Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8169/23.0T8LRS.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARROLAMENTO
PROCESSO DE INVENTÁRIO
CADUCIDADE
LEGADO
CÔNJUGE SOBREVIVO
SOCIEDADE ANÓNIMA
ACÇÕES
REDUÇÃO POR INOFICIOSIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- O prazo de caducidade previsto no art.º 2178º do Código Civil não é aplicável à acção de inventário (nem tão pouco ao arrolamento preliminar da mesma), mas apenas e tão só à acção comum proposta pelo herdeiro contra o beneficiário de liberalidade que não seja herdeiro, visando a redução da mesma por ofensa da legítima.
2- Tendo o autor da sucessão deixado em legado ao seu cônjuge acções de uma sociedade comercial, legado esse susceptível de ofender a legítima dos demais herdeiros legitimários, o que interessa aos fins do inventário a propor é a especificação da totalidade das acções legadas, para efeitos do apuramento do valor dos bens da herança, do cálculo do valor da legítima e da correspondente redução do legado por inoficiosidade, tudo operações a realizar no âmbito desse inventário.
3- Assim, e porque o arrolamento constitui medida cautelar dependente da acção à qual interessa a especificação dos bens, sendo de decretar quando haja justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, relativamente aos quais haja de ser feita tal especificação, estando verificado o receio de dissipação da totalidade das acções legadas justifica-se o arrolamento das mesmas, na sua totalidade, para salvaguarda do referido interesse na sua especificação, em sede de inventário.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 30/8/2023 NC. e PC. instauraram procedimento cautelar especificado de arrolamento contra MC., alegando, em síntese, que:
- O pai dos requerentes, que faleceu no estado de casado com a requerida, mãe dos requerentes, deixou testamento por via do qual deixou em legado à requerida 4530 acções de uma sociedade comercial, por conta da quota disponível;
- Ainda que se considere que o legado só corresponde a metade das acções, tendo presente a meação da requerida, o valor do mesmo legado excede em muito a quota disponível, tendo presente o valor dos restantes bens que integram a herança, pelo que se verifica a necessidade de suscitar a questão da inoficiosidade do legado, em sede de inventário a intentar oportunamente;
- A requerida já anunciou a sua intenção de vender todas as acções objecto do legado, seja a que preço for, tendo iniciado diligências nesse sentido, e assim se justificando o arrolamento das mesmas, para acautelar o direito dos requerentes a suceder na parte das acções que lhes vierem a caber, por via da redução do legado por inoficiosidade.
Concluem pedindo “o arrolamento das 2265 acções legadas na pessoa da requerida” e, subsidiariamente, “o arrolamento de pelo menos 1132 acções”.
Com dispensa do contraditório prévio foi produzida prova e proferida decisão final, com o seguinte dispositivo:
Nestes termos e pelo exposto, julgo o procedimento cautelar procedente, por provado, e, em consequência, ao abrigo do disposto no artigo 405.º, n.º 2, do Cód. Processo Civil, decreto o arrolamento sobre 2265 (duas mil, duzentas e sessenta e cinco) acções da sociedade “F. & P.S., S.A.””.
Cumprida a providência cautelar determinada e notificada a requerida nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 372º do Código de Processo Civil, veio recorrer daquela decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1ª Trata-se de procedimento cautelar de arrolamento requerido contra a aqui Recorrente no qual foi peticionado: “a) Ser decretado o arrolamento das 2265 acções legadas na pessoa da requerida na sociedade FPS, S.A; Ou caso assim não seja o Vosso douto entendimento: b) Subsidiariamente deverá ser decretado o arrolamento de pelo menos 1.132 acções na sociedade FPS, S.A. indevidamente legadas na pessoa da requerida”. Veio o Tribunal a quo entender que se encontravam reunidos os pressupostos para ser decretado o arrolamento sobre 2265 acções representativas do capital social da sociedade comercial anónima “(…)” (“FPS, SA”), representado por dez mil acções (10.000), com o valor nominal de € 5,00 (cinco euros), cada uma, sem prejuízo de oportuna redução, caso tal venha a ser requerido e se mostre consentâneo com a avaliação que será realizada. Desde logo, no caso dos autos o valor de avaliação da Sociedade, de € 5.500.000,00 (cinco milhões e quinhentos mil euros),não é questionado entre os herdeiros legitimários (vd facto provado de n.º 18).
Com efeito,
2ª Em 24/12/2020 faleceu AC., tendo deixado 04 herdeiros legitimários: sua mulher, a ora Recorrente com quem era casado no regime da comunhão geral de bens, e seus três filhos, dois dos quais os ora Recorridos. Na data do óbito, das 10.000 acções do capital da FPS, SA, 4530 eram tituladas em nome do de cujus e 220 acções em nome da Recorrente. Além destas 4750 acções correspondentes a 47,5% do capital social da sociedade, com o valor total de € 2.612.500,00, o património conjugal com o valor global de € 3.395.619,68, era ainda integrado pelos seguintes bens: saldos bancários no valor de € 58.119,69, fracção habitacional de tipologia T5 sita em Portela de Sacavém, com um valor de mercado de € 425.000 e, fracção habitacional de tipologia T3 sita em Ericeira, com um valor de mercado de € 300.000,00. Assim, atendendo aos valores dos bens que integravam o património conjugal na data do óbito, o de cujus deixou património no valor total de € 1.697.809,84. Sucede que, ainda em vida, o falecido exarou testamento público no qual, por conta da quota disponível de seus bens, legou a sua mulher, a aqui Recorrentetodas as acções que à data da sua morte detiver no capital social da sociedade comercial anónima F. & P.S., S.A.”. Consequentemente, tendo presente o legado que o de cujus deixou à Recorrente - 2265 acções do capital da FPS, SA -, na sequência do óbito essas acções foram averbadas em nome da Recorrente. Por entenderem que a transmissão da totalidade destas acções para a Recorrente ofende a legítima e o legado está coberto por inoficiosidade quanto ao que excede à parte disponível da herança, os Requerentes requereram o arrolamento sobre estas acções da Requerida na FPS, S.A., pretendendo que a inoficiosidade sobre parte do legado das acções seja apreciada em sede de incidente de inoficiosidade em acção de especial inventário a intentar, sendo certo que de nenhuma alegação dos ora Recorridos resultou que pretendem obter a anulação do testamento, ou seja, de toda a deixa testamentária.
3ª A Recorrente não concorda com o entendimento do Tribunal a quo, em primeiro lugar porque o direito de obter redução do legado por inoficiosidade já havia caducado na data em que o presente procedimento cautelar foi requerido; em segundo lugar, e caso assim não se entenda, o arrolamento não poderia incidir sobre a totalidade das acções averbadas por transmissão, em nome da Recorrente (as2265ações). Como se verá, quando muito, o arrolamento apenas poderia incidir sobre as acções que estariam feridas de inoficiosidade, isto é, sobre as acções que excederam a quota disponível e podem ter afectado, em consequência, a quota legitimária dos restantes herdeiros. Deste modo, o presente recurso tem por objecto a decisão proferida, de arrolamento das 2265 acções e, por fundamento, erro de julgamento por má apreciação da matéria de facto quanto aos factos dados como indiciariamente provados sob os números 4 letra d., 8, 9, 10, 11 letra a., 20, 21 e 22, porquanto o Tribunal a quo não considerou devidamente os documentos juntos aos autos (Docs n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 ao RI), e não fez leitura correcta a dar aos referidos documentos, e, por má apreciação do direito aplicável, tendo, nesta medida violado o disposto nos artigos 328.º, 329.º, 331.º, 333.º, 1302.º, 1305.º 2108.º n.º 2, 2168.º n.º 1, 2169.º, 2.171.º, 2174.º n.ºs 1 e 3, 2178.º do CC, 62.º da Constituição da República Portuguesa e, 403.º n.º 2, 576.º n.ºs 1 e 3, 579.º, 1118.º e 1119.º do CPC.
4ª Relativamente ao erro de julgamento quanto à decisão relativa à matéria de facto respeitante aos factos dados como indiciariamente provados sob os números 4, 8, 9, 10 e 20, é premente a sua alteração por forma a reflectirem o que resulta dos Docs n.ºs 3, 4, 5, 6, 8 e 9 ao RI, devendo:
a) o facto indiciariamente provado de número 4 deve passar a ter a seguinte redacção:
“4. Na participação fiscal de transmissão gratuitas, foram declarados os seguintes bens:
e. Quota parte (1/2) da fracção habitacional na Portela de Sacavém;
f.Quota parte (1/2) da fracção habitacional na Ericeira;
g. Saldos bancários no valor de 29.059,85;
h.2375 acções na sociedade (…) (doravante, FPS), que corresponde a 23,75% do respectivo capital social”.
a)  O facto indiciariamente provado de número 8 passar a ter a seguinte redacção:
“8. AC. deixou metade dos dois bens imóveis:
c. Uma fracção habitacional de tipologia T5 (…) Portela de Sacavém, com um valor de mercado, à data da sua morte, de 425.000;
d. Uma fracção habitacional de tipologia T3 (…) Ericeira, com um valor de mercado, à data da sua morte, de 300.000.”
b) O facto indiciariamente provado de número 9 passar a ter a seguinte redacção:
“9. Além disso, o de cujus deixou depositados em instituições bancárias metade dos saldos bancários:
c. No banco Santander Totta, estavam, à data, depositados 1.991,38.
d.No banco EuroBic, estavam depositados 56.128,31.”
c)  O facto indiciariamente provado de número 10 passar a ter a seguinte redacção:
“10. Ademais, o de cujus era proprietário de metade de 47,50% do capital social da sociedade F. & P.S., S.A. que corresponde a 4750 acções (número total = 10000 acções).”
d) O facto indiciariamente provado de número 20 passar a ter a seguinte redacção:
“20. Em face da proporção das participações sociais de 47,5% que integrava o património conjugal, o valor real das acções patentes é de 2.612.500,00, valor que corresponde a 47,5% de 5.500.000,00”
5ª Relativamente ao erro de julgamento quanto à decisão relativa à matéria de facto respeitante aos factos dados como indiciariamente provados sob os números 11 letra a., 21 e 22 é premente a sua alteração por forma a reflectirem o que resulta dos Docs n.ºs 3,4, 5, 6, 7, 8 e 9 ao RI, devendo:
1. O facto de número 11. Letra a. passar a ter a seguinte redacção:
“11. O capital social desta empresa é detido por três accionistas e na seguinte proporção:
e. MC. (na qualidade de meeira quanto a 22,65% e de herdeira, por efeito do testamento, quanto a 22,65%) 45,3%;
f.    [Sem alteração];
g.   [Sem alteração];
h.   [Sem alteração].”
2.  O facto número 21 passar a ter a seguinte redacção:
“21. A requerida é proprietária de 50% sobre os bens e direitos referidos, por força do regime de casamento de ambos, ou seja, comunhão geral de bens, pelo que o património deixado pelo de cujus se computa em 1.697.809,50 (um milhão seiscentos e noventa e sete mil oitocentos e nove euros e cinquenta cêntimos), que corresponde à metade de 3.395.619,00.”
2. O facto número 22 passar a ter a seguinte redacção:
“22. A Requerida, ao ter sucedido nas acções da FSP que se encontravam tituladas em nome do de cujus, ficou investida no montante de 1.396.436,50 dos bens deixados pelo mesmo.”
6ª Relativamente ao erro de julgamento por má interpretação e aplicação do direito, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porque veio a decretar o arrolamento sobre 2265 acções representativas do capital social da FPS, SA, ou seja, sobre a totalidade das acções correspondentes à meação do de cujus AC., que estavam tituladas em seu nome. Tal decisão vem por em causa o regime das inoficiosidades prevista no Código Civil. Recorde-se que a intenção dos ora Recorridos é obter decisão para a redução, por inoficiosidade, das acções legadas à ora Recorrente, queexcede[m] a quota disponível e ofend[am] os seus quinhões hereditários, como se lê no artigo 50.º do RI.
7ª O Erro de julgamento quanto à matéria de direito se verifica, em primeiro lugar, porque o Tribunal a quo não reconheceu a caducidade, absolvendo a ora Recorrente dos pedidos. Isto porque, na data em que o procedimento cautelar foi requerido (dia 30/08/2023), já havia decorrido o prazo para ser proposta medida judicial de redução de liberalidades inoficiosas, ou seja, na data em que o procedimento cautelar foi requerido, o prazo para a propositura de medida judicial para a redução de inoficiosidade já havia caducado, caducidade esta que desde logo se invoca nos termos do artigo 2178.º c/c 333.º do CC e, 576.º n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC. Ora, no caso dos autos, houve imediata aceitação da herança pelos herdeiros legitimários. E, mesmo que se possa defender que não se pode precisar a data da aceitação da herança, no limite, há de ser considerada a data da Habilitação de Herdeiros (17/03/2021) e, com muito esforço dilatório, a apresentação da Participação de Transmissões Gratuitas (Modelo I) para efeito do Imposto do Selo (21/04/2021), atendendo aos efeitos jurídicos dos referidos documentos. Isto vem de confirmar a caducidade ao direito de se pedir a redução da liberalidade inoficiosa (legado das acções). Atente-se que à luz do disposto no artigo 333.º do CC a caducidade é apreciada oficiosamente pelo Tribunal, razão pela qual o Tribunal a quo não deveria ter reconhecido a caducidade, o que não fez, apesar de na fundamentação da decisão ora recorrida ter sido feita expressa referência aos artigos 1118.º e 1119.º do CPC e ter consignado que o arrolamento é dependente da acção relativa à especificação dos bens (cf artigo 403.º n.º 2 do CPC)! Ora, sendo o procedimento cautelar dependente da acção principal e tendo já caducado o prazo para a propositura de tal acção, é por demais evidente que o prazo para ser requerido o procedimento cautelar também tinha caducado, Acresce que assiste à Recorrente o direito de invocar a caducidade por ser esta a primeira vez que intervém nos autos (artigo 2178.º do CC c/c 333.º do CC).
Caso assim não se entenda,
8ª O Erro de Julgamento quanto à matéria de direito se verifica, em segundo lugar, no que diz respeito à interpretação e aplicação do regime legal da redução de liberalidades, previsto no artigo 2168.ºe ss do CC. Ora, é tomando por referência o valor total do património do de cujus, à data do óbito, de € 1.697.809,50, o qual era composto: pelas referidas 2265 acções, acrescidas da metade das 220 acções que sempre estiveram tituladas em nome da ora Recorrente, portanto, por 2375 acções do capital da FPS, SA, no valor de € 1.306.250,00, que corresponde a 76,93% dos bens deixados pelo de cujus (cfr Docs n.ºs 5 e 9 ao RI); pela metade dos dois prédios urbanos no valor de € 362.500,00, que corresponde a 21,35% dos bens deixados pelo de cujus (cfr Docs n.ºs 5, 7, 8 e 9 ao RI); pela metade do saldo bancário no montante de € 29.059,58, que corresponde a 1,72% dos bens deixados pelo de cujus (vd Docs n.ºs 3, 4 e 5 ao RI), que se deve aferir o excesso do legado, porquanto a redução só haverá de incidir sobre as acções legadas que, no valor total dos bens deixados pelo de cujus, afectar a quota indisponível (2/3) (por exegese dos artigos 2.168.º n.º 1, 2.169.º, 2.171.º, 2.174.º n.ºs 1 e 3, todos do CC). E, pese embora o próprio Tribunal a quo reconheça que vindo, eventualmente, a ser reconhecida inoficiosidade a Recorrente só terá que repor a parte que afectar a legítima, decretou o arrolamento da totalidade das acções que estavam tituladas em nome do de cujus, o que significa dizer que arrolou acções em excesso, ao arrepio do disposto, nomeadamente, no artigo 2174.º, n.º 1 do CC, o qual expressamente determina que a “redução, faz-se separando deles a parte necessária para preencher a legítima”.
9ª Deste modo, errou o Tribunal a quo ao decretar o arrolamento de todas as acções que a Recorrente recebeu por legado, pois, à luz do regime das inoficiosidades, o legado será, apenas e tão-só, reduzido das acções necessárias para proteger a legítima (cf. 2174.º do CC). E nem se diga que o arrolamento foi decretado sobre todas as acções para que fosse feita a avaliação da sociedade. É que, no caso concreto, o valor das acções e da sociedade estavam assentes entre os herdeiros legitimários, não tendo, sequer, sido colocado em dúvida nos autos. E mesmo que o Tribunal a quo pretendesse dar uma margem para proteger algum diferencial, não há norma legal que sustente a decisão de arrolamento sobre a totalidade das 2265 acções. Como a sociedade FPS, SA tem o capital social representado por 10.000 acções, o seu valor de avaliação é de € 5.500.000,00 (facto provado número 18), em razão do legado a Recorrente recebeu 2375 acções, cada uma valendo € 550,00, perfazendo assim o valor total de € 1.306.250, o excesso é de € 740.313,50. Considerando o valor do excesso e o valor de cada acção (€ 550,00), o arrolamento, no limite, só poderia ter incidido sobre 1.346 acções, nunca sobre 2265 acções. Pelo que foram arroladas, pelo menos, 919 acções em excesso, sem que exista norma legal para sustentar a decisão, sendo certo que estas 919 acções estão contidas na quota disponível dos bens do de cujus, e foram transmitidas por testamento válido, sendo direito próprio e pessoal da Recorrente; consequentemente, não integram a herança a ser partilhada entre os herdeiros legitimários, incluída a Recorrente, e já são propriedade exclusiva e própria da Recorrente. Consequentemente, o arrolamento de tais acções ofende o direito de propriedade (detenção, uso, gozo e fruição) da Recorrente e, neste medida, viola o disposto nos artigos 1302.º e 1305.º do CC e o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa.
10ª Face ao exposto resulta, pois, claro que o arrolamento, ao contrário do que foi decretado pelo Tribunal a quo deveria ter apenas incidido sobre tantas acções quantas as que se encontram feridas pela inoficiosidade, por excederem a quota disponível da legítima dos herdeiros e ofenderem, injustificadamente, direito de propriedade da Recorrente que tem o legítimo direito de fruir das acções que lhes cabem por direito. Acresce que quando se está perante inoficiosidade terá que se proceder a uma redução, redução esta não visa, patentemente, a igualação da partilha entre os herdeiros legitimários - mas a defesa da integralidade da legítima, isto é, a porção dos bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários. Tendo, nesta medida, o Tribunal a quo violado o disposto nos artigos 328.º, 329.º, 331.º, 333.º, 1302.º, 1305.º 2108.º n.º2, 2168.º n.º 1, 2169.º, 2.171.º, 2174.º n.ºs 1 e 3, 2178.º do CC, 62.º da Constituição da República Portuguesa e, 403.º n.º 2, 576.º n.ºs 1 e 3, 579.º, 1118.º e 1119.º do CPC.
Os requerentes apresentaram alegação de resposta, aí sustentando a manutenção da decisão recorrida.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
- A alteração da matéria de facto;
- A caducidade do direito à redução do legado por inoficiosidade;
- A extensão do arrolamento.
***
Na decisão final recorrida considerou-se como indiciariamente provada a seguinte matéria de facto (corrigem-se as referências processuais):
1. Em 24/12/2020 faleceu AC., sendo o seu último domicílio na (…) Portela de Sacavém, concelho de Loures.
2. A requerida era sua mulher. (alterado, nos termos adiante determinados)
3. MM. e os requerentes são filhos do falecido.
4. Na participação fiscal de transmissões gratuitas foram declarados os seguintes bens:
a.  Fracção habitacional na Portela de Sacavém;
b.  Fracção habitacional na Ericeira;
c.  Saldos bancários no valor de € 58.119,69;
d.  4530 acções na sociedade (…) (doravante, FPS), que correspondem a 45,3% do respectivo capital social. (alterado, nos termos adiante determinados)
5. Ainda em vida, o falecido quis dispor, com efeitos post mortem, de todas as acções que detinha na sociedade FPS,
6. Tendo decidido exarar um testamento público.
7. Tal deixa testamentária, em favor da requerida, assumiu a forma de legado por conta da quota disponível.
8. O falecido deixou dois bens imóveis:
a. Uma fracção habitacional, de tipologia T5 (…) Portela de Sacavém, com um valor de mercado, à data da sua morte, de € 425.000,00;
b.  Uma fracção habitacional de tipologia T3 (…) Ericeira, com um valor de mercado à data da sua morte de € 300.000,00. (alterado, nos termos adiante determinados)
9. Além disso, o falecido deixou depositados em instituições bancárias saldos bancários:
a.  No banco Santander Totta estavam, à data, depositados € 1.991,38.
b.  No banco EuroBic, estavam depositados € 56.128,31. (alterado, nos termos adiante determinados)
10. Ademais, o falecido era proprietário de 45,30% do capital social da sociedade F. & P.S., S.A., que corresponde a 4530 acções (número total = 10000 acções). (alterado, nos termos adiante determinados)
11. O capital social desta sociedade é detido por três accionistas e na seguinte proporção:
a.  A requerida (na qualidade de herdeira, por efeito do testamento) – 45,3%;
b.  A requerida (na qualidade de accionista originária) – 2,2%;
c.  TA. – 47,5%;
d.  AM. – 5,0%. (alterado, nos termos adiante determinados)
12. Esta sociedade é proprietária de:
a.  Armazém industrial (…), concelho de Amadora;
b.  Armazém industrial (…), concelho de Amadora;
c.  Armazém industrial (…), concelho de Amadora.
d.  Prédio rústico na Ericeira, Mafra (…);
e.  Prédio rústico na Ericeira, Mafra (…).
13. Em Outubro de 2022 a FPS solicitou uma avaliação dos imóveis identificados em 12.a. a 12.c.
14. Tendo sido alcançado o valor de € 4.467.600,00, no caso de os imóveis estarem livres de pessoas e bens e prontos a ser vendidos.
15. A exploração do imóvel referido em 12.c. constitui a totalidade do rendimento da FPS que, nesta data, soma a quantia mensal de € 26.967,16.
16. Na óptica da rentabilidade dos imóveis supra referidos, ou seja, da continuidade da laboração da empresa, a FPS, enquanto unidade económica, foi avaliada entre € 5.000.000,00 e € 5.500.000,00.
17. O valor de € 5.000.000,00 e € 5.500.000,00 foi acordado e aceite entre todos os accionistas como o valor de venda da totalidade das participações sociais, isto é, o valor de venda de toda a sociedade.
18. A FPS, S.A. terá um valor global de venda de cerca de € 5.500.000,00.
19. Os accionistas da FPS, entre os quais a ora requerida, chegaram a optar por colocar em venda a sociedade pelo valor de € 5.500.000,00.
20. Em face da proporção das participações sociais de 45,3%, o valor real das acções patentes no património da herança é de € 2.491.500,00, valor que corresponde a 45,3% de € 5.500.000,00. (alterado, nos termos adiante determinados)
21. A requerida é proprietária de 50% sobre os bens e direitos referidos, por força do regime de bens do casamento entre ambos, ou seja, comunhão de adquiridos, pelo que o património da herança se computa em € 1.637.309,80, que corresponde a metade de € 3.274.619,59. (eliminado, nos termos adiante determinados)
22. A requerida, ao ter sucedido nas acções da FPS da propriedade do falecido de cujus, ficou investida no montante de € 1.343.639,96 da herança. (eliminado, nos termos adiante determinados)
23. No último ano, a requerida tem veiculado junto dos restantes herdeiros e dos restantes accionistas da FPS que se prepara para proceder à venda de todas as acções por si detidas na sociedade FPS, S.A.
24. A requerida já iniciou os actos preparatórios tendentes a avaliar o valor real das suas participações sociais, tendo solicitado a elaboração de uma due diligence junto de uma sociedade de advogados.
25. A requerida constituiu advogado, com propósito de estar juridicamente assessorada na operação de venda das participações sociais.
26. A requerida verbalizou, por uma vez, que pretende vender as acções, seja a que preço for.
27. A requerida fez seus os dividendos correspondentes a 47,5% do capital social.
28. A filha identificada em 3. tem vindo, progressivamente, a ter um grande ascendente sobre a requerida.
29. Foi a filha identificada em 3. quem, em Maio de 2023, transmitiu ao accionista da FPS TA. que a referida sociedade iria sofrer alterações na administração.
30. Na última Assembleia Geral da sociedade FPS, realizada em 22 de Maio de 2023, a requerida promoveu-se junto dos restantes accionistas para o cargo de administradora.
31. A requerida não tem habilitações literárias relacionadas com o cargo de administração de uma sociedade comercial, nem a prática do exercício da função.
32. A requerida é octogenária,
33. Apresenta um quadro emocional instável.
34. Esquece-se facilmente (muitas vezes de um dia para o outro) das decisões que toma.
***
Na decisão final ficou ainda consignado não resultarem indiciariamente provados os seguintes factos:
1. No passado, quando a requerida exerceu as funções de administradora, a sociedade FPS viu os resultados estagnados, e mesmo diminuídos.
2. A administração da herança tem sido efectuada pela requerida e pela filha identificada em 3. dos factos provados, sem prestar quaisquer contas aos aqui requerentes.
3. Já é a filha identificada em 3. dos factos provados quem pela requerida fala e condiciona as suas decisões, sem que esta se mostre capaz de contrariar essa prepotência da filha.
4. A requerida tem a tendência irresistível para efectuar despesas injustificadas e ruinosas, tendo despendido desde o falecimento do de cujus e até finais de 2022 mais de € 250.000,00, correspondentes à sua parte nos saldos bancários da herança, dividendos distribuídos pela FPS, cujo destino da maior parte dessa quantia não se sabe concretizar,
5. Mesmo sendo a requerida credora de uma boa pensão de reforma, além da pensão de viuvez.
***
Da alteração da decisão de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Revertendo tais considerações ao caso concreto dos autos, constata-se que a requerida não visa impugnar a decisão sobre a matéria de facto, entendida a impugnação no sentido da necessidade de reapreciação da prova produzida (designadamente a prova testemunhal), mas antes visa a alteração da redacção de diversos pontos dos factos provados, desde logo para ficar aí evidenciada a constatação do regime de bens do casamento entre o autor da sucessão e a mesma (o regime da comunhão geral, e não o da comunhão de adquiridos, como foi feito constar no ponto 21. dos factos provados, e cuja correcção adiante se providenciará) e a consequência dessa constatação, no sentido de a herança não ser constituída pelos bens e direitos identificados, mas por metade dos mesmos, tendo presente a meação da requerida nesse acervo patrimonial, com distinta identificação em termos de valoração pecuniária.
Ora, a questão da afirmação da posição da requerida como meeira e suas consequências na definição dos direitos sobre a herança não se apresenta como uma questão de facto, mas antes como uma questão de direito, porque resulta da interpretação e aplicação de regras de direito substantivo (e assim foi considerada na decisão recorrida o que, por si só, bastaria para afirmar a inutilidade do conhecimento da impugnação de decisão de facto, nos termos alegados pela requerida).
Concretizando, quando a requerida pretende que, relativamente ao ponto 4., se adite às suas diversas alíneas que o que está em causa é metade dos bens e direitos aí identificados (e não a totalidade de cada um dos bens e direitos integrantes da comunhão conjugal), só o faz porque afirma ser tal realidade que constitui “os valores/direitos que faziam parte do património/meação do de cujus e foram transmitidos por efeito do seu óbito”.
Do mesmo modo, é esse o argumento utilizado para sustentar a alteração relativa aos pontos 8., 9., 10. e 20. dos factos provados.
E se é certo que tal argumento é apresentado a coberto da constatação do teor da participação do óbito efectuada para efeitos fiscais, onde se identifica que o que foi transmitido aos herdeiros foi metade do património aí declarado, não é menos certo que tal identificação, de transmissão de metade de cada um dos bens e direitos só surge assim inscrita, para efeitos fiscais, porque resulta do regime de bens do casamento que todos os bens inscritos/registados em nome do autor da sucessão são bens comuns do casal por si formado com a requerida.
Ou seja, estando documentalmente demonstrado que o regime de bens do casamento era o da comunhão geral, estando igualmente documentalmente demonstrado quais os bens inscritos/registados em nome do autor da sucessão, a afirmação de que a herança é integrada pela meação desse património mais não é que a formulação de uma proposição de direito, em resultado da interpretação e aplicação ao caso concreto do disposto no art.º 1732º do Código Civil.
O mesmo se passa quanto aos pontos 11., 21. e 22. dos factos provados.
Com efeito, mais uma vez está em causa a afirmação da qualidade da requerida como meeira do património comum do casal, e as consequências dessa qualidade, para a determinação da expressão quantitativa dos direitos de cada um dos herdeiros, onde se incluem os requerentes e a requerida.
Aliás, é tanto mais evidente que não estão em causa questões de natureza factual quando se observa que a matéria em questão se reporta à “qualidade de herdeira, por efeito do testamento” da requerida, que justifica (ou não) a detenção das acções identificadas em 10. (ponto 11.a.), ou a qualidade da mesma de “proprietária de 50% sobre os bens e direitos referidos” (ponto 21.). Do mesmo modo, o mero resultado de operações aritméticas (expresso nos pontos 21. e 22.) mais não representa que juízos conclusivos (de natureza matemática), não estando em causa a afirmação de qualquer materialidade fáctica, mas a aplicação de conceitos abstractos (as regras da álgebra) aos factos apurados.
Como refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 365-366), “a separação entre o que constitui matéria de facto e que integra matéria de direito é questão que percorre toda a instância processual, desde os articulados, passando pela sentença, até aos recursos (…)”. E “os respectivos contornos poderão sofrer variações em função das concretas circunstâncias, designadamente em razão do verdadeiro objecto do processo, de tal modo que uma mesma proposição pode assumir, num determinado contexto, uma questão de facto e, noutro contexto, uma questão de direito”.
Todavia, quando seja patente que no elenco de factos provados constam proposições de carácter jurídico, devem as mesmas ter-se por não escritas. Assim, e como já se concluiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/10/2013 (relatado por José Eusébio Almeida e disponível em www.dgsi.pt), “na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 1.09.2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de Junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos. Neste sentido, a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado”.
Do mesmo modo, afirma-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/5/2014 (relatado por Mário Belo Morgado e disponível em www.dgsi.pt) que não está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça (e, logicamente, às Relações) “apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado - consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objecto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita”.
Já no seu artigo “Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto)” (Julgar Online, Novembro de 2017) Paulo Ramos de Faria conclui que “é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto. Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas”.
Revertendo tais considerações ao caso concreto do elenco de factos provados constante da decisão recorrida, logo se alcança a necessidade de fazer uso do disposto no nº 1 do art.º 662º do Código de Processo Civil, alterando os pontos de facto que se mostram desconformes com o teor dos documentos a que respeitam, não só no caso do já afirmado regime de bens do casamento entre o autor da sucessão e a requerida, mas igualmente no que respeita à identificação do número de acções que integravam o património conjugal (o que sempre se impunha oficiosamente, tendo presente o disposto no art.º 607º, nº 4, ex vi art.º 663º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil). E, do mesmo modo, há que expurgar a matéria de facto provada dos referidos juízos conclusivos e de natureza não factual, por se tratarem das mencionadas proposições que “devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes” para figurar na decisão relativa à matéria de facto.
Nesta medida, importa desde logo alterar o ponto 2. dos factos provados, no sentido de aí ficar a constar que:
2. À data do óbito o falecido era casado com a requerida segundo o regime da comunhão geral de bens.
Do mesmo modo, e no que respeita às acções participadas para efeitos fiscais, no documento respectivo (datado de 22/4/2021) estão aí referidas 2375 acções transmitidas, e que mais não correspondem que a metade do total de acções (4750) que integravam o património comum do casal (sendo que 4530 estavam inscritas em nome do autor da sucessão e as restantes 220 em nome da requerida). Pelo que, em concordância com a identificação dos restantes bens e direitos que integravam o património comum do casal (os dois imóveis e os saldos bancários, na sua totalidade), importa alterar o ponto 4., no sentido de ficar a constar que:
4.  Na participação fiscal de transmissões gratuitas apresentada em 22/4/2021 foram declarados os seguintes bens:
a.  Fracção habitacional na Portela de Sacavém;
b.  Fracção habitacional na Ericeira;
c.  Saldos bancários no valor de € 58.119,69;
d.  4750 acções representativas de 47,5% do capital social da sociedade (…), (doravante, FPS)
Do mesmo modo, importa alterar os pontos 8. a 10. dos factos provados, já que a referência ao autor da sucessão como titular do património em questão deve ser substituída pela referência ao casal formado pelo mesmo e pela requerida (dado estar‑se em presença de património comum do casal, como já se disse). Pelo que tais pontos ficam com a seguinte redacção:
8. O casal formado pela requerida e pelo autor da sucessão tinha no seu património:
a.  O imóvel identificado em 4.a., com um valor de mercado de € 425.000,00, à data do óbito do autor da sucessão;
b.  O imóvel identificado em 4.b., com um valor de mercado de € 300.000,00, à data do óbito do autor da sucessão.
9.  Além disso, o casal formado pela requerida e pelo autor da sucessão era titular dos saldos bancários identificados em 4.c., assim depositados em instituições bancárias:
a.  € 1.991,38 no banco Santander Totta, à data do óbito do autor da sucessão;
b.  € 56.128,31 no banco EuroBic, à data do óbito do autor da sucessão.
10.  Ademais, o casal formado pela requerida e pelo autor da sucessão detinha as 4750 acções identificadas em 4.d., sendo o total do capital social expresso em 10000 acções.
Do mesmo modo, ainda, no ponto 11. deve passar a ficar identificada pela seguinte forma a detenção da totalidade do capital social da FPS:
a.  A requerida – 47,5%;
b.  TA. – 47,5%;
c.  AM. – 5,0%.
Do mesmo modo, ainda, e para eliminar qualquer contradição entre pontos de facto, no ponto 20. dos factos provados deve passar a constar que:
20.  Tendo presente o valor identificado em 19., o valor real das 4750 acções identificadas em 4.d. e 10. é de € 2.612.500,00.
E, por último, é de eliminar do elenco dos factos provados os pontos 21. e 22.
Em suma, para além das correcções acima determinadas, não há lugar a qualquer outra alteração dos pontos de matéria de facto provada, e sem prejuízo da oportuna consideração dos argumentos apresentados pela requerida para sustentar as alterações pretendidas, embora no domínio da questão relativa à extensão com que o arrolamento foi decretado.
***
Da caducidade do direito à redução do legado
Fazendo apelo ao disposto no art.º 2178º do Código Civil, e tendo presente que é de considerar a aceitação da herança pelos requerentes, pelo menos reportada ao momento da apresentação da participação fiscal identificada em 4. dos factos provados (ou seja, em 22/4/2021), sustenta a requerida, por um lado, que até ao termo do prazo de dois anos aí referido os requerentes não propuseram a “medida judicial para a redução da inoficiosidade (…) seja por que meio processual seja”, assim havendo caducado o direito a tal redução. Do mesmo modo entende que, ainda que se considere que o presente procedimento cautelar corresponde ao referido meio processual apto ao exercício do direito à redução, o referido prazo de caducidade completou-se antes de tal propositura (que ocorreu em 30/8/2023).
Contrapõem os requerentes que o disposto no art.º 2178º do Código Civil tem de ser interpretado no sentido de a acção aí prevista ser a acção comum que há-de ser intentada contra quem não é herdeiro legitimário e que, por isso, carece de legitimidade para a acção de inventário. Já no caso de se tratar da redução por inoficiosidade, relativamente ao legatário que é herdeiro legitimário, é no âmbito da acção de inventário que cabe exercer o direito à redução, e podendo o mesmo ser exercido a todo o tempo, não sendo aplicável o disposto no art.º 2178º do Código Civil.
O instituto da redução de liberalidades por inoficiosidade, previsto nos art.º 2168º e seguintes do Código Civil, está dirigido à protecção da legítima, isto é aquela porção de bens de que o autor da sucessão não podia dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (art.º 2156º do Código Civil).
Como explica Pires de Lima (Código Civil anotado, volume VI, 1998, pág. 273), “a característica fundamental da inoficiosidade está, como a disposição salienta no lugar próprio, na circunstância de a liberalidade (seja ela entre vivos, seja mortis causa) ofender a legítima, excedendo o limite da quota disponível da herança”. E mais explica que se apresenta como essencial, para afirmar que se está perante uma limitação da liberdade de disposição mortis causa, “que, ao precisar o modo como se calcula a legítima (ou o valor da legítima), o artigo 2162º não tenha omitido que, para esse efeito, ao lado dos relicta, se devem também incluir os donata e também as despesas sujeitas a colação”.
Numa outra perspectiva, e como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/2020 (relatado por Rijo Ferreira e disponível em www.dgsi.pt), “a inoficiosidade das liberalidades (art.º 2168º do CCiv) situa-se no âmbito das operações de partilha (cálculo do valor que cabe a cada um dos interessados em função das respectivas quotas hereditárias e preenchimento dos respectivos quinhões) e tem como função reagir à ofensa da legítima dos herdeiros legitimários”.
Assim sendo, e numa primeira abordagem interpretativa do art.º 2178º do Código Civil, parece que a “acção de redução de liberalidades inoficiosas” aí referida não se confunde com a acção especial de inventário.
Com efeito, e como resulta do disposto conjugadamente nos art.º 2102º do Código Civil e 1082º do Código de Processo Civil, é pelo inventário judicial que qualquer herdeiro faz cessar a comunhão hereditária e provoca a partilha, caso a mesma não seja alcançada extrajudicialmente por acordo de todos os interessados.
E estando-se perante a ofensa da legítima destinada aos herdeiros legitimários, o que só se logrará afirmar no âmbito das operações de partilha, não se pode afirmar que o direito à redução da liberalidade inoficiosa se tem por caducado ainda antes dessas operações de partilha, caso tenham já decorrido dois anos desde a aceitação da herança pelo(s) herdeiro(s) legitimário(s).
O que é o mesmo que afirmar que o prazo de caducidade previsto no art.º 2178º do Código Civil não é aplicável à acção de inventário, mas apenas e tão só à acção comum proposta pelo herdeiro contra o beneficiário de liberalidade que não seja herdeiro, visando a redução da mesma por ofensa da legítima.
Como se observa no acórdão de 7/12/2023 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por João Cura Mariano e disponível em www.dgsi.pt), não é “consensual que essa caducidade [ou seja, a caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil] ocorra quando os beneficiários das doações forem interessados na partilha da herança”.
Com efeito, e como ficou afirmado no acórdão de 9/4/2002 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Armando Lourenço, igualmente referido pelos requerentes e disponível em www.dgsi.pt), “sendo o donatário herdeiro legitimário, a redução só em processo de inventário podia [pode] ter lugar”, uma vez que “a redução exige que se proceda a um inventário e à fixação do valor da herança e a uma distribuição dos bens que tenha em conta o efeito das alienações gratuitas na legítima”. Pelo que se concluiu que o “artigo 2178º, CC não é aplicável às situações em que o beneficiário da titularidade seja herdeiro legitimário”.
Do mesmo modo, no acórdão de 3/5/2007 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Francisco Magueijo e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que “o processo de inventário constitui a sede própria para conhecer da inoficiosidade dos legados a favor dos herdeiros legitimários”, mais se afirmando que a “acção prevista no art.º 2178, do Código Civil, reporta-se às situações de as liberalidades terem favorecido quem não for herdeiro legitimário”.
Do mesmo modo, no acórdão de 14/12/2010 do Tribunal da Relação de Guimarães (relatado por Isabel Fonseca e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que “o processo próprio para o cálculo da quota disponível e da legítima de cada um dos herdeiros (filhos e cônjuge), com vista à redução por inoficiosidade de liberalidade feita pelo testador a favor de um deles é o processo de inventário”, mais se concluindo que “a acção de redução de liberalidades inoficiosas a que alude o art. 2178º só tem cabimento nos casos em que as liberalidades foram feitas a favor de quem não assume a qualidade de herdeiro legitimário”.
Do mesmo modo, no acórdão de 8/10/2018 do Tribunal da Relação do Porto (relatado por Miguel Baldaia de Morais e disponível em www.dgsi.pt), conclui‑se que “o prazo de caducidade fixado no artigo 2178º do Código Civil somente rege para o caso de liberalidade feita a pessoa que não seja herdeira do autor da sucessão que a realizou; já se o beneficiário dessa liberalidade for seu herdeiro legitimário, então, a todo o tempo, se pode pedir, no respectivo processo de inventário, a redução da liberalidade por inoficiosidade”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão de 26/11/2019 do Tribunal da Relação do Porto (relatado por José Carvalho e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se que “o prazo de caducidade de 2 anos para redução das liberalidades inoficiosas (2178º CC) não se aplica quando os beneficiários dessas liberalidades são herdeiros”.
É certo que no acórdão de 19/10/2017 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por António Santos e disponível em www.dgsi.pt), ficou afirmado que “o prazo de caducidade definido no art.º 2178, do Código Civil, tem aplicação outrossim no caso em que o donatário é herdeiro legitimário e sendo a questão suscitada em processo especial de inventário”. Do mesmo modo, no anterior acórdão de 6/10/2011 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Jorge Leal e disponível em www.dgsi.pt) havia ficado afirmado que “a caducidade da acção de redução de doações inoficiosas, prevista no art.º 2178.º do Código Civil, pode ser invocada por qualquer beneficiário da liberalidade, seja ou não herdeiro do doador”.
Todavia, não é possível acompanhar a argumentação aí expressa, para concluir pela aplicação do prazo de caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil ao exercício do direito de redução de liberalidades inoficiosas que tenham por beneficiário herdeiro legitimário, e que deva ser exercido em sede de inventário.
Com efeito, o que aí se sustenta é que da doutrina de Alberto dos Reis (R.L.J., ano 85º, pág. 243) emergia que o preceito legal em causa, ao tempo (o art.º 1503º do Código Civil de Seabra), era “letra morta”, porque interpretado no sentido de não ter aplicação, já que a redução sempre carecia de ser pedida em processo de inventário. E como através da redacção do art.º 2178º do Código Civil actual “não se terá querido tomar posição quanto à forma processual do exercício do direito à redução das liberalidades inoficiosas, matéria menos adequada a figurar numa codificação de direito substantivo (…), daí não se pode concluir que se tenha querido preservar a ideia de que a caducidade do direito à redução das liberalidades só beneficia donatários terceiros, ou seja, não herdeiros do doador”, porque “o legislador em parte alguma expressa essa distinção (sendo certo que o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – n.º 3 do art.º 9.º do CC), cuja razão de ser não se descortinaria, face às razões de segurança e certeza que tanto interessam a terceiros como aos herdeiros” (as citações são do referido acórdão de 6/10/2011).
Sucede, todavia, que na mencionada interpretação do art.º 2178º do Código Civil não se atentou correctamente à intenção do legislador, tal como a mesma resulta da opção por uma redacção do preceito em sentido distinto da expressa no anteprojecto apresentado por Inocêncio Galvão Telles. Assim, e voltando a citar o referido acórdão de 6/10/2011, se “no seu anteprojecto da parte de Direito das Sucessões do futuro Código Civil o Prof. Inocêncio Galvão Telles incluiu o art.º 184.º, o qual, sob a epígrafe “Prazo de caducidade”, estabelecia que “A anulação ou redução de liberalidades inoficiosas só pode ser pedida em processo de inventário; e o direito a obtê-la caduca se o inventário não for requerido dentro de dois anos a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário” (“Direito das Sucessões, anteprojecto de uma Parte do futuro Código Civil Português”, Separata do BMJ n.º 54, 1956)”, daí resultando “claro que a redução das liberalidades inoficiosas só podia operar no âmbito do processo de inventário e bem assim que a tramitação do inventário era compatível com a caducidade do direito à redução”, e se esse texto do anteprojecto não veio a ser consagrado no art.º 2178º do Código Civil, antes ficando a constar do preceito em questão que a “acção de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário”, tal só pode significar que o legislador tomou posição, no sentido de não aplicar tal prazo de caducidade à acção especial de inventário, mas apenas à acção declarativa comum, já que, de contrário, utilizaria o texto do anteprojecto ou, no limite, referia tão só o exercício do direito de redução, sem qualificar o meio processual apto a esse exercício.
Ou seja, verificando-se que os requerentes e a requerida são herdeiros legitimários e que a requerida é legatária de bens da herança, não é aplicável ao exercício do direito à redução desse legado por ofensa da legítima o prazo de caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil, face a tudo o acima exposto.
Pelo que, visando-se através do presente procedimento cautelar assegurar o exercício efectivo (e futuro) do direito em questão, através do arrolamento dos bens da herança que foram objecto de tal legado, logo se alcança que não se verifica a caducidade do exercício de tal direito, ainda que por via deste meio cautelar e provisório.
O que equivale a afirmar a improcedência das conclusões do recurso da requerida, no que respeita a esta questão da caducidade do direito dos requerentes à redução do legado por inoficiosidade.
***
Da extensão do arrolamento
Na decisão recorrida determinou-se o arrolamento de 2265 acções, das 4750 acções identificadas em 4.a. e 10. dos factos provados, com recurso à seguinte fundamentação:
(…) a legítima do cônjuge e dos filhos, em caso de concurso, é de dois terços da herança (artigo 2159.º, n.º1, do Cód. Civil) – vale dizer que AC. só poderia dispor de um terço da sua herança.
Não resta dúvida sobre a condição de herdeiros legitimários dos aqui Requerentes (artigo 2133.º, n.º1, alínea a) do Cód. Civil), sendo certo que a partilha entre o cônjuge e os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes quantos forem os herdeiros; a quota do cônjuge, porém, não pode ser inferior a uma quarta parte da herança (artigo 2139.º, n.º1, do Cód. Civil).
Por fim, conforme se dispõe no artigo 2168.º do citado diploma, dizem‑se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários, sendo estas redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (artigo 2169.º do Cód. Civil).
Verificando-se que o de cujus fez uma deixa testamentária, a favor da cônjuge sobreviva, aqui Requerida (…), de todas as acções por si detidas na sociedade “F. & P.S., S.A.”, na forma de legado por conta da quota disponível, importa que se constate, igualmente, que se indicia que tal sociedade terá um valor global de venda de cerca de € 5.500.000,00, pelo que as participações sociais, de 45,3%, terão um valor real de € 2.491.500,00.
Sendo a Requerida proprietária de metade do bem, atendendo à sua qualidade de cônjuge (artigo 1724.º do Cód. Civil), o valor que integra o acervo hereditário é de € 1.245,750.
Tal valor, por si só, cifra-se em mais do triplo da soma dos valores da meação dos demais bens do de cujus (imóveis e contas bancárias) que virão a ser partilhados, que é de € 391.559,85 (€ 212.500,00 + € 150.000,00 + € 995,69 + € 28.064,16), sendo, por isso, evidente que o terço do valor disponível para efeitos de disposição testamentária foi excedido.
Nos termos do artigo 1118.º, n.º1, do Cód. Processo Civil, qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do legatário visado, até à abertura das licitações, a redução dos legados que considere viciados por inoficiosidade.
Quando se reconheça que o legado é inoficioso, o que, em prognose, ocorrerá, como se vem de demonstrar, a Requerida será condenada a repor, em substância, a parte que afectar a legítima (n.º1 do artigo 1119.º do Cód. Processo Civil).
Mais se apura que a Requerida pretende proceder à venda da totalidade das acções que lhe foram legadas – e que, apesar do também esclarecido quadro de instabilidade emocional, acompanhado de algum declínio da sua capacidade de memória, finalizou já todos os actos preparatórios da venda, tendo procedido à avaliação independente do parque imobiliário sito na Amadora (principal fonte de rendimento societário), tendo informado os demais accionistas da sua intenção e, por fim, estando assessorada por um profissional forense.
Ora, é precisamente essa prontidão, aliada a uma instabilidade de intenção, que, de acordo com todas as regras de experiência comum, faz temer que o negócio ocorra, a qualquer momento.
Tudo visto, apura-se, por um lado, um provável direito dos Requerentes sobre as acções que se pretendem arroladas, e, assim, sendo provável a procedência da acção judicial a ser proposta; ao mesmo tempo que, por outro, se verifica a existência de fundamentos objectivos para o receio da venda, o que, naturalmente, frustrará a sua possibilidade de herdar.
Nestes termos, encontram-se reunidos os pressupostos para que seja procedente o pedido de arrolamento, devendo, por ora, tal providência incidir sobre a totalidade das acções, sem prejuízo da sua oportuna redução, caso tanto venha a ser requerido e se mostre consentâneo com a avaliação que será realizada (e que melhor permitirá o cálculo do valor da previsível inoficiosidade)”.
A requerida não coloca em crise o direito dos requerentes à redução do legado, na exacta medida do direito dos mesmos à legítima.
E, do mesmo modo, não coloca em crise a afirmação do fundado receio de que a concretização da anunciada venda das acções detidas pela requerida violará tal direito dos requerentes à legítima, pois não permitirá a sua composição com recurso à totalidade dos bens e direitos dos quais o autor da sucessão não podia dispor.
Todavia, a requerida entende que se torna necessário atentar que as acções que lhe foram deixadas por força do legado são, por sua própria natureza, divisíveis, pelo que haverá que convocar o disposto no art.º 2169º do Código Civil, o que significa que o legado só deve ser reduzido na medida do estritamente necessário a preencher a legítima (isto é, a porção de bens de que o autor da sucessão não podia dispor).
E, nessa medida, conclui que o arrolamento só podia incidir sobre 1346 acções porque estas, tendo presente o valor unitário de € 550,00 que actualmente detêm, representam o valor em excesso da legítima que há que reduzir, tendo presente o valor global da herança, que ascende a € 1.697.809,50 (correspondente à meação do autor da sucessão no património conjugal, e tendo presente que o mesmo faleceu no estado de casado no regime da comunhão geral de bens com a requerida, deixando ainda como herdeiros três descendentes, entre eles os dois requerentes).
Já os requerentes sustentam que nem a requerida nem os requerentes sabem qual a parte das acções objecto do legado que se revela necessária para preencher a legítima, tendo em atenção que as acções ainda carecem de ser avaliadas, e sendo por isso que a redução visada pela requerida “poderá, em tese, colocar em risco o preenchimento da totalidade da legítima dos aqui requerentes, e tal risco não [é] antecipadamente determinável”, sendo que a requerida “já percorreu todo o caminho que lhe permitirá vender as acções”, o que significa que por “cada acção a mais que esteja na disposição da requerida, será invariavelmente uma acção a menos que cada um dos requerentes herdará, prejudicando definitivamente os seus direitos sucessórios legitimários”.
Como já se disse, não sofre controvérsia a verificação do justo receio de dissipação de bens que devem integrar a legítima, tendo presente a conduta da requerida que resulta demonstrada, e que a mesma não colocou em crise.
E estando em causa o direito dos requerentes a ver os bens em questão serem restituídos ao acervo hereditário, para que não fique comprometido o preenchimento dos quinhões hereditários dos mesmos com os bens da herança que integram a legítima, parece, numa primeira observação, que das acções objecto do legado só deve ser arrolada a parte das mesmas que corresponda à porção necessária para, em conjunto com o restante acervo hereditário, representar a porção de bens que integra a legítima.
Sucede que o apuramento da legítima não dispensa o apuramento do valor global do acervo hereditário, já que é a partir do mesmo que se calcula a quota parte que corresponde à legítima (2/3 do valor da herança, segundo o disposto no art.º 2159º, nº 1, do Código Civil, e tendo presente que concorrem à herança a requerida, como cônjuge do autor da sucessão, e três filhos do mesmo).
Com efeito, se é partir da soma do valor dos bens e direitos que integram a herança que se torna possível calcular o valor da legítima, e se em sede de processo de inventário em que se requeira a redução de legados por inoficiosidade pode haver lugar à avaliação dos bens da herança, oficiosamente ou sob requerimento de qualquer interessado, se a mesma ainda não tiver sido realizada no processo (art.º 1118º, nº 3, do Código de Processo Civil), logo se alcança que, não obstante os valores identificados em 8., 9. e 20. do elenco dos factos provados, o valor do acervo hereditário apto ao cálculo do valor da legítima pode não corresponder a € 1.697.809,85 (metade de € 3.395.619,69, valor total do património comum em questão, por se tratar da meação do autor da sucessão, tendo presente o já referido regime da comunhão geral de bens), mas a um valor distinto, tudo dependendo da referida avaliação em sede de inventário.
O que equivale a afirmar que neste momento não é possível concluir, como pretende a requerida, que o valor do património a considerar para efeitos do cálculo da legítima é aquele de € 1.697.809,85, porque os valores dados como indiciariamente provados não têm a virtualidade de fazer afirmar, para efeitos do exercício do direito à redução do legado por inoficiosidade, que a quota de bens de que o autor da sucessão podia dispor ascendia a € 565.936,62, assim se verificando um excesso de € 740.313,38, correspondente ao valor de 1347 acções (e tendo presente que 4750 acções têm o valor global de € 2.612.500,00, como emerge do ponto 20. dos factos provados, o que significa que cada acção teria o valor de € 550,00).
Do mesmo modo, importa não esquecer que, como resulta do art.º 403º do Código de Processo Civil, o arrolamento constitui medida cautelar dependente da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas, sendo de decretar quando haja justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, relativamente aos quais haja de ser feita a especificação dos mesmos, na acção respectiva.
Ou seja, no caso concreto é para os fins do inventário a propor que interessa a determinação do valor das acções legadas, tendo presente a determinação do valor da legítima e da correspondente redução do legado, na medida da inoficiosidade. E porque tal inoficiosidade mais não representa que a correspondente ofensa do direito dos requerentes a que o quinhão hereditário de cada um dos mesmos, enquanto herdeiros legitimários, seja preenchido com bens da herança, é a especificação das acções legadas, no seu todo, que releva para os fins do inventário.
Assim, é de acompanhar o raciocínio exposto na decisão recorrida, no sentido de o interesse que se visa acautelar pelo arrolamento não se expressar quantitativamente nas acima referidas 1347 acções (ou nas 1346 acções indicadas pela requerida), mas no conjunto das acções objecto do legado, e tendo desde logo presente que o receio demonstrado é o da alienação da totalidade das mesmas (por ser essa a demonstrada vontade da requerida), e não apenas de uma qualquer quota parte concreta das mesmas acções.
Pelo que se constata a improcedência das conclusões do recurso da requerida, também quanto a esta última questão, o que conduz à manutenção da decisão recorrida.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela requerida.

7 de Março de 2024
António Moreira
Laurinda Gemas
Pedro Martins (vencido quanto à fundamentação, nos termos da declaração de voto que segue)

Declaração de voto:
Mantenho a minha adesão à posição defendida no acórdão do TRL de 06/10/2011, proc. 1948/08.0YXLSB-A.L1-2, que subscrevi como 1.º adjunto: o art. 2178 do CC trata do prazo de caducidade do direito de pedir a redução das liberalidades sem mais. Não há, pois, base legal para estar a distinguir consoante essas liberalidades sejam feitas a herdeiros legitimários ou a terceiros. Trata-se de uma questão resolvida pelo direito substantivo e que, por isso, não pode ser resolvida com argumentos processuais. Lembre-se que aquele acórdão do TRL esclarece (o que continua a ser verdade 12 anos passados) que não há um único tratadista, dos inúmeros que cita, que defenda a interpretação restritiva do art. 2178 do CC feita por alguma jurisprudência.
No mesmo sentido, também o ac. do TRL de 19/10/2017, proc. 1208/13.4YXLSB.L1-6, citado pelo projecto. Ainda neste sentido, Cristina Pimenta Coelho, no CC anotado (coord. de Ana Prata), vol. II, Almedina, 2017, páginas 1075-1076. E também Diogo Leite de Campos e Mónica Martinez de Campos, Lições de direito das sucessões, 4.ª edição, 2022, Almedina, páginas 255-256 (citam quatro acórdãos no sentido que se está a defender, mas o do TRL de 17/02/2009, proc. 10792/2008-4, defende claramente o contrário, pelo que a sua invocação reconduz-se a um lapso; já o ac. do TRP de 26/03/2009, proc. 0837985, permite a utilização nos dois sentidos; os outros dois acórdãos são os referidos acima do TRL).
Contra, no entanto, seguindo a posição do ac. do STJ de 09/04/2002, proc. 02A740, e outros dessa corrente, vão Miguel Teixeira de Sousa e outros, n’O novo regime do processo de inventário e outras alterações na legislação processual civil, Almedina, 2020, páginas 124-125.
*
A questão não é de conhecimento oficioso (por não dizer respeito a matéria excluída da disponibilidade dos interessados: artigos 303 e 333 do CC, como decorre do facto de a redução ter de ser requerida por eles: art. 2169 do CC), pelo que o tribunal recorrido não se tinha de pronunciar sobre ela, pelo que fez bem em não o fazer.
Entretanto, há que ter em conta a parte final do art. 2178 do CC: tal prazo de caducidade conta-se da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário. Não se conta, pois, desde a morte do autor das liberalidades, como quer a recorrente. E Antunes Varela, CC anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, página 285, ainda parafraseia: “[…] o prazo só começa a contar-se a partir da aceitação da herança por parte de cada herdeiro legitimário.”
Sendo que a aceitação da herança não decorre também da escritura da habilitação de herdeiros (em que aliás só participou a recorrente, não os recorridos), nem de uma declaração para efeitos fiscais (feita por uma mandatária provavelmente da recorrente cabeça-de-casal), como também quer a recorrente (tem-se em conta o disposto no art. 2056 do CC e Antunes Varela, obra citada, páginas 91 a 94, e Cristina Araújo Dias, CC anotado, Livro IV, Almedina, 2018, pág. 71- pode ver-se a discussão, por exemplo, nos dois acórdãos do TRL citados no início – de 2011 e 2017 – e no ac. do TRL de 02/12/2021, proc. 1872/18.8T8LRS-B.L1-2 e, com aplicação ao caso, no ac. do TRE de 18/12/2023, proc. 469/20.7T8ENT.E1: “[…] os actos que são referidos no despacho impugnado como significando essa aceitação, ou seja a escritura de habilitação de herdeiros e a declaração no serviço de finanças, foram praticados exclusivamente pela cabeça de casal, não tendo qualquer intervenção nesses actos os outros três irmãos, aos quais não são apontados quaisquer actos de aceitação”).
Como não há dados para se saber se e quando ocorreu a aceitação da herança (sem contar com a propositura deste processo cautelar), a questão tinha que ser decidida contra a interessada na declaração da caducidade (arts. 342/2 e 343/2 do CC).
Assim, embora por outra via, também defendo a improcedência do recurso.
Pedro Martins