configura uma excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso, nos termos do artº. 578º do Cód. Proc. Civ., que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância de harmonia com o preceituado nos artºs. 576º, nº. 2 e 278º, nº. 1, alínea e) daquele mesmo Código.

28ª – Havendo oposição no procedimento cautelar, a oposição superveniente é apreciada em conjunto com a prova inicialmente produzida pelo requerente, antes registada, podendo o juiz manter, reduzir ou revogar a providência inicialmente decretada.

29ª – A prova produzida em sede de oposição pode infirmar aquela que foi produzida sem audição do requerido, não se colocando qualquer questão de caso julgado que o impeça.

30ª – Uma vez decretada a providência, se a parte contrária conseguir trazer a juízo elementos capazes de afastar a prova indiciária em que se fundou a decisão inicial ou se na sequência da oposição deduzida forem trazidos ao processo novos factos ou novos elementos de sentido contrário aos inicialmente tidos em consideração, o Tribunal tem de atender a esses novos elementos e valorá-los devidamente, podendo, em consequência, alterar ou manter ou não o decidido, só assim fazendo sentido a admissão da oposição.

31ª – A oposição não configura uma verdadeira acção declarativa enxertada no procedimento cautelar, obedecendo estritamente ao estatuído acerca do formalismo da oposição que teria sido pertinente deduzir, no momento próprio, se tivesse havido audição prévia do requerido.

32ª – O artº. 372º, nº. 3 do Cód. Proc. Civ., ao permitir que o juiz mantenha, reduza ou revogue a providência anteriormente decretada, consagra uma excepção ao princípio de que, proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa, previsto no artº. 613º do Cód. Proc. Civ..

33ª – Nos procedimentos cautelares, quando há lugar a oposição do requerido nos termos estabelecidos no artº. 372º, nº. 1, alínea b) do Cód. Proc. Civ., a decisão inicial não faz caso julgado; é uma decisão provisória e, sendo a segunda o seu complemento ou parte integrante, proferida esta, o procedimento cautelar passa a ter uma decisão unitária.

34ª – “In casu” a Mª. Juíza que julgou a providência nos termos do artº. 367º, nº. 1 do Cód. Proc. Civ. não curou, como devia, de aferir se o meio processual era o próprio.

35ª – Como a lei é expressa no sentido de que uma vez deduzida oposição pelo requerido, na sequência da prova produzida o Juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada, sendo que qualquer das decisões constitui complemento e parte integrante da decisão inicialmente proferida, o que significa que esta não chega a constituir caso julgado, não se vislumbra razão alguma para que a decisão de convolação, sendo ela pertinente, não possa ser proferida pelo Juiz que julga nos termos do disposto no artº. 372º, nºs. 1, alínea b) e 3 do Cód. Proc. Civ..

36ª – Sobre o juiz que profere a decisão nos termos referidos na parte final da conclusão precedente também impende o poder-dever de fazer observar o princípio da adequação formal estabelecido no artº. 547º do Cód. Proc. Civ..

37ª – O arrolamento é a providência adequada para prevenir o risco de dissipação ou ocultação de bens comuns e acautelar o efeito útil do processo de inventário instaurado para partilha destes bens, efeito útil que consiste não só na partilha dos mesmos, mas também na entrega aos interessados dos bens que lhes couberem na partilha.

38ª – Em parte alguma quer da oposição à providência deduzida pelos Requeridos, quer da douta decisão proferida pelo Tribunal “a quo” se afirma que se verifica a excepção de caso julgado, nem tão pouco que existe identidade de partes.

39ª – O que os Requeridos invocaram na oposição deduzida e que foi acolhido na douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” foi que verifica-se a excepção de autoridade de caso julgado entre a decisão proferida no âmbito dos autos de arrolamento que correram seus termos sob o nº. 259/12.0TMFUN-A pelo ex-Tribunal de Família e Menores do Funchal, em que foi Requerente A... e Requerido M... e os presentes autos, em que é Requerente a mesma A... e Requeridos o dito M... e ainda M..., filho dos dois primeiros.

40ª – A autoridade de caso julgado justifica-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.

41ª – Desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, ou certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, ou esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior.

42ª – Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação e da anarquia.

43ª – A decisão que transitou em julgado, ainda que, porventura, possa estar errada, possa ter apreciado mal os factos, ou possa ter interpretado e aplicado erradamente a lei, tal pouco importa para efeitos práticos, pois tudo se passa, no mundo do direito, como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça.

44ª – Em relação ao caso concreto sobre que recaíu a sentença, a decisão contida nesta é, para todos os efeitos, a verdade jurídica.

45ª – O Tribunal “a quo” fez uma correcta aplicação do direito à matéria de facto apurada, “maxime” do disposto nos artºs. 278º, nº. 1, 362º, 372º, nº. 3, 403º, nº. 1, 547º, 576º, nº. 2, 578º, 580º, 581º, 619º e 621º, todos do Cód. Proc. Civ..

46ª – Improcedem as Conclusões IV, V, VI, VII, VIII, XI, XIII, XIV, XVI, XVIII, XX e XXI do recurso interposto pela Requerente, sendo irrelevantes para a boa decisão do recurso todas as demais não referidas.

Termos em que, não só pelo modestamente alegado, mas sobretudo pelo doutamente vier a ser suprido, deve negar-se provimento ao recurso interposto, mantendo-se integralmente a douta decisão proferida, com as legais consequências.»

9. Cumprido o disposto na 2.ª parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.

São as seguintes as questões a avaliar:

A providência cautelar não especificada decretada não podia ter sido convertida para arrolamento porquanto os seus fundamentos e objectivos são diferentes e a conversão não foi realizada pelo juiz que a recebeu e julgou?

Não existe caso julgado por não existir identidade nem de pedido e causa de pedir nem de sujeitos e porque o arrolamento não teve uma decisão material já que foi declarado extinto por inutilidade superveniente da lide?

II. FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

10. Relevam, no que tange ao presente recurso, os factos processuais constantes do relatório supra-lançado.

Fundamentação de Direito

11. 1. A providência cautelar não especificada decretada não podia ter sido convertida para arrolamento porquanto os seus fundamentos e objectivos são diferentes e a conversão não foi realizada pelo juiz que a recebeu e julgou?

A providência cautelar de arrolamento prevista nos art.s 403.º e seguintes do Código de Processo Civil visa emprestar uma tutela urgente e acauteladora de direitos a brandir ulteriormente em situações de «receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos».

No caso em apreço, visa-se obviar à dissipação de saldos de contas bancárias e de dinheiro eventualmente depositado em cofre alugado a um Banco. Trata-se de bens que, seguramente, se quis englobar na referência abrangente referida na norma, que adoptou a distinção alargada e compreensiva contida no art. 203.º do Código Civil. Há, assim, a este nível, coincidência entre o preceito interpretando e os factos de subsunção.

Por outro lado, extrai-se do art. 406.º do Código de Processo Civil que o «arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens» sendo a providência concretizada mediante a elaboração de auto contendo a descrição desses bens, «em verbas numeradas, como em inventário», a declaração do «valor fixado pelo louvado» e a certificação da «entrega ao depositário ou o diverso destino». Acresce que o n.º 5 deste artigo estatui que, na parte desprovida de sobreposição reguladora ou de contrariedade ontológica, são aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora. Quanto a esta, define o art. 780.º que  penhora de saldos de depósitos bancários se faz mediante comunicação às instituições legalmente autorizadas a receber depósitos nos quais tais saldos existam. No que tange a dinheiro depositado em cofre, sempre o n.º 2 do art. 764.º obstaria à remoção, ainda que de penhora se tratasse. Não há, assim, maior tutela disponível por outra via do que a conferida em caso de deferimento da providência de arrolamento.

Extrai-se, assim, do dito que o arrolamento tem a virtualidade de conferir à Requerente a providência por si pretendida, nada se requerendo que clame a operação de distinta providência. O procedimento de arrolamento confere a possibilidade de concretizar todas as finalidades da Requerente,  que nada pretende nos autos que não possa ser assegurado por tal via processual. Esta providência contém os mecanismos adjectivos necessários para acautelar o efeito útil da acção, para os efeitos do disposto no n.º 2 do art. 2.º do Código de Processo Civil.

Os critérios de escolha do depositário indicados no art. 408.º deste Código não são incompatíveis com a finalidade da providência.

O narrado e o disposto no n.º 3 do art. 362.º de tal encadeado de normas confirmam a adequação da escolha do Tribunal «a quo» já que, de acordo com o estabelecido neste preceito, as providências cautelares não especificadas não são as utilizáveis quando «se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas».

Por assim ser, não merece a mesma censura a este nível.

Porém, a Recorrente invoca, ainda que de forma ligeira e sem daí retirar consequências claras, que o Tribunal não podia conhecer do desvio processual reconhecido porquanto a possibilidade de realizar tal avaliação seria exclusivamente conferida ao Mmo. Juiz que proferiu a decisão sem audiência dos Requeridos.

A este respeito, cumpre referir que estamos perante nulidade emergente de erro na forma do processo subsumível ao disposto no Artigo 193.º do Código de Processo Civil. Quanto ao tempo do conhecimento respectivo, o n.º 1 do art. 198.º do mesmo Código estabelece que tal nulidade pode ser arguida até à contestação ou neste articulado.

Ora, no caso em apreço, a oposição do Requerido na providência funciona justamente como «contestação», para os efeitos visados na norma que são os de conferir à parte Demandada a faculdade de, no primeiro momento em que intervém no processo invocar tal nulidade. Foi, justamente, nesse momento que os Requeridos fizeram essa invocação.

Perante ela, o Tribunal não podia deixar de ponderar a arguição, face ao disposto no n.º 2 do art. 608.º do referido conjunto de normas de Direito adjectivo.

Fê-lo num dos sentidos possível e escolheu a solução adequada, como se vê da primeira parte desta resposta à questão suscitada em sede de recurso.

Não merece, consequentemente, qualquer censura.

Nem se diga que o disposto na al. b) do n.º 1 do art. 372.º obstaria à arguição desta nulidade. Este preceito incide sobre realidade distinta: a dos fundamentos de oposição. As nulidades situam-se numa outra esfera: a que se reporta à validade intrínseca dos actos praticados. Não teria qualquer sentido que, ao contrário do que se passa com as acções, nas providências as partes (e os Tribunais) fossem obrigados a pactuar com actos feridos de grave contrariedade ao Direito constituído (aqui se incluindo regras de nível Constitucional, Europeu e Internacional como as que se referem ao exercício do contraditório) por as mesmas não estarem indicadas entre os fundamentos de oposição. A garantia do respeito pela validade processual sobrepõe-se à problemática da definição das razões de contrariar a providência decretada inaudita altera parte.

É integralmente negativa a resposta ao problema sob análise.

12. 2. Não existe caso julgado por não existir identidade nem de pedido e causa de pedir nem de sujeitos e porque o arrolamento não teve uma decisão material já que foi declarado extinto por inutilidade superveniente da lide?

Esta questão, tal como foi suscitada, não tem qualquer sentido.

O Tribunal «a quo» disse, expressamente, como se vê de fl. 343, que, nos autos «fica afastada a verificação da excepção de caso julgado». Assim decidiu o Órgão Jurisdiconal por entender inexistir identidade de sujeitos.

Nenhum sentido tem, pois, a Recorrente insurgir-se contra tese coincidente com a que defende no recurso, já que as impugnações judiciais se destinam a contrariar soluções e construções avessas às defendidas pelas partes que se julguem por elas prejudicadas, nos termos do estabelecido no n.º 1 do art. 627.º do Código de Processo Civil.

No que tange à distinta questão técnica abordada pelo Tribunal «a quo» e indicada como independente da «tríplice identidade» enunciada no n.º 1 do art. 581.º desse Código, a da autoridade do caso julgado (vd., quanto ao sentido dessa expressão e significado do afirmado, no presente contexto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2013, processo n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, in http://www.dgsi.pt), a Recorrente nada disse, nenhum elemento aduziu para contrariar a construção do Órgão Judicial e, assim, não a pôs validamente em crise nem algo verbalizou com vista à sua impugnação.

Nada, há, assim, a acrescentar à constatação da identidade entre a tese sufragada  na sentença e no recurso quanto à não verificação da excepção de caso julgado.

III. DECISÃO

13. Pelo exposto, julgamos a apelação improcedente e, em consequência, confirmamos a sentença impugnada.

Custas pela Apelante.

Lisboa, 23.04.2015

Carlos M. G. de Melo Marinho (Relator)

Anabela Moreira de Sá Cesariny Calafate (1.ª Adjunta)

Tomé de Almeida Ramião (2.º Adjunto)