Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26827/20.9T8LSB-F.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: RECUSA
APLICAÇÃO MEDIDA DE COACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE RECUSA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - As recusas, do mesmo modo que as escusas, são institutos processuais cuja finalidade última é garantir objectivamente a imparcialidade da jurisdição e concomitantemente assegurar a confiança da comunidade em relação à administração da Justiça;
- Não constitui fundamento de recusa a discordância jurídica das decisões de juízes;
- A recusa poderá assentar no acesso que o juiz de julgamento tenha a prova produzida em anterior fase processual e no eventual juízo de mérito que possa ser projectado no veredicto a extrair do julgamento;
- O impedimento por participação em processo a que respeita o art.º 40.º, al. a) do C.P.P. não faz apelo a uma ideia distintiva de que essa aplicação tenha de ocorrer numa “fase processual” anterior, enquanto tal catalogada pela Lei adjectiva.
- O impedimento basta-se com a simples anterioridade da intervenção do juiz no processo, que assim funcionará de uma forma objectiva, como fundamento daquele impedimento.
- Quando um juiz, a propósito da aplicação de uma medida coactiva, num tempo muito próximo do julgamento agendado, acaba por operar uma leitura crítica da indiciação dos factos a apreciar, por referência a uma prova que basicamente será também a produzir naquela sede, e de para  fundamenta a sua decisão, ter sentido a necessidade de no respectivo processo argumentativo de formular a sua opinião sobre o devir dos autos, a recusa será de conceder.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.º) da Relação de Lisboa:
I - Relatório:
I - 1.) DDL, Arguido nos autos com o NUIPC acima referenciado, a correr termos no Juízo Central Criminal de Sintra (Juiz 1), fundando-se para tanto no art.º 43.º, n.º l, do Cód. Proc. Penal, veio através do presente incidente requerer a recusa da Mm.a Juíza titular, Dr.a … , alegando para o efeito, fundamentalmente, que:
- Terão sido por aquela analisados, lidos e valorados, depoimentos à margem do que é permitido a um juiz de julgamento;
- E terem sido proferidas pela mesma, em sede de aplicação das medidas de coação, múltiplas frases e expressões de onde decorre indubitavelmente a existência de um pré-juízo condenatório.
Ao que sustenta, “quem realiza diligências (sem prejuízo de, quanto às mesmas, terem sido invocados vícios e os despachos que ordenaram tais diligências não terem transitado em julgado), tendentes a produzir efeitos em sede de audiência de julgamento; quem produziu despachos baseados em prova valorada de determinada forma que não cumpre o ritual legalmente exigível para sua valoração em audiência de julgamento, quem afirmou, perentoriamente, aquando da produção do despacho sobre medidas de coação, juízos pré- condenatórios de postura processual assumida quando a audiência de julgamento não teve o seu início e para a qual não foi declarada impedida, não reúne as condições para analisar a prova a produzir de forma imparcial como exige o Código de Processo Penal e as mais elementares regras de um fair trial.”
Razão pela qual requer que seja proferida decisão que ateste a existência de fundamento de recusa da mencionada M.m.ª Juíza, com as devidas consequências legais.
I - 2.) A Senhora Magistrada em causa, nos termos do art.º 45.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, embora reconhecendo que os factos invocados pelo Arguido “estão genericamente de acordo com o que consta dos autos”, considerou que ainda assim não serão “fundamento de recusa de acordo com a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa”.
II - Subidos os autos a este Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de “as concretas razões invocadas pelo arguido não consubstanciam a existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da juíza, por forma a que se verifique recusa na sua intervenção”.
*
Foi solicitada cópia de fls. 003011 a 003021 de onde constarão os factos que a Senhora Juíza considerou fortemente indiciados.
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Seguiram-se os vistos legais.
Teve lugar a conferência.
- 3.1.) Tal com o consigna o art.º 43.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”
Já de forma mais objectiva se determina no respectivo n.º 2 que pode constituir fundamento de recusa (...) a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º”.
Como é sabido, as recusas, do mesmo modo que as escusas, são institutos processuais cuja finalidade última é garantir objectivamente a imparcialidade da jurisdição e concomitantemente assegurar a confiança da comunidade em relação à administração da Justiça.
No domínio do Código de Processo Penal de 1929, os motivos que podiam gerar a suspeição do juiz (cfr. Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 3.a Ed., Vol. I, pág.as 202/3) e que integravam os diversos números do então art. 112.º, estavam sempre reconduzidos “a relações de parentesco, de interesse ou de inimizade que ligassem o juiz ou os seus parentes ao assistente, ao ofendido ou ao arguido.
Perante a formulação mais fluida hoje em vigor, numa tentativa de definição exemplificativa das situações compreendidas no mencionado art.º 43.º, n.º l, entende aquele Professor, que entre as causas passíveis de gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes estão “as atitudes dos magistrados reveladoras de prejuízos sobre a culpabilidade do arguido, quer sejam manifestadas nos actos do procedimento, quer à sua margem, e bem assim as manifestações de inimizade ou desconsideração por parte do juiz relativamente a qualquer dos sujeitos processuais ou seus advogados.’’’’
Debruçando-se sobre o conceito de imparcialidade, no fundo aquele que o Requerente aqui pretende evidenciar, no sentido da sua menor presença, o douto acórdão do STJ de 29 de Março de 2006 (publicado na CJ (STJ) Ano XIV, Tomo I, pág.a 220), teve a oportunidade de enunciar a seguinte afirmação doutrinal:
“A imparcialidade do juiz e do tribunal (...), não se apresenta sob uma noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.
Na perspectiva ou aproximação subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. A aproximação subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário. Neste aspecto, a função dos impedimentos constitui um modo cautelar de garantia da imparcialidade subjectiva.
Mas a dimensão subjectiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objectiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio ‘ justice must not only be done it must also be seen do be done ", que releva as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça
III - 3.2.) Ora a lei não define nem caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos que podem fundamentar aquela desconfiança.
Em todo o caso, fazendo uso da abundante Jurisprudência recompilada no douto acórdão da Relação do Porto de 08/02/2012, no processo n.º 1402/07.7TASTS-G.P1, em que foi Relatora, a M.m.a Desembargadora Maria Leonor Esteves, poderíamos dizer que:
“O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias, a partir do senso e experiência comuns, conforme o juízo de cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador; o que importa é, pois, determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade pode, fundadamente, suspeitar que o juiz influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e injustificadamente o prejudique” - (cfr. Ac. RE 5/12/00, C.J., ano XXV, T. 5, pág.a 286).
“Motivo “sério”, na acepção que lhe é conferida maioritariamente, configura um estado de empenho, brio, dedicação relativamente a qualquer assunto ou situação da vida real e que transmite uma ideia de rigor e sentido de arrimo aos valores de probidade e honestidade com que aborda e assume uma tarefa que lhe conferida. Extrapolando deste conceito para o fundamento legal estabelecido no art.º 43.º do CPP poder-se-á dizer que existe motivo sério para que uma parte requeira a recusa de intervenção de um juiz quando este deixe de estar ornado com aqueles atributos de imparcialidade, rigor, isenção, probidade intelectual e cívica e sentido de justiça que devem exornar e vestir o julgador no seu munus jurisdicional. (...) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco da existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente «encarado com desconfiança», na expressão do pedido) e ser adequado a afectar (gerar desconfiança) sobre a imparcialidade” - cfr. Ac. RC 25/3/07, proc. n.º 134/07.0YRCBR.
“Os actos geradores de desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz hão-de ser de tal modo suspeitos que a generalidade da opinião pública sinta - fundadamente - que o juiz em causa (...) está tomado de preconceito relativamente à decisão final; enfim, de algum modo, antecipou o sentido do julgamento, já tomou partido. A gravidade e seriedade do motivo de que fala a lei - art.º 43º, n.º l do CPP - hão-de ser aferidas em função dos interesses colectivos, mormente do bom funcionamento das instituições em geral e da justiça em particular, não bastando que uma avaliação pessoal de quem quer que seja, nomeadamente do arguido, o leve a não confiar na actuação concreta do magistrado” cfr. Ac. STJ 25/10/01, proc. n.º 2452/01 - 5.a, http://www.cidadevirtual.pt/sti/iurisp/bol54crime.html.
Sobre essa mesma aferição, tenha-se em conta ainda o que se menciona no acórdão da Relação de Coimbra de 09/02/2011, no processo 19/11.6YRCBR, que para o efeito convoca a Doutrina do acórdão do STJ de 13/04/2005, no processo 05P1138):
“O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito. «A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de taI sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão».”
Em qualquer caso, somos em acompanhar a posição que julgamos maioritária no seio do Supremo Tribunal de Justiça, quando defende que a conclusão que se haverá de extrair nesta matéria tenha que revestir sempre alguma exigência.
Porquê?
Porque “só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção” (acórdão do STJ de 10/07/08, no processo n.º 08P2299).
É o que decorre não só da dupla qualificação do motivo exigido por Lei, como também por do uso indevido do respectivo instituto, poder “resultar a lesão do princípio constitucional do juiz natural, ao afastar o juiz por qualquer motivo fútil, devendo levar-se em conta que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário.”
III - 3.3.) Por relação ao primeiro motivo apresentado para a recusa, seja pela datação das gravações áudio oferecidas seja pela indicação feita constar pela Ex.a Sr.a Presidente desta Secção na sua douta decisão sobre o conflito de competência (concomitantemente originado), em como a Sr.a Juíza a quo aplicou as referidas medidas de coação já na fase de julgamento “e não teve qualquer intervenção em fase anterior, nomeadamente no inquérito como Juiz de Instrução”, haverá que concluir que as reclamadas leitura e validação de depoimentos que se têm por não legalmente conformes, só poderão ter tido lugar naquela sede aplicativa.
O julgamento ainda não se terá iniciado.
Mas se o problema se atém, à prolação de despachos “baseados em prova valorada de determinada forma que não cumpre o ritual legalmente exigível para a sua valoração”, nessa estrita dimensão, não estamos perante fundamento válido para a recusa.
Neste “não cabem as discordâncias jurídicas quanto a decisões de juízes, as quais devem ser impugnadas pelos meios próprios” - (cfr. acórdão desta Secção de 20/02/2018, no processo n.º 166/18.3 YRLSB).
No mesmo sentido, confira-se o acórdão da Rel. de Évora de 08/03/2018, no processo n.º 13/18.6YREVR (acessível em www.dgsi.pt/jtre):
I - No incidente de recusa de juiz não se aprecia a validade dos atos processuais em si mesma, nem a correção de determinados procedimentos adotados no processo pelo Juiz.
II - A lei prevê mecanismos processuais para impugnar as decisões reputadas de “erradas” ou ilegais, não sendo estas, objetivamente, motivo suficiente para fundamentar o pedido de recusa.
III - A não se entender assim, estaria aberto o caminho para, ao mínimo pretexto, como a prática de qualquer irregularidade ou nulidade processual, se contornar o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Sobrará sim, aquela outra incidência decorrente do acesso a essa mesma prova e ao eventual juízo de mérito que possa ser projetado no veredicto a extrair do julgamento, mas aí, não estaremos fora do mesmo tipo de preocupações gerais colocadas a propósito do mencionado despacho que a Senhora Juíza foi chamada a proferir.
III - 3.4.) Como já houve a oportunidade de referir, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, estatuía o art.º 40.º do Cód. Processo Penal, sob a epígrafe, “Impedimento por participação em processo” que:
‘'Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.'1'’
Evoluiu com a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, para passar a dispor que:
“1. Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200. º a 202. º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores;
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta”.
Interpõe-se a redação da Lei n.º 94/2021, de 21/12:
“Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.0 ou no n.º 1 do artigo 269.
Sendo que sob a égide da Lei n.º 13/2022, de 01/08 (na vigência da qual o despacho em causa foi proferido), se regressa à referência de que está impedido para intervir em julgamento o juiz que tiver aplicado medida de coação prevista nos art.ºs 200.º a 202.º CPP.
No caso presente, as medidas aplicadas, foram as de:
- Termo de identidade e residência, já prestado;
- Obrigação de apresentação semanal no OPC da sua área de residência;
- Proibição de se ausentar para o estrangeiro, o que implica a entrega à guarda do tribunal do passaporte que possuir e a comunicação às autoridades competentes, com vista à não concessão ou não renovação de passaporte e ao controlo das fronteiras.
Ora esta última compreende-se na al. b) do n.º 1, do primeiro dos normativos indicados.
Em todo o caso, não podemos deixar de consignar o que na apontada douta decisão proferida no conflito de competência originado nestes autos se deixou exarado:
“Comparando as redacções podemos afirmar que, tendo em conta as alterações que o art.º 40.º do C. Processo Penal tem sofrido desde a sua versão original, o legislador assumiu como critério, para definir as situações em que a imparcialidade do juiz, que já participou em fase anterior do processo, é objectivamente posta em causa, o do grau de intensidade da sua intervenção.
Assim, pode dizer-se que, em regra, o impedimento do art.º 40º, n.º 1 a), do C. Processo Penal, na actual redacção, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz de instrução que, na fase do inquérito ou da instrução, lhe aplicou medida de coacção prevista nos art.ºs 200º a 202º, do C. Processo Penal.
Como se pode ler no Acórdão do STJ de 10 de Março de 2010 no Processo 36/09.6GAGMR.G1-A.S1:
“O envolvimento do juiz no processo, através da sua directa intervenção enquanto julgador, através da tomada de decisões, o que sempre implica a formação de juízos e convicções, sendo susceptível de o condicionar em futuras decisões, assim afectando a sua imparcialidade objectiva, conduziu o legislador a impedi-lo de intervir nas situações em que a cumulação de funções processuais pode fazer suscitar no interessado, bem como na comunidade, apreensões e receios, objectivamente fundados.
Tendo em conta todas as causas de impedimento taxativamente previstas na lei (ais. a) a e) do art.º 40. º), certo é constituir elemento comum de todas elas a intervenção anterior do juiz do processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo
No caso, o processo encontra-se já em fase de julgamento, estando designada a data de 23 de Novembro de 2022, para o julgamento, e foi ao juiz a quem competirá julgar que, já na fase de julgamento, coube a função de proceder à apreciação da aplicação de medida de coacção, promovida pelo MºPº.
Na fase de julgamento, compete ao juiz, a quem o processo tiver sido distribuído, proceder à apreciação dos pedidos referentes a alteração de medidas de coacção e de reexame dos pressupostos das medidas de coacção aplicadas, nomeadamente dos enunciados nos art.ºs 200.º a 202.º CPP, como sucede neste processo com a proibição de condutas, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito - seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo as previstas nos artigos 200.º a 202.º - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.º do CPP, por não se reportar a uma intervenção em fase anterior do processo que justifique o impedimento.”
III - 3.5.) Em termos essenciais, nada haverá a objetar em relação à Doutrina expendida no acórdão da Relação de Évora de 14 de Março de 2018, no processo n.º 32/18.2YREVR, que ali será apontado:
“Na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.º do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito - seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo a prevista no artigo 200.º - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.º do CPP.”
Com efeito, na normalidade das situações, não é habitual que naquela fase do processo o Juiz tenha de as aplicar de forma originária.
Por via de regra, opera sim, como ali se refere, o seu reexame periódico, e em certos casos, repondera-as após a prolação da decisão final.
Pelo que se pode dizer que o impedimento em causa “em regra, (...) ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz que, nas fases preliminares do processo, lhe aplicou medida de coação prevista nos art.ºs 200.º a 202.º, do C. Processo”.
Sendo que o aludido art.º 40.º, al. a), de tal Diploma, segundo o nosso ponto de vista, não faz apelo a uma ideia distintiva de que essa aplicação tenha de ocorrer numa “fase processual” anterior, enquanto tal catalogada pela Lei adjectiva.
Bastar-se-á com a sua simples anterioridade no processo. Que assim funcionará de uma forma objectiva, como fundamento daquele impedimento.
Seja como for, não vemos que o Recorrente ponha em causa o que foi decidido naquela sede, que parece igualmente congregar a pacificidade dos demais intervenientes processuais, designadamente da M.m.a Juíza e do Ministério Público.
O seu inconformismo dirige-se a um outro domínio de condicionantes, totalmente distinto do que foi solucionado através da decisão do conflito.
Mais concretamente, a falta de condições daquela, para de forma exteriormente isenta, decidir do mérito da causa ou da culpabilidade do Arguido, em função do posicionamento por si assumido aquando da diligência aplicativa.
III - 3.6.) Por motivos que não conseguimos alcançar totalmente, mas a que poderá não ser alheio o processamento anterior dos autos em outra Jurisdição, é inequívoco que os factos considerados “fortemente indiciados” pela M.m.a Juíza no seu despacho, identificados como se reportando aos descritos de fls. 003011 a 003019, correspondem (como se pode alcançar pela sua junção agora operada), aos elencados na acusação pública proferida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.
E sobre os mesmos, terá recaído inclusive, despacho pronúncia nesse País.
O que torna duvidosa a necessidade daquela averiguação indiciária.
Em qualquer caso, a verdade é que, quando se passa da versão sintetizado do despacho daquele diligência que figura na ata, para a transcrição do que na altura foi ditado oralmente, resulta exuberante que a mesma procede a uma desenvolvida apreciação dos meios de prova que melhor vai elencando (depoimento de NAVM, RSS, MAPCD, JAGM, OAFM, AMCC, uma comunicação escrita do Arguido fls. 43 a 46, informações diversas, fotos, exame cadavérico, enfim um rol muito extenso de referências que se desenvolve e pontua ao longo de pelo menos cinco volumes).
Apenas excluiu os “mídias digitais” e os dados constantes em aparelhos celulares.
Ou seja, para além daquela especificação e concretização, a Senhora Juíza acompanha-a do respetivo exame crítico (“uma análise cuidada e lógica”), no sentido de fundamentar aquela afirmada forte indiciação dos factos, expressão que é retomada por mais do que uma vez.
Paradigmática desta circunstância é o seguinte trecho:
"Já referi todos os elementos de prova que me parecem relevantes e, e também já, já fiz ao longo a referência aos mesmos... a sua análise crítica e conjugada, lá está, daquilo que com ... que encontro aqui que se me afigura ser, me permita concluir que são ... ou entender e concluir depois regras da experiência e da lógica que me impõe de facto, a conclusão que (impercetível) ... a factualidade que está imputada ao Sr. Arguido ela está efetivamente fortemente indiciada
Sendo que a esse propósito não deixam de se emitir afirmações, tais como, “Tudo, tudo, tudo fortemente o indicia, explicações falsas que, obviamente, se destinaram a, a confundir o curso da identificação de modo a que visse afastada a responsabilidade da prática dos factos que sabia levado a cabo.
A única pessoa que a ela fez referência, tudo componente indiciante com falsidade para desviar as atenções da autoria dos factos foi o Sr. Arguido.
E existe a certeza, aliás a forte indiciação, não estamos na fase de julgamento, existe a forte indiciação de que o Sr. Arguido DDL, que se não tivesse necessidade, não teria feito. Inventou uma história que se verificou não corresponder à verdade.
leva à conclusão efectivamente no sentido da forte indiciação destes factos, tendo como seu autor o arguido DDL. ... E no mesmo sentido vai o relatório final; vamos lá ver, este relatório final, um relatório de informação não são provas, o que fazem é uma análise da prova que efectivamente se mostra razoável e em concordância com a mesma ... mesmo despojando-a de todas as referências a aparelhos celulares ... celulares - telemóveis, ou ... ou imagens recolhidas na comunicação social, de media,
A falsidade do Sr. Arguido declarou com tudo o mais, de facto não permitem, não permitem concluir outra coisa senão neste momento, porque é neste momento que estamos, não é no julgamento, o seu reconhecimento da indiciação da prática dos factos do Sr. Arguido.
mas bom nessa parte venha a decisão, eu prevejo que a decisão seja uma condenação pelas razões que referi, mas seja a decisão qual for, entendo que efectivamente que esta é a medida adequada, estas medidas revelam-se adequadas, proporcionais, à assunção previsível do que resultará a condenação pela prática do crime aqui em causa, são legais e são aquelas que se mostram suficientes para fazerem face aos perigos em causa.
Se não existisse o interesse por parte do Sr. Arguido em afastar de si uma responsabilidade que sabia ter, nenhuma necessidade teria tido o Sr. Arguido de criar um documento com este teor com falsidades, procurando imputar o último contacto com a Sr. a D. R. a uma pessoa que sabe que nunca existir.
Como é sabido, o verdadeiro critério material seguido pelo Tribunal Constitucional nesta matéria, passa pela distinção entre intervenções que pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência e intervenções pontuais ou isoladas.
Ora num contexto como o presente, em que a Senhora Juíza, a propósito da aplicação de uma medida coativa, num tempo muito próximo do julgamento agendado, acaba por operar uma leitura crítica da indiciação dos factos a apreciar, por referência a uma prova que basicamente será também a produzir naquela sede, e de para a fundamentar, ter sentido a necessidade de no respetivo processo argumentativo de se socorrer de frases como as acima transcritas, então somos em entender que a recusa será de conceder.
Neste contexto, difícil será não considerar que a sua participação no julgamento, nessas condições, é suscetível de poder gerar dúvidas seja no Arguido, seja nos demais intervenientes processuais, seja ainda na comunidade, sobre a sua imparcialidade externa.
No fundo, a sua leitura sobre o mérito de uma parte relevante da matéria da causa está já adiantada, bem como a sua eventual posição sobre a mesma.
A imparcialidade interna, obviamente, não está em causa.
Pelo que se deferirá a recusa peticionada.
Assim
IV - Decisão:
Nos termos e com os fundamentos indicados, acorda-se pois nesta 5.a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder na recusa aposta à Meritíssima Juíza Dr.a … para intervir nos presentes autos, designadamente, no seu julgamento.
Informe-se, desde já a Senhora Juíza visada através de confidencial.
Elaborado em computador.
Revisto pelo relator o 1º signatário

Lisboa, 10 de Janeiro de 2023
Luís Gominho
Jorge Gonçalves (com a declaração que anexo)
Maria José Machado


Voto a favor da decisão, com a seguinte declaração:
A questão aqui em causa é distinta da que foi apreciada pela Ex.ma Sr.ª Presidente da Secção na sua decisão sobre o conflito de competência.
Como é sustentado no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, p. 472, o que está em causa no artigo 40.º, do C.P.P., é a garantia de que não há riscos de pré-juízos decorrentes de actividades judicantes praticadas no decurso de um processo, que previnam por isso o juiz e o condicionem ou possam condicionar na sua actividade final, pois o racionalidade subjacente à apreciação da prova em julgamento exige que esta não seja prejudicada pela valoração sobre o mérito da imputação e sobre a culpabilidade do arguido expressa na fase (ou em fase) anterior àquela na qual o juízo é efectuado.
Nas alíneas a), b) e e) do artigo 40.º estão em causa actos da competência do juiz de instrução, praticados na fase de inquérito, na fase de instrução ou, eventualmente, em processo especial.
Nas alíneas c) e d) está em causa a participação do juiz como juiz de julgamento, quer em julgamento anterior, quer em decisão de recurso anterior. Quer isto dizer que constitui elemento comum de todas elas a intervenção anterior do juiz no processo, ou antes, a intervenção em fase anterior do processo, o que resulta, também, da análise conjunta dos artigos 40.º e 43.º, n.ºs 2, posto que neste último se alude expressamente à intervenção do juiz em fases anteriores do mesmo processo fora do artigo 40º (cfr. acórdãos do S.T.J., de 10/03/2010, proc. 36/09.6GAGMR-A.S1, e de 02/12/2021, proc. 4/21.0GAADV-S1; Decisões do Presidente da Secção Criminal da R. de Évora, de 14/03/2018, proc. 32/18.2JREVR, e de 09/03/2020, proc. 54/19.6GESLV-A.E1, in www.dgsi.pt).
Na fase de julgamento, compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.9 do C.P.P., sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito - seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coacção, incluindo a prevista no artigo 200.2 - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.º do C.P.P.
Inclusivamente, inclino-me no sentido de que o juiz de julgamento pode aplicar, pela primeira vez, uma das medidas de coação previstas pelos artigos 200.2 a 202.2 (v.g., proibindo o arguido de manter qualquer contacto com as testemunhas da acusação arroladas para o julgamento, depois de conhecidas pressões e ameaças por ele exercidas sobre testemunhas do processo já na pendência da audiência de discussão e julgamento), sem por isso ficar impedido de intervir no julgamento [cfr., neste sentido Figueiredo Dias e Nuno Brandão, em texto de apoio sobre o tema "Sujeitos Processuais Penais - O Tribunal", p. 20 - Texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016)].
Em qualquer desses casos, o juiz de julgamento não emite qualquer juízo sobre os indícios no que respeita à eventual sujeição do arguido a julgamento, pois tal juízo coube ao Ministério Público ao deduzir acusação, ou ao juiz de instrução ao proferir despacho de pronúncia.
Não cabendo ao juiz de julgamento a formulação de um juízo prévio sobre a indiciação dos factos que constituem o objecto do processo e a culpabilidade do arguido, a sua decisão sobre medidas de coacção - seja de aplicação, de manutenção, revogação ou de substituição - não pode ter por base qualquer valoração de indícios - nomeadamente no caso de medidas de coacção condicionadas à demonstração de "fortes indícios" -, mas tão-somente as exigências cautelares, tendo em vista os perigos previstos no artigo 204.2 do C.P.P.
Discordo, por conseguinte, da afirmação contida no acórdão de que, para o impedimento previsto no artigo 40.º al. a), basta a simples anterioridade no processo, que assim funcionará, de uma forma objectiva, como fundamento daquele impedimento.
Porém, o caso em apreço oferece a particularidade da intervenção da Mm.ª Juíza ocorrer na fase de julgamento, mas no âmbito da cooperação penal internacional, na forma de transmissão de um processo penal iniciado num Estado estrangeiro.
Ora, na sua intervenção processual, a Mmª Juíza procedeu a uma desenvolvida apreciação dos meios de prova que melhor elenca, fazendo o respectivo exame crítico, no sentido de fundamentar a forte indiciação dos factos, o que consubstancia a formulação de um juízo prévio sobre os factos que constituem o objecto do processo - que, em condições normais, estaria vedado ao juiz de julgamento antes de proceder à realização do mesmo.
Razão por que não posso deixar de subscrever a decisão contida no acórdão, no sentido de concedera recusa.
Lisboa, 10/01/2023
Jorge Gonçalves