Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26506/15.9T8SNT-A.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
DIREITO DE VOTO
IGUALDADE DOS CREDORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.O princípio da igualdade dos credores não é absoluto, podendo a desigualdade de tratamento dos credores estar justificada por razões objectivas.
2.A necessidade de aprovação do plano de recuperação não pode justificar a violação do princípio de tendencial igualdade de tratamento de todos os credores
3.É de aplicar a limitação constante do art. 212º, nº2, al. a) do CIRE à aprovação do plano de recuperação, o que significa que os credores cujos créditos não hajam sido modificados pela parte dispositiva do plano não têm direito de voto sobre a proposta de plano.
4.O regime do PER não é aplicável às pessoas singulares que não exerçam a sua actividade profissional como agentes económicos.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


S. Cristina S. P. veio intentar processo especial de revitalização ao abrigo do disposto no art. 17º-A e ss. do CIRE [1].

Decorridas negociações, a requerente remeteu ao processo o plano de recuperação aprovado.

A credora BMW Bank GMBH – Sucursal Portuguesa, que votou contra, veio apresentar oposição à homologação do Plano de Revitalização.

Conclusos os autos foi proferida sentença que não homologou a deliberação dos credores que aprovou o plano de revitalização da devedora, com a seguinte fundamentação: “…No caso, verifica-se que o PR constante de fls. 155 e ss. foi aprovado pela maioria de votos e de créditos exigida na alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE. Não obstante, também se verifica que, ao contrário do que acontece com os demais créditos, que sofrem uma redução de 75%, inexiste qualquer haircut do crédito garantido e do crédito comum titulados pelo credor hipotecário CGD.

Por outro lado ainda, e no que diz respeito aos créditos comuns, no PR estabelece-se que o credor CGD será pago mais cedo do que os demais credores. Tudo isto significa que existe um tratamento privilegiado da CGD, o qual não tem qualquer razão objectiva: no primeiro caso, é verdade que em processo de insolvência o credor hipotecário beneficia do direito real de garantia consubstanciado na hipoteca; porém, nesse processo, esse crédito apenas será pago em função do preço de venda do objecto da garantia real, que representará sempre um valor inferior em face da contraprestação a receber na sequência do cumprimento, em sede de PR, do contratado com o devedor. Assim, há que não homologar o PR, na medida em que se verifica que existe aqui a violação de normas aplicáveis ao seu conteúdo, designadamente do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 194.º do CIRE (n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE). …”

Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusõesque se reproduzem:

A)Não existe no plano de recuperação apresentado pela Recorrente qualquer violação ao princípio da igualdade ínsito no artigo 194º do CIRE.
B)O ponto nº 4, a páginas 14 e 15 do plano de recuperação, expõe e justifica, de forma aprofundada, as diferenciações no pagamento aos seus credores, com razões bem objectivas, que se passam a transcrever:
C)A diferenciação no pagamento ao credor “Caixa Geral de Depósitos”, assenta em bases bem justificadas e objectivas, sendo o tratamento diferenciado permitido desde que devidamente justificado.
D)Em primeiro lugar, importa salientar que o crédito da “Caixa Geral de Depósitos” é substancialmente superior aos demais e como tal é um credor fundamental e intransponível para a viabilização do plano de recuperação, motivo pelo qual é expressamente admitido que o voto contra deste credor implica forçosa e necessariamente a insolvência da devedora e assim a impossibilidade praticamente certa dos credores comuns serem ressarcidos.
E)Foi o credor hipotecário que financiou a aquisição da fracção autónoma propriedade da Devedora.
F)Em segundo lugar, o montante do seu voto é fundamental para se obter o desiderato de aprovar o presente plano de recuperação e assim prosseguir e atingir a finalidade última do presente processo – a viabilização económica da Devedora.
G)Em terceiro lugar, os rendimentos auferidos pela devedora, não permitem um plano mais favorável aos credores comuns, pelo que, sem esta configuração, o presente plano de recuperação não é viável nem exequível.
H)Em quarto lugar, a homologação deste plano de recuperação é mais favorável a todos os credores do que a prossecução do processo para liquidação, cenário no qual os credores comuns receberão uma percentagem muito inferior dos seus créditos (ou mesmo nula) face ao proposto no presente plano.
I)A não homologação deste plano acarretará a total destruição económica, emocional e psicológica da devedora e do filho menor.
J)Está em causa a vivência de um agregado familiar, com um filho menor, mormente, a sua casa de família.
K)A conjugar e a acrescentar ao supra exposto, importa ainda salientar que o artigo 65º nº 1 da Constituição da República Portuguesa declara o direito de todos terem uma habitação e o nº 1 do artigo 67º do mesmo Diploma fundamental dispõe que “a família como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”.
L)Recorre-se ainda a um recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.04.2014 referente ao processo nº 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 in “www.dgsi.pt” o qual dispõe que “O novo CIRE privilegia a recuperação da empresa em lugar da liquidação do património do devedor insolvente e da repartição do produto obtido pelos credores” e que “a homologação do plano de insolvência só deve ser rejeitada quando a diferenciação entre os credores é meramente arbitrária, sem qualquer fundamento objectivo e racional, o que não sucede se o tratamento diferenciado dado às instituições bancárias e financeiras está objectivamente fundamentado”.
M)Para uma melhor análise e interpretação das “razões objectivas” previstas no artigo 194º nº 1 do CIRE é necessário enquadrá-lo com o prejuízo efectivo que os credores possam vir a ter com a homologação do plano de recuperação ou seja, se fica ao abrigo do plano numa situação previsivelmente menos favorável daquela que teria na sua ausência, conforme decorre do artigo 216º nº 1 al. a) do CIRE.
N)Invocando o principio constitucional da proporcionalidade, a análise aprofundada da justificação do tratamento diferenciado entre credores terá conjugar o artigo 194º nº 1 do CIRE com o artigo 216º nº 1 al. a) do CIRE, pois parece fundamental que o Meritíssimo Juiz “a quo” tivesse alegado um prejuízo efectivo para os credores com a homologação do plano, o que no caso “sub judice” não sucedeu porque, objectivamente, tal prejuízo não existe.
O)Nesta ponderação de valores, também se terá de ter em atenção os interesses dos credores, pois são os seus interesses que estão em causa nesta lide, realçando-se que, “in casu”, o plano de recuperação teve 89,63% de votos favoráveis.
P)Para o efeito a Recorrente socorre-se do Douto Acórdão desse Venerando Tribunal de Lisboa de 25.03.2014 relativo ao processo nº 3175/13.5TBSXL.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, o qual declara que, “na fundamentação do seu julgamento, haverá que ter sempre em conta que a interpretação de uma qualquer norma jurídica, seja ela de natureza substantiva ou adjectiva, tem forçosamente que obedecer aos critérios consubstanciados nos três números do art.º 9º do Código Civil, aos quais acrescem, para a construção do conceito “solução mais acertada”, as exigências inscritas nos artºs 335º (proporcionalidade assente na posição que o valor ético que valida a norma e a torna em verdadeiro Direito ocupa na Hierarquia de Valores que enforma e dá consistência ao tecido social comunitário) e 334º do mesmo Código, destacando-se neste último e sem prejuízo de haver de atender também às finalidades económicas e sociais dos direitos em causa, a atenção que é dada, em primeira linha, à boa-fé e
aos bons costumes (isto é, novamente e sempre, aos valores éticos que constituem os pilares estruturantes da Comunidade, que validam as normas legais produzidas pela forma prevista na Constituição e que servem de padrão aferidor quando está em causa apreciar a adequação das condutas individuais aos padrões comportamentais reputados exigíveis à vivência em Sociedade).
Q)Nesse julgamento têm igualmente de ser salvaguardados os elementares princípios que regem o julgamento leal e não preconceituoso (fair and unbiased) e mediante processo equitativo que a todos é assegurado e garantido, com força obrigatória directa e geral (art.º 18º n.º 1 da Constituição da República), pelos artºs 20º n.º 4 da Constituição da República, 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217A (III), de 10 de Dezembro de 1948, 6º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Anexa ao Tratado de Lisboa e também pela lei ordinária através das normas que compõem o Código de Processo Civil, em particular o Título I do Livro I
desse diploma (que, como já enunciado, é o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).
R)“O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas” - e que, em conformidade com os princípios supra expostos e com uma razoabilidade lógica assente em argumentos de igualdade de razão, não se aplica apenas às insolvências. Só que essas razões objectivas existem e são patentes no caso em análise. Na verdade, o crédito detido pela credora “BANCO ST, SA” é, em parte essencial, hipotecário, logo gozando de garantias de pagamento substancialmente mais fortes que as legalmente colocadas à disposição dos credores comuns, como o são, aqui, a apelante e a sociedade “BB …”.
S)E esse é um facto objectivo.
T)Outrossim, como a própria apelante reconhece, na sua conclusão Q., «… qualquer inflexibilidade do Credor hipotecário (e comum) ST resultaria numa não aprovação do plano, com a eventual conclusão do PER com a sua declaração de insolvência», o que significa que, a não ser acolhida e satisfeita a vontade negocial dessa credora maioritária, ficaria necessariamente frustrada a possibilidade de atingir o objectivo fixado no já citado n.º 1 do art.º 17º-A do CIRE, com as nefastas consequências que decorreriam dessa declaração de insolvência não apenas para os devedores mas até para os próprios credores comuns, um deles a apelante, como bem acentuam os apelados.
U)forçada a insolvência dos devedores - qual vitória à Pirro - a apelada muito dificilmente poderia obter o ressarcimento de qualquer porção do crédito cujo pagamento lhes é devido, mercê da força da garantia reconhecida ao credor hipotecário.
V)E isso é também um facto objectivo que a apelante, na sua inflexibilidade - quiçá, teimosia - não quer reconhecer apesar do seu carácter evidente.
W)A não ser, o que não se aceita que seja o caso, que, qual imoral agiota, se pretenda apenas a destruição económica, emocional e psicológica dos devedores que seria um dos resultados que seguramente decorreriam da declaração de insolvência dos mesmos. Essa não é, claramente, a vontade do Legislador e seguramente não é também a vontade da recorrente.
X)Por fim, importa ainda salientar que o Meritíssimo Juiz “a quo” faz um juízo de prognose conclusivo que, no modesto entender da Recorrente, não se encontra minimamente fundamentado quando declara que em sede de insolvência o preço do imóvel hipotecado será inferior ao crédito garantido, pelo que o credor hipotecário estará a ser favorecido pelo plano de recuperação, quando este contempla o seu pagamento integral.
Y)Em primeiro lugar, o Meritíssimo Juiz “a quo” não pode ter qualquer certeza quanto ao preço de venda do imóvel da Recorrente em sede de insolvência.
Z)Em segundo lugar, este entendimento é absolutamente paradoxal, pois se na verdade, nem o pagamento do crédito garantido está assegurado em sede de insolvência, inexiste qualquer lógica em não homologar a proposta de plano de recuperação aprovado pelos credores, “atirando” a Recorrente, de forma inelutável, para tal insolvência.

A.A.)Em terceiro lugar, este entendimento não ilustra a situação que habitualmente ocorre em sede de liquidação de activos pois, o normal é o credor hipotecário adjudicar para si o bem quando não surgem propostas que cubram o seu crédito.
A.B.)Em quarto lugar, não se entende como poderá a eventualidade do credor garantido não ser integralmente pago contender com o artigo 194º do CIRE, quando é certo que estamos perante o único crédito deste tipo existente nesta lide e assim, não se encontra em idêntica situação com qualquer outro crédito pela Recorrente contraído.
A.C.)Face a tudo quanto supra se expande, nada mais resta à Recorrente senão requerer a Exas., Venerandos Desembargadores, se dignem ordenar que seja revogada a Douta Sentença ora recorrida, substituindo-a por outra que homologue a proposta de plano de recuperação apresentada e aprovada pelos seus credores, pois a mesma não viola o disposto no artigo 194º nºs 1 e 2 do CIRE.
A.D.)Pelo contrário, o teor da Douta Sentença ora recorrida viola frontalmente o predito artigo 194º do CIRE.
Contra-alegou a credora BMW propugnando pela improcedência da apelação.

QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da apelante (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) a única questão a decidir é se o plano de recuperação deve ser homologado por não violar o princípio da igualdade, ao contrário do entendido pelo tribunal recorrido.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O constante do relatório supra, e, ainda:
A-Do Plano de Recuperação junto aos autos consta, no que ora importa:
Os credores do PER registarão as seguintes alterações:
1-Estado – Fazenda Nacional – 1.922,31€
Plano de Regularização        
1.1. Propõe-se o pagamento da totalidade da dívida em regime prestacional, até 16 prestações mensais, iguais e sucessivas, não podendo nenhuma delas ser inferior a 1 unidade de conta …

2-Financiamentos obtidos – 254.440,34€
Créditos garantidos: 214.416,88 [2]
Plano de regularização: propõe-se o pagamento da totalidade das prestações vincendas, com capitalização das prestações vencidas, de acordo com o contrato de financiamento inicial no que concerne ao prazo, percentagem de diferimento e manutenção de garantias prestadas. …
Créditos Comuns: 40.023,46€ [3]
Plano de Regularização: propõe-se o pagamento de 25% dos créditos reconhecidos, em 72 prestações mensais, iguais e sucessivas. O início do pagamento ocorrerá no último dia útil do mês seguinte àquele em que transitar em julgado a sentença que homologar o plano de recuperação. …
No que se refere ao credor CGD, SA, propõe-se o pagamento da totalidade das prestações vincendas com capitalização das prestações vencidas, em 54 prestações mensais, iguais e sucessivas, mantendo-se todas as demais condições contratadas, sendo a taxa de juro de 15,00%. O início dos pagamentos ocorrerá no último dia útil do mês seguinte àquele em que transitar em julgado a sentença que homologar o plano de recuperação.
3 - Outros Credores: 22.148,02€
Créditos Comuns: 21.348,02€
Plano de Regularização: propõe-se o pagamento de 25% dos créditos reconhecidos, em 72 prestações mensais, iguais e sucessivas. O início do pagamento ocorrerá no último dia útil do mês seguinte àquele em que transitar em julgado a sentença que homologar o plano de recuperação. …
Créditos Subordinados: 800,00€
Plano de Regularização: uma vez que se trata de um credor especialmente relacionado com a devedora, propõe-se o perdão da totalidade da dívida.

4-Outros Aspectos Relevantes
A diferenciação no pagamento ao credor “Caixa Geral de Depósitos”, assenta em bases bem justificadas e objectivas, sendo o tratamento diferenciado permitido desde que devidamente justificado.

Em primeiro lugar, importa salientar que o crédito da “Caixa Geral de Depósitos” é substancialmente superior aos demais e como tal é um credor fundamental e intransponível para a viabilização do plano de recuperação, motivo pelo qual é expressamente admitido que o voto contra deste credor implica forçosa e necessariamente a insolvência da devedora e assim a impossibilidade praticamente certa dos credores comuns serem ressarcidos.
Com efeito, foi o credor hipotecário que financiou a aquisição da fracção autónoma propriedade da Devedora.
Em segundo lugar, o montante do seu voto é fundamental para se obter o desiderato de aprovar o presente plano de recuperação e assim prosseguir e atingir a finalidade última do presente processo –a viabilização económica da Devedora.
Em terceiro lugar, os rendimentos auferidos pela devedora, não permitem um plano mais favorável aos credores comuns, pelo que, sem esta configuração, o presente plano de recuperação não é viável nem exequível.
Em quarto lugar, a homologação deste plano de recuperação é mais favorável a todos os credores do que a prossecução do processo para liquidação, cenário no qual os credores comuns receberão uma percentagem muito inferior dos seus créditos (ou mesmo nula) face ao proposto no presente plano.
De facto, a não homologação deste plano acarretará a total destruição económica, emocional e psicológica da devedora e do filho menor.
Por último, está em causa a vivência de um agregado familiar, com um filho menor, mormente, a sua casa de família.
…”
B–O Plano de Recuperação apresentado foi votado favoravelmente pelos credores Autoridade Tributária e CGD, SA (88,24%), tendo os credores Banco Santander Totta, SA e BMW Bank GMBH (11,76%) votado desfavoravelmente.
C–A CGD reclamou créditos no montante de €216.963,31, sendo €214.416,88 relativos a “crédito mútuo com hipoteca”, e €2.546,43 relativos a “crédito pessoal”.
D–A credora BMW Bank GMBH Portuguesa reclamou créditos no montante de €6.340,77 relativos a remanescente em dívida por incumprimento de contrato de locação financeira.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Dispõe o nº 5 do art. 17º-F que o juiz decide se homologa o plano de recuperação aprovado ou se recusa a sua homologação, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º.

A decisão recorrida não homologou o plano de revitalização da devedora aprovado por entender que ocorre violação do princípio da igualdade.

A recorrente entende que tal violação não se verifica, por existirem razões objectivas a determinar a diferença de tratamento dos credores.

Dispõe o art. 194º que “1- O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas pelas razões objectivas. 2 – O tratamento mais favorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado em caso de voto favorável. …”.

Todos os credores devem ser tratados de forma igual no desenrolar do PER, bem como, e principalmente, no plano de recuperação, assim se assegurando um processo negocial transparente, de tratamento equitativo, que permita a efectiva participação dos credores, em observância aos princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011, de 25 de Outubro (art. 17º-D, nº 10).  

Nas contra-alegações sustenta o credor BMW que não foi chamado a participar nas negociações, não obstante tenha manifestado (nos termos legais) o seu interesse nisso, alegando ter ocorrido, logo naquela fase, violação do referido princípio, que consubstancia violação não negligenciável de regras procedimentais.

Não contêm os autos elementos que nos permitam aquilatar da bondade do invocado.

Já quanto à violação do referido princípio no plano de recuperação afigura-se-nos ser o mesmo óbvio.

O tratamento igual dos credores pressupõe a igualdade/identidade de situações, como, comummente se entende.

Conforme resulta da factualidade provada, o plano de recuperação prevê, no que aos créditos comuns respeita [4], o pagamento de 25% dos créditos reconhecidos, em 72 prestações mensais, iguais e sucessivas [5], ou seja, perdão de 75% do crédito e pagamento de 25% do mesmo em 6 anos, enquanto que relativamente ao crédito (comum) da CGD, SA, se prevê o pagamento da totalidade das prestações vincendas com capitalização das prestações vencidas, em 54 prestações mensais, iguais e sucessivas, mantendo-se todas as demais condições contratadas, sendo a taxa de juro de 15,00% [6], ou seja, pagamento da totalidade do crédito em 4 anos e meio.

O princípio da igualdade dos credores [7] não é absoluto, podendo a desigualdade de tratamento dos credores estar justificada por razões objectivas.

Como escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na ob. cit., pág.712, “a razão objectiva por ventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que agora está assumida no art. 47º do Código (…). Para além disso, dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar, conforme o grau hierárquico que couber aos vários créditos. Mas, a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito. O que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas”.

Sustenta a apelante que razões objectivas fundamentam a diferença de tratamento da credora CGD dos restantes credores, as quais foram, logo, invocadas no plano de recuperação, e que têm a ver, no essencial [8], com o valor substancialmente superior do crédito daquela (ponderado o crédito garantido), sendo “um credor fundamental e intransponível para a viabilização do plano de recuperação”, sendo o seu voto fundamental para se obter a sua aprovação.

Ora, como se escreveu no Ac. do STJ de 3.11.2015, P. 863/14.2T8BRR.L1.S1, rel. Cons. Salreta Pereira, em www.dgsi.pt, “O princípio da igualdade dos credores não é absoluto. Não chega, no entanto, invocar como razão o facto de o voto dos credores a quem foi dado tratamento mais favorável ser imprescindível para a aprovação do acordo, atento o valor elevado dos respectivos créditos. O valor elevado dos respectivos créditos já lhes permite ter um voto decisivo na aprovação ou não aprovação do plano, mas não conceder aos credores que não o aprovaram um tratamento manifestamente mais desfavorável, …”.

Também no Ac. do STJ de 24.11.2015, P. 212/14.0TBACN.E1.S1, rel. Cons. José Raínho, em www.dgsi.pt, se escreveu, fazendo referência aos Acs. da RP de 14.5.2013, P. 1172/12.7TBMCN.P1, rel. Desemb. Vieira e Cunha e de 15.9.2015, P. 2438/14.7T8OAZ.P1, rel. Desemb. Rodrigues Pires, que “… as diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano. Pelo contrário, é este que, na sua substância, tem de respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre os credores. Ora, o que aquela argumentação contida no Plano está a significar é, no fundo, que a importância dos votos de certos credores para que o plano seja aprovado deve poder influenciar ou condicionar o regime de satisfação dos créditos, isto é, deve poder influenciar ou condicionar o princípio da igualdade entre credores. Mas não pode ser assim, precisamente porque o vector que regula para o caso é o da igualdade tendencial dos credores e não o da importância da essencialidade dos votos de certos credores para que o plano possa ser aprovado”.

Igualmente no Ac. do STJ de 24.11.2015, P. 700/13.5TBTVR.E1.S1, rel. Cons. Fernandes do Vale, em www.dgsi.pt, “ se escreveu que “a necessidade de aprovação do plano de recuperação não pode justificar a violação do princípio de tendencial igualdade de tratamento de todos os credores, antes se apresentando a não violação deste princípio como uma das condicionantes daquela aprovação”.

Conclui-se, pois, que as razões aduzidas no plano não consubstanciam razões objectivas que possam justificar a diferença de tratamento entre a CGD (quanto ao seu crédito comum) e os restantes credores comuns, mostrando-se violado o princípio da igualdade dos credores como concluiu o tribunal recorrido.

Ainda que se entendesse que as razões aduzidas no plano de recuperação configuram razões objectivas, o que é um facto é que a diferença de tratamento constante do plano entre a CGD e os restantes credores comuns é desproporcional, tornando injustificadas aquelas razões, prevendo o plano a revitalização da devedora à custa, apenas, dos credores comuns, à excepção da CGD, que são afectados de forma muito relevante, com perda de 75% do seu capital e largo diferimento no tempo do pagamento do capital restante.

Nenhuma censura nos merece, pois, a sentença recorrida, improcedendo a apelação.

Sempre se dirá, ainda, que duas outras razões impunham a não homologação do plano de recuperação:
a) Por um lado, entendemos que o plano foi aprovado com o voto de um credor que não tinha direito de voto, tendo em conta o disposto no art. 212º, nº 2, al. a).
Como consta da factualidade dada por provada, o plano de recuperação foi aprovado com os votos da Autoridade Tributária e CGD, SA, representando 88,24% dos votos emitidos, a primeira titular de créditos no montante de €1.922,31 e a última, de um crédito de €216.963,31.
Analisado o plano de recuperação constata-se que os créditos da CGD não sofrem qualquer alteração relevante.
No tocante ao crédito garantido por hipoteca, prevê-se o pagamento da totalidade das prestações vincendas, com capitalização das prestações vencidas, de acordo com o contrato de financiamento inicial no que concerne ao prazo, percentagem de diferimento e manutenção de garantias prestadas, ou seja, prevê-se o pagamento integral do crédito, mantendo-se as condições contratuais quanto a prazo, percentagem de diferimento e manutenção das garantias prestadas.
Quanto ao crédito comum, prevê-se o pagamento da totalidade do crédito em 4 anos e meio, mantendo-se todas as demais condições contratadas, com uma taxa de juro de 15,00%.
Daqui resulta que a CGD aprovou um plano de recuperação que prevê a redução dos créditos comuns em 75%, mas que assegura que os seus créditos não sofram redução, mantendo-se as condições contratadas, à excepção da relativa ao prazo de pagamento do crédito comum, compensada pela taxa de juro fixada.
A aprovação do Plano pela CGD não comporta para tal entidade qualquer redução do crédito ou constrangimento à sua cobrança, razão pela qual o seu voto não podia entrar no cômputo do quorum deliberativo, uma vez que não tinha direito de voto.
Como se decidiu nos Acs. desta Relação de 27.10.2015 (P. 54/14.2T8BRR.L1) e de 24.5.2016 (P. 2879/15.2T8VFX-A.L1), ambos relatados pelo Desemb. Gouveia Barros (e em que a, ora, relatora foi adjunta) [9], por força do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 212º, os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do Plano não conferem direito de voto aos seus titulares e por isso não entram no cômputo do quórum deliberativo a que se refere o nº 3 do artigo 17º-F.
No mesmo sentido se pronunciou o Ac. da RC de 21.4.2015, P. 2281/13.0TBCLD.C1, rel. Desemb. Barateiro Martins, em www.dgsi.pt, sumariando que “I. É de aplicar a limitação constante do art. 212.º/2/a) do CIRE à aprovação do plano de recuperação, o que significa que os credores cujos créditos não hajam sido modificados pela parte dispositiva do plano não têm direito de voto sobre a proposta de plano. II. Tal resultava, por interpretação, da remissão que o art. 17.º/F/3/ do CIRE fazia para o art. 212.º/1 do CIRE; e resulta, após o DL 26/2015, directamente do art. 17.º/F/3/a) do CIRE”.

b)Por outro lado, sufragamos o entendimento de que o PER não é aplicável a pessoa singulares, que não exerçam a sua actividade profissional como agentes económicos [10].
De facto, embora venham aumentando o número de pedidos de aprovação de PER em situações semelhantes à dos autos, o que é um facto, é que parte significativa da jurisprudência vem entendendo que a lei apenas admite ao PER o devedor pessoa singular que vise a revitalização de um substrato empresarial de que seja titular, numa interpretação restritiva dos arts. 1º, nº 2 e 17º-A, nº 2, tendo em atenção os elementos históricos, sistemáticos e teleológicos orientadores da introdução do PER no nosso ordenamento jurídico, e que defluem da Exposição de Motivos da Proposta de Lei 39/XII, de 30.12 [11].

Como se escreveu no Ac. do STJ de 5.4.2016, P. 979/15.8T8STR.E1.S1, rel. Cons. José Raínho, em www.dgsi.pt [12] depois de aludir à referida Proposta de Lei nº 39/XII que originou a L. nº 16/2012, de 20.04, que consagrou o PER, “Do que fica dito resulta, com clareza (a nosso ver), que o propósito do legislador, ao criar o PER, foi o de permitir a revitalização da atividade económica do devedor que funcione como “agente económico empresarial”, e não de quaisquer outros devedores, nomeadamente pessoas singulares trabalhadores por conta de outrem. Sendo esta, como é, a mens legislatoris, o elemento racional (ou teleológico) da interpretação e o elemento histórico impõem tal conclusão. Donde, é à luz desse propósito e interpretação que deve ser lido todo o articulado legal (maxime arts. 1º nº 2 e 17º-A nº 2 do CIRE) que regula para o PER. O que nos leva, pois, a uma interpretação restritiva, com o sentido que fica exposto, do âmbito subjectivo do PER” [13].


DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

                                                                                            Lisboa, Lisboa, 2016.09.20

  
(Cristina Coelho)  
(Luís Filipe Pires de S.)
(Carla Câmara)


[1]Diploma de que serão todos os artigos referidos sem menção expressa a outro diploma legal.
[2]Da Caixa Geral de Depósitos.
[3]Dos credores BPI, SA, BCP, SA, Banco Santander Consumer, Banco Santander Totta, SA, BMW Bank GMBH Portuguesa – fls. 49.
[4]Quer quanto aos créditos resultantes de “financiamento”, quer quanto aos resultantes de prestação de serviços.
[5]Devendo iniciar-se o pagamento no último dia útil do mês seguinte àquele em que transitar em julgado a sentença que homologar o plano de recuperação.
[6]Prevendo-se, também, o início dos pagamentos no último dia útil do mês seguinte àquele em que transitar em julgado a sentença que homologar o plano de recuperação.
[7]… “trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência”, nos dizeres de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, em CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 713.
[8]As restantes razões invocadas não são objectivas, revelando-se conclusivas ou hipotéticas.
[9]Não publicados.
[10]Ou seja, não podem utilizar o PER pessoas singulares que trabalham por conta de outrem, como é o caso da requerente, conforme alegado no RI.
[11]Onde se refere: “O principal objectivo prosseguido por esta revisão passa por reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação. … O processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas. Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários. …” – consultável em www.dgpj.mj.pt.
[12]Que faz uma resenha das diferentes posições na doutrina e jurisprudência sobre a matéria.
[13] No mesmo sentido, ver, entre outros, os Acs. do STJ de 10.12.2015, P. 1430/15.9T8STR.E1.S1, rel. Cons. Pinto de Almeida, de 21.06.2016, P. 3377/15.0T8STR.E1.S1, rel. Cons. Ana Paula Boularot, da RL. de 7.4.2015, P. 31511/15.2T8LSB.L1-6, rel. Desemb. Teresa Soares, de 21.4.2016, P. 2238/16.0T8SNT.L1-2, rel. Desemb. Ondina Carmo Alves, de 28.4.2016, P. 2583/15.1T8SNT.L1-2, rel. Desemb. S. Pinto, da RP de 19.4.2016, P. 788/15.4T8AMT.P1, rel. Desemb. Ana Lucinda Cabral, de 28.6.2016, P. 1189/16.2T8STS.P1, rel. Desemb. Tomé Ramião, da RE de 16.6.2016, P. 1157/16.4TBSTR.E1, rel. Desemb.
Silva Rato, todos em www.dgsi.pt.