Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
297/21.2PTLSB.L1-5
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
POSTERIORES NOTIFICAÇÕES
NEGAÇÃO DOS FACTOS
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–Por força do Termo de Identidade e Residência prestado nos autos decorreu para a arguida o conhecimento de que as posteriores notificações lhe seriam efetuadas por via postal simples para a morada por si indicada, exceto se comunicasse outra por requerimento remetido por via postal registada ao Tribunal e de que o incumprimento das obrigações impostas, designadamente a de não mudar de residência sem comunicar uma nova onde possa ser encontrada, legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e a realização da audiência na sua ausência, nos termos do disposto no art. 333º do Código de Processo Penal.

II–Se, após o depósito no recetáculo postal do domicílio indicado no TIR, a carta expedida foi devolvida ao Tribunal, designadamente com a indicação de ser “não mora nesta morada”, tal não é relevante, pois que foram cumpridos os procedimentos legais da notificação, tanto bastando para que a mesma se considere efetuada.

III–A negação e/ou diferente interpretação dos factos por parte da arguida, por si só, não impõe a alteração factual pretendida, mostrando-se plenamente justificada em face da prova produzida e examinada em julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum a decisão da matéria de facto que, por isso, se deverá manter inalterada e, por consequência, nada há a alterar à qualificação jurídica efetuada que se mostra a correta, em face da factualidade apurada.

IV–A pena única há-de mostrar adequação, justeza, e proporcionalidade, entre a avaliação conjunta da gravidade do ilícito que resulta da prática dos crimes em apreço e do percurso de vida da arguida e, na situação em apreço, estes dois fatores apontam para a necessidade e adequação de uma pena que se distancie já com algum relevo do limite mínimo da moldura penal e se aproxime mais do seu máximo, como ocorreu, pelo que deve manter-se a pena única fixada pelo Tribunal a quo.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


I.1–No âmbito do processo comum singular nº 297/21.2PTLSB, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 6, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 11.10.2023, na ata da audiência de julgamento, foi proferido o seguinte despacho [transcrição]:
“A arguida foi notificada na morada do tir por si indicada, embora carta tenha vindo devolvida, com indicação "não mora nesta morada ", não foi indicada nova morada, considera-se que a mesma se encontra notificada, razão pela qual o TIR foi criado no nosso ornamento jurídico e, assim, entendo o Tribunal que tem que considerar de facto a arguida regularmente notificada.
Uma vez que a mesma falta injustificadamente vai desde já condenada na multa processual que se fixa em 2UC´s (art.º 116º do C.P.Penal) e, quanto ao início da audiência entende-se que a sua presença não se mostra essencial desde o início da mesma, pelo que se dará início à mesma nos termos do disposto no art.º 333º, nº 1 e 2 do C.P.Penal, ficando representada para todos os efeitos legais na pessoa do seu ilustre defensor, com audição das pessoas presentes.”

Posteriormente, em 24.10.2023, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo [transcrição]:
VDecisão
Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a acusação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
1)Absolver a arguida da prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º e 155.º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, nas pessoas dos agentes AA e BB;
2)Condenar a arguida CC, como autora material e na forma consumada, pela prática, em concurso efetivo:
a.- de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, 182.º e 184.º, todos do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 600,00 (seiscentos euros).
b.- de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º e 155.º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
c.- de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art.º 213.º n.º 1 alínea c) do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), totalizando a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros).
d.- de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de € 1.000,00 (mil euros)
3)Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, condeno a arguida na pena única de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 2.000,00 (dois mil euros).
4)Condena-se a arguida no pagamento das custas e encargos do processo, fixando a taxa de justiça em 2 UC’s.
5)Condena-se a arguida a pagar ao demandante Estado Português/Polícia de Segurança Pública a quantia de € 128,50 (cento e vinte e oito euros e cinquenta cêntimos), a título de danos patrimoniais sofridos, acrescidos de juros legais de 4%, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil (31 de Outubro de 2022) até efetivo e integral pagamento;
6)Condena-se a arguida a pagar à demandante ... a quantia de € 707,51 (setecentos e sete euros e cinquenta e um cêntimos), a título de indemnização pelos serviços hospitalares e de saúde prestados à ofendida DD, decorrentes da conduta ilícita da arguida, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil (18 de Março de 2023) até efetivo e integral pagamento;
7)Condeno a arguida nas custas dos pedidos de indemnização civis, atento o seu vencimento nos mesmos. (…)”
*

I.2–Recursos das decisões

Inconformada com o despacho proferido a 11.10.2023 dele recorreu a arguida CC com os fundamentos expressos na motivação da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“Conclusões:
(a)- A Arguida invocou, na audiência do passado dia 11.10.2023, que não encontrava notificada para a audiência, contudo foi determinado o prosseguimento dos autos, decisão da qual se apresenta recurso.
(b)- A Arguida entende que a decisão de prosseguir os autos viola o artigo 113º do Código de Processo Penal conjugado com o artigo 48º dos direitos fundamentais da União Europeia.
(c)- Tais direitos também estão consagrados no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
(d)- Ou seja, resulta dos autos, que a Arguida não recebeu a notificação para a audiência de discussão e julgamento.
(e)- Não obstante as presunções existentes na legislação, a Arguida não recebeu a carta, até porque ficou demonstrado pelo depoimento da alegada vitima que a Arguida já não reside na morada do TIR.
(f)- A Arguida não conseguiu apresentar os seus argumentos no julgamento, visto que desconhecia a sua existência.
(g)- Pelo que se terá que considerar que o TIR não é algo absoluto, sob pena de colocar em causa os direitos de defesa dos arguidos.
(h)- Assim sendo, sempre se dirá que a decisão de prosseguir com o julgamento com a evidência de que a Arguida não rececionou a notificação para a morada do TIR, viola os artigos 113º do CPP conjugado com os artigos 48º dos Direitos Fundamentais da União Europeia e artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
(i)- Porquanto, desde já se requer a revogação do douto despacho que ordenou o prosseguimento dos autos e a sua substituição por um despacho que ordene a notificação da Arguida da data da audiência de julgamento, sendo declarados nulos todos os actos praticados após o despacho recorrido”.

Não se conformando igualmente com a sentença proferida nos autos dela interpôs também a arguida recurso, com os fundamentos expressos na motivação da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“Conclusões:
a)- A Arguida não se conforma com a douta sentença proferida, nos seguintes termos:
b)- O Tribunal considerou provada a matéria constante dos pontos 1 a 21 da matéria de facto, contudo não teve a possibilidade de estar presente no Tribunal, por falta de notificação, o que violou o artigo 113º do CPP.
c)- Acresce ainda que não foi feita prova em audiência dos pontos 1 a 21 da matéria de facto dada como provada.
d)- Efectivamente demonstrar que não foi feita prova suficiente é impossível demonstrar através das transcrições dos depoimentos.
e)- A jurisprudência tem entendido que cumpre ao recorrente invocar a matéria incorrectamente julgada e demonstrar em que termos.
f)- No entanto, não vislumbramos como é possível transcrever o que não foi referido....
g)- Entendemos que a prova efectuada em audiência foi absolutamente insuficiente, porquanto deverá ser revogada.
h)- Considera a Arguida que foi violado o artigo 127º do CPP na análise da prova.
i)- Porquanto, desde já se requer a revogação da douta sentença, sendo a mesma substítuida por um acórdão que absolva a arguida.
j)- Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a pena única de 400 dias de multa viola o nº 1 do artigo 77º do Código Penal.
k)- Atentas as penas aplicadas o cúmulo poderia ser aplicado entre 200 dias e 520 dias de multa.
l)- Entende a Arguida que a pena única não deverá exceder os 300 dias de multa à taxa diária de 5 €, sendo excessiva a pena única aplicada, requerendo-se a sua redução.
Porquanto, desde já se requer a revogação da douta sentença, sendo a mesma substítuida por um Acórdão que absolva a arguida.
Caso assim não se entenda, entende a Arguida que a pena única não deverá exceder os 300 dias de multa à taxa diária de 5 €, sendo excessiva a pena única aplicada, requerendo-se a sua redução.”
*

Os recursos foram admitidos nos termos do despacho proferido a 12.12.2023.
*

I.3Respostas ao recursos

Efetuada a legal notificação veio o Mº Público responder o recurso intercalar, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“CONCLUSÕES
1.A arguida e ora recorrente prestou Termo de Identidade e Residência nos autos, tendo indicado a morada para onde pretendia ser notificada a partir daquela data;
2.A arguida não indicou qualquer nova morada aos autos, bem sabendo que as notificações lhe iriam ser feitas para a morada por si indicada aquando da prestação de Termo de Identidade e Residência.
3.Acresce que a arguida foi notificada, para a referida morada, do despacho que designou data para a realização do julgamento;
4.Se a arguida optou por alterar a sua residência e não comunicar ao Tribunal essa alteração, como lhe era legalmente imposto, assumiu a mesma o risco adveniente desse incumprimento, não podendo agora pretender tirar benefícios do mesmo.
5.Sobre a arguida recaía a obrigação de comunicar ao tribunal qualquer alteração da morada, pelo que o incumprimento dessa obrigação tornou válida a sua notificação por via postal simples na morada que indicou, mesmo que tenha deixado de aí residir.
6.Bem andou o Tribunal ao determinar a realização do julgamento, porquanto a arguida estava regularmente notificada para estar presente na audiência;
7.Entende-se, assim e em suma, que não merece o despacho recorrido qualquer censura, pelo que deverá o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, e o despacho recorrido ser mantido nos seus exactos termos.
Assim farão, V. Exas. a esperada e costumada JUSTIÇA!”

Respondeu igualmente o Mº Público ao recurso interposto da sentença condenatória proferida, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“CONCLUSÕES
1.A arguida e ora recorrente prestou Termo de Identidade e Residência nos autos, tendo indicado a morada para onde pretendia ser notificada a partir daquela data;
2. A arguida não indicou qualquer nova morada aos autos, bem sabendo que as notificações lhe iriam ser feitas para a morada por si indicada aquando da prestação de Termo de Identidade e Residência.
3.Sobre a arguida recaía a obrigação de comunicar ao tribunal qualquer alteração da morada, pelo que o incumprimento dessa obrigação tornou válida a sua notificação por via postal simples na morada que indicou, mesmo que tenha deixado de aí residir.
4.Bem andou o Tribunal ao determinar a realização do julgamento, porquanto a arguida estava regularmente notificada para estar presente na audiência;
5.A recorrente, apesar de pretender impugnar a matéria de facto, não indica qual a matéria que, no seu entendimento, foi incorrectamente julgada, nem quais os meios de prova que impunham decisão diversa;
6.Essa “impugnação” não preenche os requisitos legais, na medida em que a recorrente não cumpre, de todo, o ónus de impugnação que sobre a mesma impendia, razão pela qual se considera que não deverá a mesma ser apreciada.
7.A matéria de facto foi correctamente apreciada, tendo sido dados como provados os factos relativamente aos quais foi produzida prova em julgamento, o que sucedeu com rigoroso respeito pelos princípios legais e constitucionais que norteiam o processo penal.
8.Para além de ter resultado provado que, nos presentes autos, a arguida cometeu quatro crimes, as exigências de prevenção especial são elevadíssimas, atendendo aos antecedentes criminais da arguida.
9.Assim, uma pena única de medida inferior àquela em que a arguida foi condenada seria claramente insuficiente e inapta a satisfazer as finalidades previstas no art. 40.º do Código Penal.
10. Crê-se que o Tribunal a quo teve em conta todos os factores previstos no art. 71.º do Código Penal, conforme lhe era legalmente imposto e que bem andou ao fixar a pena aplicada à arguida nos termos em que o fez, não tendo incorrida na violação de qualquer norma legal.
11.Entende-se, assim e em suma, que não merece a sentença recorrida qualquer censura, pelo que deverá o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, e a sentença ser mantida nos seus exactos termos.
Assim farão, V. Exas. a esperada e costumada JUSTIÇA!”
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I.4–Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos [transcrição]:
1.Do objeto dos recursos.
Inexiste circunstância que obste ao conhecimento dos Recursos, tempestivamente interpostos por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito fixado nos autos.
Em tempo, o Ministério Público respondeu ao Recurso Interlocutório e ao Recurso interposto da sentença final interpostos pela Arguida CC.
2.Questão prévia.
Relativamente ao Recurso interlocutório, o Recorrente não deu cumprimento ao disposto no n.º 5 do art. 412.º do Código de Processo Penal.
A ser assim, e como que operando uma desistência do recurso (ver, neste sentido, Pereira Madeira, em anotação ao art. 412.º, in Código de Processo Penal Comentado, 2014), o Recurso interlocutório deve ser rejeitado.
Caso assim não se entenda, seguidamente, emite-se parecer quanto aos dois recursos interpostos.
3.Delimitação do objecto dos recursos.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No essencial, e vistas as conclusões das motivações dos recursos, a Arguida CC sustenta o seguinte:
a)- relativamente ao recurso interlocutório,
sustenta que o despacho que ordenou o prosseguimento dos autos deve ser revogado e substituído por outro que ordene a notificação da Arguida da data da audiência de julgamento, devendo serem declarados nulos todos os actos praticados após o despacho recorrido.
b)- relativamente ao recurso interposto da sentença final,
sustenta que, com base na impugnação da matéria de facto que ensaiou, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que a absolva, ou caso assim não se entenda, deve haver lugar à redução da pena de multa em que foi condenada.
4.Posição do Ministério Público.
4.1.- Posição do Ministério Público na 1.ª Instância.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância respondeu às motivações dos recursos interpostos nos termos constantes nos autos, sustentando a improcedência dos recursos interpostos pela Arguida CC.
4.2.- Posição do Ministério Público no TRL.
Analisados os fundamentos dos recursos, bem como os fundamentos constantes quer do douto despacho recorrido, quer da sentença recorrida, acompanhamos as respostas apresentadas pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, aderindo-se à argumentação oferecida, que se subscreve e aqui se dá por inteiramente reproduzida, nas suas respostas às motivações dos recursos interpostos pela Arguida CC.
Com efeito, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância identificou corretamente o objeto dos recursos, argumentou com clareza e correção jurídica, o que merece o nosso acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto dos recursos em análise diz respeito.
*
Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer que os recursos interpostos pela Arguida CC devem ser julgados improcedentes e, consequentemente, o despacho recorrido e a sentença recorrida devem ser mantidos.”
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I.6Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Concluído o exame preliminar, foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões apresentadas o que foi efetuado acrescentando a recorrente o interesse na apreciação do recurso interlocutório interposto.
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Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir:
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II–Fundamentação

II.1–Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante, designadamente, do STJ [Cf. Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 processo nº 18/05.7IDSTR.E1.S1 e 19/05/2010, processo nº 696/05.7TAVCD.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal [Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95].

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação dos recursos interpostos nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
Saber se a decisão de prosseguir a audiência de julgamento tendo a carta para notificação da data da mesma sido devolvida após o seu envio para a morada do TIR viola o art. 113º do Código de Processo Penal, o art. 48º dos direitos fundamentais da União Europeia e art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
Erro de julgamento dos pontos 1 a 21 da matéria de facto provada, devendo ser dados como não provados;
Da violação do art. 127º na análise da prova devendo a arguida ser absolvida..
Subsidiariamente, da violação do art. 77º do Código Penal, sendo excessiva a pena de 400 dias de multa que deve ser substituída por uma pena única de 300 dias de multa à taxa diária de 5.00€.
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II.2–Das decisões recorridas
Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar a fundamentação de facto da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
II– Fundamentação de facto
Factos provados
Com interesse para a boa decisão da causa, dão-se como provados os seguintes factos:
Da acusação pública:
- NUIPC 297/21.2PTLSB
1)-No dia 21 de Março de 2021, pelas 19h45, os agentes da P.S.P. EE, BB e AA, regularmente fardados e no exercício das suas funções de manutenção da ordem e paz públicas, deslocaram-se à ..., em Lisboa, por existir altercação entre habitantes da referida fração, mais concretamente entre a arguida e DD, proprietária da fração e senhoria da arguida.
2)-Chegados ao local, os agentes separaram a arguida e DD, com vista a recolher as suas declarações, tendo o agente EE ficado responsável de colher as declarações da arguida dentro do imóvel e os restantes agentes, que conduziram a proprietária para fora da residência, responsáveis de colher as declarações desta.
3)-Tomando as declarações da arguida, o agente EE advertiu-a, por várias vezes, que deveria colocar corretamente a máscara de proteção individual, atenta a situação de estado de emergência vigente.
4)-Ato contínuo, a arguida cuspiu na direção do agente EE, acertando-lhe na zona do pescoço, o que o levou a proceder à sua algemagem, com auxílio dos agentes AA e BB.
5)-Já na ... de ..., em Lisboa, a arguida disse para o agente da P.S.P. EE e outros agentes ali presentes, “filhos da puta, seus nojentos vão para o caralho, são uma merda, vou-vos matar a todos.”
6)-E quando se encontrava sentada na sala do adjunto dessa Esquadra, a arguida desferiu um murro no vidro da janela, partindo-o.
7)-O valor do prejuízo cifrou-se em € 128,50 (cento e vinte e oito euros e cinquenta cêntimos).
8)-A arguida sabia que ao cuspir na direção e ao ter dirigido ao agente da P.S.P. EE, em exercício de funções, palavras que eram idóneas a ofendê-lo na sua honra e consideração, o que conseguiu.
9)-A arguida sabia que expressões que dirigia ao agente da P.S.P. EE, que se encontrava no exercício das suas funções, eram aptas a fazê-lo temer pela sua integridade física e vida.
10)-A arguida agiu com o propósito concretizado de destruir a janela de vidro, pertencente à P.S.P., entidade pública, apesar de saber que a mesma não era propriedade sua e que atuava contra a vontade da sua proprietária.
11)-A arguida agiu com o propósito concretizado de destruir a janela de vidro, pertencente à P.S.P., entidade pública, apesar de saber que a mesma não era propriedade sua e que atuava contra a vontade da sua proprietária.
- NUIPC 356/21.1PTLSB
12)-No dia 3 de Abril de 2021, pelas 22h50, no interior da residência sita na ..., em …, a arguida desentendeu-se com a sua senhoria e proprietária da fração, DD.
13)-Em face disso e sem qualquer justificação, a arguida desferiu socos, pontapés, empurrões e embate de objetos na face, crânio, tronco e membros superiores.
14)-DD foi encontrada caída no hall de entrada da residência pelo agente da P.S.P. FF que chamou os Bombeiros Voluntários e que a transportaram para o ....
15)-Em consequência da conduta da arguida, DD ficou com dores generalizadas pelo corpo e com hematomas crânio-encefálicos e maxilofaciais.
16)-Ao atuar da forma descrita, a arguida agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde de DD e de lhe produzir as lesões verificadas.
17)-A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.
-Do pedido de indemnização civil deduzido por Estado Português/Polícia de Segurança Pública:
18)-Em consequência da conduta da arguida, a P.S.P. teve que desembolsar o valor de € 128,50 (cento e vinte e oito euros e cinquenta cêntimos), referente à substituição do vidro partido da ... de ....
19)-O prejuízo sofrido foi consequência direta e necessária da conduta da demandada.
20)-A demandada representou-o como consequência direta da sua conduta, com o que aceitou e quis fazê-lo.
- Do pedido de indemnização civil deduzido por ...:
21)-Em consequência dos factos descritos em 13., o ..., prestou, no exercício da sua atividade, assistência hospitalar e cuidados de saúde a DD, no valor total de € 707,51.
- Dos antecedentes criminais:
A arguida tem registadas no seu Certificado de Registo Criminal as seguintes condenações:
22)-Foi condenada no processo sumário n.º 165/02.7, que correu termos no juízo de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado a 03-06-2002, pela prática, a 01-06-2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (três euros), o que perfez um montante de € 120,00 (cento e vinte euros).
23)-Foi condenada no processo n.º 187/06.9SGLSB, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa, por decisão transitada em julgado a 03-04-2006, pela prática, a 01-04-2006, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 2,00 (dois euros), o que perfez um montante total de € 180,00 (cento e oitenta euros), assim como na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses.
24)-Foi condenada no processo n.º 574/06.2PCLSB, que correu termos no Juízo Criminal de Lisboa, por decisão transitada em julgado a 14-05-2009, pela prática, a 24-06-2006, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (três euros), o que perfez a quantia total de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros).
25)-Foi condenada no processo n.º 1027/10.0SILSB, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa, por decisão transitada em julgado a 19-08-2010, pela prática, a 30-07-2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que totaliza a quantia de € 600,00 (seiscentos euros), assim como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 15 (quinze) meses.
26)-Foi condenada no processo n.º 810/17.0PHSNT, que correu termos no Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra, por decisão transitada em julgado a 11-10-2017, pela prática, a 22-08-2017, de um crime de desobediência, na pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfez a quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), assim como na sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 8 (oito) meses.
27)-Foi condenada no processo n.º 217/17.9PAVFX, que correu termos no Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado em 31-01-2019, pela prática, a 02-04-2017, de um crime de ofensa à integridade física simples, beneficiando, porém, de dispensa de pena.
28)-Foi condenada no processo n.º 111/16.0PTVFX, que correu termos no Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado a 15-04-2021, pela prática, a 26-05-2016, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 (um) ano, sujeita ao cumprimento do dever de pagar à assistente a quantia de € 300,00 (trezentos euros), assim como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 9 (nove) meses.
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Factos não provados

Resultaram, como não provados os seguintes factos:
A.A arguida dirigiu aos agentes BB e AA, dentro da ... – ..., as expressões “filhos da puta, seus nojentos vão para o caralho, são uma merda, vou-vos matar a todos”.
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Motivação da matéria de facto
Para formar a convicção do tribunal, no que respeita aos factos dados como provados, foram relevantes os depoimentos prestados pelas testemunhas EE, BB, AA, FF, GG e DD em sede de audiência de discussão e julgamento.
Foi ainda considerada a restante prova constante dos autos, tendo o Tribunal apreciado toda a prova, atendendo às regras da experiência comum e o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do Código de Processo Penal, nomeadamente:
Quanto ao NUIPC n.º 297/21.2PTLSB:
- Auto de Notícia por Detenção, de fls. 1 a 4;
- Fotograma, de fls. 12;
- Aditamento n.º 4, de fls. 68 a 69;
- Queixa-crime, a fls. 75 a 75v;
- Certificado de Registo Criminal da arguida, de fls. 217 a 223.
Quanto ao NUIPC n.º 356/21.1PTLSB
- Auto de Notícia, de fls. 2 a 3;
- Auto de Denúncia, de fls. 5 a 6;
- Relatório de urgência, de fls. 22 a 28;
- Relatório de internamento, de fls. 29 a 34;
Relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Estado Português/Polícia de Segurança Pública:
- Fotograma, de fls. 12;
- Orçamento, de fls. 77;
Já quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelo ...:
- Relatório de urgência, de fls. 22 a 28. (NUIPC 356/21.1PTLSB);
-Relatório de internamento, de fls. 29 a 34. (NUIPC 356/21.1PTLSB);
- Fatura n.º 20221/8493, de fls. 123 a 125;
Para prova dos factos n.ºs 1 a 11 e, consequentemente, considerar como não provado o facto A, foram tomados em conta os depoimentos prestados pelas testemunhas EE, AA e BB em audiência de julgamento, os quais, atenta a forma coerente, espontânea e circunstanciada como foram prestados, assim como, considerados, no seu conjunto, com a prova documental supra elencada e constante dos autos, mereceram a credibilidade do Tribunal.
Descreveram as referidas testemunhas que foi solicitada a sua presença na ..., por ocorrência de uma altercação entre vizinhos. Chegados ao local e encontrando a arguida muito exaltada com a sua senhoria DD, decidiram separá-las, com vista a colher as declarações de ambas sobre o ocorrido, ficando o agente EE com a arguida e os restantes elementos dirigindo-se para o exterior da fração com DD. Uma vez que a arguida tinha a máscara de proteção individual incorretamente colocada, e por, à data dos factos, se encontrar vigente estado de emergência decorrente da pandemia SARS-CoV-2, o agente EE alertou-a, por várias vezes, para a necessidade de colocar corretamente a mesma. Além de não acatar tais advertências, a arguida cuspiu na direção do agente EE, o que o levou a proceder à sua algemagem, com recurso ao auxílio dos restantes agentes, transportando a arguida para a ... de ....
Os agentes BB e AA, como depuseram em audiência, abandonaram a ocorrência na chegada à referida esquadra, uma vez que apenas se encontravam a prestar apoio, pelo que desconhecem o que se terá passado seguidamente depois da arguida ter entrado na ... de ..., pelo que deste meio de prova resulta a consideração como não provado do facto A.
Quanto às expressões proferidas na referida esquadra pela arguida, o mesmo resulta provado do constante do Auto de Notícia por Detenção, assim como do depoimento da testemunha EE que referiu, sem margem para dúvidas, que a arguida proferiu as expressões em causa e que teve receio de que esta pudesse concretizar os atos nelas vertidos.
Quanto à quebra do vidro pela mesma, tal resulta provado pelo fotograma a fls. 12 dos autos, assim como pelo depoimento do agente EE que referiu que, apesar de não ter visto a arguida a perpetrar o ato danoso, ouviu o barulho do vidro a partir e, quando se dirigiu ao local, reparou que tal vidro havia sido quebrado pela arguida, com as suas próprias mãos.
O valor da substituição do vidro quebrado resulta do orçamento de fls. 77 dos autos, o qual não foi impugnado.
Já os factos n.ºs 12 a 17, os mesmos resultam provados atendendo ao depoimento das testemunhas DD e FF, os quais, de forma clara e circunstanciada, descreveram a situação factual ocorrida na data dos factos, em conjugação com a prova documental constante dos autos, o que reafirmou a credibilidade dos mesmos. Referiu a ofendida DD que, encontrando-se esta na cozinha e sem que nada o fizesse prever, a arguida começou a agredi-la, por meio de murros, pontapés, empurrões, fazendo-a bater em objetos, visando a sua face, crânio, tronco e membros superiores, o que a fez perder os sentidos. Entretanto foi contactada a P.S.P., assume a ofendida que, por vizinhos, tendo-se dirigido ao local a testemunha FF. Relata a mesma no seu depoimento que, chegado ao local, foi recebido pela arguida, a qual lhe permitiu acesso à fração, encontrando a ofendida DD caída no hall de entrada da residência, de bruços. Retomando a ofendida os sentidos, foi-lhe perguntado pela testemunha se se conseguia levantar, o que não foi possível, pelo que foram ativados os meios de emergência, sendo posteriormente a ofendida conduzida para o ..., envergando as lesões que melhor se identificam nos relatórios médico e de urgência de fls. 22 a 34 do NUIPC n.º 356/21.1PTLSB.
Sendo que o curso dos factos ora descrito se encontra suportado por prova documental constante dos autos e testemunhal produzida em audiência e inexistindo meios de prova que coloquem em dúvida que os mesmos tenham ocorrido dessa forma, deverão os mesmos ter-se por provados.
O facto n.ºs 17 a 19 resultam provados do fotograma a fls. 12 dos autos e do orçamento a fls. 77.
O facto n.º 20 resulta provado dos relatórios médicos a fls. 22 a 34 do NUIPC 356/21.1PTLSB e da fatura n.º 20221/8493, de fls. 123 a 125 do NUIPC 297/21.2PTLSB.
Os factos n.ºs 21 a 27 resultam provados do Certificado de Registo Criminal da arguida.
*

Com relevo para o recurso intercalar interposto ainda o seguinte:
- A arguida prestou TIR nos presentes autos a 21.03.2021, tendo indicado como sua morada e como morada para notificações a “... ( cf. refª 28750929 de 22.03.2021).
A notificação da arguida para comparecer na data em que se realizou a audiência de julgamento foi efetuada através de notificação por via postal simples com prova de depósito (cf. refª 428640253 de 18.09.2023) tendo a correspondência sido depositada no recetáculo postal daquela morada a 20.09.2023 (cf. refª 37083461 de 25.09.2023) e vindo depois a ser devolvida com a indicação “não mora nesta morada” (cf. refª 37062850 de 22.09.2023).
*

II.3–Apreciação dos recursos

II.3.1–Do recurso do despacho exarado a 11.10.2023
Começaremos por apreciar o recurso intercalar, dada a precedência lógica do mesmo, em face da questão concretamente colocada.
Entende a recorrente que o despacho recorrido ao determinar o prosseguimento dos autos violou o art. 113º do Código de Processo Penal, art. 48º do “direitos fundamentais da União Europeia” e art. 32º da Constituição da República Portuguesa.

Nos termos do disposto no art. 113º do Código de Processo Penal:

1 As notificações efectuam-se mediante:
a)-Contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado;
b)-Via postal registada, por meio de carta ou aviso registados;
c)-Via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos; ou
(…)
3Quando efectuadas por via postal simples, o funcionário judicial lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para a qual foi enviada e o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação.
4Se for impossível proceder ao depósito da carta na caixa de correio, o distribuidor do serviço postal lavra nota do incidente, apõe-lhe a data e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente.
(…)
10As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado, ressalvando-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à contestação, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado, sendo que, neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.
(…)

Já nos termos do disposto no art. 196º do Código de Processo Penal:
1A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado nos termos do artigo 250.º
2Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.
3Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento:
a)-Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;
b)-Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;
c)-De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
d)-De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º
e)-De que, em caso de condenação, o termo de identidade e residência só se extinguirá com a extinção da pena.(…)”

Como já salientámos a notificação da data em que se realizou a audiência de julgamento foi efetuada mediante carta com prova de depósito e, efetivamente, esta carta foi depositada, sendo devolvida já após se ter concretizado tal depósito.
Por força do Termo de Identidade e Residência prestado nos autos decorreu para a arguida o conhecimento de que as posteriores notificações lhe seriam efetuadas por via postal simples para a morada por si indicada, exceto se comunicasse outra por requerimento remetido por via postal registada ao Tribunal e, bem assim, o conhecimento de que o incumprimento das obrigações impostas, designadamente a de não mudar de residência sem comunicar uma nova onde possa ser encontrado, legitimaria a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tivesse o direito ou o dever de estar presente e a realização da audiência na sua ausência, nos termos do disposto no art. 333º do Código de Processo Penal.
Deste modo, nenhuma censura merece a decisão do Tribunal a quo que, retirando consequências da prestação de Termo de Identidade e Residência prestado nos autos pela arguida, do depósito efetivo da correspondência no recetáculo indicado pela mesma e apesar da carta ser posteriormente devolvida – a considerou regularmente notificada.

Como se refere no Acórdão do TRP de 17.05.2023 [proc. 7/18.1GAOBR-A.P1, relatado por Raúl Cordeiro, disponível in www.dgsi.pt]: I– As notificações respeitantes à acusação e à designação de dia para julgamento devem ser feitas ao próprio arguido, além de o serem também ao seu defensor constituído ou nomeado, por forma a assegurar-lhe o pleno direito de defesa e ao contraditório, nos termos dos artigos 113.º, n.º 10, do CPP e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP.
II– A prestação de TIR está relacionada com a utilização de um procedimento de notificação mais ágil e expedito, para que não surjam delongas ou entraves nesse domínio, com reflexo negativo na tramitação processual, sem que, contudo, fiquem relevantemente prejudicados os princípios da segurança e certeza nesse domínio, atentas as informações dele constantes e as obrigações que daí resultam para o arguido, conforme estabelece o artigo 196.º, n.ºs 1 a 3, do CPP.
III– Neste contexto, tal obrigatoriedade respeita à expedição das notificações e não de estar comprovado nos autos que as mesmas chegaram, efectivamente, ao conhecimento do arguido.
IV– Se, após o depósito no receptáculo postal do domicílio indicado no TIR, a carta expedida foi devolvida ao Tribunal, designadamente com a indicação de ser “desconhecido na morada”, tal não é relevante, pois que foram cumpridos os procedimentos legais da notificação, tanto bastando para que a mesma se considere efectuada. [No mesmo sentido o acórdão do TRL de 17.02.2022, proc. nº 312/17.4IDSTB.L1-9, relatado por Maria do Rosário Martins; o acórdão do TRC de 05.07.2017, proc. 706/12.1TAACB-A.C1, relatado por Orlando Gonçalves; o acórdão do TRE de 10.03.2020, proc. 135/18.3GFLLE-A.E1, relatado por João Amaro; todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão no Acórdão nº 17/2010 de 12.01.2010 [processo nº 489/09 – disponível in www.tribunal constitucional.pt] onde se escreveu: “tenha-se presente que a solução legal da notificação por via postal simples pressupõe sempre o prévio contacto pessoal do arguido com o pro­cesso, consubstanciado, pelo menos, na respectiva constituição como arguido e na respectiva sujeição a termo de identidade e residência.
Por outro lado, o receptáculo postal para o qual é remetida a notificação pelo funcionário judicial e no qual é realizado o depósito pelo distribuidor postal é exclusivamente escolhido e indicado pelo próprio arguido.
É certo que não ficam cobertas as situações em que o arguido, por qualquer motivo (v.g. por ter mudado de residência, por se ter ausentado temporariamente, por desleixo) deixa de aceder ao referido receptáculo postal, sem que previamente comunique essa situação ao tribunal.
Mas o não conhecimento pelo arguido do acto notificado nestas situações é imputável ao próprio arguido, uma vez que, a partir da prestação do termo de identidade e residência, passou a recair sobre ele o dever de verificar assiduamente a correspondência colocada no receptáculo por si indicado e de comunicar ao tribunal qualquer situação de impossibilidade de acesso a esse local.
Se o Estado está obrigado a diligenciar pela notificação dos arguidos, nesta modalidade, estes também têm de tomar as providências adequadas a que se torne efectivo esse conhecimento.
Este é um dever compatível com o seu estatuto de sujeito processual, não podendo esta solução ser acusada de estabelecer um ónus excessivo ou desproporcionado que seja imposto aos cidadãos suspeitos da prática de crimes, atenta a facilidade do seu cumprimento, perante a importância dos fins que visa atingir.
(…)
Ponderados todos estes dados, conclui-se que a modalidade de notificação aqui em análise não deixa de satisfazer a exigência de que deve ser proporcionado ao arguido um efetivo conhecimento da data da realização da audiência de julgamento, de modo a que este possa exercer os seus direitos de defesa.”

E se a arguida mudou de residência, como refere nas alegações de recurso, tal não releva para o efeito que pretende, pois que, perante o TIR prestado e as advertências nele contidas, não cumpre ao tribunal fazer diligências para obter eventual nova morada, nem sequer tentar fazer novas notificações para a mesma, se conhecida, não relevando também o facto de a carta regularmente depositada ter sido depois devolvida, como aqui ocorreu.

Este tem sido o entendimento seguido pela generalidade da jurisprudência dos Tribunais Superiores, não havendo razão para dela divergir.

Importa ainda salientar - como o fez o Tribunal a quo - que a circunstância de se ter recusado a assinar o Termo de Identidade e Residência não obsta a tal conclusão, conforme decidido no Acórdão do TRL de 23-03-2023, relatado por Madalena Caldeira [processo n.º 4/22.2SILSB.L1-9, disponível in www.dgsi.pt] onde se escreveu: “III.–A circunstância de o arguido ter recusado a assinatura do TIR sem motivo justificativo não prejudica a produção dos seus efeitos. IV.–É válida a notificação do arguido para comparecer na audiência de julgamento, feita por carta simples, com prova de depósito, para a morada indicada no TIR como morada destinada a futuras notificações, ainda que o arguido tenha recusado a assinatura do TIR.”.

Cremos, pois, em sintonia com a jurisprudência acima indicada que o despacho recorrido quando considerou a arguida regularmente notificada, encontra respaldo no disposto no art. 113º e 196º do Código de Processo Penal e não violou os direitos de defesa daquela, previstos no art. 32º da Constituição da República Portuguesa e no art. 48º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Ainda neste conspecto, uma última nota para referir que apesar da audiência de julgamento ter prosseguido nos termos do disposto no art. 333º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi requerida a sua audição numa outra data, nos termos do disposto no nº 3 do art.- 333º do Código de Processo Penal.
Deste modo, julga-se improcedente o recurso intercalar interposto pela arguida, mantendo-se o despacho proferido em ata a 11.10.2023, no seus precisos termos.
***

II.3.2–Do recurso da decisão final:

Da impugnação da matéria de facto

Considerações gerais:
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.

No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.

Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente Damião Cunha [In «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37], quando afirma que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros” [neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt].
*

II.3.2–Da impugnação ampla da matéria de facto:

Defende o recorrente que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, relativamente aos factos dados como provados vertidos em 1 a 21.
A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do Código de Processo Penal, tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.

Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado [cfr. Ac. TRL de 21.05.2015, proc. 3793/09.6TDLSB.L1.9 disponível in www.dgsi.pt.].

A especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, obriga à indicação do conteúdo específico do meio de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.

O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões. Deve, pois, referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

Na verdade, a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação/transcrição, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis e outros, o recorrente tem, pois, de individualizar, no conjunto das declarações prestadas, quais as particulares passagens gravadas, que se referem ao facto impugnado.

Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 8/3/2012 [AUJ nº3/2012), publicado no DR - I - Série, nº77, 18/4/2012].

Como se escreve no Acórdão do TRL, de 16.11.2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5 [disponível in www.dgsi.pt]: “Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova suscetível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso].

No caso vertente, o recorrente indica os concretos factos que considera incorretamente julgados, pontos 1 a 21 mas limita-se a referir que, no seu entendimento, “a prova produzida foi absolutamente insuficiente e deverá ser revogada”.

Na verdade, analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla.

E, por outro lado, uma leitura atenta da motivação, torna evidente que também esta não consente tal especificação.

Reitera-se que a recorrente apenas indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas não invocou qualquer documento ou segmento dos depoimentos prestados que impusesse decisão diversa da recorrida.

Tal circunstancialismo inviabiliza a reapreciação da matéria de facto pela via da impugnação ampla, com a amplitude sustentada pela recorrente.

E não cumpria convidar a recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso, pois dizendo-se que as conclusões resumem as razões do pedido, nada pode ser resumido que não se contenha no arrazoado da motivação, de que as conclusões constituem uma síntese essencial [neste sentido os Acórdãos do STJ, de 04-10-2006, processo n.º 812/06-3; de 08-03-2006, processo n.º 185/06-3; 04-01-2007, processo n.º 4093-3 e de 10-01-2007, Processo n.º 3518/06-3].

Importa voltar a realçar que a alteração da matéria de facto não decorre, por via do recurso, da mera possibilidade de a prova produzida permitir uma decisão de sentido distinto da tomada pelo julgador; exigindo-se antes, que essa decisão diversa se imponha por ser evidente ou flagrante o erro do tribunal a quo, em função das provas produzidas, no julgamento da matéria de facto.

No caso foi efetuado um exame crítico e consistente das provas produzidas, tendo o Tribunal a quo formado a sua livre convicção quanto à autoria e circunstâncias como os factos ocorreram, sendo que a decisão recorrida só seria de alterar se se revelasse evidente que as provas não conduziriam àquela decisão, o que no caso não sucedeu, sendo irrelevante se a interpretação que o recorrente faz dessa prova é diferente da do julgador.

Em suma, não padecendo a decisão recorrida de qualquer vício previsto no art.410º, nº2 do Código de Processo Penal, mostra-se também, pela via mais ampla do art. 412º, n.º 3, do mesmo diploma legal, inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a decisão da matéria de facto, o que implica que a mesma se tenha por definitivamente consolidada.

Aliás, visto o texto da motivação do acórdão recorrido constata-se que aqueles factos foram considerados provados a partir da prova documental e testemunhal produzida, ali se salientando os depoimentos das testemunhas EE, AA e BB e a forma coerente, espontânea e circunstanciada como depuseram, considerando tais depoimentos, no seu conjunto, com a prova documental supra elencada e constante dos autos. Igualmente os depoimentos das testemunhas DD e FF os quais, de forma clara e circunstanciada, descreveram a situação factual ocorrida na data dos factos, o que em conjugação com a prova documental constante dos autos, levou o Tribunal a considerar reafirmada a credibilidade dos depoimentos em apreço.

O caminho trilhado pelo tribunal a quo apresenta-se lógico e inteligível e de acordo com os critérios legais de admissibilidade e de apreciação da prova. Como resulta da motivação da matéria de facto supratranscrita, o tribunal a quo deu como provados os factos, explicando, de forma lógica, racional e plausível, porque assim o fez, designadamente, de que forma valorou a prova, não se descortinando a existência de qualquer interpretação ilegal - explicitando o tribunal a quo as razões pelas quais atribuiu credibilidade aos depoimentos prestados e como utilizou na formação da convicção os documentos juntos aos autos.

Essa convicção alicerçou-se fundamentalmente na prova direta proveniente dos depoimentos das testemunhas inquiridas aos factos a que assistiriam ou onde tiveram intervenção, cuja credibilidade foi aferida a partir da sua análise critica, combinada com os restantes meios de prova indicados na sentença, tudo permitindo, num percurso lógico e objetivo e suportado pelas regras da experiência, concluir pela racionalidade da imputação feita ao recorrente.

Vemos pois, que o Tribunal, em face da prova produzida, nenhuma dúvida teve quanto aos factos que ora o recorrente pretende ver não provados. E, na verdade, não se verificam quaisquer razões objetivas que justifiquem a modificação da matéria de facto provada (impugnada) e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a convicção do tribunal sobre a matéria provada. Assim sendo, conclui-se que inexiste qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do Código de Processo Penal.

Posto isto, não se verificam motivos objetivos que justifiquem a modificação da matéria de facto provada (impugnada) e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a convicção do tribunal sobre a matéria provada.

Nessa decorrência, repete-se, o legislador teve o cuidado de enunciar que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem” e não as que “permitiriam” decisão diversa - cfr. art. 412º, nº 3, al. b) do CPP.

A negação e/ou diferente interpretação dos factos por parte da arguida por si só, não impõe a alteração factual pretendida, mostrando-se plenamente justificada em face da prova produzida e examinada em julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, pelo que a decisão da matéria de facto se deverá manter inalterada e por consequência nada há a alterar à qualificação jurídica efetuada que se mostra a correta em face da factualidade apurada.

III.2–Quanto à medida da pena única

Como se salienta no Acórdão do TRL de 17.093.2019 (processo nº 5979/18.3SNT.L1.5 - relator Jorge Gonçalves) “As circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
A actividade judicial de determinação da pena apresenta-se como uma actividade juridicamente vinculada, mas não é uma ciência exacta, pelo que, a nosso ver, o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta apenas quando se justifique uma alteração minimamente significativa, isto é, quando se evidencie que foi aplicada, sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados”.

Deste modo, o Tribunal de recurso deverá intervir modificando a pena concreta quanto ocorrer desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.

Vejamos agora a pena única encontrada em face das regras da punição do concurso previstas no artigo 77º do Código Penal.

Na medida da pena haverão de ser considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, assim se respeitando o essencial da pena unitária.

Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema da acumulação material, nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente. Por conseguinte, razões que se prendem com as exigências da culpa e da prevenção, sobretudo da prevenção especial, ao nível das finalidades da punição, estão na base do regime constante dos artigos 77.º e 78.º, por o mesmo impor uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente.

Importante para a determinação concreta da pena única será, por isso, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou do tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada em factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos.

A medida da pena única é fixada, pois, mediante a avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, procurando-se aferir designadamente se os factos e crimes em concurso são expressivos de uma inclinação criminosa ou apenas delitos ocasionais, apurando-se ainda a ilicitude dos factos no seu conjunto e a sua eventual conexão, motivações subjacentes, danosidade social dos factos, e assim, ponderar o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente[ Cfr. Figueiredo Dias, In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 290 a 292].

Importará, assim, analisar a existência de uma eventual conexão entre os factos em concurso, o seu contexto e frequência, bem como a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos violados, o número, a natureza e a gravidade dos crimes cometidos e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, para assim permitir a perspetiva unitária e global que assegure as finalidades da pena (única).

Apelando ao critério constante do n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal, verifica-se que a pena abstratamente aplicável aos crimes em concurso praticados pela arguida tem como limite mínimo de 200 (duzentos) dias de multa e como limite máximo 520 (quinhentos e vinte) dias de multa.

Na decisão recorrida a este propósito escreveu-se o seguinte: “Atento o conjunto das circunstâncias em que ocorreram os factos, bem como a personalidade da arguida demonstrada durante os mesmos, e determinando a pena aplicável na moldura supra exposto, entende este Tribunal como adequado aplicar à arguida nos presentes autos uma pena única de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia total de € 2.000,00 (dois mil euros), pena que se mostra adequada a proteger cabalmente os bens jurídicos em causa, sendo suficiente para que a arguida reflita sobre a sua conduta futura, abstendo-se da prática de ilícitos criminais e conduzindo a sua conduta conforme o Direito, respondendo de igual medida às exigências de prevenção geral que a presente situação convoca”.

Como se salienta no AC STJ de 08.07.2020 [processo nº 74/14.7JAPTM.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt] se escreve: “Constatando assinalável diversidade na determinação da pena conjunta, justificativa de incerteza jurídica, desigualdade nas consequências jurídicas do concurso de crimes, e fonte de onde brota, a jusante, considerável litigância recursória perante o STJ, desenhou-se neste Tribunal uma corrente jurisprudencial que tendencialmente faz intervir, dentro da nova moldura penal, operações aritméticas que devem guiar o tribunal na fixação do quantum da pena conjunta. Resumidamente, na sua veste mais recente, sustenta que na determinação da medida da pena única, se deve adotar um critério consistente em adicionar à pena parcelar mais grave, que fixa o limiar inferior da moldura do cúmulo, uma fração das restantes penas, sendo a partir deste valor, consideradas as especificidades do caso concreto. Atendendo à regra ínsita no art. 77º nº 1 do Código Penal, para determinar a fração, toma-se em consideração principalmente o tipo de criminalidade e a dimensão das penas parcelares cumuladas e, complementarmente, a personalidade do arguido expressada nos factos ou que os factos revelam.
(…)
Sustenta-se no Ac. de 27/01/2016 deste Supremo Tribunal que “não repugna que a convocação dos critérios de determinação da pena conjunta tenha como coadjuvante, e não mais do que isso, a definição dum espaço dentro do qual as mesmas funcionam.
Na verdade, como se referiu, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico.”

Atento o acima exposto haverá ainda que ter em conta os seguintes aspetos:
A natureza, gravidade e quantidade das ilicitudes praticadas, e o período de tempo em que ocorreram, sendo que a arguida praticou um crime de injúria agravada; um crime de ameaça agravada e um crime de dano qualificado a 21.03.2021 e um crime de ofensa à integridade física simples, a 03.04.2021.

Por outro lado a arguida foi já condenada:
- por decisão transitada em julgado a 03-06-2002, pela prática, a 01-06-2002, de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa.
- por decisão transitada em julgado a 03-04-2006, pela prática, a 01-04-2006, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses.
- por decisão transitada em julgado a 14-05-2009, pela prática, a 24-06-2006, de um crime de detenção de arma proibida, em pena de multa.
- por decisão transitada em julgado a 19-08-2010, pela prática, a 30-07-2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de multa, assim como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 15 (quinze) meses.
- por decisão transitada em julgado a 11-10-2017, pela prática, a 22-08-2017, de um crime de desobediência, na pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 (noventa) dias de multa, assim como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 8 (oito) meses.
- Por decisão transitada em julgado em 31-01-2019, pela prática, a 02-04-2017, de um crime de ofensa à integridade física simples, beneficiando, porém, de dispensa de pena.
- Veio ainda a ser condenada, por decisão transitada em julgado a 15-04-2021, pela prática, a 26-05-2016, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 (um) ano, sujeita ao cumprimento do dever de pagar à assistente a quantia de € 300,00 (trezentos euros), assim como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 9 (nove) meses.
Há ainda que atender às fortes exigências de prevenção geral pela confiança comunitária no seu ordenamento jurídico através da reposição contrafática das normas violadas, as já fortes exigências de prevenção especial e a forte intensidade da culpa da arguida.
Às restantes características da personalidade da arguida que resultam da factualidade provada, dela se extraindo uma personalidade desafiadora da autoridade, e com algumas dificuldades em manter uma postura conforme ao direito como decorre não só da proximidade temporal dos factos em apreço, com ofendidos distintos, e bem assim das condenações que já sofreu, todas em penas de multa (e uma em prisão substituída por multa) que apontam para uma pena única - a manter-se de multa - mais elevada.

A pena única há-de mostrar adequação, justeza, e proporcionalidade, entre a avaliação conjunta daqueles dois fatores - a gravidade do ilícito que resulta da prática dos crimes em apreço e o percurso de vida da arguida - tendo em conta os princípios da necessidade da pena e da proibição de excesso.

Ora estes dois fatores apontam para uma pena única que na moldura penal se distancie com algum relevo do seu mínimo e se aproxime mais do seu máximo, como ocorreu na situação em apreço. E, assim, fazendo a ponderação global do ilícito, cremos que a pena única encontrada se mostra a adequada a dar satisfação às exigências de prevenção geral e especial que a situação presente impõe e não se mostra ultrapassada pela culpa da arguida, pelo que não merece censura.
***

IIIDISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Negar provimento ao recurso intercalar e consequentemente manter o despacho exarado a 11.10.2023.
- Negar provimento ao recurso interposto da decisão final e assim manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
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Lisboa, 9 de abril de 2024


[Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]


Sandra Ferreira
(Juíza Desembargadora Relatora)
Carla Francisco
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Rui Coelho
(Juiz Desembargador Adjunto)