Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1063/14.7IDLSB.L1-5
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PESSOA COLECTIVA
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: Estando em causa a prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105.º do RGIT (Lei n.º 15/2001, de 15/06), que é imputado à sociedade da qual os arguidos são sócios e a estes enquanto sócios por, alegadamente, todos eles controlarem a gestão de facto da sociedade, trata-se da punição de uma omissão, a não entrega dolosa da prestação tributária recebida num determinado prazo.

Responsável pela prática do crime é a sociedade (artigo 7.º do RGIT), o que não exclui a responsabilidade individual (n.º 3 do mesmo preceito), no caso, a responsabilidade dos titulares de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva (artigo 6.º, n.º 1).

A única pessoa singular responsabilizável, porque é a única gerente, é, portanto, o arguido, sócio e gerente de 2010 a 2015, abrangendo, portanto, o período em causa (2012 a 2014), em que a prestação tributária recebida pela sociedade não foi paga à Autoridade Tributária.

O facto de, eventualmente, existir um crédito do IVA das rendas não obsta à consumação do crime e à condenação da sociedade arguida e do seu gerente, o arguido HB, porque o que importa, para o efeito, é o valor constante das declarações entregues.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRelatório:


1.No processo comum, com intervenção de tribunal singular n.º 1063/14.7IDLSB, do Juízo Local Criminal de Oeiras, em que é arguida S.LDA e outros, todos identificados nos autos, foi proferida sentença, a 6 de Julho de 2020, na qual o tribunal decidiu: (transcrição)

«Pelo exposto e decidindo, julga-se a acusação deduzida procedente por provada e, consequentemente CONDENA-SE:
A)- A arguida S. LDA. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 7. ° e 105. ° n.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30. ° n.º 2 do Código Penal, NA PENA DE 45 (QUARENTA E CINCO) DIAS DE MULTA À RAZÃO DIÁRIA DE 5€ (CINCO EUROS), O QUE PERFAZ UM TOTAL DE 225€ (DUZENTOS E VINTE E CINCO EUROS);
B)- O arguido HB, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 105. ° n.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30. ° n.º 2 do Código Penal, NA PENA DE 45 (QUARENTA E CINCO) DIAS DE MULTA À RAZÃO DIÁRIA DE 5€ (CINCO EUROS), O QUE PERFAZ UM TOTAL DE 225€ (DUZENTOS E VINTE E CINCO EUROS).
C)- O arguido JM, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 105. ° n.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30. ° n.º 2 do Código Penal NA PENA DE 45 (QUARENTA E CINCO) DIAS DE MULTA À RAZÃO DIÁRIA DE 10€ (DEZ EUROS), O QUE PERFAZ UM TOTAL DE 450€ (QUATROCENTOS E CINQUENTA EUROS).
D)- O arguido IR, como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 105. ° n.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30. ° n.º 2 do Código Penal, NA PENA DE 45 (QUARENTA E CINCO) DIAS DE MULTA À RAZÃO DIÁRIA DE 6€ (SEIS EUROS), O QUE PERFAZ UM TOTAL DE 270€ (DUZENTOS E SETENTA EUROS).

2.Os arguidos HB, JM e IR [1] interpuseram recurso dessa decisão, terminando a respectiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

I.-Os Recorrentes foram condenados com pena de multa, pela prática de um crime de Abuso de Confiança Fiscal, na forma continuada, p.p. pelo Art.° 105°, n.° 1 e 2, do RGIT, aprovado pela Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho e pelo Art.° n,° 30° n.° 2 do Código Penal (CP);
II.-Em sede de julgamento foram ouvidas todas as testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa;
III.-Perante a factualidade provada e face à motivação da douta decisão recorrida e à sua fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica, verifica-se que na mesma não foi feita criteriosa ponderação das circunstâncias provadas e não provadas, concluindo-se, mal, que os Recorrentes foram gerentes de facto da sociedade no período em causa;
IV.-Em consequência foram os Recorrentes condenados pela prática do crime de que foram acusados;
V.-A decisão sobre a matéria de facto provada e não provada está indevidamente motivada, denotando de acordo com o texto da decisão recorrida, contradição entre os factos provados e não provados e entre estes e a respectiva justificação probatória;
VI.-Os Recorrentes não praticaram na sociedade qualquer acto material no qual se consubstancia a gerência de facto, quer fosse na data da consumação dos ilícitos criminais que lhe eram imputados, quer fosse em qualquer outro período;
VII.-Neste caso, não podiam os Recorrentes ser responsabilizados pelos factos de que foram acusados;
VIII.-Nenhuma prova foi produzida que permita concluir que os Recorrentes tivessem intervenção pessoal na decisão de não pagar ao Estado os impostos em causa;
IX.-Nada foi apurado quanto à conduta dos Recorrentes no sentido de terem, efectivamente, poder de decisão na gestão da sociedade arguida;
X.-Existe uma completa ausência de prova sobre a prática dos factos que são imputados aos Recorrentes e na base dos quais foram condenados;
XI.-A prova produzida não contém qualquer referência, nem permite qualquer ilação, quanto ao comportamento dos Recorrentes relativamente à decisão de a sociedade não pagar os impostos em dívida;
XII.-Os ora Recorrentes foram condenados, apenas, com base numa presunção judicial;
XIII.-A jurisprudência tem vindo a entender que não se pode concluir, perante o facto de alguém figurar no registo como gerente de uma sociedade, que esse alguém exerce, de facto, essas funções de gerência;
XIV.-A sentença recorrida ofende os princípios basilares do nosso processo penal, pelo que se impõe a sua revogação e consequente absolvição dos Recorrentes;
XV.-Foi violado todo um extenso rol de normas, nomeadamente o Art.° 32° n° 2 do CRP, o Art.° 26°, o n.° 2 do Art.° 40°, ambos do CP e o Art.° 127° do CPP."

3.O Ministério Público respondeu ao recurso, pedindo a sua improcedência, nos termos constantes de fls. 1261 a 1279, tendo finalizado a sua resposta com as seguintes conclusões: (transcrição)

I- O recurso interposto pelos arguidos deverá ser rejeitado na parte de impugnação da matéria de facto, [artigo 410°, n.º 1, alínea a), e artigo 417o, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal] por falta de especificação [artigo 431°, alínea b), e artigo 412°, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal], não sendo, in casu, admissível o convite ao aperfeiçoamento [artigo 417°, n° 3, do Código de Processo Penal];
II- Da concatenação, desde logo e essencialmente, das declarações do arguido JM, e dos depoimentos de BP e de MS, resulta que os arguidos intervinham na gestão da sociedade, muito concretamente nos assuntos fiscais relativos à mesma, e que aquele e RC tinham, não obstante, larga autonomia relativamente aos assuntos quotidianos da sociedade que se confundiam em certa medida com a actividade normal do estabelecimento comercial explorado por aquela, concretamente no que diz respeito aos pagamentos aos fornecedores.
III- Nenhuma contradição existe entre factos provados e não provados e entre estes e a fundamentação. A separação de funções entre sócios e funcionários dentro da sociedade/estabelecimento comercial decorreu evidente da prova produzida em audiência sendo claro que os arguidos assumiam as responsabilidades ao nível das obrigações fiscais da sociedade (v.g. aquela objecto dos presentes autos) de negociação de outras dívidas(como a que haveria mensalmente com o dono do imóvel), e contacto com clientes institucionais (angariados por JM), tudo conforme resulta patente das declarações das testemunhas MS, BP, e do arguido JM.
IV- Nenhum dos factos dados como provados na sentença contraria a lógica ou as regas da experiência comum, como também não contraria tais regras o percurso lógico-dedutivo percorrido pelo tribunal recorrido na análise e fundamentação da prova a que procedeu.
V- Inexiste também qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, porquanto todos os factos trazidos ao processo eram suficientes para a verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime. Os arguidos poderão não concordar com a conclusão do tribunal sobre a factualidade atinente ao alegado crédito tributário, de resto reconhecido na sentença, mas não podem afirmar que a mesma era insuficiente para uma decisão do tribunal. De resto, a questão de facto em causa tem sede própria na jurisdição administrativa e fiscal, e não a penal, e aí foi devidamente analisada conforme consta nos autos, limitando-se o tribunal recorrido a trabalhar com as conclusões da administração fiscal sobre o tal crédito. Assim, e se não lhes foi admitida a dedução daquele montante de IVA, não lhes restaria senão proceder ao pagamento da quantia apurada pela Autoridade Tributária, e que os mesmos optaram por não pagar. De resto, tão pouco aquele crédito faria baixar a dívida abaixo dos € 7.500,00 enquanto condição objetiva de punibilidade.
VI- A distinção entre gerente de facto e gerente de direito é relevante naquelas situações, muito frequentes, de alguém que, pretendendo fugir a outras responsabilidades, nomeadamente fiscais, civis, ou outras, controla o funcionamento de uma sociedade através de uma terceira pessoa que consta na “documentação oficial” daquela - como seja o pacto social - como gerente, e por vezes até como sócio, (gerente de direito, vulgo “testa de ferro”), sendo que na realidade quem dá as ordens e controla a actividade de todo o negócio é o verdadeiro dono do negócio e real gerente (gerente de facto). Tal distinção não é aplicável aos casos em que o dono (ou donos) do negócio está perfeitamente identificado e contrata ele próprio um funcionário (in casu, primeiro, BP, e depois RC) para assumir o trabalho administrativo quotidiano daquela, ainda que coadjuvado por outros funcionários.
VIII- O conteúdo das funções de um gerente de uma sociedade pode ser maior ou menor consoante as suas próprias opções de gestão, delegando um maior ou menor número de funções. Assim, da mera circunstância de um funcionário concentrar em si, por opção do ou dos donos do negócio, in casu, dos arguidos, grande parte da actividade quotidiana de uma empresa, v.g. assegurando os atos materiais de pagamento e recebimento, não transforma o funcionário em gerente da sociedade, nem afasta aqueles da gerência de facto da sociedade. Menos ainda, como no caso dos autos, quando é evidente que pelo menos as questões tributárias, dívidas a credores, e contratação de grandes clientes para utilização do espaço estava a cargo dos aqui arguidos, precisamente porque eram matérias que fugiam ao quotidiano da sociedade, e bem assim do estabelecimento comercial por aqueles explorado através da sociedade arguida.
IX- Contrariamente ao alegado pelos arguidos, em momento algum da sentença o tribunal se socorreu de quaisquer presunções ou suposições decorrentes da qualidade de sócios e ou gerente nomeado no pacto social para condenar os arguidos, assentando a condenação aplicada nos autos exclusivamente na prova produzida em audiência e nas regras da lógica e experiência comum.
X- Os arguidos foram, e bem - talvez até com benevolência - condenados estritamente com base na prova produzida em audiência, a cuja análise o tribunal recorrido procedeu de forma exaustiva e pormenorizada.
XI-Não enferma a sentença, pois, de qualquer vício, seja ao nível da decisão da matéria de facto, seja ao nível da matéria de direito.

4.–Neste Tribunal da Relação, após vista ao Ministério Público procedeu-se a exame preliminar no qual se determinou a remessa dos autos à conferência, após vistos legais, a fim de o recurso aí ser decidido, nos termos do n.º 3, al. c) do art.º 419º do Código de Processo Penal, doravante designado C.P.P., o que cumpre agora fazer.

II–Fundamentação.

1.- Do objecto do recurso

Nos termos do nº1 do art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P. a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
É pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, o âmbito dos recursos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, que condensam a razão da sua impugnação, importa apreciar se existe erro de julgamento na apreciação da matéria de facto provada sob os pontos 3 a 9 e 13 e se a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável entre os factos provados e os não provados e entre estes e a fundamentação probatória. A alegada insuficiência da matéria de facto, apesar de referida em sede do corpo da motivação, não foi transcrita para as conclusões e por isso não conheceremos da mesma.

2.–Fundamentação
 
2.1.-O Tribunal recorrido deu como provada e não provada a seguinte factualidade: (transcrição)

«FACTOS PROVADOS

1.A arguida S. LDA. é uma sociedade comercial por quotas com o NIPC 5.......1, com sede na Av. …, A..., concelho de O..., e que exerce atividade de restaurantes com espaço de dança, atividades hoteleiras, eventos e agenciamentos de artistas.
2.No exercício da sua atividade, a arguida S.LDA. encontrava-se coletada em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e encontrava-se enquadrada no regime de tributação normal de periodicidade mensal e de periodicidade trimestral de imposto sobre o valor acrescentado (IVA).
3.O arguido HB exerceu funções de gerente da sociedade desde 16/11/2010, data da sua constituição, até 10/04/2015, data em que renunciou à gerência.
4.Os arguidos JM e IR exercem igualmente funções de gerência desde, pelo menos, janeiro de 2012 e 7 de novembro de 2012, respetivamente, e, juntamente com o arguido HB, atuam, desde então, em nome, representação e no interesse da sociedade arguida, tomando quanto à mesma as decisões relativas ao seu regular funcionamento, designadamente, quando confrontados com as dificuldades financeiras que atravessava e a impossibilitava de proceder ao pagamento a todos os seus credores, optando por priorizar uns em detrimento de outros por forma a manter a sociedade arguida em funcionamento.
5.Nessa qualidade, os arguidos HB, JM e IR  estavam obrigados, entre o mais, a enviar mensalmente (ano de 2013) e trimestralmente (anos de 2012 e 2014) aos serviços da Administração Fiscal uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do mês precedente e do trimestre precedente, designadamente com indicação do IVA devido ou do crédito existente quanto ao mesmo e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo, a qual se destinava ao controle da matéria coletável e do apuramento do imposto por parte da Administração Fiscal.
6.Simultaneamente com a declaração referida, os arguidos estavam obrigados a proceder à entrega, junto da mesma entidade, do montante de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) devido.
7.Nos anos de 2012, 2013 e 2014, os arguidos HB, JM e IR, na qualidade de sócios e gerentes de facto da sociedade arguida, liquidaram e receberam dos respetivos clientes, o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) relativo a serviços prestados aos mesmos, e procederam ao preenchimento e ao envio à Administração Fiscal das respetivas declarações mensais.

8.Porém, não remeteram à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), com referência aos seguintes meses e valores:
- janeiro a março de 2012, no valor de 12.367,51€;
- abril de 2013, no valor de 14.197,04€;
- maio de 2013, no valor de 11.901,20€;
- junho de 2013, no valor de 10.199,57€;
- julho de 2013, no valor de 10.282,57€;
outubro de 2013, no valor de 13.308,70€;
- dezembro de 2013, no valor de 9.328,05€;
- janeiro a março de 2014, no valor de 29.845,75€;
o que perfaz o montante total de 111.430,39€.

9.Não obstante a sociedade arguida e os arguidos HB, JM e IR terem sido notificados para procederem ao pagamento da quantia em dívida, não o fizeram até ao termo do prazo para o cumprimento da referida obrigação, nem nos 90 dias posteriores ao termo daquele, nem nos 30 dias seguintes à notificação para tal fim.
10.Ao atuar da forma descrita, os arguidos HB, JM e IR sabiam que, nos termos das normas que regulam o imposto sobre o valor acrescentado (IVA), lhes competia na qualidade de representantes legais da sociedade arguida, liquidar e reter os aludidos impostos, encontrando-se esta legalmente obrigada a declará-lo e a entregá-lo nos cofres do Estado Português, por ao mesmo pertencer o montante respetivo.
11.Apesar disso, quiseram os arguidos HB, JM e IR  integrar os montantes dos impostos supra indicados no património da pessoa coletiva que representavam, despendendo-os e utilizando-os em benefício daquela, embora soubessem que a sua posição era a de assegurar, enquanto mero depositário, a detenção desses valores, para ulterior entrega à Administração Fiscal.
12.Igualmente sabiam os arguidos HB, JM e IR  que a pessoa coletiva que representam, ao não efetuar a entrega do montante alusivo a imposto sobre o valor acrescentado (IVA) nos termos acima enunciados, atuava sem autorização e contra a vontade do Estado Português, entidade a quem pertencia aquela quantia pecuniária, e à qual causava um prejuízo patrimonial equivalente à mesma.
13.Os arguidos HB, JM e IR agiram sempre em nome e no interesse da sociedade arguida, na convicção de que a sua atuação estava a ser bem-sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levou a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido, na tentativa de manter o estabelecimento que a sociedade explorava aberto, dando para tanto prioridade do pagamento dos vencimentos dos seus colaboradores e às dívidas para com os seus fornecedores, na expetativa de se verificar uma melhoria da situação financeira da arguida que lhe permitisse saldar as suas dívidas perante a AT.
14.Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, por conta e no interesse da sociedade arguida, conhecendo o carácter proibido e punido por lei das suas condutas.
15.Na declaração periódica referente ao 4. ° trimestre de 2014 entregue pela sociedade arguida foi apurado um crédito de imposto no montante de 61.876,63€, tendo optado por reportar o excesso para o período seguinte ao preencher o campo 96 da declaração, razão pela qual não recebeu o seu reembolso.
16.Desde então e pelo menos até julho de 2017, data da última declaração entregue, a sociedade arguida não solicitou o reembolso, tendo sempre reportado o excesso apurado para o período seguinte.
17.Os arguidos celebraram com a AT vários acordos de pagamento prestacional antes de 2014, os quais não lograram cumprir.
18.A sociedade arguida encerrou a sua atividade em 2015, estando atualmente insolvente (em fase de liquidação).
19.Do certificado de registo criminal da sociedade arguida nada consta.
20.O arguido HB é DJ auferindo mensalmente cerca de 1.000€ antes da declaração de Estado de Emergência e posterior Estado de Calamidade atenta a pandemia que nos assola, não tendo atualmente quaisquer rendimentos.
21.Vive com o pai em casa deste.
22.Tem como despesa fixa mensal o colégio do filho no montante de 540€, sendo o seu pai que o ajuda, neste momento, a pagar.
23.Tem o 12. ° ano e frequência universitária.
24.Foi condenado nos autos de processo abreviado n.º 532/16.9GDLLE que correram os seus termos no Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Loulé do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, por factos praticados a 30 de julho de 2016 e sentença transitada em julgado a 24 de maio de 2018, pela prática de um crime de usurpação de direitos de autor, na pena de 160 dias de multa à razão diária de 5,50€ e ainda na pena de 2 meses de prisão, substituída por 50 dias de multa à razão diária de 5,50€.
25.O arguido JM  é empresário auferindo mensalmente 1.600€.
26.Reside com a mulher e os filhos de 19, 10 e 8 anos numa casa de família.
27.Tem cerca de 900€ de despesas fixas mensais com o seu agregado familiar.
28. Tem o 12. ° ano de escolaridade.
29. Do seu certificado de registo criminal nada consta.
30. O arguido IR é empresário auferindo mensalmente cerca de 600€.
31. Reside sozinho em casa própria.
32. Tem como despesas fixas mensais as despesas correntes.
33. Tem o 12. ° ano de escolaridade.
34. Do seu certificado de registo criminal nada consta.

FACTOS NÃO PROVADOS

Nada mais se provou com relevância para a decisão da causa e designadamente que os arguidos celebravam contratos com fornecedores e clientes e efetuavam pagamentos e recebimentos.

2.2.- O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção quanto aos factos da seguinte forma: (transcrição)

«No apuramento da factualidade provada o Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica e global de toda a prova produzida, designadamente, nas declarações do arguido JM, nos depoimentos das testemunhas inquiridas e a prova documental junta aos autos.
Assim e concretizando, os pontos 1. e 2. da factualidade dada como provada resultou da análise da certidão permanente da sociedade arguida junta aos autos a fls. 674 a 678, das declarações de IVA remetidas à AT e juntas a fls. 68 a 116 e 246 a 257 e, bem assim, das declarações do arguido JM que explicitou qual a atividade exercida pela arguida, conjugada com o depoimento da testemunha CM, inspetora tributária instrutora do inquérito que deu origem aos presentes autos.
No que respeita aos pontos 3. a 9., resultaram os mesmos provados da conjugação de toda a prova produzida com as regras da experiência comum de acordo com as quais, ainda que tenham contratado uma pessoa para gerir a discoteca explorada pela sociedade arguida, a qual estava encarregue de assegurar, conjuntamente com BP, o regular funcionamento da mesma, não se afigurar verosímil que essa pessoa, indicada pelo arguido JM como sendo RC, o que foi confirmado pelas demais testemunhas que trabalharam para a sociedade arguida, tivesse autonomia para optar pelo pagamento outras despesas da sociedade arguida em detrimento das suas obrigações fiscais, designadamente com as entregas periódicas do IVA.

Senão vejamos.

Decorreu da prova produzida, mais concretamente das declarações do arguido JM  o seu conhecimento de que não estava a ser entregue à AT o IVA devido, ainda tenha referido que não tiveram noção disse desde o início de tal situação, mas apenas posteriormente.

Segundo este arguido estavam na expectativa de conseguirem resolver tal situação com alguns recebimentos que tinham pendentes e que seriam feitos a qualquer momento.

Tendo este arguido falado no plural e não tendo os demais arguidos prestado declarações, não se pode deixar de concluir que tiveram todos conhecimento da situação deficitária da sociedade arguida e da consequente não entrega à AT do IVA àquela devido.

E ainda que este arguido tenha alegado só ter tido noção deste incumprimento algum tempo depois do mesmo se estar já a verificar, não se nos afigura credível que assim fosse pois ainda que a pessoa que contrataram alegadamente como «gerente da sociedade», RC, tivesse autonomia para tomar decisões respeitantes à gestão diária da discoteca e fizesse a ponte este a atividade desenvolvida pela mesma e a contabilidade, tal não implica que lhe tivesse sido igualmente dada total autonomia no que respeita à gestão da sociedade arguida propriamente dita e mais concretamente no que respeita a decisões que afetariam não só a sua viabilidade económica mas também a eventual responsabilização dos seus órgãos societários.

É certo que ainda segundo este arguido contrataram BP que exercia as funções de gerente comercial (encarregue pelo funcionamento do estabelecimento), RC como responsável por toda a gestão da empresa e ainda JM responsável pelo pagamento ao staff de acordo com as indicações dadas por BP sendo RC e JM os responsáveis pelo envio da documentação necessária para a contabilidade, admitiu que BP e RC reportavam aos três sócios.

Assim, ainda segundo este arguido estes «gerentes» tivessem autonomia para tomarem todas as decisões que se enquadrassem dentro do «padrão do negócio», não se noa afigura que a não entrega dos tributos devidos ao Estado se enquadre no «padrão do negócio» em causa.

Da prova produzida resultou assim inequívoco que os arguidos, enquanto sócios da sociedade arguida, não se limitaram a contratar um «gerente» e, conferindo ao mesmo plenos poderes, deixando de ter contacto com a mesma recebendo apenas daí os dividendos que lhes eram devidos, desde logo porque não o nomearam gerente de direito, dando-lhe poderes de representação legal da sociedade nem emitiram em nome do mesmo qualquer procuração que que o mandatasse e assim o habilitasse a resolver todas as questões da sociedade arguida com que se deparasse (tal só veio a suceder muito posteriormente, em 2015, numa altura em que a sociedade arguida já teria encerrado a sua atividade ou estaria prestes a fazê-lo).

Pelo contrário, resultou da prova produzida que os arguidos tinham não só uma presença assídua na discoteca (ainda que tenha variado, de acordo com as várias testemunhas inquiridas, a frequência com que compareciam), como desempenhavam na mesma funções específicas: o arguido HB passava música, o arguido JM contratava com os clientes importantes os eventos a realizar no espaço e o arguido IR tratava da área da comunicação da discoteca e sua divulgação nas redes sociais (cf. depoimento das testemunhas BP e VH e AC), tendo decorrido de forma unânime dos depoimentos das testemunhas que trabalharam na discoteca serem os três arguidos os «donos» do espaço e, como tal, os «patrões», ainda que no dia-a-dia reportassem perante a testemunha BP e o mencionado RC .

Acresce que, também no que respeita à movimentação das contas bancárias, do que resulta dos elementos juntos por ofício remetido pelo Banco Santander a 21.02.2020, duma das contas consta apenas a assinatura do arguido HB e da outra constam como procuradores os arguido HB e JM  pelo que sempre estes arguidos teriam o controlo dos pagamentos efetuados através das mesmas, não tendo sido alegado que tivessem sido fornecidos ao «gerente» RC os acessos ao Homebanking.

Aliás, foi referido pela testemunha VH, a qual trabalhou como administrativa para a sociedade arguida entre inicio de 2013 e o inicio de 2014, que RC tinha em sua posse cheques assinados (que depreendia terem sido assinados pelos sócios) e, ainda que quando questionada tenha referido não se ter apercebido de quem era a assinatura aposta nos mesmos, a verdade é que não tendo RC autorização no banco para movimentar as contas da sociedade arguida, tais cheques só poderiam estar assinados ou pelo arguido JM  ou pelo arguido HB.

Ora, se eram estes arguidos os responsáveis pela assinatura dos cheques necessários para a concretização dos pagamentos das quantias devidas pela sociedade arguida, não podiam os mesmos não ter conhecimento que não estavam a ser emitidos e entregues os cheques para entrega das quantias devidas pela sociedade a título de IVA, sedimentando, também esta situação, a convicção do tribunal de que não só não desconheciam tal situação como tinham domínio de facto sobre a mesma, tendo poder para decidir e dar instruções no sentido de ser dada prioridade aos pagamentos à AT sobre os demais pagamentos devidos pela sociedade arguida e não foi isso que se verificou já que a opção passou pelo pagamento dos vencimentos a trabalhadores e aos fornecedores que permitisse a manutenção em funcionamento da discoteca.

E o mesmo se diga em relação ao arguido IR, pois, não se olvidando o depoimento da testemunha IRA, seu pai, segundo o qual o arguido, seu filho, não tinha conhecimento da situação deficitária da sociedade arguida, tendo ficado muito assustado quando lhe deu conhecimento da mesma, mais referindo esta testemunha que apesar dos problemas que já existiam os mesmos não seriam igualmente do conhecimento dos demais sócios pois aquando da entrada do seu filho como sócio não lhe foram mencionados, a verdade é que tal depoimento não nos mereceu credibilidade pois além de passar um atestado de menoridade a este arguido (aliás, a este e aos demais), o qual apesar de tudo já tinha 25 anos aquando da aquisição da quota na sociedade, referiu uma série de condições que impôs para a sua entrada (designadamente não ser avalista da sociedade, não ser seu legal representante, não constar a sua assinatura do banco) as quais são indiciadores do conhecimento da sua situação já à data deficitária pretendendo, dessa forma, salvaguardar o seu filho.
Acresce que, segundo esta testemunha, num dos eventos organizados na discoteca para o qual foi convidado, foi abordado pelo «gerente», RC, o qual lhe relatou, muito preocupado, as dificuldades financeiras da sociedade arguida e os incumprimentos das suas obrigações tributárias.
Ora, não sendo esta testemunha sócio da sociedade em causa, mal se compreenderia que o «gerente» da mesma o abordasse alertando para tal situação sem que antes o tivesse feito em relação aos sócios da sociedade arguida que o haviam contratado para as funções que desempenhava.
Na verdade, afigura-se bem mais verisímil, por consentâneo das regras da experiência comum, que se tal contacto se verificou, foi já numa atitude desesperada de obter alguma solução para o problema depois de já ter apelado exaustivamente junto dos sócios e não ter obtido resposta satisfatória.
A acrescer à incongruências atrás vertidas, de referir que, segundo o arguido JM, RC quis em 2014 assumir os problemas por si causados e por isso passou a constar como gerente de direito da sociedade arguida, sendo que para o final as coisas correram mal devido aos problemas pessoais do mesmo.
Sucede que, ainda que decorra de facto da certidão permanente da sociedade que RC foi, de facto, a dada altura, nomeado gerente da sociedade arguida, não se pode deixar de constatar que tal só se verificou em maio de 2015, uma altura em que a sociedade arguida já teria encerrado a sua atividade ou estaria prestes a fazê-lo.
Assim, conjugando tal facto com a impossibilidade posteriormente verificada deste ser ouvido nos presentes autos (por problemas psiquiátricos) não se pode deixar de estranhar que a pessoa que melhor poderia esclarecer os moldes de gestão a sociedade arguida tenha, convenientemente, ficado entretanto impossibilitada de o fazer.
Aliás, não se pode deixar ainda de frisar a estranheza que não pode deixar de causar o facto da testemunha JC, relações públicas da sociedade arguida entre 2010 e 2013 não ter conhecido o mencionado RC, pensando que seria alguém do passado, tendo esclarecido ter acordado os seus honorários com BP e receber de JM.
Temos, pois, que existem dúvidas que o arguido HB era gerente não só de direito mas também de facto da sociedade arguida e que ainda os arguidos JM e IR  não fossem gerentes de direito da sociedade arguida o eram de facto uma vez que não se pode deixar de concluir que tinham o domínio e a capacidade efetiva de administração da sociedade comercial sendo eles os detentores do poder de optar pelo incumprimento da obrigação tributária.
Resultou inclusivamente do depoimento da testemunha MS, contabilista certificada da sociedade arguida de 2012 a 2014, que assim que se apercebeu do incumprimento da obrigação de entrega de IVA alertou para tal situação remetendo email para o email geral da sociedade arguida, para onde remetia igualmente as guias de pagamento dos impostos devidos, tendo demonstrado estar convicta que os sócios tinham conhecimento dos mesmos, tendo ainda referido que terá falado com eles por mensagem.
Ora, não se tendo feito prova que os arguidos não tivessem acesso a tal conta de email, sendo os mesmos presença mais ou menos assídua nas instalações da discoteca, desempenhando todos eles funções diferenciadas no desenvolvimento da sua atividade, não se tendo, como tal, alheado totalmente do seu destino, não se afigura credível que não tivessem conhecimento de tal correspondência e, como tal, que tivessem, todos eles, conhecimento que não estava a ser entregue o IVA, tendo inclusivamente dado o seu aval para o efeito.
Dúvidas não nos restaram, pois, que foram os três arguidos e não o «gerente» que contrataram para tratar da gestão do dia-a-dia do estabelecimento que a sociedade arguida explorava, que decidiram dar prioridade aos pagamentos quer permitissem manter a discoteca em funcionamento em detrimento dos pagamentos do IVA devido ao Estado, agindo, ao fazê-lo, quanto gerentes de facto da sociedade arguida e atuando no interesse e em representação da mesma.
No que respeita aos montantes recebidos pela sociedade arguida e que estava se encontra obrigada a remeter à AT (ponto 8.), resultaram os mesmos provados da das declarações do arguido JM conjugadas com o depoimento da testemunha CM, inspetora tributária instrutora do inquérito.
Assim, o arguido admitiu não terem procedido sua à entrega, o qual esclareceu que uma boa parte da faturação era decorrentes dos eventos que eram contratados mas que eram pagos apenas a 30 ou 60 dias, sendo que estavam na expetativa de com os recebimentos que tinham eminentes conseguirem regularizar a situação.
Por seu turno, a testemunha esclareceu que apenas atenderam aos montantes que conseguiram apurar como tendo sido efetivamente recebidos pela sociedade arguida, a saber, os pagamentos efetuados nas caixas pelos clientes do estabelecimento (pronto-pagamento), não tendo tido em consideração os montantes eventualmente recebidos pelos eventos realizados em virtude de não terem elementos suficientes para os contabilizarem uma vez que pelo contabilista certificado da sociedade arguida foi a dada altura invocado sigilo profissional.
Temos, pois, que decorrendo os montantes contabilizados como sendo devidos a titulo de IVA os montantes contabilizados na conta 21 (conta clientes a pronto-pagamento), o que decorre igualmente dos elementos contabilísticos juntos aos autos (balancetes) dúvidas não nos restaram que tais montantes deveriam ter sido remetidos pela sociedade arguida e não o foram, nem no prazo de que dispunha para o efeito nem posteriormente.

E nem se diga como tentaram fazer passar os arguidos, que tais montantes não são devidos pois deveriam ter sido contabilizadas nas declarações em causa nos autos as rendas pagas pela sociedade as não o foram em virtude das competentes faturas (recibos) não terem sido atempadamente remetidas pelo senhorio, tendo daí decorrido um crédito a favor da sociedade arguida no montante de 61.876,63€, montante este que já requereram fosse imputado no pagamento das quantias em dívida aquando das notificações efetuadas nos termos da alínea b) do n.° 4 do artigo 105.° do Regime Geral das Infracções Tributárias pois, ainda que tal crédito exista, não tendo sido pedido o seu reembolso nem tendo sido diligenciado pela sociedade arguida por uma eventual compensação nos termos legalmente previstos, não resta senão concluir que o mesmo não influencia o facto de tais quantias não terem, nos meses em questão, sido remetidas à AT como consta da acusação.

O ponto 9. resultou provado da análise das notificações juntas aos autos, entre outras, a fls. 610, 622, 682 e 688.

No que respeita aos pontos 10. a 14., resultaram os mesmos provados da conjugação de toda a prova produzida com as regras da experiência comum de acordo com as quais é conhecimento do homem médio a obrigação que impende sobre as sociedades comerciais de procederem à retenção do IVA devido nas transações efetuadas para posteriormente procederem à sua entrega nos Cofres do Estado, não pudendo os arguidos, enquanto empresários, deixar de ter conhecimento de tal matéria.

Tendo ainda se dado como provado que eram os arguidos que tinham poder para decidir quais as dívidas que seriam pagas pela sociedade arguida nas situações em que esta não tinha disponibilidade para proceder ao pagamento de todas as dívidas pendentes, dúvidas não restam que ao optarem por dar pagamento aos vencimentos dos trabalhadores e às dívidas aos fornecedores por forma a manterem a sociedade em funcionamento, não podiam desconhecer a ilicitude de tal conduta, a qual sabiam ser proibida e punida por lei.

Os pontos 15. e 16. resultaram provados da conjugação da declaração junta a fls. 424 e 425, com a informação junta pela instrutora do processo 435 e 436 e o depoimento da mesma em audiência a qual esclareceu as razões processuais da inviabilidade da pretendia compensação solicitada pela sociedade arguida nos termos em que o foi.

O ponto 16. resultou provado da conjugação das declarações do arguido JM com o teor de fls. 1065 a 1068 e o ponto 17. da conjugação das declarações deste arguido com o depoimento da contabilista certificada da sociedade arguida em funções entre 2012 e 2014, MS que referiu ter-se deslocado mais do que uma vez com os arguidos ao serviço de finanças competente com vista à celebração de acordos de pagamento das quantias em dívida.

A situação pessoal e profissional dos arguidos decorreu das declarações prestadas pelos mesmos as quais pela sua espontaneidade mereceram credibilidade e os seus antecedentes criminais (ou ausência dos mesmos) dos certificados de registo criminal junto aos autos.

A matéria dada como não provada decorreu de quanto à mesma não ter sido prova suficiente, tendo até sido produzida prova em contrário, uma vez que decorreu quer das declarações do arguido JM, quer dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência que foram colaboradoras da sociedade arguida que os arguidos contrataram duas pessoas que tratavam de toda a operação da discoteca em si, contratando com fornecedores e procedendo aos pagamentos aos mesmos e bem assim aos relações públicas da sociedade arguida, sendo que esses colaboradores tinham autonomia de decisão «dentro do padrão de negócio» conforme explicitado pelo arguido JM, não se provando que na generalidade das situações os arguidos tivessem intervenção direta em tais operações comerciais.»

2.3.Apreciação

Os recorrentes discordam da decisão sobre a matéria de facto provada, alegando, em síntese, que o tribunal recorrido errou na apreciação da prova testemunhal e que a sentença recorrida padece do vício de contradição entre os factos provados e os não provados e entre os factos e a sua fundamentação probatória.

Em sede de recurso, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma.

No primeiro caso, o objecto da apreciação é apenas o texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida, não sendo por isso admissível o recurso a elementos externos para indagar da existência dos vícios, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339).

Uma vez demonstrada a existência dos vícios do art.º 410º, nº 2 e a impossibilidade de se decidir a causa, o tribunal de recurso deve determinar o reenvio do processo para um novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio, nos termos do art.º 426º, nº 1 do CPP.

Nos termos 431º do mesmo Código só é possível ao tribunal de recurso decidir a causa se: a) do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base (o que só ocorre nos casos em que tudo se baseie em prova documental ou pericial); b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do art.º 412º, nº3; ou c) se tiver havido renovação da prova.

Já no caso da impugnação ampla, a apreciação vai para além da análise da sentença e estende-se à prova produzida em audiência e ao que da mesma se pode extrair, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do C.P.P., que impõe ao recorrente:
a)-a indicação dos pontos de facto concretos que considera incorrectamente julgados;
b)-as concretas provas que, em sua opinião, impõem decisão diversa da recorrida;
c)-as provas que entenda deverem ser renovadas.

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na individualização dos factos que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» satisfaz-se com a indicação do meio de prova específico e respectivo conteúdo e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente a exigência de, havendo gravação das provas, fazer tais especificações por referência ao consignado na acta, com a indicação concreta das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, as quais são ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º).

Sobre esta indicação que impende sobre o recorrente o STJ, no seu acórdão nº 3/2012 (publicado no DR, 1.ª série, N.º 77, de 18.04.2012) fixou a seguinte jurisprudência: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

O cumprimento das especificações acima referidas deve ser feito quer no corpo da motivação, quer em sede de conclusões e o recurso da matéria de facto assim formulado permite que os poderes de cognição do tribunal de recurso se estendam à matéria de facto e que, sendo o recurso, nessa parte, procedente, venha a ser modificada a decisão quanto a ela tomada na 1.ª instância (artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal).

Porém, tal recurso não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo do tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº6 do art.º 412º do CPP), com a limitação, ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso que “decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência”, por forma a aferir se tais provas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, nos termos da al. b) do nº3 do art.º 412º do CPP, o que pressupõe apreciar a razoabilidade da decisão do tribunal na valoração da prova quanto aos concretos pontos impugnados, em função das regras normais da experiência e do senso comum em que se alicerça a livre convicção do juiz.

Feito este enquadramento legal, debrucemo-nos sobre a impugnação dos recorrentes, começando por apreciar o alegado vício decisório que, a existir, poderá ser suprido através da reapreciação da prova concretamente indicada.

O vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.  - «a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão» -, respeita, antes de mais, à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto. Assim, pode existir contradição entre a matéria de facto provada, mas também entre os factos provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou ainda entre a fundamentação e a decisão de facto (Germano Marques da Silva in Ob citada, p. 325).

Segundo o acórdão do STJ de 2.07.2002, Proc.1748/02-5ª (acessível em www.dgsi.pt) a contradição insanável da fundamentação verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico, na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados ou não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal.

Ocorre este vício, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada (cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 71 a 73).

Portanto, quando o artigo 410.º, n.º 2 al b), do C.P.P., fala em contradição insanável “entre a fundamentação e a decisão”, não se está a referir à contradição entre matéria de facto assente como provada e a errada subsunção ao direito que depois foi feita desses factos, mas antes à contradição entre a fundamentação da convicção e a decisão dada ao caso em termos de matéria de facto assente como provada e não provada.

Os recorrentes alegam que existe uma contradição entre o facto não provado - «os arguidos celebravam contratos com fornecedores e clientes e efetuavam pagamentos e recebimentos» e os factos provados sob os pontos 4, 5, 6, 7, 9 e 13.

Dizem, por um lado, em síntese, que os factos provados não têm acolhimento em qualquer dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento e, por outro, que se os Recorrentes não efectuavam pagamentos nem recebimentos resulta da experiência de vida em comum que não faziam opções de pagamento, logo não efectuavam também os pagamentos ao Estado, não sendo verosímil, nem resultando da experiência comum, que alguém, que não tem a atribuição de receber de clientes, vá receber a esses mesmos clientes, selectivamente, a parte do valor do imposto que se tem que entregar ao Estado. Mais referem que, o acto de priorização de uns pagamentos em relação a outros, é um acto de pura gestão, que está no domínio e controle de quem faz a gestão e esta só pode ser feita por quem faz os recebimentos e pagamentos e tem o domínio e o seu controle. e que se resulta do depoimento de todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento que era RC, a pessoa que tomava sempre todas as decisões, por conta e no interesse da sociedade, se era sempre por intermédio do RC, que todos os pagamentos e recebimentos eram efectuados, se era ele que negociava todos os contratos de fornecimento de bebidas, que contratava e pagava ao pessoal, não é verosímil, não tem lógica, que fosse outra pessoa, que não a mesma que optava por priorizar uns pagamentos em detrimento de outros, pelo que ocorre uma flagrante quebra de lógica e de razoabilidade quando ao mesmo tempo se afirma que os Recorrentes recebiam dos clientes o IVA relativo aos serviços prestados e que agiram em representação da sociedade e se apropriaram de um montante de IVA e o utilizaram em proveito da sociedade fazendo-o seu.

Referem ainda que o Tribunal “ad quem” ao percorrer a enunciação da síntese de cada depoimento prestado na audiência de julgamento certamente comprovará, com um juízo de absoluta segurança jurídica que todos os elementos ali disponíveis são coincidentes na afirmação que teve consagração no ponto único da Matéria de Facto dada como Não Provada.

Na verdade, os recorrentes procuram demonstrar a contradição que invocam por referência à prova gravada e não apenas com base no texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, o que não é admissivel no termos do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., e dão como certo um facto que o tribunal deu como não provado e com base nele concluem que esse facto é inconciliável com os factos que o tribunal considerou como provados nos pontos impugnados.

Ora, ao considerar como não provado que «os arguidos celebravam contratos com fornecedores e clientes e efetuavam pagamentos e recebimentos», tal não significa que se deva ter como provado que os arguidos não celebravam contratos e efectuavam pagamentos e recebimentos, caso em que faria algum sentido o raciocínio explanado pelos recorrentes,  mas apenas que não se provou que o fizessem. E por isso não existe qualquer contradição entre esse facto e os demais factos provados.

Do mesmo modo que não cremos estar perante o vício do erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., que resulte evidente do texto da decisão, conjugada com as regras da experiência comum, na medida em que a fundamentação que da mesma consta, podendo divergir-se de alguns dos seus segmentos, não evidencia uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O que aqui se constata é uma divergência por parte dos recorrentes da apreciação da prova com base na qual o tribunal recorrido deu como provados os factos impugnados, divergência essa que os recorrentes fundamentam na prova gravada e do que no seu entender, pode ser extraído da mesma, de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e da razoabilidade, que é contrário às conclusões alcançadas pelo tribunal recorrido, o que importa apreciar em sede da impugnação de facto.

Os recorrentes indicam na sua motivação de recurso os pontos concretos da matéria de facto que no seu entender deveriam ser julgados como não provados e as provas concretas que fundamentam a sua impugnação, transcrevendo excertos das declarações prestadas pelas testemunhas que indicam sem, contudo, individualizarem as provas concretas relativamente a cada um dos factos impugnados e sem transporem essas concretas indicações para as conclusões, não dando assim devido cumprimento ao ónus de impugnação especificada, que é exigido para a impugnação da matéria de facto, o que constitui fundamento da rejeição do recurso quanto à matéria de facto, o que, aliás, é pedido pelo Ministério Público na sua resposta.

Porém, o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional têm decidido pela inconstitucionalidade do entendimento que rejeita o recurso quanto à matéria de facto sem previamente convidar o recorrente a suprir as deficiências e obscuridades das conclusões do mesmo, desde que da motivação constem aquelas indicações faltosas – acórdãos do STJ de 30/10/2002, processo n.º2535/02, e de 13/02/2008, processo n.º4564/07 (acessíveis em www.dgsi.pt) e acórdãos do TC nº529/2003, de 31/10 e nº 140/2003 de 10/03/2004. Ainda recentemente o Tribunal Constitucional decidiu no acórdão n.º685/2020 (DR, N.º3/2021, Série II de 6/01/2021): « Julga inconstitucional a norma constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento da impugnação daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência.»

Não tendo, no caso, sido formulado convite ao aperfeiçoamento das conclusões importa, assim, apreciar a impugnação da matéria de facto tendo por referência as provas concretas indicadas pelos recorrentes no corpo da motivação e as razões de discordância por eles invocadas, bem como as limitações decorrentes da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, sem esquecer que a reponderação de facto pela Relação não constitui um segundo/novo julgamento, antes se cinge à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelos recorrentes, procedendo à sua correcção se for caso disso, só alterando o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º) o que, como se diz no acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 (processo n.º 360/08-1.ª) «… não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente

O tribunal procedeu na íntegra à gravação da prova indicada pelos recorrentes (depoimentos das testemunhas BP, VH, JM, PA, RM, desta apenas na parte que é audível, IR, VO, MS,  CM e NS) e bem assim das declarações do arguido JM, único que prestou declarações sobre os factos prestados e das testemunhas DR, JC e ED,  que o tribunal decidiu ouvir ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 412.º do C.P.P.

De tais depoimentos, conjugados com a documentação junta aos autos, extrai-se que:
- A sociedade arguida explorava a discoteca “M.” e, no período que decorreu entre 2011 e 2014, assentava o seu modo de funcionamento em quatro pessoas: um gerente operacional, que era o senhor BP,  que estava encarregue de toda a parte da operação da discoteca (segundo o próprio, fazia a abertura, a montagem dos bares com os empregados, a sua arrumação ao final da noite, controlava o stock das bebidas que eram consumidas e procedia aos pedidos das mesmas à empresa fornecedora, estabelecia o primeiro contacto com eventuais interessados em trabalhar na discoteca e resolvia os problemas que surgissem ao longo da noite com os clientes), uma administrativa, VH, que tratava da parte da documentação e a enviava para a contabilidade, um tesoureiro ou financeiro, JM, a quem competia fazer o controlo das diversas caixas, ao longo da noite, fazer o respectivo fecho e entregar todo o saldo, no final da noite, ao “gerente da casa” e proceder a pagamentos de que este o incumbia, designadamente a funcionários e um gerente, RC, que era a pessoa que dava indicações aos demais e a quem eles reportavam e quem fazia as contratações e contactava com os fornecedores. Este só surgiu algum tempo depois de o gerente operacional (RP) ter começado a trabalhar na discoteca, em virtude de este se ter queixado ao sócio HB que não conseguia fazer tudo sozinho. Além disso, a partir de finais de 2012 e até finais de 2014 havia uma contabilista, MS a quem competia fazer a contabilidade da sociedade, a qual foi substituída, em Novembro de 2014, por NS.
-Todas as testemunhas indicadas pelos recorrentes, que trabalharam na discoteca (BP, VH, JM e PA) referem a existência  de RC, como a pessoa que dava indicações aos trabalhadores, tratava dos pagamentos e das encomendas, encaminhava documentação para a contabilidade, fazia contratações, a quem reportavam e que tinham como gerente da discoteca, referindo, quando a tal foram questionadas, que pensavam que ele respondia perante os sócios os quais referiram ser os “patrões”. Apenas a testemunha JC, que referiu ter trabalhado como relações públicas na discoteca final de 2010 e 2013, referiu que era o JM  quem lhe pagava, apenas se recordar de ter ouvido falar de um JO e que se relacionava mais com o BP, que foi a pessoa que a contratou. Por sua vez as testemunhas ED e DR, que trabalharam de forma esporádica na discoteca, referiram que respondiam perante o BP, que foi com quem contactaram para serem contratados.
- Inicialmente os sócios eram apenas os arguidos HB, mais conhecido por HB Tabaco, e JM  e a partir de finais de 2012 passou também a ser sócio o arguido IR, e todos eles eram vistos, com mais ou menos frequência na discoteca, sendo que o HB, como era D-Jay, ia lá pôr música, o JM era visto mais nos dias em que havia eventos de clientes importantes com os quais contactava e angariava e o IR era visto em alguns eventos, sobretudo os de tauromaquia e tinha a parte do marketing e da publicidade nas redes sociais. Todos eles eram tidos como sócios da discoteca pelas pessoas que aí trabalhavam, de forma efectiva ou esporádica, pelos fornecedores (caso da testemunha RM da empresa S., que fornecia as bebidas), ou pelas empresas de eventos que organizavam festas na discoteca (caso da testemunha VO).
- Também a testemunha IRA, pai do arguido IR, que foi quem acordou com os outros dois sócios as condições de entrada do seu filho na sociedade e quem entrou com o capital (referindo que o fez porque o seu filho tinha na altura 21 anos e nenhuma experiência profissional) referiu que o tal RC lhe foi apresentado como o gerente e que a sociedade tinha então um operador comercial que era o BP, uma administrativa que era a VH  e um tesoureiro que era o JM, os quais lhe foram apresentados pelos arguidos HB e JM .
- A própria contabilista, MS referiu que era o Sr. J. quem lhe entregava os papeis para fazer a contabilidade da sociedade e que ele nunca a contactou como gerente não conseguindo, porém, confirmar se o mesmo era o RJ ou se era outro J. e que chegou a telefonar para o Sr. HB ou para o Sr. J. .

Não resulta da prova testemunhal concretamente indicada pelos recorrentes, nem das declarações prestadas pelo arguido, ou dos demais depoimentos que foram prestados, que fossem os arguidos quem, nesse período, procedessem à entrega na AT das declarações periódicas do IVA, nem quem, pessoalmente, receberam o IVA cobrado pela sociedade arguida aos consumidores da discoteca. Aliás, tendo a sociedade uma contabilista, naturalmente seria através desta que tais declarações seriam submetidas, o que aliás foi por ela confirmado. Além disso a quem era legalmente exigível a entrega das declarações era à sociedade, sendo que o dinheiro cobrado aos clientes também revertia a favor da sociedade, não podendo de modo algum concluir-se que eram os sócios quem cobravam dos clientes os pagamentos do IVA ou quem deles recebiam, não só porque de facto não exerciam tais funções, mas também porque legalmente era a sociedade quem os facturava, o que importa a alteração dos pontos nºs 5, 6 e 7 dos factos provados.

A questão que por isso se coloca é a de saber, perante a entrega de tais declarações das quais resultou a obrigação de a sociedade arguida pagar o IVA, a quem cabia a decisão de não proceder a essa entrega, isto é, quem tinha o domínio funcional desse facto e o omitiu.

O tribunal recorrido concluiu, após análise da prova produzida, que essa decisão cabia aos três arguidos dando por isso como provados os factos constantes dos pontos ora impugnados e escrevendo a esse propósito, em sede de fundamentação:
«Temos, pois, que existem dúvidas que o arguido HB era gerente não só de direito, mas também de facto da sociedade arguida e que ainda os arguidos JM e IR não fossem gerentes de direito da sociedade arguida o eram de facto uma vez que não se pode deixar de concluir que tinham o domínio e a capacidade efetiva de administração da sociedade comercial sendo eles os detentores do poder de optar pelo incumprimento da obrigação tributária.
Resultou inclusivamente do depoimento da testemunha MS, contabilista certificada da sociedade arguida de 2012 a 2014, que assim que se apercebeu do incumprimento da obrigação de entrega de IVA alertou para tal situação remetendo email para o email geral da sociedade arguida, para onde remetia igualmente as guias de pagamento dos impostos devidos, tendo demonstrado estar convicta que os sócios tinham conhecimento dos mesmos, tendo ainda referido que terá falado com eles por mensagem.
Ora, não se tendo feito prova que os arguidos não tivessem acesso a tal conta de email, sendo os mesmos presença mais ou menos assídua nas instalações da discoteca, desempenhando todos eles funções diferenciadas no desenvolvimento da  sua atividade, não se tendo, como tal, alheado totalmente do seu destino, não se afigura credível que não tivessem conhecimento de tal correspondência e, como tal, que tivessem, todos eles, conhecimento que não estava a ser entregue o IVA, tendo inclusivamente dado o seu aval para o efeito.
Dúvidas não nos restaram, pois, que foram os três arguidos e não o «gerente» que contrataram para tratar da gestão do dia-a-dia do estabelecimento que a sociedade arguida explorava, que decidiram dar prioridade aos pagamentos quer permitissem manter a discoteca em funcionamento em detrimento dos pagamentos do IVA devido ao Estado, agindo, ao fazê-lo, quanto gerentes de facto da sociedade arguida e atuando no interesse e em representação da mesma.
Do conjunto da fundamentação resulta que o tribunal não teve dúvidas que os arguidos eram gerentes de facto da sociedade, sendo um lapso evidente, sob pena de contradição com tudo o que antes escreve, a afirmação na parte que ora se sublinhaTemos, pois, que existem dúvidas que o arguido HB  era gerente não só de direito, mas também de facto da sociedade arguida e que ainda os arguidos JM e IR  não fossem gerentes de direito da sociedade arguida o eram de facto”.

É certo que dos depoimentos indicados resulta que havia alguém, o tal sr. RC, que no período temporal em causa tinha a gestão do estabelecimento explorado pela sociedade arguida. Daí não resulta, porém, que o mesmo tivesse poderes de gerência da sociedade, no sentido de que era ele quem “punha e dispunha” de tudo quanto se referisse à vida da sociedade, como muito bem entendesse, tanto assim que, como referiram as diversas testemunhas, o gerente do estabelecimento reportava aos sócios e apesar de o mesmo efectuar pagamentos, não tinha o mesmo poderes para movimentar a conta bancária. A testemunha VH  referiu que o mesmo tinha cheques assinados para fazer os pagamentos. Tais cheques só podiam estar assinados pelo sócio gerente, HB  ou pelo sócio JM, pois aquele tinha autorização para movimentar as duas contas bancárias da sociedade e este tinha procuração para movimentar uma das contas bancárias (conforme resulta da informação dada pelo Banco Santander).

Além disso, aquando da contratação da contabilista MS, em finais de 2012 e da contratação do contabilista NS em finais de 2014, estando aquele “gestor” RC  a exercer funções na empresa, quem os contratou foi o arguido HB e, no caso da primeira, também o arguido JM  terá tido intervenção na contratação.

Da certidão de registo comercial junta aos autos resulta que o gerente da sociedade era o arguido HB, que apenas renunciou à gerência a 10/04/2015,passando a constar então como gerente RC .
É, pois, incorrecta a conclusão inserta no facto provado sob o ponto n.º 4 de que também os arguidos JM e IR  eram gerentes da sociedade. Gerente da sociedade sempre foi, de acordo com o que consta do registo comercial, durante o período temporal em causa, o arguido HB e aquele que teria, em principio, o controle da gestão da sociedade, com a estrutura já referida que tinha a nível dos funcionários, inclusive de um gerente da discoteca.

É certo que a testemunha MS referiu que enviava os e-mails com a indicação dos dias de pagamento dos impostos para o e-mail geral da sociedade, mas nenhuma certeza deu que esses mails chegassem ao conhecimento dos sócios, tendo afirmado a esse propósito: “Não posso precisar se ia para os sócios ou se era apenas para o Sr. J.…. não tenho a certeza que os sócios abrissem o mail”…penso que iria parar aos sócios”, referindo que tinha uma regra na sua empresa que era a de enviar sempre os mails para todos os sócios. Certo é que apenas referiu o mail geral da sociedade e não os mails particulares de cada um dos sócios.

Ainda que todos os sócios tivessem acesso ao mail geral da sociedade, o que não ficou demonstrado, daí não resulta, contudo, que todos eles exercessem um controle e domínio sobre a vida da sociedade e um conhecimento sobre o conteúdo dos mails enviados pela contabilista e dai extrapolar-se para a conclusão de que todos eles tinham o controle da gestão da sociedade.

Por outro lado, a testemunha IRA, pai do arguido IR, disse que o filho quis entrar como sócio na sociedade por causa de promover mais eventos ligados aos touros, mas que na altura tinha 21 anos e nenhuma experiência profissional e por isso foi ele quem lhe deu o dinheiro e quem negociou as condições para ele entrar como sócio, o que fez com os sócios HB e JM, condições, que tinham todas elas a ver com a não participação do mesmo em avales, assinaturas de letras ou livranças, não exercer cargos de gerência, nem movimentar as contas. O que, associado ao facto de o arguido IR  nem sequer ter poderes para movimentar as contas da sociedade é significativo de que ele não tinha quaisquer poderes de gestão de facto da sociedade.

Temos assim, como muito duvidoso, atenta a prova realizada, que, apesar de os arguidos JM e IR serem vistos com alguma frequência na discoteca, tivessem os mesmos uma participação activa na gerência de facto da sociedade.

Sendo certo que o in dubio pro reo impõe a valoração de um non liquet em questão de prova sempre no sentido favorável ao arguido, não se compreende, face à prova reapreciada e à motivação da decisão de facto, como as provas dos factos impugnados permitiram a transposição de uma dúvida mais que razoável – que o tribunal não teve, mas que se impunha no caso.

Essa dúvida não é significativa nem preponderante relativamente ao arguido HB, na medida em que, por um lado, da prova concretamente indicada pelos recorrentes apenas resulta que, no período temporal em causa a sociedade arguida tinha alguém que exercia a gestão do estabelecimento explorado pela sociedade, mas não que tivesse poderes de gerência da sociedade e o domínio funcional referente ao exercício das obrigações fiscais da empresa ou às opções económicas da sociedade e, por outro, porque o arguido HB foi nesse período o gerente da sociedade, movimentava as contas bancárias da sociedade, teve intervenção na contratação dos contabilistas, assinando os respectivos contratos e teve o mesmo, necessariamente, conhecimento da situação fiscal da sociedade aquando da entrada do arguido IR, cabendo-lhe por isso a ele, como gerente, a opção de manter ou não essa situação fiscal e de continuar a decidir quanto ao não pagamento do IVA, por parte da sociedade.

Refira-se que, tendo o arguido IR adquirido a quota em Novembro de 2012, e tendo essa aquisição sido precedida de uma série de exigências por parte do seu pai junto dos demais sócios, que na verdade foi a pessoa que contribui com o dinheiro para a aquisição da quota, não é crível que este tenha dado o dinheiro para o filho comprar a quota sem se inteirar do estado da sociedade, falando, nomeadamente, com a contabilista e consultando elementos contabilistas. Não sendo, por isso, crível que, pelo menos a partir dessa altura, o gerente HB não tivesse conhecimento da falta de entrega dos valores ao Estado e que não tenha desde então, como gerente, acompanhado essa situação.

Assim, em função do princípio in dubio e do mais que resulta da prova agora reapreciada, deve considerar-se como não provado o ponto n.º 4 dos factos provados, respeitante apenas aos arguidos JM e IR e impõe-se alterar os demais factos provados e impugnados (5, 6, 7, 8 e 13) deles excluindo a participação desses arguidos e incluir a intervenção da sociedade arguida. Em face dessa alteração impõe-se proceder, também, à exclusão da pessoa desses arguidos dos factos provados sob os pontos n.ºs 10, 11 e 12, nos seguintes termos: (alterações a negrito)

5.A sociedade arguida estava obrigada, entre o mais, a enviar mensalmente (ano de 2013) e trimestralmente (anos de 2012 e 2014) aos serviços da Administração Fiscal uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do mês precedente e do trimestre precedente, designadamente com indicação do IVA devido ou do crédito existente quanto ao mesmo e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo, a qual se destinava ao controle da matéria coletável e do apuramento do imposto por parte da Administração Fiscal.

6.Simultaneamente com a declaração referida, a arguida estava obrigada a proceder à entrega, junto da mesma entidade, do montante de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) devido.

7.Nos anos de 2012, 2013 e 2014, a sociedade arguida liquidou e recebeu dos respetivos clientes, o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) relativo a serviços prestados aos mesmos, e procedeu ao preenchimento e ao envio à Administração Fiscal das respetivas declarações mensais.

8.Porém, não remeteu à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), com referência aos seguintes meses e valores:
- janeiro a março de 2012, no valor de 12.367,51€;
- abril de 2013, no valor de 14.197,04€;
-  maio de 2013, no valor de 11.901,20€;
- junho de 2013, no valor de 10.199,57€;
- julho de 2013, no valor de 10.282,57€;
- outubro de 2013, no valor de 13.308,70€;
- dezembro de 2013, no valor de 9.328,05€;
-  janeiro a março de 2014, no valor de 29.845,75€;
o que perfaz o montante total de 111.430,39€.

10.Ao atuar da forma descrita, o arguido HB sabia que, nos termos das normas que regulam o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) competia aos representantes legais da sociedade arguida, liquidar e reter os aludidos impostos, encontrando-se esta legalmente obrigada a declará-lo e a entregá-lo nos cofres do Estado Português, por ao mesmo pertencer o montante respetivo.

11.Apesar disso, quis o arguido HB integrar os montantes dos impostos supra indicados no património da pessoa coletiva que representava, despendendo-os e utilizando-os em benefício daquela, embora soubesse que a sua posição era a de assegurar, enquanto mero depositário, a detenção desses valores, para ulterior entrega à Administração Fiscal.

12.Igualmente sabia o arguido HB que a pessoa coletiva que representava, ao não efetuar a entrega do montante alusivo a imposto sobre o valor acrescentado (IVA) nos termos acima enunciados, atuava sem autorização e contra a vontade do Estado Português, entidade a quem pertencia aquela quantia pecuniária, e à qual causava um prejuízo patrimonial equivalente à mesma.

13.O arguido HB agiu sempre em nome e no interesse da sociedade arguida, na convicção de que a sua atuação estava a ser bem-sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levou a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido, na tentativa de manter o estabelecimento que a sociedade explorava aberto, dando para tanto prioridade do pagamento dos vencimentos dos seus colaboradores e às dívidas para com os seus fornecedores, na expetativa de se verificar uma melhoria da situação financeira da arguida que lhe permitisse saldar as suas dívidas perante a AT.

E como não provado que:
- Os arguidos JM e IR exercem igualmente funções de gerência desde, pelo menos, janeiro de 2012 e 7 de novembro de 2012, respetivamente, e, juntamente com o arguido HB, atuam, desde então, em nome, representação e no interesse da sociedade arguida, tomando quanto à mesma as decisões relativas ao seu regular funcionamento, designadamente, quando confrontados com as dificuldades financeiras que atravessava e a impossibilitava de proceder ao pagamento a todos os seus credores, optando por priorizar uns em detrimento de outros por forma a manter a sociedade arguida em funcionamento.
- Que os arguidos JM e IR tenham tido intervenção nos factos provados sob os pontos 5, 6, 7 e 8.
Perante esta alteração à matéria de facto provada, importa retirar as consequências jurídico-penais quanto aos arguidos JM  e IR .

Está em causa a prática de um crime de abuso fiscal p. e p. pelo artigo 105.º do RGIT (Lei n.º 15/2001, de 15/06), que é imputado à sociedade da qual os arguidos são sócios e a estes enquanto sócios por, alegadamente, todos eles controlarem a gestão de facto da sociedade. Trata-se da punição de uma omissão, a não entrega dolosa da prestação tributária recebida num determinado prazo.
Responsável pela prática do crime é a sociedade (artigo 7.º do RGIT), o que não exclui a responsabilidade individual (n.º 3 do mesmo preceito), no caso, a responsabilidade dos titulares de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva (artigo 6.º, n.º 1).

A única pessoa singular responsabilizável, porque é a única gerente, é, portanto, o arguido HB sócio e gerente de 2010 a 2015, abrangendo, portanto, o período em causa (2012 a 2014), em que a prestação tributária recebida pela sociedade não foi paga à Autoridade Tributária.

O facto de, eventualmente, existir um crédito do IVA das rendas não obsta à consumação do crime e à condenação da sociedade arguida e do seu gerente, o arguido HB, porque o que importa, para o efeito, é o valor constante das declarações entregues.

Uma vez que o recurso improcede na totalidade quanto ao arguido HB, suportará este as custas do mesmo, nos termos do artigo 513.º, nº1 do C. P.P.  

III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa na procedência parcial do recurso interposto conjuntamente pelos arguidos em:
1)Alterar a factualidade provada e não provada constante da sentença recorrida, dando como não provados quanto aos arguidos JM e IR  os factos provados sob os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12 e 13, nos termos acima referidos;
2)Absolver os arguidos JM e IR da prática do crime por que foram condenados nos presentes autos.
3)Manter no mais a decisão recorrida
Custas a cargo do recorrente HB fixando-se em 4UC de taxa de justiça.


Lisboa, 26 de Janeiro de 2021


(processado e revisto pela relatora)


                                                                                                             
(Maria José Costa Machado)
(Carlos Espírito Santo)


[1]No cabeçalho da motivação refere-se também como recorrente “JR”, mas trata-se de um lapso manifesto visto não existir nenhum outro arguido com esse nome.