Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15052/21.1T8LSB.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: DESPACHO LIMINAR
DIVISÃO DE COISA COMUM
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
DIVISIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O princípio dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal e sobre os exactos limites do seu objecto.
II. Sendo a identificação dos imóveis, quotas respectivas e identificação concreta para cada um dos imóveis, mas também a sua divisibilidade ou não, factos essenciais no âmbito de uma acção de divisão de coisa comum, a ausência da sua enunciação pela Autora determinará a falta de causa de pedir, sendo que a comprovação da sua existência pode ser feita em despacho liminar, por constituir uma excepção insusceptível de sanação – artº 590º nº 1 do Código de Processo Civil
III. O despacho liminar consagrado no actual Código de Processo Civil visa a boa gestão do processo e se o legislador entendesse que a prolação liminar violaria princípios do processo civil, mormente do contraditório, não teria considerado tal possibilidade. Aliás, exigir-se a prévia pronuncia da parte (e não das partes, pois no despacho liminar os réus não foram ainda citados e convocados para a acção) permitiria obter um desequilíbrio das partes, defraudando ainda o carácter liminar do despacho.
 (Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
E…, residente na R…, instaurou a presente acção especial de divisão de coisa comum, contra A…; B…; C… e  D…, concluindo que “pretendendo a autora pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, em consequência se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, pondo-se termo à indivisão, com repartição do respectivo valor e ainda decretar uma compensação a ser paga à autora pelas rés, que não deverá ser inferior a €30.000,00, e ainda decretar o pagamento do IMI suportado pela autora que seja da responsabilidade das rés”.
Alega que no âmbito de acção de inventário foram adjudicadas verbas à Autora e Rés e não pretende continuar na compropriedade. Mais refere que suportou despesas de IMI e que desde 14/06/2013 não recebe frutos das verbas nem tem acesso às mesmas, pretendendo ser compensada.
Em decisão liminar o Tribunal julgou verificada a excepção dilatória de ineptidão da Petição Inicial e consequentemente, indeferiu liminarmente a acção, nos termos conjugados dos artigos 186.º, n.º 1 e 2, al. a), b) e c), 200.º, n.º 2 e 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, al. b), 578.º, todos do Código de Processo Civil.
Inconformada veio a Autora recorrer, formulando as seguintes conclusões:
«1. A decisão recorrida decretou e indeferimento liminar da presente acção sem o indispensável cumprimento do artigo 6º do Código de Processo Civil, e do artigo 8º nº3 do Código Civil, o que integra violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões-surpresa e a consequente ilegalidade da respectiva decisão “absolutória” que foi proferida.
2. É sabido que o processo se estrutura, até por emanação de cogentes princípios constitucionais, segundo o princípio do contraditório, que sempre deve ser salvaguardado na tramitação do processo, quer em relação à actuação das partes entre si, quer pelo Tribunal nas suas intervenções ou decisões face às partes.
3. É o que decorre expressamente da norma estruturante do processo e dos termos em que deve processar-se a sua condução pelo Tribunal e que é a do artigo 6º do Código de Processo Civil, que dispõe: Artigo 6.º Dever de gestão processual 1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
4. Assim, como decorre dos autos, a “condenação” proferida surgiu como uma verdadeira “decisão-surpresa”, que a lei claramente impede e proíbe, em função do disposto no nº 3 do artigo 3º/CPC e nº 3 do artigo 8º/CC e cuja patente ilegalidade deverá conduzir à sua revogação, como se pede.
5. Ocorreria mesmo inconstitucionalidade de normas do processo civil (como seria o caso do artigo 3º/CPC), se interpretadas ou aplicadas no sentido de que a condenação proferida pudesse ser decretada “sem a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma pretendida condenação”.
Termos em que se pede a revogação da sentença recorrida, e que se determine, em consequência, que os autos prossigam os seus normais termos com o suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância e se proceda ao posterior julgamento da causa, tudo como se entende ser de direito e justiça.».
O Tribunal pronunciou-se sobre a nulidade arguida, no sentido do seu indeferimento, admitiu o recurso e ordenou o cumprimento do disposto no artº 641.º, n.º 7 do Código de Processo Civil, citando as Demandadas, para os termos do recurso e da presente causa, sendo também para querendo responderem à alegação da Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 638.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
Vieram então as rés contestar, arguindo quer o erro na forma de processo e litispendência, por pretender na acção de divisão de coisa comum ser ressarcida por pagamento ou rendas não percebidas, quando tal situação já corre termos no Juízo Local Cível de Lisboa –Juiz 14, Proc. n.º 104/07.9TJLSB-B, no âmbito de uma acção de prestação de contas, nem tal pedido pode ser cumulado no âmbito desta acção. Concluindo ainda pela ineptidão inicial por falta de causa de pedir, neste caso por não indicar a Autora que prédios que são propriedade comum, bem como, não se afere da petição inicial qual a parte a que cada um pertence ou se é indivisível ou, a própria tipologia dos prédios, se é urbana ou rustica, ou se é propriedade horizontal ou plena ou quais as áreas. Também arguiram a ilegitimidade passiva da 2.ª Ré, dado a mesma ter sido declarada insolvente, facto que alegam que a A. bem sabe. Convocam ainda a ilegitimidade da A. por estar desacompanhada do seu cônjuge e, logo, por preterição de litisconsórcio necessário. Por fim, impugnam os factos relativos à alegada venda de uma das verbas e por obscuridade quanto ao restante alegado em relação ás demais verbas do inventário reproduzidas na petição inicial pela Autora. No mais, impugnam o alegado quanto a despesas e compensação alegada pela Autora. Concluem, pela absolvição das rés da instância ou pela improcedência da acção com a consequente absolvição do pedido.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- Se se verifica a nulidade por ineptidão da petição inicial.
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II. Fundamentação:
Além dos factos ou actos processuais referidos e datados no relatório que antecede, haverá ainda que considerar que a Autora alegou o seguinte na sua petição inicial:
1º Correu termos no Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 14, Inventário (Herança) com número de Processo 104/07.9TJLSB, em que era Cabeça de Casal, a ora autora, e requerentes e interessadas, as ora rés.
2. No supramencionado Processo 104/07.9TJLSB, a douta sentença a fls.728, desses outros autos, transitou em julgado em 24/06/2013. (Cfr. Doc.1)
3. Dos bens imóveis apresentados na Relação de Bens a fls. 154 e ss. nesses outros autos, foram adjudicados na Acta de Conferência de Interessados a fls. 584 e ss. nesses outros autos, à autora e rés nos presentes autos, as seguintes verbas (Cfr. Doc.1):
Verba nº18 (adjudicada à autora e às 1ª, 2ª  e 3 ª rés)
Verba nº19 (adjudicada à autora e às 3ª, 2ª e 1ª rés)
Verba nº21 (adjudicada à autora e todas as rés)
Verba nº22 (adjudicada à autora e às 3ª e 2ª rés)
Verba nº23 (adjudicada à autora e às 3ª, 2ª e 1ª rés)
4. Das verbas supramencionadas foi, entretanto, vendida pela autora e 3ª, 2ª e 1ª rés), a seguinte verba:
Verba nº19 (Cfr. Doc.1)
5. As restantes verbas que não foram vendidas e continuam coisa comum de autora e rés.
6. As verbas que não foram vendidas, nos termos do Mapa de Partilha a fls. 717 e ss, nesses outros autos, têm os seguintes valores (Cfr. Doc.1):
Verba nº18 - €147.240,00, actualmente com o valor de €160.867,43 (Doc.2);
Verba nº21 - €61.552,78, actualmente com o valor de €56.222,78 (Doc.3);
Verba nº22 - €71.540,33, actualmente com o valor de €71.540,33 (Doc.4);
Verba nº23 - €23.500,00, actualmente com o valor de €3,19 (Doc.5).
7. A autora não pretende continuar na compropriedade com as rés.
8. A autora suportou as seguintes despesas com IMI (que contabiliza como sendo no ano de 2016 de 512,45€, no ano de 2017 de 241,18€, no ano de 2018 de 270,07€, no ano de 2019 de 268,80€ e no ano de 2020 de 269,66€).
9. De referir que desde 24/06/2013, data do trânsito em julgado do processo de inventário 104/07.9TJLSB, a autora não recebe quaisquer frutos das verbas atrás mencionadas, nem tão-pouco tem acesso a elas, estando estas a serem usufruídas exclusivamente pelas rés, nomeadamente:
Verba nº18 – R/C arrendado em benefício exclusivo da 1ª ré; 1º Andar em benefício exclusivo da 2ª ré, por ser a sua morada fiscal; 2º Andar arrendado em benefício exclusivo da 3ª ré; e 3º Andar arrendado em benefício exclusivo da 2ª ré;
10. Ora, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, acedido pelo sitio da internet https://www.ine.pt/, o valor mensal de arrendamento para habitação em Lisboa sendo não inferior a €500,00 (€500,00x12mesesx5anosx4andares), o rendimento obtido destes pelas rés, não foi inferior €120.000,00,
11. Pelo que se requer uma compensação a pagar à autora pelas rés, que não deverá ser inferior a €30.000,00.
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III. O Direito:
A questão essencial a decidir é saber se é de revogar a decisão recorrida que decidiu pelo indeferimento liminar da acção, por ineptidão da petição inicial.
Convoca a recorrente a ausência de cumprimento do artigo 6º do Código de Processo Civil, e do artigo 8º nº3 do Código Civil, concluindo pela violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões-surpresa e a consequente ilegalidade da respectiva decisão que apelida de “absolutória”. Preconiza ainda que ocorreria mesmo inconstitucionalidade de normas do processo civil se interpretadas ou aplicadas no sentido de que a condenação proferida pudesse ser decretada “sem a prévia audição do interessado em termos de este poder alegar o que tiver por conveniente sobre uma pretendida condenação”.
Importa ter presente que estamos perante uma acção especial de divisão de coisa comum, pelo que a decisão recorrida principia por tecer considerações sobre o regime da propriedade comum, expondo que: «Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (artigo 1403.º, n.º 1 do Código Civil). As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles (artigo 1404.º do Código Civil). Dispõe o artigo 1412.º, n.º 1do Código Civil que nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.
Assim, nos termos do artigo 925.º do Código de Processo Civil, todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.».
A propósito de tal regime no recente Acórdão desta Relação, datado de 2/03/2023 (proferido no Proc. nº 102/22.2T8VLS.L1-2, in www.dgsi.pt/jtrl), sumaria-se que: I) A causa de pedir na acção de divisão de coisa comum – que não constitui uma acção real - é integrada pela existência de situação de comunhão, não estando em questão a propriedade sobre a coisa ou direito, mas a relação de comunhão em que os consortes estão envolvidos e o poder – de provocar a sua cessação mediante divisão - resultante dessa relação. II) O processo especial para divisão de coisa comum comporta duas fases fundamentais: Uma declarativa - que visa decidir sobre a existência e os termos do direito à divisão invocado, que só se desenvolve quando haja contestação ou, inexistindo esta, quando a revelia do requerido seja inoperante (artigo 926.º, n.º 2, do CPC) - e uma executiva – em que se materializa, fundamentalmente por meio de perícia, o direito já definido na fase declarativa ou afirmado sem contestação pelo autor (se a coisa for divisível, procedendo-se ao seccionamento em substância da coisa, à sua divisão mediante a formação em quinhões, de acordo com as quotas dos comproprietários, e à subsequente adjudicação desses quinhões; ou, se a coisa for indivisível, procedendo-se à sua adjudicação a um dos consortes e ao preenchimento em dinheiro das quotas dos restantes, ou à venda executiva da coisa com a repartição do produto da venda pelos interessados, na proporção das respectivas quotas).”.
Com efeito, “a causa de pedir na acção de divisão de coisa comum consiste na situação de comunhão de direitos e na vontade de um ou mais consortes pôr termos à respectiva e concreta indivisão”, devendo o autor na Petição Inicial identificar o prédio ou a coisa mobiliária a dividir, alegar a compropriedade ou comunhão e especificar a posição relativa de cada consorte e o volume das respectivas quotas (cf. Luís Filipe Pires de Sousa, in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2016, Almedina, página 87/88). Como se refere Luís Filipe Pires de Sousa ( in ob. cit. pág. 88), os factos relativos à identificação do prédio ou coisa mobiliária a dividir são “factos essenciais que integram o núcleo primordial da causa de pedir, cuja falta implica a ineptidão da petição inicial”.
Como refere José Lebre de Freitas (in “Introdução ao Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, pág. 136) o princípio dispositivo traduz-se na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da acção, sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transaccionar).
O princípio dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correcta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. Assim, o exacto limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a acção (e de se defender), como delimitam o seu objecto ( Mariana França Gouveia in “O Princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: A incessante procura da flexibilidade processual” - Texto escrito para os Estudos em Homenagem aos Professores Palma Carlos e Castro Mendes, pág. 602 e ss.). Logo, às partes cabe iniciar o processo e fixar o seu objecto. Ao juiz cabe decidir dentro desse objecto, tendo liberdade (com cumprimento do contraditório) para aplicar regras de direito não alegadas pelas partes ( cf. Artº 5º nº 3 do CPC).
No artigo 5º, nº 1, diz-se agora que cabe às partes alegar “os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que baseiam as excepções invocadas” . No nº 2 do mesmo preceito define-se o regime de conhecimento dos factos instrumentais e dos factos complementares e concretizadores dos que as partes alegaram (não alegados nos articulados, nem tendo a parte sido convidada a alegá-los, nos termos do artigo 590º).
Em anotação ao Acórdão desta Relação datado de 18/5/2017 (5484/15.0T8FNC.L1-2, in www.dgsi.pt) refere Miguel Teixeira de Sousa «(…) os termos da lei aprovada parecem querer distinguir entre os factos necessários à identificação da causa de pedir e os (demais) factos necessários à procedência do pedido do autor; distingue-se, de forma totalmente correcta, entre a falta de factos que integram a causa de pedir (que gera a petição inepta) e a falta de factos que apenas são essenciais à procedência da acção (que ocasiona a petição deficiente). Disto decorre que, a caracterizar-se a orientação decorrente do actual processo civil português sobre a causa de pedir como a que corresponde à chamada teoria da substanciação, esta substanciação tem de se restringir aos factos necessários para individualizar a situação subjectiva invocada pelo autor. Dito de outro modo: a substanciação exigida cumpre apenas a função de individualizar a situação subjectiva alegada pela parte, não a de assegurar a procedência da causa.» ( in blog do IPPC).
Esta dicotomia corresponde à distinção entre os factos essenciais (cf. art. 5.º, n.º 1, CPC) e os factos complementares (art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC): - Os factos essenciais à individualização da situação subjectiva alegada pela parte integram a causa de pedir;- Os factos não essenciais à individualização da situação subjectiva alegada pela parte, mas essenciais à procedência da causa, são qualificados como factos complementares.
Logo, é por isso que a falta dos factos essenciais origina a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º, n.º 1 e 2, al. a), CPC) e que a falta dos factos complementares justifica o convite ao aperfeiçoamento do articulado (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, CPC).
Donde, sendo a identificação dos imóveis, quotas respectivas e identificação concreta para cada um dos imóveis, mas também a sua divisibilidade ou não, factos essenciais, a ausência da sua enunciação pela Autora determinará a falta de causa de pedir, sendo que a comprovação da sua existência pode ser feita em despacho liminar, por constituir uma excepção insusceptível de sanação – artº 590º nº 1 do Código de Processo Civil. Nem o seu conhecimento em despacho liminar consubstancia a violação do princípio do contraditório, pois são as normas processuais que permitem que nos casos em que, por determinação legal, como é o caso da acção especial de divisão de coisa comum, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, como é o caso da ineptidão da petição inicial. Por outro lado, inexiste “condenação absolutória” ou conhecimento dos pedidos formulados, como parece entender a recorrente, o indeferimento liminar em causa permitiria inclusive a possibilidade de o autor apresentar outra petição inicial, nos dez dias subsequentes ao mesmo, por força da remissão do artº 590º nº 1 para o artº 560º do Código de Processo Civil, bastando para tanto expurgar a nova petição inicial do motivo pelo qual o Tribunal apreciou e decidiu pela ineptidão. A Autora, porém, ao invés, entendeu recorrer do despacho, por não concordar com o juízo contido no mesmo, arredando-se assim tal possibilidade.  Porém, a decisão proferida é apenas de caso julgado formal e não “absolutória” como apelida a recorrente.
Acresce que ao contrário do defendido pela recorrente o despacho liminar consagrado no actual Código de Processo Civil visa a boa gestão do processo, sendo o mesmo um veículo de excelência para a realização de uma profícua gestão inicial do processo ( cf. Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, pág. 510). A prolação de despacho liminar com a possibilidade de indeferimento da petição inicial encontra-se expressamente prevista no próprio preceito – o artº 590º nº 1 do Código de Processo Civil – e se o legislador entendesse que a prolação liminar violaria princípios do processo civil, mormente do contraditório, não teria considerado tal possibilidade. Aliás exigir-se a prévia pronuncia da parte (e não das partes, pois no despacho liminar os réus não foram ainda citados e convocados para a acção) permitiria obter um desequilíbrio das partes, defraudando ainda o carácter liminar do despacho. Donde a decisão não viola quer o princípio do contraditório (artº 3º nº 3 ), nem o disposto no artº 8º do Código de Processo Civil, norma indicada pela recorrente como tendo sido violada, sendo que esta apenas encerra um comando dirigido às partes ao prever o dever de actuação de boa fé processual e não em concreto ao Tribunal, afastando-se o despacho da sua alegada violação.
Quanto ao que determinou o indeferimento liminar por ineptidão da petição inicial, revisitando a decisão recorrida esta não nos merece qualquer reparo quando discorre que: «A Autora refere-se aos imóveis como “verbas”, sem qualquer outra identificação ou caracterização, limitando-se a remeter para os documentos juntos aos autos, o que fica muito aquém do ónus que recai sobre si de alegar os factos essenciais do direito a que se arroga. Não cabe ao Tribunal aferir, nos documentos juntos, da identificação cabal dos imóveis cuja divisão pretende. Acresce que a Autora pretenderá a divisão de quatro imóveis, dos quais dois são compropriedade da Autora e de A..., B... e C...; um compropriedade da Autora e de B... e C...; um outro compropriedade da Autora e de A..., B... e C... e D.... Acresce, ainda, que (de acordo com os documentos juntos, uma vez que a Autora nem sequer a morada dos imóveis indica na Petição Inicial) os imóveis localizam-se em Lisboa, em Loures, Caminha e Azambuja, importando atentar no disposto no artigo 70.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A Autora não refere a posição relativa de cada consorte e a medida das respectivas quotas, nem se os imóveis – cada um deles – são divisíveis ou indivisíveis e em que termos; aliás, no pedido a Autora pretende que “se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta”, o que são pedidos contraditórios: a divisão em substância pressupõe a divisibilidade; a adjudicação ou venda reporta-se à indivisibilidade. Em momento algum a Autora refere se os imóveis são divisíveis em substância ou não, mostrando-se o próprio pedido inquinado por falta de clarificação quanto ao que efectivamente se pretende.».
Prossegue ainda o Tribunal recorrido que: «A Autora deduz, ainda, pretensões que não se coadunam com a acção de divisão de coisa comum e respectivo objecto. A acção de divisão de coisa comum não é o meio adequado para peticionar o pagamento de uma compensação “pelo não usufruto da coisa comum” e “o pagamento do IMI suportado pela autora que seja da responsabilidade das rés”. As pretensões em apreço devem ser apreciadas em acção declarativa com processo comum, e não o processo especial de divisão de coisa comum.».
Concluindo assim que: «Da análise da Petição Inicial resulta manifesta a falta de alegação de factos essenciais, a pretensão de divisão de quatro imóveis cuja compropriedade não é das mesmas titulares/requeridas e a dedução de pedidos que não só não se mostram devidamente fundamentados na respectiva alegação objectiva de factos como também não são admissíveis nem compatíveis com a forma processual em apreço. As questões detectadas mostram-se inultrapassáveis e inquinam, irremediavelmente, a petição inicial. Os vícios em apreço implicam a ineptidão da petição inicial, o que constitui uma nulidade absoluta que inquina todo o processo e determina o indeferimento liminar da acção ou a absolvição da instância, nos termos conjugados dos artigos 186.º, n.º 1 e 2, alínea a), b) e c), 200.º, n.º 2 e 278.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil. Concluímos, assim, pela ineptidão da Petição Inicial, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1 e 2, al. a), b) e c) do Código de Processo Civil, o que inviabiliza irremediavelmente a presente acção, mostrando-se prejudicadas as demais questões que se suscitam.».
Acrescentamos ainda que o princípio da cooperação deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, pelo que o mesmo não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de indicação do pedido ou de alegação de factos estruturantes da causa de pedir.
Tal convite, destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.
As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC).
De outra forma, afrontar-se-ia o princípio da estabilidade da instância, previsto no art.º 260.º do CPC, nos termos do qual, após a citação do réu, a instância estabiliza-se quanto ao objecto e às partes, sendo legalmente limitada qualquer possibilidade de alteração objectiva ou subjectiva.
Como indicam António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa o convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede quando não sejam alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos poucos precisos.”, mas prosseguem “coisa diversa, e afastada do âmbito do artº 590º nº 4, seria permitir à parte, na sequência de tal despacho, apresenta ex novo um quadro fáctico até então inexistente ou de todo imperceptível” ( in CPC Anotado I volume pág. 679), restrição que aliás decorre  do nº6 do artº 590º do CPC.
Donde, se faltar a causa de pedir, a petição será inepta, o mesmo sucedendo se tal causa de pedir foi ininteligível, mas quer num, quer noutro caso, não será possível colmatar o vício por via do convite ao aperfeiçoamento (Neste sentido Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol I, pág. 207 e Paulo Pimenta in “Processo Civil Declarativo”, pág. 209).
Idêntico raciocínio foi feito no Acórdão desta Relação e secção de 07-11-2019 (proc. 14013/17.0T8LSB.L1-6, não publicado), onde se conclui que o vício de ineptidão que afecta a Petição Inicial, por falta de indicação do pedido ou da causa de pedir, não é susceptível de suprimento, através de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 590.º, n.ºs 2, alíneas a) e b), 3 e 4, do CPC, na medida em que não se pode corrigir ou aperfeiçoar o que não existe. Neste caso, o vício é tão grave, que já não há remédio (cfr. Ainda Ac. do TRE, de 08-10-2015, proc. 855/12.6TBLSLV.E1, disponível em www.dgsi.pt.).
Senão vejamos, como vimos a alegação da base factual essencial, tal como se encontra previsto no artº 5º nº 1 do CPC, parte do conceito de causa de pedir, e sem que se possa ensaiar a simplificação da sua definição sempre a mesma constitui o conjunto dos factos da relação material (ocorridos) subsumíveis às fatispécies das normas individualizadas que prevêem o efeito prático-jurídico pretendido pelo Autor (Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro in ob. cit. “Primeira Notas ao NCPC”, pág. 36 e ss. ). Todavia, a alegação de todos os factos ocorridos pode não sustentar o pedido, mas tal não determina a falta de causa de pedir, mas sim os casos de inconcludência ou manifesta improcedência.
Como deixámos referido sobre a causa de pedir, várias teses têm sido defendidas, Miguel Teixeira de Sousa assume a teoria da individualização aperfeiçoada, mediante a qual a causa de pedir é constituída pelos factos necessários à individualização do pedido do autor (in “Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil”, Scientia Iuridica, Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, Universidade do Minho, Braga, Tomo LXII, maio/agosto, 2013, n.º 332, pág. 399).
No Código de processo civil, nos seus artigos 552.º, n.º 1, alínea d) e 581.º, n.º 4, está consagrada a teoria da substanciação, mediante a qual a afirmação da situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros factos alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objecto do processo.
Emerge assim dos normativos referidos que a causa de pedir é o conjunto dos factos essenciais constitutivos da situação jurídica que se quer fazer valer ou negar ou o facto jurídico constitutivo do efeito jurídico pretendido pelo autor.
Assim, frise-se que no âmbito desta acção especial constituem factos essenciais da causa de pedir a identificação dos imóveis cuja divisão se pretende, quota de cada um dos co-proprietários e divisibilidade ou não dos imóveis. Acresce que a Autora cumula vários pedidos de divisão relativamente a imóveis diferenciados, identificados por verbas, sem que relativamente a cada um dos imóveis estejam em causa as mesmas comproprietárias rés, figurando a 4ª ré como sendo apenas comproprietária de uma das “verbas”.
É certo que importa ter presente que a ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir fica sanada quando se verifique que o réu, ao contestar, mesmo nos casos em que invoca a ineptidão, interpretou convenientemente a petição inicial, como dispõe o n.º 3 do artigo 186.º.
Todavia, tal como se decidiu no Ac. desta Relação de 4/2/2020 (13977/17.8T8LSB.L1-7 in www.dgsi.pt) “a mera apresentação de contestação não basta para fundamentar a aplicação do art. 186º, nº 3 do CPC, sendo também necessário que se perceba que o R. interpretou convenientemente a petição inicial e a pretensão do A.”.
Afigura-se assim, que o vício só ficará sanado (concluindo-se pela existência do vício, tal como conclui o Tribunal recorrido), se a interpretação feita pelo réu veio suprir a falta ou a ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, trazendo aos autos elementos que permitam compreender objectivamente a pretensão deduzida. Não bastará, pois, a mera suposição do tribunal de que o réu terá entendido a pretensão em causa, mas sem fornecer elementos que possibilitem ao juiz compreendê-la.
Ora, neste caso a contestação dos réus sucede necessariamente o despacho liminar e ocorre por força da interposição deste recurso, mas do teor da contestação apresentada nada nos permite concluir pela sanação do vício, pelo contrário, a ausência de factos no que concerne ao pedido que constitui o cerne do objecto da acção especial de divisão de coisa comum é por demais evidente, como deixámos expresso, mas tal é ainda mais flagrante quanto aos demais pedidos condenatórios. E em nada nos permite considerar que as rés conseguiram devidamente interpretar as pretensões da Autora.
Com efeito, sem cuidar nesta sede da possibilidade ou não de cumular tais pedidos de pagamento de despesas e de compensação pelo não uso, não se vislumbra em que termos se pede a condenação de todas as rés, pois não identifica quem será responsável por eventuais despesas relativamente a cada um dos imóveis cuja divisão se pretende, dada a diferenciação de comproprietárias para cada “verba”, e quanto a essa eventual despesa nem sequer se formula pedido final concreto. Na verdade, limita-se a pedir que seja “decretado o pagamento do IMI suportado pela Autora que seja da responsabilidade das rés”, ora é à Autora que compete afirmar o pagamento do IMI, seu valor, reportado em concreto a cada um dos imóveis e ainda pedir a responsabilidade em termos de pedido condenatório em conformidade a cada uma das rés alegadamente responsável pelo seu pagamento. O mesmo ocorre com o alegado pedido compensatório, que contabiliza no valor não inferior a 30.000€, mas sem sequer peticionar se a condenação das rés é solidária ou não e em que termos e reportada a que imóvel concreto.
Logo, a par da eventual impossibilidade de cumulação de tais pedidos, por força do disposto no artº 37º nº 1 do Código de Processo Civil ex vide artº 555º do mesmo diploma (ainda que tal possibilidade tenha sido decidida no recente Acórdão desta Relação datado de 2/03/2023, supra aludido, mas perante o circunstancialismo especifico aí previsto, a saber, não se discutindo a indivisibilidade, nem a situação de comunhão ou as quotas dos contitulares, e o reconhecimento do crédito emergia de pagamentos de prestações de empréstimo bancário contraído para a aquisição do prédio objecto da acção e de benfeitorias resultantes de obras realizadas no mesmo; a acrescer que estávamos perante um caso em que tal pedido era feito a título reconvencional, mas em que o foco seria o interesse relevante na apreciação conjunta das pretensões para a composição justa do litígio. Mas neste aresto também se conclui que :”Tal encontro entre o deve e o haver entre as partes deve cingir-se à aferição e cômputo dos encargos com a coisa comum e derivados da contitularidade do imóvel cuja divisão se peticiona e não reportar-se a quaisquer outros direitos creditícios que não tenham qualquer interferência ou reflexo na reivindicada divisão da coisa comum”) o que ocorre nos autos é também relativamente a tais “pedidos”, quer a ausência de definição em termos de pedido quanto aos encargos em relação ao seu valor e a condenação concreta quanto à compensação, quer ainda a falta dos factos essenciais que os sustentam.
A ausência de factos essenciais integradores da causa de pedir aliada à ininteligibilidade e ausência de pedido nos termos sobreditos resulta evidente na petição inicial, vício objecto de conhecimento em sede liminar, permitido ao abrigo das normas do actual Código de Processo Civil e, logo, sem que exista a violação de um qualquer princípio da lei adjectiva, improcedendo desta sorte as conclusões da recorrente.
De tudo o exposto resulta a improcedência da apelação, mantendo-se a decisão que decidiu pelo indeferimento liminar por ineptidão da petição inicial.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 30 de Março de 2023
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes