Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1411/18.0T9LRS.L1-9
Relator: MARIA JOÃO FERREIRA LOPES
Descritores: PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
CUMPRIMENTO DE PENA DE PRISÃO ANTES DA APLICAÇÃO DA PTFC
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. A prestação de trabalho a favor da comunidade é, em si mesmo, uma pena autónoma e que constitui uma verdadeira pena de substituição, de carácter não detentivo, destinada a evitar a execução de penas de prisão de curta duração.
II. Colocar-se de forma intencional em condições de não prestar trabalho, significa que a conduta adoptada pelo arguido tinha como desígnio, senão único, pelo menos, necessário, o produzir de um resultado ilegal - no caso, o interromper e impossibilitar a continuação da PTFC.
III. Manifesta e ostensivamente não integra a circunstância prevista no artigo 59.º/2, a) do CP o cometimento, pelo arguido de crime que veio a ditar o cumprimento de pena prisão pelo mesmo, antes da aplicação, nestes autos, de pena de PTFC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No dia 28-09-2023 foi proferido despacho atinente ao arguido AA, com os demais sinais dos autos, revogando a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordenando o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença, no remanescente de 179 dias de prisão.
2. Inconformado com tal despacho veio o arguido dele interpor recurso, defendendo a respectiva revogação, porque, por erro de interpretação violou o disposto no art.º 59.º/2, a) e 6 do CP.
Rematou o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
“1. O arguido não se colocou de modo intencional em situação de não cumprimento - ou de interrupção voluntária de não cumprimento – da PTFC que já havia iniciado.
2. Uma vez que a decisão de aplicação de medida de prisão efectiva não foi decidia por si, mas por um Órgão de Soberania (Tribunal Português).
3. Pelo que no caso “subjuditio” nunca poderia ter aplicação o disposto no art.º 59.º n.º 2 alínea a) do Código Penal, uma vez que este preceito exige – como jurisprudencialmente vem sendo entendido – um incumprimento voluntário da apontada medida de PTFC.
4. Ao decidir como decidiu, o recorrido despacho violou, por erro de interpretação, o disposto no apontado preceito legal, o art.º 56.º n.º 2 alínea a) do Código Penal. Sem conceder,
5. A situação dos autos configura antes a hipótese contemplada no art.º 56.º n.º 6 do Código Penal, dado o facto do incumprimento não poder ser imputável, “in casu” e a nenhum título, ao recorrente.
6. Assim, o recorrido despacho, ao não aplicar nenhuma das hipóteses contempladas nas alíneas a) e b) do n.º 6 do art.º 59.º do Código Penal, violou também, por omissão de interpretação, essa mesma disposição legal.
Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, com o melhor e mais profícuo suprimento, decidindo como se peticiona, decidirão como é de
JUSTIÇA!”
3. Notificado para o efeito, respondeu o Ministério Público ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida e concluindo da forma que a seguir se transcreve:
“Por todo o exposto impõe-se concluir que a decisão recorrida ponderou devidamente a matéria submetida a apreciação, não enferma de qualquer vício nem violou qualquer norma jurídica, designadamente, o art.º 59º do Código Penal ou qualquer outra.
Por tudo quanto se deixou exposto, entendemos que se deverá negar provimento ao recurso e confirmar-se, na íntegra, a decisão recorrida, mantendo-se nos seus precisos termos.
Assim decidindo V. Exas. farão JUSTIÇA”
4. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto, emitiu o seguinte parecer:
“(…)
III. POSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NESTA 2.ª INSTÂNCIA
Salvo o devido respeito por opinião diversa, entendo que assiste razão ao recorrente.
Vejamos;
O recorrente foi condenado, por sentença transitada em julgado em 18-11-2021, como autor material de:
um crime de furto, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, alíneas e) e f), e n.º 4, por referência ao artigo 202.º, alínea c), todos do Código Penal na pena parcelar de 6 meses de prisão;
um crime de introdução em lugar vedado ao público, na forma consumada, previsto e punível pelo artigo 191.º do Código Penal na pena de 2 meses de prisão; e
em cúmulo jurídico, na pena única de 7 meses de prisão, substituída por 210 horas de trabalho a favor da comunidade.
Em 17 de agosto de 2023 a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais informou que o arguido havia executado 31 horas de trabalho até 28 de junho de 2023.
Mais informou a mesma entidade que o arguido se encontrava na situação de preso condenado em 2 anos e 11 meses, à ordem do processo 716/20.5PVLSB, desde 27- 07-2023.
Nessa sequência foi solicitada certidão da respetiva sentença.
Junta, o tribunal a quo determinou a revogação imediata da prestação de trabalho a favor da comunidade, mesmo sem audição do arguido.
Ora, atentemos que:
a sentença nos presentes autos é datada de 18-10-2021;
os factos pelos quais o arguido foi condenado no processo 716/20.5PVLSB foram praticados em 30-08-2020.
Ou seja, o arguido, à data da sentença proferida no presente processo, já havia praticado os factos pelos quais veio a ser condenado naqueloutro processo.
Não colhe, pois, o argumento do tribunal a quo de que o arguido se colocou intencionalmente em condições de não poder trabalhar.
É certo que os factos do processo 716/20.5PVLSB foram praticados voluntariamente pelo arguido, mas tendo-os praticado em momento anterior à sentença proferida no presente processo, jamais se pode afirmar que os praticou com intenção de inviabilizar a execução da prestação de trabalho a favor da comunidade aplicada nesta sentença.
Ademais, cumpre referir que se impunha ao tribunal a quo a audição do arguido, como bem se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-01-2022.
- A prestação de trabalho a favor da comunidade é uma pena de substituição e o seu incumprimento (culposo) conduz, como acontece com outras penas de substituição, à sua “revogação”, fazendo ressurgir a pena de prisão diretamente aplicada e que havia sido substituída por aquela. É o que, expressa e inequivocamente, resulta do n.º 2 do art.º 59.º: «o tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença…».
- Dispõe o artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ao caso de prestação de trabalho ex vi do artigo 498.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, que o tribunal decide por despacho (da eventual revogação) “…depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento…”.
- Atualmente a revogação da suspensão da execução da pena nunca é uma consequência automática da conduta do condenado, exigindo sempre um juízo de ponderação negativo, no sentido da constatação de que se frustraram as finalidades que estiveram na base da suspensão.
- Também dúvidas não se nos suscitam de que se impõe sempre, independentemente do(s) motivo(s) da eventual revogação, a audição do condenado.
- É a propósito da revogação da suspensão da execução da pena de prisão que esta questão tem sido, frequentemente, colocada e apreciada nos tribunais superiores, mas o problema coloca-se, mutatis mutandis, também em relação à revogação da prestação de trabalho.
- A jurisprudência mais recente tem, reiterada e uniformemente, considerado que a audição do condenado é obrigatória e que a sua falta constitui uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, al. c), do Cód. Proc. Penal.
- As razões em que se sustenta tal orientação são claras e convincentes: a revogação da suspensão (ou, no caso, da prestação de trabalho) configura uma alteração da sentença condenatória, já que, sendo aquela uma verdadeira pena (uma pena de substituição), a sua revogação traduz-se sempre no cumprimento pelo condenado de outra pena - a pena de prisão. A revogação é, assim, um ato decisório que contende com a liberdade do arguido, que o atinge na sua esfera jurídica, o que implica o reconhecimento legal do direito constitucional de contraditório e de audiência.
- O direito ao contraditório é uma das mais importantes manifestações das garantias de defesa do arguido em processo penal, constitucionalmente consagrado (art.º 32.º, n.º 5, da CRP), e para os seus destinatários significa, além do mais, a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das “partes” (acusação e defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afetados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efetiva no desenvolvimento do processo; c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contrariar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, 523).
Em suma, entendo que o tribunal a quo ao revogar a prestação de trabalho a favor da comunidade sem prévia audição do arguido preteriu diligência obrigatória.
Caso assim não se entenda, assiste razão ao recorrente porquanto não se verifica o fundamento invocado pelo tribunal a quo, ou seja, o de que o arguido se colocou intencionalmente em condições de não poder trabalhar.
Por conseguinte, sou de parecer que deve ser revogada a decisão recorrida por ter preterido diligência obrigatória (artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal), ou, caso não se perfilhe tal entendimento deve ser dado provimento ao recurso interposto pelo arguido AA julgando-o procedente, determinando-se a revogação da decisão impugnada, por não se verificar o fundamento em que o tribunal a quo assentou a sua decisão.”
5. No cumprimento do estatuído no artigo 417.º/2 CPP o arguido nada disse.
6. No exame preliminar a relatora deixou exarado o entendimento de que nada obstava ao conhecimento do recurso, que, por sua vez, havia sido admitido com o regime de subida adequado.
7. Seguiram-se os vistos legais.
8. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II. Fundamentação
1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões suscitadas no presente, são as de saber se,
- se o despacho recorrido deve ser revogado por ter violado o disposto no artigo 59.º/2, a) do CP;
- se o despacho recorrido deve ser revogado por ter violado o disposto no artigo 59.º/6 do CP.
2. Enquadramento do recurso
2.1. Para melhor se entender o âmbito do presente recurso, cumpre ter presente o seguinte:
No dia 18-10-2021 foi proferida sentença, referente a crimes praticados pelo arguido em 17-07-2018, com o dispositivo que se passa a transcrever
“Pelo exposto, julgando procedente por provada a acusação condeno o arguido AA:
a) Como autor material de um crime de furto, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, als. e) e f) e n.º 4, por referência ao artigo 202.º, al. c), todos do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;
b) Como autor material de um crime de introdução em lugar vedado ao público, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 191.º do Código Penal, na pena de 2 meses de multa.
c) Em cúmulo jurídico, nos termos do art.º 77º do C. Penal, na pena única de 7 meses de prisão, substituída por igual período de trabalho comunitário, ou seja, 210 horas de trabalho a favor da comunidade.
d) A pagar as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC – art.º 313º e 314º do Código de Processo Penal.”
2.2. Datada de 28-06-2023, consta informação da DGRSP – Equipa da Trabalho Comunitário, no sentido de que Relativamente processo supra, informa-se V. Exª, que conforme informação da ... o prestador AA já realizou 31 horas.”
2.3. Com a data de 17-08-2023 a mesma entidade fez chegar ao processo a seguinte informação:
“Relativamente ao processo identificado, vimos pelo presente informar V. Exa. que AA se encontra desde 27-07-2023 na situação de preso condenado em 2 anos e 11 meses no Estabelecimento Prisional de Caxias, à ordem do Processo n.º 716/20.5PVLSB Tribunal Judicial de Lisboa, Juízo Criminal de Lisboa Juiz 12.
Acresce informar que de acordo com a nossa informação datada de 28 de junho 2023, a ... nos informou que o arguido executou 31 horas de TFC.”
2.4. Em 20-09-2023 o Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 12, proc. n.º 716/20.5PVLSB confirmou que o arguido iniciou o cumprimento de pena de prisão de 2 anos e 11 meses de prisão à ordem daquele processo, em 27-07-2023, prevendo-se o respectivo termo a 27-06-2026. Isto pelo cometimento, pelo arguido, de um crime de furto qualificado, em 30-08-2020, tendo a sentença a data de 22-11-2022.
2.5. Na sequência desta informação foi, então, proferida a decisão recorrida, em, com o seguinte teor:
“O arguido AA foi condenado nos presentes autos como autor material de um crime de furto, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, als. e) e f) e n.º 4, por referência ao artigo 202.º, al. c), todos do Código Penal e como autor material de um crime de introdução em lugar vedado ao público, na forma consumada, na pena única de 7 meses de prisão, substituída por igual período de trabalho comunitário, ou seja, 210 horas de trabalho a favor da comunidade.
Informou a DGRSP que o arguido apenas cumpriu 31 horas de TFC, encontrando-se recluso em cumprimento de pena de 2 anos e 11 meses de prisão, desde 27/7/2023, o que se comprova conforme certidão antecedente.
Estipula o art.º 59º, nº 2, do Código Penal, que o tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação; a) se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar.
Ora, a reclusão do arguido, que só ao próprio se pode ficar a dever, inviabiliza a prestação de trabalho a favor da comunidade.
Assim sendo, cumpre revogar a prestação de trabalho a favor da comunidade, por força do art.º 59º, nº 2 al. a) citado, o que se decide.
Tendo o arguido cumprido 31 horas de trabalho comunitário, procedendo ao desconto, remanesce a pena de 179 dias de prisão – art.º 59º, nº 4 do Código Penal.
Notifique.”
3. Apreciando as pretensões do recorrente, comecemos pelo enquadramento legal.
3.1. Preceitua o artigo 57.º do CP que
“1 - A pena é declarada extinta se, decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação.
2 - Se, findo o período da suspensão, se encontrar pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação ou incidente por falta de cumprimento dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e não houver lugar à revogação ou à prorrogação do período da suspensão.”
Nos termos do artigo 58.º do CP,
“1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
2 - A prestação de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas colectivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.
4 - O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável.
5 - A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só pode ser aplicada com aceitação do condenado.
6 - O tribunal pode ainda aplicar ao condenado as regras de conduta previstas nos n.ºs 1 a 3 do artigo 52.º, sempre que o considerar adequado a promover a respectiva reintegração na sociedade.
Por sua vez, prescreve o artigo 59.º do mesmo diploma que
1 - A prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser provisoriamente suspensa por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra, não podendo, no entanto, o tempo de execução da pena ultrapassar 30 meses.
2 - O tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação:
a) Se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar;
b) Se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado; ou
c) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 57.º
4 - Se, nos casos previstos no n.º 2, o condenado tiver de cumprir pena de prisão, mas houver já prestado trabalho a favor da comunidade, o tribunal desconta no tempo de prisão a cumprir os dias de trabalho já prestados, de acordo com o n.º 3 do artigo anterior.
5 - Se a prestação de trabalho a favor da comunidade for considerada satisfatória, pode o tribunal declarar extinta a pena não inferior a setenta e duas horas, uma vez cumpridos dois terços da pena.
6 - Se o agente não puder prestar o trabalho a que foi condenado por causa que lhe não seja imputável, o tribunal, conforme o que se revelar mais adequado à realização das finalidades da punição:
a) Substitui a pena de prisão fixada na sentença por multa até 240 dias, aplicando-se correspondentemente o disposto no n.º 2 do artigo 45.º; ou
b) Suspende a execução da pena de prisão determinada na sentença, por um período que fixa entre um e três anos, subordinando-a, nos termos dos artigos 51.º e 52.º, ao cumprimento de deveres ou regras de conduta adequados.”
O artigo 7.º/1 do Decreto Lei n.º 375/97, de 24/12 - que estabelece os procedimentos e regras técnicas destinados a facilitar e promover a organização das condições práticas de aplicação e execução da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade - impõe que o arguido deve cumprir as obrigações de trabalho decorrentes da decisão judicial e acatar as orientações para e durante a sua execução.
Por sua vez, de acordo com o n.º 2, deste artigo, o arguido para além daquelas obrigações em geral, está especificamente obrigado aos seguintes procedimentos relativamente ao tribunal e entidades que supervisionam o cumprimento da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, para que se torne possível o início e a adequada execução:
“a) Responder às convocações do tribunal competente para a execução da pena e dos serviços de reinserção social;
b) Informar os serviços de reinserção social sobre quaisquer alterações de emprego, de local de trabalho ou de residência, bem como sobre outros factos relevantes para o cumprimento da pena;
(…)”
Importa, todavia, não olvidar que a disciplina da execução desta pena se rege pelos artigos 496.º e 498.º, ambos do CPP, sendo que o n.º 3 desta última norma remete para os nsº 2 e 3 do artigo 495.º do mesmo diploma legal.
Há assim uma equiparação, ao nível das exigências legais, entre a suspensão provisória, revogação, extinção e substituição da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e a falta de cumprimento das condições fixadas numa pena de prisão suspensa na sua execução.
Nos termos do artigo 495.º/2 CPP “O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente”.
Trata-se de assegurar o princípio do contraditório e da audição prévia, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que não seja proferida contra si qualquer decisão/surpresa, por factos dos quais não teve oportunidade de se defender.
Tais princípios têm acolhimento constitucional como decorre da segunda parte do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República, que assegura, o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo.
E, particularmente no que respeita ao arguido, estão em causa as “garantias de defesa” a que alude o n.º 1 do mesmo artigo 32.º. Perante os direitos fundamentais, o processo penal mostra-se orientado, neste domínio, para a defesa, não indiferente ou neutral. O contraditório funciona, assim, como instrumento de garantia desses direitos e corrige assimetrias processuais susceptíveis de pôr em causa o estatuto jurídico do arguido moldado pelo sistema garantístico constitucionalmente exigido, como sistematicamente vem afirmando o Tribunal Constitucional.
Com efeito, a amplitude de exigência do exercício do direito de contraditório e a conformação concreta da garantia das possibilidades efectivas para a defesa e pronúncia do arguido, não poderão deixar de corresponder proporcionalmente ao particular relevo e à importância do objecto de uma decisão que constitui autêntico “desenvolvimento” ou “prolongamento” da sentença e de onde pode resultar o cumprimento de uma pena de prisão.
Por isso, uma interpretação da norma constante do artigo 495.º/2 do CPP, à luz dos princípios constitucionais do contraditório e do processo leal e equitativo, pressupõe necessariamente a exigência de uma participação presencial e eficaz do arguido. Ao mesmo tempo, a eficácia dessa participação tem como condição indispensável que seja dado prévio conhecimento ao arguido dos argumentos invocados e dos meios de prova apresentados pelo Ministério Público.
Consequentemente, a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que qualquer decisão que diga respeito ao arguido – o que inclui, naturalmente, a da revogação da prestação de trabalho a favor da comunidade – deve ser precedida da sua audição prévia e tem enquadrado a preterição dessa formalidade (art.º 495º, nº 2, do CPP) como nulidade insanável, prevista no artigo 119.º/c) do CPP, e, por conseguinte, de conhecimento oficioso pelo tribunal enquanto a decisão que lhe sucedeu não transitar em julgado - neste sentido e por todos cf. acs. da RP de 19-01-2022, proc. 1167/19.0GAMAI-A.P1; RC de 29-10-2014, proc. n.º 119/10.0PCCBR.C1; STJ de 10-02-2021, proc. n.º 59/16.9PHSXL-A.S1; RG de 18-06-2018, proc. n.º 567/08.5GCVNF-B.G, RE de 30-09-2014, proc. n.º 89/06.9GCSTB-A.E1 todos consultáveis em www.dgsi.pt e deste Tribunal e Secção, de 25-03-2021, proc. n.º 731/14.8PBSCR-A.L1-9, jurisprudência.pt.
Ora, no caso dos autos, resulta claro e inequívoco que a Mmª Juiz não procedeu a qualquer audição do arguido antes de proferir o despacho recorrido ou, sequer, que tivesse existido qualquer tentativa de o fazer. Assim, não tendo o tribunal recorrido dado cumprimento aos artigos 495.º/2 e 498.º/3 do CPP, nem feito qualquer diligência para o cumprir, o que constitui nulidade insanável (artigo 119.º/c) do CPP), sempre seria caso de declarar nulo o despacho recorrido, nos termos do artigo 122.º do CPP.
Tal declaração de nulidade prejudicaria o conhecimento das demais questões suscitadas.
No entanto, a bem da celeridade e da proibição da prática de actos inúteis, importa aqui referir o seguinte.
O despacho recorrido é manifestamente nulo – pelas razões já aduzidas - e é manifestamente ilegal, por violar o disposto no artigo 59.º/2 alínea a) do CP.
A nulidade, como é sabido, visa assegurar, desde logo, os interesses processuais, em nome de quem a mesma é estipulada.
No caso, o próprio arguido a não invocou. Com efeito, o que pretende, não é a nulidade do despacho e a sua repetição, depois de ser ouvido, mas sim, a sua revogação, por se não verificarem os pressupostos de que depende a decretada revogação da PTFC.
Decretar a nulidade com aquele motivo, para vir a ser reproduzido o mesmo despacho, não faz qualquer sentido útil, nem para o processado nem para os interesses imediatos do próprio arguido.
Seguramente que voltaria o processo a este Tribunal, para nos pronunciarmos, então e, só então, da questão já aqui, agora, suscitada, da ilegalidade do despacho.
Donde, por esta ordem de razões, se passará, desde já, a conhecer da primeira das questões suscitadas pelo recorrente.
3.2. A violação, pelo despacho recorrido, do artigo 59.º/2, a) do CP.
O critério material para decidir sobre a revogação da prestação de trabalho é exclusivamente preventivo. O tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de substituição da pena de prisão ainda podem ser alcançadas com a PTFC ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado.
Os efeitos da revogação são de dupla ordem:
- se o incumprimento for imputável ao condenado, o tribunal ordena o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, com o desconto dos dias de trabalho já prestados;
- se o incumprimento não lhe for imputável, o tribunal pode, em função das necessidades de prevenção geral e especial, substituir a pena de prisão por pena de multa ou suspender a execução da pena de prisão.
A ilustrar esta derradeira situação em sede da Comissão revisora do Código Penal (Actas, 1993, 59), dá-se como exemplo a situação de ocorrência de um acidente incapacitante.
A revogação da PTFC, por razão imputável ao condenado traduz-se sempre no cumprimento da pena de prisão, já fixada na sentença condenatória.
A revogação não é automática, tornando-se imprescindível que nos autos se reúnam os elementos necessários para, em consciência, se decidir, primeiro, pelo incumprimento imputável ao condenado e assim, tomar uma decisão que vai afectar a sua liberdade - já que a prisão é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário.
Isto, porquanto é consabido que a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, como pena de substituição, encontra a sua justificação politico-criminal no movimento que surgiu e, se vem acentuando, cada vez mais, a partir das últimas décadas do séc. passado, contra as curtas penas de prisão.
A razão de ser deste movimento, prende-se com as nefastas consequências, que estas curtas penas de prisão proporcionam, derivadas da estigmatização do agente, pelo contacto com o meio prisional.
Cumpre salientar que a prestação de trabalho a favor da comunidade é, em si mesmo, uma pena autónoma e que constitui uma verdadeira pena de substituição, de carácter não detentivo, destinada a evitar a execução de penas de prisão de curta duração.
Relembrando, a decisão recorrida teve como único e exclusivo fundamento da revogação operada ao PTFC a circunstância de, após a condenação, o agente se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar. E isto apesar de o MP, na resposta ao recurso, convocar outras circunstâncias que não fundamentam aquela decisão:
- uma fraca adesão do arguido ao cumprimento daquela pena, estando bem ciente de que se não prestasse trabalho a favor da comunidade e cumprisse a referida pena de substituição de forma positiva, viria a cumprir a pena de prisão fixada a título principal na sentença;
- o seu registo criminal é bem revelador da personalidade desviante que o arguido tem manifestado ao longo dos anos, e por essa razão, estava bem ciente das inúmeras advertências que lhe foram sendo feitas ao longo do tempo e que desmereceu por completo;
- pois que se não queria ser condenado pela pratica de qualquer crime, ainda mais reiterando esse tipo de comportamento ao longo dos anos, bem sabia que iria cumprir pena de prisão, como aliás já tinha sucedido no passado (entre 2011 até ao ano de 2018 o arguido esteve em cumprimento de pena de prisão e por isso são desconhecidos actos ilícitos que possa ter praticado em termos criminais nesse período);
- daí que se conclua que a personalidade impulsiva revelada pelo arguido, que não o impede de voltar a cometer novos ilícitos criminais de idêntica natureza dos que se encontram em causa nos autos;
- assim, conclui-se, como concluiu o Tribunal a quo, que a pena de substituição não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição pois que o arguido, com o seu comportamento voluntário, grosseiro, merecedor de grave censura, se colocou em situação de impossibilidade de prestar trabalho, nem oferece condições pessoais essenciais ao êxito do seu processo de reinserção social em liberdade.
Do que vem exposto, parece-nos claro e evidente que o MP labora em erro sobre o fundamento da decisão recorrida, sendo que as circunstâncias por si enumeradas se prendem com aquelas previstas no artigo 59.º/2, b) e c) e não com aquela prevista na al. a) da mesma norma, repetimos, único fundamento da decisão ora posta em crise.
Assim, a questão em causa prende-se exclusivamente com o saber o que significa “colocar-se intencionalmente da situação de não poder trabalhar” e se integra tal situação “a “reclusão do arguido”.
E, se numa primeira abordagem não temos dúvidas em afirmar que a reclusão do arguido só a ele se ficou a dever, pois que foi ele que praticou os crimes por via dos quais lhe foi aplicada uma pena de prisão, esta parece-nos uma visão manifestamente simplista e incorrecta do preceito legal em causa.
Como é entendimento geral, o regime da revogação da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade deve ser similar ao da revogação da suspensão da pena de prisão.
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As Consequências jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2009, pág. 380, § 592):
“A solução correcta (...) residiria pois — em consonância com o que deve ocorrer quando as condições de suspensão de execução da pena não são cumpridas — na possibilidade de revogação da pena de PTFC e consequente cumprimento da pena de prisão fixada na sentença; e não só no caso de o condenado se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar ou de se recusar, sem justa causa, a prestar o trabalho, como ainda nas hipóteses (esquecidas pela lei vigente) de infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena de PTFC a que foi condenado e (sobretudo) de praticar crime durante o período de prestação de trabalho pelo qual venha a ser condenado.
Ponto seria só, também aqui, que tais circunstâncias não determinassem automaticamente a revogação, mas só quando revelassem que as finalidades da pena de PTFC já não poderiam ser alcançadas. (…)”.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 2008, pag. 207) “A colocação intencional em condições de não poder trabalhar representa uma concretização do princípio da actio libera in causa, consagrado no artigo 20.º, n.º 4. Também nos termos deste princípio deve subsumir-se a situação de incapacidade criada com dolo necessário ao artigo 59.º/1, a)”. De harmonia com o disposto no artigo 20.º/4 do CP, “A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.” Trata-se de uma excepção à regra da coincidência temporal entre a inimputabilidade e o facto porque o agente “instrumentaliza o seu próprio corpo de modo a realizar um facto querido pela sua vontade”.
A lei não define o que deve se entender por “se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar”, deixando ao critério ponderado do Juiz a fixação dos seus contornos.
Deve, contudo, tal expressão ser entendida em sentido amplo, apelando a uma visão fáctica da mesma, com a pretensão de abranger um conjunto de circunstâncias objectivamente reveladoras, ali, de uma voluntária e pré ordenada conduta que impossibilite de prestar o trabalho, em que o comum dos cidadãos não incorre, não merecendo ser tolerada nem desculpada, pela ordem jurídica, no seu conjunto.
Colocar-se de forma intencional em condições de não prestar trabalho, terá o significado de pressupor que a conduta adoptada tinha como desígnio, senão único, pelo menos, necessário, o produzir de um resultado ilegal - no caso, o interromper e impossibilitar a continuação da PTFC.
Na verdade, “intencionalmente” significa “o que é feito de propósito, por querer, deliberadamente” – cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo XI, pag. 4679.
Parece-nos que, ostensivamente, não é o caso dos autos. Recorde-se que
- os ilícitos a que se reportam os presentes autos foram cometidos em 17-07-2018;
- a sentença proferida nestes autos tem a data de 18-10-2021;
- o crime cometido no processo que ditou a sua reclusão foi cometido em 30-08-2020;
- tendo a sentença sido proferida em 17-11-2022;
- o arguido iniciou o cumprimento da pena em 27-07-2023, sendo que a revogação da PTFC ocorreu a 28-09-2023.
Ou seja, o crime que ditou a reclusão do recurso foi cometido antes da sentença proferida nestes autos. O que, desde logo, afasta qualquer possibilidade de o arguido ter cometido o crime em 30-08-2020 com o único e exclusivo propósito de não cumprir a pena de PTFC, que ainda não lhe tinha sido aplicada.
Concluindo e finalizando, tal como fez o arguido,
“Nesta conformidade, porque o facto de o arguido ter sido preso, para cumprimento de pena, não dependeu dele mas de uma decisão judicial que se lhe impôs (sentença condenatória transitada em julgado), o que não constitui qualquer factor endógeno (proveniente da vontade do arguido) mas exógeno (decisão judicial proferida por um magistrado que decidiu impor e mandar executar uma pena de prisão efectiva), não se poderá no caso “subjuditio”, considerar que o arguido propositadamente ou intencionalmente se colocou em situação de não prosseguir a PTFC que aliás já havia iniciado.”
Procede, assim, este segmento do recurso.
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3.3. E da mesma forma, como consequência directa e necessária, do que vem de ser dito, a propósito do carácter não intencional da causa de interrupção da pena de PTFC importa avaliar da consequência para interrupção desta pena por causa não imputável ao arguido. O que nos remete para o n.º 6 do artigo 59.º do CP, que o arguido diz ter sido violado.
Questão que apenas se coloca pela não verificação, agora decidida, do pressuposto da revogação, importando o conhecimento saber se é caso de substituição ou de suspensão da dita PTFC.
A decisão recorrida não se pronunciou, nem podia, sobre esta questão. E não fornece qualquer contributo para que este Tribunal o possa agora fazer.
Para tal revela-se absolutamente necessário, desde logo, a audição do arguido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 495.º/2 e 498.º/3, ambos do CPP.
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III. Dispositivo
Atento todo o exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, em função do que se
- revoga a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que, posteriormente à audição do arguido, aprecie de novo a questão aqui em causa, sendo de afastar a revogação da PTFC com fundamento no artigo 59.º/2, a) do CP.
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Sem custas, atento o provimento (artigo 513.º/1 do CPP).
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Notifique.
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Lisboa, 07-03-2024
Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP.
Maria João Lopes
Cristina Santana
Ana Marisa Arnedo