Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
207/09.5PAAMD-A.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: PRESCRIÇÃO DA PENA
SUSPENSÃO
LEIS COVID 19
LEI TEMPORÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - O decurso do tempo tem relevância no direito, mas os seus efeitos têm de ser avaliados em função de cada caso concreto, não sendo equiparáveis as consequências do decurso do tempo nas relações jurídicas privadas e no exercício do poder punitivo do Estado, o que o intérprete não pode ignorar quando confrontado com o nº3, do art.7, da Lei n.º 1-A/2020, ao prever forma genérica “…A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos”;
- Os prazos de prescrição da pena têm natureza substantiva, fixam os limites do poder punitivo do Estado e contribuem para a definição da responsabilidade criminal do condenado;
- A situação do condenado, em relação à execução da pena, não é afetada, apenas, quando é aumentado o prazo de prescrição da mesma, mas também quando é criada uma nova causa de suspensão desse prazo;
- Uma das dimensões do princípio da legalidade é definida pela expressão Nullum crimen, nulla poena sine lege certa, o que impõe que o tipo penal contenha a descrição exata, rigorosa e delimitada da conduta proibida, assim como das suas consequências, o que não é compatível com a descrição imprecisa e genérica daquele nº3, do art.7, da Lei n.º 1-A/2020;
- O prazo de prescrição da pena começa com o trânsito em julgado da decisão condenatória e é determinado pela lei vigente nesse momento;
- A aplicação ao prazo de prescrição da pena de uma nova causa de suspensão do respetivo prazo, não prevista no momento do trânsito em julgado da decisão condenatória, não é constitucionalmente permitida, por não respeitar os princípios da legalidade e da proibição da retroatividade da lei penal;
- A Constituição da República Portuguesa, de forma expressa (art.19, nº6), impede que a declaração do estado de emergência possa afetar a não retroatividade da lei criminal e o direito de defesa dos arguidos. ( Sumariado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Singular) nº207/09.5PAAMD, da Comarca de Lisboa Oeste (Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 4), por sentença de 11 de julho de 2012, transitada em julgado em 27-04-2016, o arguido M. foi condenado por um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de 5,00€.
Em 6 de julho de 2020, o Ministério Público promoveu “… a extinção da responsabilidade criminal do arguido M. Santos, por efeito da prescrição, nos termos do disposto no artigo 122, n°1, alínea d) e 2, do Código Penal”.
Por despacho de 13 de Julho de 2020, o Mmo Juiz decidiu:
“…
Veio o M.P. promover a extinção da responsabilidade criminal do arguido, por efeito da prescrição, nos termos do disposto no artigo 122°, n.° 1, alínea d) e 2, do Código Penal.
Compulsados os autos, verifica-se que o arguido nunca requereu o pagamento da pena de multa em prestações, nem se logrou obter a cobrança voluntária ou coerciva do pagamento da referida pena.
Nos termos do disposto no artigo 122.°, n.° 1, alínea d), e n.° 2, do Código Penal, as penas não contempladas nas alíneas antecedentes - nas quais se incluem as penas de multa - prescrevem no prazo de 4 (quatro) anos, a contar da data do trânsito em julgado da decisão condenatória.
Acontece que, o artigo 7°, n.° 3 da Lei n.° I -A/2020, de 19-03 veio estipular que "A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos".
Defende o M.P. que sucessão de leis processuais materiais rege-se pelo principio da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável, consagrado no artigo 29°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa e 2°, n.° 1 e 4, do Código Penal, pelo que não se pode tomar em consideração uma causa de suspensão da prescrição não prevista à data da condenação, sob pena de prejudicar os interesses do próprio arguido.
No entanto, in casu, não podemos falar de urna verdadeira sucessão de leis, mas sim de um diploma que contempla as medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID- I 9.
A ser assim, considera-se que o mesmo se aplica ao caso dos autos, pois a não se entender assim, ficava tal preceito legal sem aplicação.
Face ao supra exposto, pelos fundamentos de facto e de direito supra explanados, considera-se que a pena de multa aplicada ao arguido ainda não prescreveu.
…”.
2. Deste despacho de 13 de julho de 2020, recorre o Ministério Público, motivando o recurso com as seguintes conclusões:
1 — Por douta sentença, transitada em julgado no dia 27-04-2016, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3°, n.° 1 e 2 do DL nº2/98, de 03-01, na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de €5,00, o que perfaz o montante global de €375,00 — cfr. fls. 184-192 e 302.
2 - Pese embora as inúmeras diligências realizadas, não se logrou obter o pagamento voluntário nem coercivo da pena de multa em que o arguido foi condenado, razão pela qual que se determinou a conversão da referida pena em 50 dias de prisão subsidiária —cfr. fls. 319 e 326.
3 - Aberto Termo de "Visto" ao Ministério Público, em 06-07-2020, este pronunciou-se no sentido da prescrição da pena de multa, nos termos do disposto nos arts. 122°, n.2 1, al. d) e n.° 2 do CP, alegando que a aplicação do disposto no n.° 3 do art. 7 da Lei n.° 1-A/2020, de 19-03 violaria o princípio constitucional da  proibição da aplicação da lei penal mais desfavorável (cfr. art. 29°, n.° 1 e 4 da CRP e art. 2°, n.° 1 e 4 do CP) — cfr. "Ref. Citius" n.9 125763022.
4 - Acontece que a M.ma Juiz do Tribunal a quo entendeu que apena ainda não se encontrava prescrita, aduzindo que "in casu, não podemos falar de uma verdadeira sucessão de de leis, mas sim de um diploma que contempla medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiolóqica provocada pelo coronavírus SARS — COV.2 e da doença COVID-19" pelo que "A ser assim, considera-se que o mesmo se aplica ao caso dos autos, pois a não ser assim ficava tal preceito sem aplicação"— cfr. "Ref. Citius" n.2 125876852.
5 - É deste despacho que recorremos, por entendermos que lá decorreu, na sua  íntegra, o prazo de prescrição da pena de multa aplicada nos presentes autos.
6 — Cumpre, pois, saber se é de aplicar o disposto no nº3 do art. 79 da Lei nº1­A/2020, de 19-03, que consagra uma nova causa de suspensão da prescrição das penas, ou se é de excluir a sua aplicabilidade, por violar o principio constitucional da não retroatividade da Lei Penal.
7 - Como corolário do princípio de legalidade, o Direito Penal acolhe o princípio da aplicação da lei penal favorável, numa dupla formulação: seja da proibição da retroatividade de lei penal desfavorável, seja da imposição da retroatividade de lei penal favorável.
8 -  O principio da não retroatividade da Lei Penal, consagrado no art. 29, nº1 e 4 da CRP e art. 2, nºs 1 e 4 do CP, constitui uma das inquestionáveis conquistas do Estado de Direito moderno, sendo hoje unanimemente aceite que também a sucessão de leis processuais penais materiais se rege pelos princípios constitucionais da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável e pelo da  retroatividade da lei penal favorável.
9- Como refere Taipa de Carvalho, in "Sucessão de Leis Penais", Coimbra 1990, Pág. 71. "O Estado de Direito Material, na sua função de proteção da pessoa humana com a decorrente afirmação da liberdade como princípio geral e fundamental, não apenas proíbe a retroatividade das leis penais desfavoráveis como também impõe a aplicação retroativa das leis penais favoráveis. Quer dizer o princípio constitucional da liberdade, o favor libertatis é hoje, a matriz comum e o princípio superior de que derivam não só na irretroactividade in peius, como também a retroatividade in melius" (sublinhado nosso).
10 - Em aplicação deste princípio, forçoso é concluir que, entre duas ou mais leis penais que se sucedam no tempo, aplicáveis (ou potencialmente aplicáveis) à mesma pessoa ou ao mesmo facto, prevalece a de conteúdo mais benévolo: aplica-se a que menos comprima direitos, liberdades e garantias.
11 — Ou seja, o princípio da aplicação do regime mais favorável significa, no tocante às normas sobre prescrição, que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada, e impõe que deva ser aplicado retroativamente o regime prescricional que eventualmente se mostrar mais favorável ao infratora.
12 — No caso vertente, verifica-se que à data do trânsito em julgado da sentença, os prazos de prescrição das penas e as respetivas causas de suspensão e de interrupção encontravam-se exclusivamente previstas nos arts. 122, 125 e 126, todos do CP.
13 — Deste modo, a aplicação do art.7, n° 3, da Lei n° 1-A/2020, de 19-03, que criou uma nova causa de suspensão da prescrição, representaria a opção por um regime mais desfavorável ao arguido e urna clara violação do princípio da proibição da Lei penal mais desfavorável, consagrado no art. 29° n.º 1 e 4 da CRP e art. 2° n.s1s 1 e 4° do CP.
14 - Neste sentido, veja-se Rui Cardoso e Valter Baptista in Cadernos do CEJ - "Do supra exposto, afigura-se-nos que a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, sendo prejudicial ao arguido, pois alargará necessariamente tais prazos de prescrição, apenas poderá ser aplicada para os factos praticados na sua vigência." (...) "Entender que a nova causa de suspensão do procedimento criminal se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso seria conferir-lhe um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no artigo 29, nº4, da CRP, porque mais gravoso para a situação processual do arguido, alargando a possibilidade da sua punição. O mesmo se diga relativamente a quaisquer penas ou medidas de segurança já aplicadas ou que venham a ser aplicadas por crimes em que o tempus delicti é anterior à vigência da Lei n.21-A/2020."
15 - Assim, forçoso é concluir que não é de aplicar a referida causa de suspensão, e que se impõe declarar extinta a responsabilidade criminal do arguido, por prescrição, nos termos do disposto nos artigos 122, nº1, ai. d) e n.° 2 do CP.
16 - Face ao exposto, e salvo sempre o máximo respeito pelo douto despacho da M.ma Juiz do Tribunal a quo, forçoso é concluir que o mesmo deverá ser revogado e substituído por outro que considere que a pena de multa lá se encontra prescrita.
Nestes termos devem Vossas Excelências dar total provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar a douta decisão recorrida.
3. O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, não tendo sido apresentada resposta.
4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta, em douto parecer, pronunciou-se pelo provimento do recurso.
5. Realizou-se a conferência.
6. O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se já prescreveu a pena de multa em que o arguido foi condenado nestes autos por sentença transitada em julgado em 27-04-2016.
*     *     *
IIº 1. O arguido foi condenado em pena de multa por sentença transitada em julgado em 27-04-2016, não sendo questionado que não ocorreu qualquer das causas de suspensão ou interrupção da prescrição da pena previstas, respetivamente, nos arts.125 e 126 do Código Penal e que o prazo de prescrição daquela pena são quatro anos (art.122, nº1, al.d, CP).
O despacho recorrido entendeu que ao prazo de prescrição em causa é aplicável a suspensão decretada pelo art.7, n°3 da Lei n.° I -A/2020, de 19-03, razão por que considerou não ter decorrido esse prazo quando foi proferido o despacho recorrido (13 de Julho de 2020)[1].
2. A Lei nº1-A/2020, de 19 de março (com efeitos a partir de 9 de março de 2020), aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e a doença COVID-19.
No art.7, sob a epígrafe “Prazos e diligências”, determinou no seu nº1 que aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos, entre outros, nos tribunais judiciais, se aplique o regime das férias judiciais até à cessação daquela situação excecional. 
O art.2, da Lei nº4-A/2020 de 6 de abril, veio a alterar a redação deste nº1, passando a constar “…todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados … ficam suspensos…”, onde antes se remetia para o regime das férias judiciais.
No nº3, do mesmo preceito foi estatuído “3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos”.
A intenção do legislador com este regime foi a de reduzir ao mínimo possível a atividade processual, nos tribunais judiciais e noutras jurisdições, prevendo mesmo mecanismos especiais para nos processos urgentes reduzir a presença física dos intervenientes em diligências.
De facto, desde o início da pandemia, as autoridades definiram como medidas determinantes ao seu combate a redução de contactos físicos, o distanciamento e isolamento das pessoas.
Neste contexto, compreende-se que o legislador também tenha querido reduzir as iniciativas processuais, consagrando a desnecessidade de instaurar processos ou procedimentos, para o efeito consagrando no citado nº3 a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade, deste modo acautelando os direitos cujo exercício implica a instauração de um processo ou um procedimento, assim evitando que a necessidade de exercício de direitos contribuísse para dificultar o distanciamento e isolamento necessários ao combate da pandemia.
Reconhecemos que o estado de emergência em que o país caiu inesperadamente, e que ainda permanece, impunha em março de 2020 medidas legislativas urgentes que ajustassem o funcionamento do sistema de justiça à situação excecional em presença.
Contudo, esta situação excecional, não podia justificar iniciativas legislativas, nem pode agora legitimar interpretações, sem a necessária cautela e rigor próprios do nosso ordenamento jurídico.
É inquestionável a relevância do decurso do tempo no direito, mas é sabido que os prazos assumem natureza distinta, não sendo equiparáveis, a título de exemplo, os prazos do Código Civil, para instaurar ações de anulação (art.287), ou ações destinadas à efetivação de responsabilidade civil extracontratual (art.498), com os prazos previstos no Código Penal, para prescrição do procedimento criminal ou da pena.
Uma coisa são os efeitos do decurso do tempo nas relações jurídicas privadas outra, completamente diferente, são os efeitos do decurso do tempo no exercício do poder punitivo do Estado, em causa nos presentes autos, realidades distintas e sujeitas a princípios não coincidentes.
Ora, o despacho recorrido coloca tudo o mesmo saco, interpretando o citado nº3, do art.7, da Lei nº 1-A/2020, como abrangendo todas as situações em que o decurso do tempo é relevante para o Direito, o que, com o devido respeito, não pode ser aceite.
3. O Código Penal, sob o Título “Da extinção da responsabilidade criminal”, prevê um capítulo referente à “prescrição do procedimento criminal”, o qual se extingue, “por efeito da prescrição” e um outro denominado “prescrição das penas” (art.122), para além de “outras causas de extinção”, como a morte do agente, a amnistia e o indulto (art.128).
O fundamento da prescrição, é ser o “castigo” demasiado longe do delito ou da condenação uma inutilidade. E é uma inutilidade porque a intervenção do direito penal, com todas as suas armas, a partir de determinada altura, não é capaz de cumprir nenhuma das suas funções ou finalidades, tanto mais que, sendo o direito penal a ultima ratio da intervenção estadual, só está legitimado a intervir socialmente quando esteja em condições de cumprir essas finalidades[2].
A prescrição da pena justifica-se, assim, também por razões de ordem jurídico-material, a execução a pena perde a sua razão de ser quando já decorreu o tempo em que se perdeu a memória do crime e da sentença, não tendo qualquer eficácia, à luz das finalidades prosseguidas pela aplicação de uma pena, a prescrição fundamenta-se nestes casos no desaparecimento dos fundamentos e finalidades da punição, pelo decurso do tempo, deixou de haver bem jurídico para proteger e delinquente para promover a ressocialização.
Estabelecendo o Estado, através do instituto da prescrição, os limites da sua pretensão de punição, o regime jurídico da prescrição contribui para a definição da responsabilidade criminal de um arguido.
Assim, as normas de prescrição têm natureza material, porque restritivas de direitos fundamentais, devendo pré-existir à prática da infração, pois respeitam às consequências, em sentido amplo, do comportamento proibido[3].
Estas normas não têm implicações na esfera jurídica do condenado apenas no que diz respeito aos prazos fixados, mas também nas causas de suspensão e interrupção previstas, não se podendo afirmar que a situação do condenado não se agravou porque o prazo de prescrição não foi alterado, pois esse agravamento ocorre também se for criada uma nova causa de suspensão do respetivo prazo.
O Prof. Figueiredo Dias, destacando a natureza jurídico-penal substantiva da prescrição, refere que a prescrição da pena começa quando a prescrição do procedimento criminal termina, isto é, com o trânsito em julgado da decisão[4].
A natureza material das normas relativas à prescrição, impõe que as mesmas respeitem os princípios estruturais do nosso direito penal, da legalidade, da irretroatividade e da proteção da confiança, no que se insere a exigência de conhecimento ou previsão por parte dos indivíduos das consequências jurídicas das suas condutas.
O Tribunal Constitucional, no Ac. nº205/99 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), defende que a prescrição é uma forma de controlo do poder punitivo estadual, na medida em que funciona como forma de responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para a aplicação do Direito ao caso concreto e no Ac. nº 285/99, refere ser inquestionável que a lei reconhece que a perseguição criminal tem um “tempo” próprio e certo para ser desencadeada e promovida, sendo a não prescrição do procedimento criminal condição jurídica do exercício da ação penal - «orientada pelo princípio da legalidade», conforme exige a Constituição no artigo 219º, n.º 1 (o que é válido para a prescrição do procedimento criminal mas também para a prescrição da pena).
Sendo indiscutível que os prazos de prescrição da pena têm natureza substantiva e que se iniciam com o trânsito em julgado da sentença condenatória, é esse momento, do trânsito em julgado da sentença condenatória, que determina a lei aplicável aos prazos de prescrição da pena, sendo esse momento, de acordo com o art.2, nº1, CP, o do preenchimento dos pressupostos de que dependem.
Ora, de acordo com a lei em vigor nesse momento, não ocorreu no caso em apreço qualquer causa de suspensão ou interrupção da prescrição da pena (arts.125 e 126 do Código Penal), tendo o respetivo prazo de quatro anos sido atingido em 27-04-2020.
O despacho recorrido vê no nº3, do art.7, da Lei nº1-A/2020, uma nova causa de suspensão da prescrição da pena.
A letra da lei “… suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos”, não tem qualquer referência expressa a procedimento criminal ou pena, constituindo uma proclamação genérica sem o rigor que se impunha e esperava pois, como se referiu, os prazos têm no nosso ordenamento jurídico natureza diversa e o decurso do tempo relevância diferente nos vários institutos jurídicos.
Um dos princípios basilares do nosso direito penal, o princípio da legalidade, afirma-se numa das suas dimensões pela expressão Nullum crimen, nulla poena sine lege certa, o que impõe que o tipo penal contenha a descrição exata, rigorosamente delimitada, da conduta proibida e das suas consequências, nomeadamente das causas de suspensão dos prazos de prescrição, razão por que é vedada a publicação de normas penais vagas, imprecisas ou indeterminadas.
Tal como está redigida, a citada norma (nº3, do art.7º) é manifestamente vaga, imprecisa ou indeterminada, razão por que não é possível reconhecer nela a previsão de uma causa de suspensão prescrição da pena que, como se referiu, contribuindo para agravamento da resposta punitiva a um comportamento ilícito, tem de estar tipificada na lei.
Vendo nessa norma uma causa de suspensão da prescrição da pena, quando a mesma não resulta da letra da lei de forma certa e precisa, o tribunal recorrido criou uma nova causa de suspensão da prescrição da pena não prevista em lei penal, em violação dos princípios da tipicidade e da legalidade criminal (art.29, nºs 1 e 3, da CRP).
A referida natureza substantiva dos prazos de prescrição da pena, levando estes prazos a integrar a “definição dos crimes e das penas” impede, ainda, interpretação extensiva, por conduzir a um agravamento da responsabilidade criminal do condenado.
Contudo, ainda, que se visse naquela norma uma nova causa de suspensão da prescrição da pena, o que por mera hipótese de raciocínio se admite, a mesma não poderia ser aplicável ao caso dos autos, pois a isso também se opõem os princípios da legalidade e da proibição da retroatividade da lei penal.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias[5]o princípio da legalidade penal opera como um princípio defensivo que constitui … a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado cometidos no âmbito do exercício do ius puniendi de que o mesmo é exclusivo titular”, não podendo o arguido ver a pena agravada por uma causa não prevista no momento em que foi condenado.
A Lei nº1-A/2020 é uma lei temporária, aplicável a factos praticados na sua vigência e que não pode ser aplicável retroativamente[6].
O quadro de calamidade pública em que se vive e o estado de emergência que justificou a legislação em causa, também não podem justificar a aplicação do referido preceito legal pois a Constituição da República Portuguesa (art.19, nº6), como assinala a Ex.ma Procuradora da República no seu douto parecer, expressamente garante não poder afetar “… a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos…”.
Mesmo admitindo que o legislador quis criar uma nova causa de suspensão dos prazos de prescrição da pena, a sua aplicação aos prazos iniciados antes da sua vigência, configuraria uma situação de sucessão de leis penais no tempo, que teria de respeitar o princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade e não poderia sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável em bloco ao arguido[7], no caso, o regime de prescrição vigente no momento em transitou em julgado a sentença condenatória.
4. Concluindo:
O decurso do tempo tem relevância no direito, mas os seus efeitos têm de ser avaliados em função de cada caso concreto, não sendo equiparáveis as consequências do decurso do tempo nas relações jurídicas privadas e no exercício do poder punitivo do Estado, o que o intérprete não pode ignorar quando confrontado com o nº3, do art.7, da Lei n.º 1-A/2020, ao prever forma genérica “…A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos”;
Os prazos de prescrição da pena têm natureza substantiva, fixam os limites do poder punitivo do Estado e contribuem para a definição da responsabilidade criminal do condenado;
A situação do condenado, em relação à execução da pena, não é afetada, apenas, quando é aumentado o prazo de prescrição da mesma, mas também quando é criada uma nova causa de suspensão desse prazo;
Uma das dimensões do princípio da legalidade é definida pela expressão Nullum crimen, nulla poena sine lege certa, o que impõe que o tipo penal contenha a descrição exata, rigorosa e delimitada da conduta proibida, assim como das suas consequências, o que não é compatível com a descrição imprecisa e genérica daquele nº3, do art.7, da Lei n.º 1-A/2020;
O prazo de prescrição da pena começa com o trânsito em julgado da decisão condenatória e é determinado pela lei vigente nesse momento;
A aplicação ao prazo de prescrição da pena de uma nova causa de suspensão do respetivo prazo, não prevista no momento do trânsito em julgado da decisão condenatória, não é constitucionalmente permitida, por não respeitar os princípios da legalidade e da proibição da retroatividade da lei penal;
A Constituição da República Portuguesa, de forma expressa (art.19, nº6), impede que a declaração do estado de emergência possa afetar a não retroatividade da lei criminal e o direito de defesa dos arguidos;
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IVº DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, em dar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, declarando prescrita a pena de multa em que o arguido M. foi condenado nestes autos.
Sem tributação.

Lisboa, 9 de março de 2021
Vieira Lamim
Ricardo Cardoso
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[1] Neste mesmo sentido decidiu entretanto a 9ª Secção deste Tribunal da Relação, por acórdão de 11-02-2021 (Pº nº 89/10.4PTAMD-A.L1-9, Relator Almeida Cabral, acessível em www.dgsi.pt) “A suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 não se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido, pois o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr”.
[2] Neste sentido, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 18.03.1953 (BMJ, N.º 36, p. 108-110), refere “É uma inutilidade por a recordação do facto culpável se ter apagado e a necessidade do exemplo desaparecido, e deixou, por isso, de existir para a sociedade o direito e o dever de punir”.
[3] Neste sentido, Faria Costa, “O Direito Penal e o Tempo”, p. 1154.
No mesmo sentido, Ac. do STJ de 04-02-2010 (Pº29/10.0YFLSB.S1, Relator Rodrigues da Costa, acessível em www.dgsi.pt) “… II - A prescrição da pena é um pressuposto negativo da punição, que, tal como a prescrição do procedimento criminal, tem natureza substantiva e processual, predominando hoje a teoria jurídico-material da prescrição. III - A natureza substantiva, que muitos autores pretendem dominante ou mesmo exclusiva, advém-lhe de razões ligadas às finalidades da punição. Com o decurso do tempo sobre o trânsito em julgado da sentença condenatória sem que o condenado tenha iniciado o cumprimento da pena imposta, esbate-se a necessidade comunitária da sua execução e, ao mesmo tempo, a exigência de socialização do condenado perde também a sua razão de ser, a ponto de poder tornar-se completamente desajustada, se o condenado a tivesse que cumprir muito tempo depois da condenação….”.
[4] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do crime, p. 699.
[5] Direito Processual Penal, Universidade de Coimbra, ed. Policopiada, 1988-9, pág.68 e segs.
[6] Neste sentido, acórdão desta secção de 24julho de 2020 (Pº128/16.5SXLSB.L1-5, Relator Jorge Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt).
[7] Neste sentido Ac. desta Secção de 21julho2020 (Pº76/15.6SRLSB.L1-5, Relator Ana Sebastião, acessível em www.dgsi.pt).