Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5647/14.5T8SNT-B.L1-8
Relator: AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COBRANÇA DE ALIMENTOS NO ESTRANGEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -A impossibilidade de, numa ação de condenação por incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, se acionar o mecanismo do art. 48º do RGPTC, em virtude de o progenitor residir e trabalhar no estrangeiro, não determina o arquivamento dos autos.
-Não é caso para remeter a requerente para o acionamento de instrumento jurídico internacional relativo à cobrança de alimentos no estrangeiro, com recurso à Convenção de Nova Iorque relativa à cobrança de alimentos no estrangeiro na medida em que se desconhece o paradeiro certo do requerido e a sua situação económica.
-Neste caso, deve ser declarado que o requerido incumpriu o regime de regulação das responsabilidades parentais respeitantes à menor, relativamente à prestação de alimentos a que ficou obrigado, em relação aos valores em dívida já vencidos e aos vincendos.
-Sendo inaplicável ao caso no art. 48.º do RGPTC, devem os autos prosseguir para apreciação do pedido de fixação de uma prestação de alimentos, a favor da menor, a cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, ordenando-se as diligências necessárias para o efeito.
-Tal não obsta a que a requerente tente obter o pagamento das prestações através de algum dos aludidos instrumentos jurídicos internacionais (designadamente a indicada Convenção de Nova Iorque), caso em que, se obtiver sucesso, cessará a eventual prestação a efetuar pelo FGADM.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


D..., residente na ..., veio interpor ação de condenação por incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, relativamente à menor C..., contra S..., residente na ..., por falta de pagamento da pensão de alimentos.

Alegou o seguinte:
Por sentença data de 24/9/2015, transitada em julgado em 28/9/2015, foram reguladas, por apenso ao processo de divórcio, as responsabilidades parentais relativamente á menor C..., tendo sido fixado a título de pensão de alimentos, o valor mensal de 150 Euros, a ser paga pelo requerido,
Desde essa data e à exceção da quantia de € 300,00, que o Requerido enviou à Recorrente em Dezembro de 2015, não voltou a contribuir com mais qualquer valor.

O Requerido deve, portanto, todas as mensalidades desde Dezembro de 2015, inclusive, até à presente data, contabilizando-se as prestações vencidas á data da propositura da ação em 750,00 Euros.

O Requerido não avança qualquer justificação para o não pagamento e a requerente desconhece quais as condições financeiras atuais do Requerido, sendo que este continua em Moçambique.

Conclui pedindo que:
-Seja declarado o incumprimento do Requerido Pai relativamente ao que foi fixado pela sentença de Regulação das Responsabilidades Parentais, devendo o Requerido ser condenado a pagar as prestações vencidas e vincendas até à decisão, fixando-se as vencidas à data, em 750,00 Euros.
-Se ordenem as competentes averiguações junto das entidades competentes para aferir se o Requerido tem rendimentos de qualquer natureza, para os efeitos do art.48º do RGPTC.
-Se verificada a impossibilidade de obter do Requerido as prestações em causa, o Tribunal fixe uma prestação mensal, preferencialmente no mesmo valor, a ser paga pelo Fundo de Garantia de Alimentos e desencadeie o competente processo junto do ISS, IP. 
                                                 
Não foi possível notificar o requerido.                                                                   
O MºPº, no seu visto, defendeu não ser possível aplicar ao caso o disposto no art.48º do RGPTC, por o devedor de alimentos residir no estrangeiro, não sendo o incidente de incumprimento o meio adequado para fazer desencadear um procedimento internacional destinado a efetivar o cumprimento dos alimentos.

Mais defendeu que no caso em apreço a cobrança de alimentos só poderá ser obtida através do acionamento dos meios legalmente previsto na Convenção de Nova Iorque sobre cobrança de alimentos no estrangeiro, sugerindo que, em vista à efetiva cobrança de alimentos em Moçambique, deverá a requerente diligenciar, diretamente, junto da DGAJ por tal acionamento, por ser a entidade designada pelo Estado Português com autoridade central para efeitos de tal Convenção.

Não vislumbrando a realização de quaisquer atos úteis, promoveu que se declare extinta a instância por inutilidade uperveniente da
lide, ordenando-se o oportuno arquivamento dos autos.
                                                            
Foi então proferido o seguinte despacho:
“Nos presentes autos em que é requerente D... e requerido S... verifica-se que este último reside e trabalha no estrangeiro. Dada esta situação, não é possível acionar os mecanismos previstos no art. 48º do RGPTC. Assim, determino o arquivamento do processo.
Sem custas.
Notifique.
Notifique a requerente para se dirigir à DGAJ (forneça a morada completa) no sentido de acionar os mecanismos previstos na Convenção de Nova Iorque para cobrança da pensão de alimentos fixada a favor do filho menor uma vez que o requerido vive e trabalha no estrangeiro”.
                                                                      
Inconformada com o teor do despacho dele interpôs recurso a requerente, concluindo da forma seguinte:
A)-Na sequência de um incidente de incumprimento, em que a Recorrente é a Requerente, por falta de pagamento da pensão de alimentos por parte do pai da menor, o mesmo foi arquivado por o mesmo não se encontrar a residir e a trabalhar em Portugal e não ser possível acionar os mecanismos previstos no art. 48º do RGPTC.
B)-Considera a Recorrente que, independentemente do paradeiro e da origem dos rendimentos do devedor, o tribunal a quo sempre poderia ter decretado o incumprimento.
C)-A urgência da situação não se compadece com o acionamento da Convenção de Nova Iorque, que se prevê muito moroso, senão completamente ineficaz.
D)-Tanto mais que o paradeiro do devedor é, para todos os efeitos, desconhecido, uma vez que não o revela à Recorrente e a notificação enviada pelo tribunal no âmbito do incumprimento para a morada até então conhecida veio devolvida.
E)-Um instrumento jurídico internacional – neste caso a Convenção de Nova Iorque – criado para reforçar os direitos do credor de alimentos não pode, afinal, constituir obstáculo à promoção desses direitos.
F)-A invocação da aludida Convenção só faz sentido se se apresentar como meio efetivo e concreto de obtenção dessa prestação por parte do devedor.
G)-No entanto, o paradeiro do devedor está longe de ser certo, e, fora as diligências feitas pelo tribunal no âmbito do processo principal para apurar a morada do mesmo, não houve mais diligências nesse sentido.
H)-Sendo que, tal como supra referido, o devedor não só não revela essa informação à Recorrente, fazendo tenção de manter o secretismo, como não tem revelado interesse pelo bem-estar da menor, não a contactando.
I)-Não pode, portanto, o tribunal a quo demitir-se de decidir sobre o incumprimento por o devedor estar ausente de território nacional e, além disso, incontactável e com paradeiro desconhecido, tendo feito, pois uma errónea interpretação dos requisitos para que se declare o incumprimento.
J)-Com efeito, estamos não só no âmbito de processos de jurisdição voluntária, em que o critério de decisão é o da equidade, pretendendo-se a adoção do remédio em concreto julgado mais conveniente e oportuno (art. 987º do CPC), como de direitos indisponíveis e de direitos fundamentais, em que tem de existir uma especial sensibilidade por parte do julgador.
K)-Pelo que o tribunal a quo, salvo melhor opinião, não respeitou o estatuído nessa norma.
L)-A Recorrente fez desde logo o pedido para ser fixada uma prestação mensal a ser liquidada pelo FDGAM, não só por prever que não fossem encontrados quaisquer rendimentos ao Requerido, como por se encontrar numa situação económica delicada, devendo ser ponderados os interesses superiores em questão.
M)-Deve, portanto, o Requerido ser considerado em incumprimento e condenado no pagamento das prestações vencidas e vincendas, contabilizando-se as vencidas em € 1650,00.
N)-Em sua substituição, possibilitando-se à Recorrente o acesso ao FDGAM, sem prejuízo de entretanto tentar o cumprimento através de outras vias, nomeadamente os instrumentos jurídicos internacionais, uma vez que uma coisa não obsta à outra.

Conclui no sentido de que deve ser revogada a decisão recorrida e, consequentemente, decretar-se o incumprimento da regulação das responsabilidades parentais respeitantes à pensão de alimentos, e, em consequência, possibilitar-se à Recorrente o acesso ao FDGAM.    
                                                                  
Não houve contra-alegações.
                                                                      
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
                                                                      
Questão a apreciar:
-A questão que se suscita neste recurso é se, encontrando-se o obrigado à prestação de alimentos a menor ausente no estrangeiro, não cabe o incidente de verificação de incumprimento da obrigação nos termos da OTM, mas o acionamento dos instrumentos internacionais disponíveis para a cobrança de alimentos no estrangeiro.
                                                                      
FUNDAMENTAÇÃO.

A)-DE FACTO.
Os factos relevantes são os que constam do relatório supra.
                                                                      
DE DIREITO:

Em 08.10.2015 entrou em vigor o Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8.9. Os atos ora sujeitos a escrutínio ocorreram já no âmbito deste regime, pelo que será o aplicável.

Alega a requerente e está demonstrado, que o requerido não pagou desde Dezembro de 2015 as prestações de alimentos à filha menor C..., no montante mensal de 150 Euros.

No capítulo subordinado á epigrafe, da efetivação da prestação de alimentos, dispõe o art.48º do RGPTC.

Meios de tornar efectiva a prestação de alimentos

1-Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a)Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b)Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação

de fiel depositário;
c)Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.
2-As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.

Os presentes autos iniciaram-se como incidente de incumprimento relativamente à prestação de alimentos devida a menores, judicialmente fixada. Tal incidente mostra-se especificamente regulado pelo art.º 41.º, formalizando-se na imediata tomada de medidas destinadas a obter o pagamento forçado das prestações em dívida, que abrangerá as prestações vincendas, através da dedução das quantias necessárias nos rendimentos regulares que o devedor tiver a receber de terceiro, estabelecidas no art.º 48.º do RGPTC.

A requerente peticionou, expressamente, a declaração de incumprimento, pelo requerido, da regulação de responsabilidades parentais na vertente da prestação de alimentos devidos à menor, com a liquidação e condenação do requerido no pagamento das prestações vencidas e vincendas.

Subsidiariamente, para o caso de ser verificada a impossibilidade de obter do requerido as prestações em causa, requer que o tribunal fixe uma prestação mensal, preferencialmente do mesmo valor, a ser paga pelo Fundo de Garantia de alimentos e desencadeie o competente processo junto do ISS, IP.

Efetivamente, o Estado, em cumprimento da obrigação constitucional de proteção da criança, assegurando em última linha a concessão de prestações alimentícias indispensáveis à sua subsistência e desenvolvimento, quando os adultos a tal obrigados falharem (vide preâmbulo do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio), constituiu um Fundo (Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores), gerido em conta especial pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a quem compete assegurar o pagamento das prestações de alimentos atribuídos a menores residentes em território nacional, reunidos que se mostrem determinados requisitos.

A Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, que instituiu esta prestação social, patenteia de forma clara os pressupostos e as intenções que lhe subjazem:
Está em causa uma situação de insuficiência de recursos por parte do menor:o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre” (art.º 1.º da Lei n.º 75/98).

Por outro lado, é necessário que o devedor, judicialmente obrigado a prestar alimentos ao menor, não esteja em condições que permitam obter, com celeridade e eficácia, a efetivação dessa obrigação:quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro” (art.º 1.º da Lei n.º 75/98), agora art.48º do RGPTC.


As preocupações de celeridade e eficácia estão patentes no n.º 2 do art.º 3.º da Lei n.º 75/98, de 19.11, que prevê que, deduzido o requerimento, “nos respectivos autos de incumprimento”, de que o tribunal “fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar” (n.º 1 do art.º 3.º), será proferida decisão provisória “se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente”, “após diligências de prova”. A decisão definitiva, que terá por objeto não só a confirmação (ou não) da necessidade da pretendida substituição do Estado ao devedor dos alimentos, mas também a fixação do montante a prestar pelo Estado, será antecedida das restantes diligências que o juiz entender indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor (n.º 3 do art.º 3.º da Lei n.º 75/98). Estes pressupostos e requisitos são reiterados no já citado Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, que regulamentou esta matéria. Sendo certo que o FGAM ficará sub-rogado nos direitos do menor em relação ao devedor (n.º 3 do art.º 6.º da Lei n.º 75/98 e art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 164/99).

In casu, o que decidiu o tribunal?

Arquivar o processo, por alegada impossibilidade/inutilidade
superveniente da lide.

A instância extingue-se, por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (art.º 277.º alínea e) do CPC), quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida, deixando a solução do litígio de interessar, seja por impossibilidade de obter o resultado visado, seja por já ter sido atingido por outro meio (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 1º, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, página 546).


O tribunal recorrido deu por findo o processo por considerar que o mesmo era inútil ou impossível, na medida em que a requerente deveria obter a satisfação da sua pretensão com recurso à Convenção de Nova Iorque relativa à cobrança de alimentos no estrangeiro.

Esta Convenção (aprovada em Portugal, para adesão, pelo Dec.-Lei n.º 45942, de 28.9.1964), como se refere no seu preâmbulo, visa fazer face à “
urgência na solução do problema humanitário que se levanta para as pessoas carecidas de alimentos cuja tutela legal se encontre no estrangeiro”, visando resolver os problemas e superar as dificuldades legais e práticas que a instauração de ações de alimentos ou a execução das decisões no estrangeiro dão lugar.

Nos termos sintetizados do art.º 1.º da Convenção, “a presente Convenção tem por objeto facilitar a uma pessoa, designada aqui como credora, que se encontra no território de uma das Partes Contratantes, a prestação de alimentos a que se julgue com direito em relação a outra, designada aqui como devedora, que está sob a jurisdição de outra Parte Contratante. Os organismos que serão utilizados para este efeito são designados por autoridades expedidoras e instituições intermediárias” (n.º 1 do art.º 1.º).

De acordo com o art.º 3.º da Convenção, quando um credor se encontrar no território de uma Parte contratante (Estado do credor) e o devedor se encontrar sob a jurisdição de uma outra Parte contratante (Estado do devedor), o credor pode dirigir um pedido à autoridade expedidora do Estado em que se encontra para obter alimentos por parte do devedor (n.º 1).

Se tal for necessário, o pedido será acompanhado de uma procuração que autorize a instituição intermediária a agir em nome do credor ou a designar uma pessoa habilitada a agir em nome daquele (n.º 3 do art.º 3.º).

A autoridade transmitirá a pedido do credor toda e qualquer decisão, provisória ou definitiva, ou qualquer outro ato judicial em matéria de alimentos, favorável ao credor (n.º 1 do art.º 5.º).

A instituição intermediária, agindo dentro dos limites dos poderes conferidos pelo credor, tomará todas as medidas adequadas a assegurar a cobrança de alimentos, podendo “intentar e prosseguir uma ação de alimentos, bem como fazer executar toda e qualquer decisão, ordem ou ato judicial” (n.º 1 do art.º 6.º).

De realçar que, conforme decorre do n.º 2 do art.º 1.º da Convenção, “os meios de direito previstos na presente Convenção completam, sem os substituir, todos os outros existentes em direito interno ou em direito internacional.”

Assim, um instrumento jurídico internacional criado para reforçar os direitos do credor de alimentos não pode, afinal, constituir
obstáculo à promoção desses direitos.

Ou seja, face à necessidade concreta da perceção dos alimentos por parte do menor, a invocação da aludida Convenção só faz sentido se ela se apresentar como meio efetivo e concreto de obtenção dessa prestação por parte do devedor.


Tal demonstração não ocorre no caso destes autos, pois ignora-se onde se encontra o devedor, não existindo sequer confirmação de que ele está em Moçambique, nem qual o seu endereço, atenta a não reclamação da carta enviada e junta a fls.13. desconhece-se também a sua situação económica nesse ou noutro País.

Neste caso, tendo o tribunal sido chamado a diligenciar pelo cumprimento de uma decisão que reconhecera o direito do menor à prestação de alimentos por parte do seu progenitor, não pode demitir-se de tal função, remetendo-o para meios cuja viabilidade de sucesso, em tempo útil, não está razoavelmente demonstrada.

Não ignoramos que tem existido diversidade de entendimentos, na jurisprudência, quanto ao alcance a dar ao requisito, previsto na lei, para a intervenção do FGADM, de que a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfaça as quantias em dívida “pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro”, atualmente pelo art.48º do RGPTC. (art.º 1.º da Lei n.º 75/98 e alínea a) do n.º 1 do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 164/99).

Existe quem, na jurisprudência, defenda que os meios de satisfação da dívida previstos no art.º 189.º da OTM-actual art.48º do RGPTC pressupõem que o devedor se encontra em Portugal, ou pelo menos a fonte de rendimentos aí referidos está em Portugal, pelo que se o devedor residir no estrangeiro, aí se encontrando os seus meios de rendimento, está verificado o aludido requisito de intervenção do FGADM (o da não obtenção da satisfação dos alimentos do menor por via dos meios previstos no art.º 189.º da OTM-art-48º do citado diploma legal.).

De acordo com esta linha jurisprudencial, o facto de se saber o paradeiro do devedor e, até, de lhe serem conhecidos rendimentos (localizados no estrangeiro), não obstará à intervenção do FGADM, sendo certo que a lei pretende uma atuação ágil e célere, incompatível com as delongas inerentes à utilização dos instrumentos internacionais, nomeadamente comunitários, de cobrança de alimentos no estrangeiro (vide, v.g., acórdão da Relação do Porto, de 20.01.2011, processo 660/07.1 TBAM.P1; acórdão da Relação de Coimbra, de 09.10.2012, processo 105/05.1TBTNV-C; acórdão da Relação de Coimbra, de 11.12.2012, processo 46/09.3 TBNLS-A.C1; acórdão da Relação de Lisboa, de 11.4.2013, processo 2415/11.0TMLSB-A.L1-2;–
todos consultáveis in www.dgsi.pt).

Entendimento diverso foi propugnado em, por exemplo, alguns acórdãos da Relação de Guimarães, de 14.6.2012 (processo 4269/07.1TBGMR.G1) e de 07.5.2013 (processo 4360/08.7BGMR-A.G2), assim como da Relação de Lisboa, em acórdão inédito datado de 30.10.2014, que teve a aquiescência do STJ, em acórdão proferido em 30.4.2015 (processo 1201/13.7T2AMD-B.L1.S1, consultável, tal como os acórdãos da Relação de Guimarães ora referidos, in www.dgsi.pt). No acórdão do STJ confirmou-se a decisão das instâncias em que, após se ter declarado verificado o incumprimento e condenado o requerido a pagar as pensões de alimentos, que foram quantificadas, e tendo sido apurado que o devedor residia em local conhecido de Cabo Verde, onde auferia rendimentos, se remeteu a requerente para a Direção Geral da Administração da Justiça (DGAJ), a fim de aí acionar os mecanismos legais para a cobrança de alimentos no estrangeiro (sendo certo que entre Portugal e Cabo Verde existe um Acordo nesse domínio), sobrestando-se na decisão de intervenção do FGADM. No referido acórdão do STJ ajuizou-se que “
os procedimentos coercivos com vista à prestação de alimentos contemplados no citado art. 189 da OTM, têm de ser conjugados com os instrumentos jurídicos relativos à cobrança de alimentos no estrangeiro, não se podendo, por isso, concluir-se pela impossibilidade de cobrança dos alimentos estrangeiros, só pelo facto de o incumpridor residir no estrangeiro”. Em suma, “havendo instrumentos jurídicos relativos à cobrança de alimentos no estrangeiro, estes devem ser acionados e, só no caso de se comprovar a impossibilidade da cobrança, ou, então, ser especificamente comprovada a demora na cobrança por esses meios, é que o FGDAM deve ser chamado a intervir”.

Admite-se a bondade desta última posição, na medida em que se saiba o paradeiro concreto do devedor e se perfile uma razoável possibilidade de o menor vir a receber, através dos aludidos mecanismos internacionais de cobrança, em tempo útil, os alimentos a que tem direito.

Só que no caso destes autos ignora-se o paradeiro do devedor, não existindo qualquer confirmação de que está em Moçambique, nem constam elementos que permitam vaticinar que a requerente conseguirá, através do acionamento da Convenção de Nova Iorque, dentro dos próximos meses, quiçá dentro de um ano ou mesmo mais, o recebimento daquilo a que o devedor ficou obrigado por decisão judicial de Setembro de 2015.

Sendo assim, entendemos que a decisão recorrida deverá ser revogada, havendo que proferir decisão acerca da requerida verificação de incumprimento e da liquidação do que está em dívida, abrindo-se caminho a que venha a ser deduzido incidente destinado a permitir a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.

O que não obsta, obviamente, a que a requerente tente obter o pagamento das prestações através de algum dos aludidos instrumentos jurídicos internacionais, caso em que, se obtiver sucesso, então cessará a eventual prestação a efetuar pelo FGADM.

A solução ora propugnada é, cremos, aquela que melhor se adequa aos princípios orientadores referidos no art.4ºdo RGPTC.


Atendendo ao disposto no art.º 2006.º do Código Civil, são devidos alimentos desde Dezembro de 2015, inclusive, os contabilizados até à data das alegações de recurso em 1.650,00 euros e bem assim os vencidos e vincendos, no montante mensal de 150,00 Euros.

Verificado o incumprimento e impossibilidade de fazer atuar o mecanismos do art.48º, citado, nada obsta a que se faça atuar a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.

Pelo exposto, as conclusões das alegações de recurso mostram-se procedentes, carecendo a decisão recorrida de ser revogada por padecer de erro de julgamento de direito, com violação das normas legais citadas pela recorrente, devendo ser substituída por outra que aprecie o pedido de fixação de uma prestação de alimentos, a favor da menor Constança, a cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, se a tal nada obstar.
(Neste sentido, cfr. Ac. RL de 13/10/2011, Proc.nº 2415/11.0TMLSB-A.L1-2, Ac. RL DE 11/4/2013, Proc. nº 2415/11.0TMLSB-A.L1-2,), Ac. da RL de 28-1-2016, Proc. nº 6491/14.5T8SNT.L1-2, publicado in WWW.DGSI.PT)
                                                                      
DECISÃO:

Pelo exposto, Acordam os Juízes da ...ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e consequentemente:

a)Declarar que o requerido incumpriu o regime de regulação das responsabilidades parentais respeitantes à menor C..., relativamente à prestação de alimentos a que ficou obrigado, estando em dívida, à data das alegações de recurso o valor de 1.650,00 euros e bem assim os vencidos entretanto e vincendos, no montante mensal de 150,00 Euros.

b)Decidir não remeter a requerente para o acionamento de instrumento jurídico internacional relativo à cobrança de alimentos no estrangeiro, na medida em que se desconhece o paradeiro certo do requerido e a sua situação económica.
c)Declarar que, sendo inaplicável ao caso no art.º 48.º do RGPTC, determina-se que os autos prossigam para apreciação do pedido de fixação de uma prestação de alimentos, a favor da menor C..., a cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, ordenando-se as diligências necessárias para o efeito.

Custas a cargo do Apelado.


Lisboa, 23/02/2017

Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura
Carla Mendes
Decisão Texto Integral: