Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
818/15.0T8AGH-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CARTA
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
EFICÁCIA
AVAL EM BRANCO
ÓNUS DE COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Na fundamentação da decisão da matéria de facto não devem constar factos provados (que possam ser utilizados na fundamentação de direito), nem devem constar fundamentos de direito que não tenham a ver com a fundamentação da decisão da matéria de facto.
II. De uma carta registada com a/r enviada por um particular sem o serviço especial de entrega em mão própria, carta que veio a ser entregue a pessoa (que nos autos não se sabe quem é) diferente do destinatário (pessoa singular), não se pode dizer que tenha chegado ao poder do destinatário (para os efeitos do art. 224 do CC).
III. A livrança não tem de ser apresentada a pagamento ao avalista nem em relação a este se tem de fazer protesto por falta de pagamento.
IV. Mas o credor tem o ónus de comunicar ao pré-avalista (avalista de uma livrança em branco) o vencimento da obrigação do subscritor da livrança, se quiser que a obrigação de garantia daquele cubra a totalidade do seu crédito.
V. Se o não fizer - e é ele que tem o ónus da provar que o fez - o avalista não responde pelos juros vencidos desde o vencimento da obrigação até ao momento em que foi citado para a execução.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados.


Relatório:


B-SA, requereu a execução dos avais prestados numa livrança por L e N.

As executadas deduziram oposição à execução, pedindo que a mesma fosse extinta, na medida em que o título dos autos é inexequível e inexigível (arts. 731 e 729-a-e do CPC), alegando para tanto, em síntese, que assinaram a livrança em branco e a exequente veio a preenchê-la sem antes a apresentar a pagamento e sem as interpelar para procederem ao pagamento do que fosse devido (que não sabem se é igual ao valor com que a livrança foi preenchida), em violação do que consta do pacto de preenchimento subscrito com a prestação do aval; não tendo havido interpelação das executadas, não há, relativamente a estas, incumprimento da obrigação de pagamento da quantia exequenda.

A exequente – que entretanto passou a ser o S-SA -, contestou, impugnando, alegando, em síntese, que a livrança em causa foi preenchida em obediência ao pacto de preenchimento firmado; antes de proceder àquele preenchimento, foram as executadas interpeladas para o pagamento da quantia em dívida; por não terem pago qualquer valor, o credor avançou para os meios judiciais, depois de ter procedido ao prévio preenchimento da livrança, nos termos sobreditos; a obrigação em causa é, pois, exequível. Conclui no sentido da improcedência dos embargos e do prosseguimento da execução.

Realizada a audiência final, foi depois proferida sentença, julgando os embargos improcedentes e determinando o prosseguimento da execução.

As executadas recorrem desta sentença, arguindo nulidades da mesma e erro de julgamento.
A exequente contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questões a decidir: se a sentença é nula e qual o relevo de as executadas não terem sido – se não tiverem sido – interpeladas para o pagamento antes do preenchimento da livrança.
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Foram discriminados os seguintes factos provados (corrigiu-se o erro de alineação):
A.A 11/08/2015, B intentou a acção contra as executadas, apresentando como título executivo a livrança de fls. 14, dos autos de execução.
B.Naquela livrança consta: contrato n.º 0000; como data de emissão: 18/07/2015; como quantia vencida: 87.761,97 €; como subscritor LN-Lda, Rua de , Angra do Heroísmo; no verso da referida letra, e depois da declaração “Bom para aval ao subscritor” constam as assinaturas das executadas.
C.Em 17/02/2009, B celebrou com a LN, o contrato de empréstimo n.º 00000.
D.B, a pedido e no interesse da LN, concedeu a esta um empréstimo no montante de 127.500€, pelo prazo de 15 anos.
E.Montante esse creditado na conta de depósitos à ordem titulada pela LN e integral e imediatamente utilizado pela mesma.
F.Aquando da celebração do contrato, a LN entregou a B uma livrança em branco devidamente subscrita por si e ainda avalizada pelas executadas, que serviria de garantia em caso de incumprimento do contrato.
G.As executadas assinaram a livrança dos autos (em garantia da dívida da LN para com a exequente) em branco, sem a aposição de qualquer valor ou data de vencimento.

H.Da cláusula 9ª, do referido contrato, as partes acordaram que:
“1.-Em garantia do bom pagamento de todas e quaisquer obrigações e responsabilidades assumidas ou a assumir perante B e derivadas deste contrato, suas eventuais prorrogações, alterações, aditamentos e/ou substituições, até à sua completa liquidação, incluindo o pagamento do capital até ao valor limite do montante mutuado e os correspondentes juros compensatórios a taxa contratada e os devidos pela mora e demais encargos legais e contratuais e ainda de todas as despesas judiciais e extrajudiciais que B venha a fazer para a cobrança do seu crédito, foram ou serão constituídas a favor de B as garantias mencionadas na cláusula 1ª.
2.-É nesta data entregue a B uma livrança em branco emitida e subscrita pelos segundos outorgantes à ordem de B, autorizando desde já B, nos casos de incumprimento deste contrato, e/ou das suas eventuais prorrogações, alterações, aditamentos e/ou substituições, conforme aqui preceituado, a preencher pelo valor que lhe for devido, a fixar-lhe as datas de emissão e de vencimento, bem como a designar o local de pagamento, autorizando B a debitar o valor do imposto do selo, que se mostre devido, em quaisquer contas de depósitos à ordem de que nele sejam titulares.”
I.A LN, que entretanto foi declarada insolvente, não procedeu ao pagamento das obrigações que se venceram a partir de 17/03/2015.
J.B remeteu à LN e às executadas cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 03/02/2015, com o seguinte teor:
“Assunto: responsabilidades vencidas e não liquidadas
Montante do incumprimento: 12.137,99 €.
Nestes termos dispõem V. Exas, impreterivelmente, do prazo de 10 dias contados da recepção da presente carta, para efectuar o pagamento dos valores acima identificados, sob pena de, não o fazendo, serem accionados todos os mecanismos judiciais e cautelares de cobrança coerciva de dívida, com todas as consequências negativas que estas situações acarretam.”
L.Aquelas cartas foram recebidas nas moradas fornecidas pelas executadas a 10/02/2015 e a 11/02/2015, por pessoa diversa das executadas.

M.Por meio de cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 13/07/2015 e enviadas para as executadas, [o advogado da exequente escreveu o seguintecorrigiu-se o teor do corpo desta alínea]:
Assunto: Livrança associada ao contrato de empréstimo n.º 00.00; Livrança associada ao contrato de empréstimo n.º 11.11.
Exmo(a). Senhor(a)
Tendo em conta a ausência de liquidação integral das obrigações decorrentes dos contratos abaixo identificados, vimos pelo presente, informar, em representação da n/cliente B, que consideramos os mesmos resolvidos por incumprimento de V. Exa, com efeitos imediatos, sem necessidade de mais nenhuma comunicação e daí se retirando todas as legais consequências.
Assim, a 18/07/2015, encontra-se em dívida o montante de 100.480,46 € (…) ao qual deverão acrescer os respectivos juros de mora entretanto vencidos.

Esta quantia corresponde ao somatório de:
1– Livrança associada ao contrato n.º 0000, pelo montante de 87.761,97 €:
Nos termos do artigo 23.2 do T.G.I.S. ao valor supra descrito acrescerá o montante de € 438,81 relativo ao imposto de selo sobre a livrança e respectivos juros.
Na falta de liquidação dos montantes em dívida, fixamos o dia 18/07/2015 como data de vencimento da livrança em branco avalizada por V. Exa, e dada em garantia para o bom cumprimento das obrigações assumidas, a ser preenchida pelo seguinte montante 87.761,97€.
[…]
Na falta de pagamento ou alternativa aceitável e consistente, instauraremos de imediato a competente acção executiva para recuperação do montante em dívida.”
N.Aquelas cartas foram recebidas, a 16/07/2015, pela executada L, a que lhe foi dirigida; e por pessoa diversa da executada N, a que lhe foi remetida para a morada por si fornecida.
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Das nulidades da sentença

Na motivação da matéria de facto o tribunal recorrido disse  o seguinte (a numeração foi agora colocada para facilitar a remissão):
“A convicção do tribunal assentou […]
1.-No que se refere à remessa das cartas de interpelação/resolução do contrato relevámos o teor dos documentos de fls. 33/44.
2.-Conforme foi referido pelas testemunhas TM, gestora de clientes da LN [no B] e AF, gestor de negócios do B, como sempre, foi tentada a regularização extrajudicial do crédito.
3.-Inviabilizada esta, foram remetidas aquelas cartas para as moradas fornecidas pelas executadas.
4.-Assim, devem estas duas pessoas considerar-se devidamente notificadas do teor daquelas declarações.
5.-Efectivamente, a carta de 03/02/2015, dirigida à executada L, embora não tendo sido recebida por si, foi recebida por terceira pessoa que se comprometeu a proceder à sua entrega, por estar em condições de o fazer.
6.-A carta foi remetida e recebida no Rua de, em Angra do Heroísmo, onde aquela executada, L, em pessoa, veio a receber a carta de 13/07/2015, cfr. fls. 41.
7.-A carta dirigida de 03/02/2015, dirigida à executada N, embora não tendo sido recebida por si, foi recebida por terceira pessoa que se comprometeu a proceder à sua entrega, por estar em condições de o fazer.
8.-As executadas nunca alegaram que aquelas cartas não lhes foram entregues por aquela pessoa, que as recebeu e que ficou ciente da obrigação legal de proceder à sua entrega, conforme resulta do disposto no artigo 228/2 do CPC (a carta pode ser entregue, após assinatura do aviso de recepção, ao citando ou a qualquer pessoa que se encontre na sua residência ou local de trabalho e que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando).

9.-Dispõe o artigo 224 do CC (que vale de igual modo para os simples actos jurídicos, como é a interpelação, atento o disposto no art. 295 do CC), que:
1.-A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada.
2.-É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.
(…)

10.-As executadas não puseram em causa que a morada para a qual foram remetidas aquelas cartas lhes pertencem; de igual modo, não alegaram, como deviam, que a carta recepcionada por terceiro não lhes foi, por este, entregue, conforme estavam oneradas (art. 342/2 do CC).
11.-Assim, só nos resta concluir que as cartas remetidas pela exequente às executadas e, também, à devedora subscritora da livrança (cfr. a/r, de fls. 34, que, aliás, foi recebido e assinado pela executada L), foram devidamente recepcionadas, produzindo os seus efeitos legais.
12.-Por esta razão, o tribunal considerou provado que as executadas foram interpeladas ao pagamento das quantias devidas e, só após o não pagamento das mesmas, a exequente, beneficiário da livrança, procedeu ao seu preenchimento, com observância do acordado no pacto de preenchimento.”

A propósito disto, as executadas dizem o seguinte:
1.Na motivação da sentença, afirmou o tribunal a quo que as terceiras pessoas que receberam as ditas cartas se comprometeram a proceder à sua entrega, por estarem em condições de o fazer.
2.Porém, o tribunal a quo não deu por provado, na matéria de facto provada – a nosso ver, bem -, que as terceiras pessoas se comprometeram a proceder à entrega das ditas cartas às executadas.
3.Ora, se não ficou dado como provado, na matéria de facto provada, que as terceiras pessoas se comprometeram a proceder à entrega das ditas cartas às executadas, pergunta-se como pôde o tribunal afirmar, em sede de motivação da matéria de facto, que essas mesmas pessoas se comprometeram a proceder à entrega das ditas cartas às executadas?
4.É que não foi produzida qualquer prova de que esses terceiros se comprometeram a entregar as cartas às executadas. Os mesmos não prestaram depoimento nos autos, afirmando, por exemplo, que procederam a essa entrega;
5.Assim, pergunta-se: com base em que prova é que tribunal a quo sustenta a afirmação de que terceiros se comprometeram a entregar as cartas recebidas aos seus destinatários, isto é, às executadas? A resposta é: em nenhuma prova (!).
6.De acordo com o disposto no artigo 615/1-c do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
7.No caso concreto, o tribunal a quo, para afirmar, na motivação da matéria de facto, que as terceiras pessoas se comprometeram a proceder à entrega das cartas às executadas, tinha que ter dado como provado, na matéria de facto provada, que as terceiras pessoas se comprometeram a proceder à entrega das cartas às executadas.
8.Não o tendo feito, a sentença recorrida é nula, por oposição entre os fundamentos e a decisão […].
A exequente entende, em suma, que não se verifica a nulidade invocada e que basta o recebimento das cartas nas moradas das executadas para que se considerem entregues às destinatárias.
No despacho em que se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso, o tribunal recorrido defende também que não se verifica a nulidade apontada, reproduzindo, no essencial, aquilo que já tinha dito na fundamentação da convicção.

Decidindo:

Nas sentenças há, para além de outras, uma parte destinada à discriminação dos factos provados (os únicos que depois o tribunal pode utilizar na fundamentação de direito da sentença), uma outra parte destinada à declaração dos factos não provados e à fundamentação da decisão da matéria de facto, e uma terceira parte destinada a fundamentar, de direito, a sentença.
Na fundamentação da decisão da matéria de facto não devem constar os factos dados como provados, nem devem constar fundamentos de direito que não tenham a ver com a fundamentação da decisão da matéria de facto.
O contrário disto vai conduzir a uma sentença elaborada em violação das normas em causa (art. 607, n.º 3, 4 e 5, do CPC), o que pode dar origem quer a vícios na decisão da matéria de facto, a resolver segundo o art. 662 do CPC, quer a vícios na sentença, a resolver nos termos dos arts. 615 e 665, ambos do CPC.
No caso dos autos, a sentença recorrida colocou, na fundamentação da decisão de facto, quer factos essenciais provados (entre outros os constantes dos §§ 5, 7 e 12), quer fundamentos de direito da sentença (entre outros os constantes dos §§ 4, 10, 11, 12).
No entanto, tal, no caso, não se traduziu numa nulidade da sentença, pois que é facilmente perceptível a errada colocação da discussão de direito na parte da sentença destinada à fundamentação da decisão de facto, possibilitando o recurso sobre a matéria de direito embora em local impróprio, dando à contraparte a possibilidade de o discutir.
E não se traduziu em vícios na decisão da matéria de facto que devam levar à anulação desta, pois que também aqui as executadas entenderam devidamente a errada colocação de factos provados na parte da fundamentação de facto e tal possibilitou a impugnação dessa decisão embora em local impróprio, dando à contraparte a possibilidade de a discutir.
Ou seja, trata-se apenas de convolar a arguição da nulidade, quer numa impugnação da decisão da matéria de facto, quer num recurso sobre a matéria de direito.
O que se passa a fazer.
Se as executadas não tiverem razão na impugnação da decisão da matéria de facto, os factos que o tribunal recorrido deu como provados na fundamentação de direito terão, então, de ser deslocados para a parte da sentença destinada à discriminação dos factos.
*

Da impugnação da decisão da matéria de facto.

Dizem então as executadas, nas conclusões transcritas, que ninguém disse aquilo que o tribunal invoca como fundamento daquela decisão, isto é, que ninguém disse que as terceiras pessoas que receberam as cartas se comprometeram a proceder à sua entrega, por estarem em condições de o fazer.
E como resulta da própria fundamentação da convicção do tribunal é notório que as executadas têm razão, já que daquela fundamentação não resulta que alguém tenha dito algo que permitisse ao tribunal recorrido concluir como concluiu.
O tribunal baseia-se numa série de equívocos, entre eles o de ler nos avisos de recepção de tais cartas, que estão juntos aos autos, o que deles não consta, embora conste normalmente dos avisos de recepção das cartas enviadas pelos tribunais. Para além de, em relação à executada L, confundir a carta de 03/02/2015 com a carta de 13/07/2015, que trata como só uma, embora faça referência às duas datas (nos §§ 5 e 6 vê-se que começa a falar numa e termina a falar de outra, como se fossem a mesma).

Veja-se; diz o tribunal recorrido:

- “5. Efectivamente, a carta de 03/02/2015, dirigida à executada L, embora não tendo sido recebida por si, foi recebida por terceira pessoa que se comprometeu a proceder à sua entrega, por estar em condições de o fazer.” => Mas o tribunal não diz quem é que fez esta afirmação da parte final do § 5 e mais à frente vê-se que a retira do disposto no art. 228 do CPC.
- “6. A carta foi remetida e recebida no Rua de , em Angra do Heroísmo, onde aquela executada, L, em pessoa, veio a receber a carta de 13/07/2015, cfr. fls. 41” => O tribunal estava-se a referir à carta de 03/02/2015, pelo que não tem sentido invocar o a/r da carta de 13/07/2015 para dizer que aquela foi recebida nas condições que o tribunal invoca.
- “7. A carta dirigida de 03/02/2015, dirigida à executada N, embora não tendo sido recebida por si, foi recebida por terceira pessoa que se comprometeu a proceder à sua entrega, por estar em condições de o fazer” => De novo, o tribunal não diz quem é que fez a afirmação da parte final do § 7 e mais à frente vê-se que a retira do disposto no art. 228 do CPC.
- “8. As executadas nunca alegaram que aquelas cartas não lhes foram entregues por aquela pessoa, que as recebeu e que ficou ciente da obrigação legal de proceder à sua entrega, conforme resulta do disposto no artigo 228/2 do CPC […]” => Decorre claramente desta parte final da transcrição do § 8 que o tribunal tirou aquela conclusão do disposto no art. 228/2 do CPC.

Mas, diga-se agora, os a/r das cartas enviadas por B são diferentes dos a/r das cartas enviadas pelo tribunal, como logo resulta do confronto dos a/r de fls. 36 e 38 destes embargos e dos a/r de fls. 19 e 20 do apenso, pois que destes consta, e daqueles não, a seguinte menção: “este aviso foi assinado […] por pessoa a quem foi entregue a carta e que se comprometeu após a devida advertência a entregá-la prontamente ao destinatário.”
Sendo assim, não há nenhuma prova daquilo que o tribunal diz relativamente à recepção daquelas cartas, na motivação da convicção do tribunal. E não ficando provado isso, também não se pode tirar a consequência que o tribunal tirou, a nível de facto consignado na motivação, de que a livrança tenha sido preenchida após a recepção daquelas cartas.
Assim, as executadas têm razão nesta parte e os factos provados são só e apenas aqueles que foram expressamente discriminados como provados na parte da sentença destinada a isso e nenhuns outros.
*

Das nulidades da sentença – continuação

Dizem as executadas (em síntese feita por este tribunal de recurso):
Nada na lei obriga que os terceiros que recebam cartas de interpelação extrajudicial, cujos destinatários sejam outras pessoas, sejam obrigados a entregar-lhes essas mesmas cartas. E muito menos a lei determina que a interpelação extrajudicial por carta recebida por terceiro presume que o destinatário efectivamente a recebeu por entrega desse terceiro. O receptor da carta (o terceiro) pode não ter entregado a carta ao destinatário. Cabe ao remetente da carta, isto é, à exequente, provar que o terceiro entregou a carta de interpelação que recebeu ao destinatário, isto é, que as cartas foram efectivamente entregues pelo terceiro às executadas, em interpelação do credor ao devedor para tornar a obrigação exigível (cf. art. 342/1 do CC). Da recepção das cartas por terceiros não pode decorrer que as executadas possam ser penalizadas por não terem efectivamente recebido as ditas cartas. A interpelação das executadas para o preenchimento da livrança é uma declaração negocial receptícia (art. 224 do CC). Assim sendo, a exequente tinha que provar – é ónus seu (artigo 342/1 do CC) – que notificou efectivamente as executadas (e não terceiros) dessa interpelação. Pelo que o tribunal recorrido tinha a obrigação de valorar contra a exequente a ausência de prova e, não – como veio a fazer em sede de fundamentação de facto – a valorar contra as executadas a omissão da exequente.

O tribunal recorrido, para afirmar, na motivação da matéria de facto, que as terceiras pessoas se comprometeram a proceder à entrega das cartas às executadas, tinha que ter dado como provado, na matéria de facto provada, que as terceiras pessoas procederam efectivamente à entrega das cartas às executadas; não o tendo feito, a sentença recorrida é nula, por oposição entre os fundamentos e a decisão, ao abrigo do disposto no artigo 615/1-c do CPC, nulidade essa que aqui se invoca nos termos do disposto no art.615/4 do CPC.

Decidindo:

O último § da fundamentação da arguição da nulidade, na parte sublinhada, denota claramente uma confusão das executadas. O que aí consta sublinhado é uma contradição das alegações de recurso. Afastada ela, é notório que não existe nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão. O que pode existir é um erro de julgamento de direito.
Já o § 1 da fundamentação da arguição da nulidade se pode traduzir, como já acima se tinha dito, numa argumentação contra a fundamentação de direito da sentença, e é para tal que a arguição da nulidade é agora convolada, passando então a discutir-se se a sentença tem razão, ou não, em considerar, em relação às executadas, eficazes as cartas que lhes foram enviadas, primeiro relativas ao incumprimento dos contratos e, depois, das relativas à resolução dos contratos e ao preenchimento da livrança.
A sentença recorrida entende que sim, estando a respectiva fundamentação na fundamentação da decisão da matéria de facto, já transcrita acima.
A sentença não tem razão, nem a tem a exequente, que acompanha a sentença, pois que uma coisa é a carta chegar ao poder do destinatário, outra, diferente, é ela chegar ao poder de terceira pessoa.
O art. 224/1 do CC diz que: A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida […].”
A propósito do art. 224/1 do CC, diz, por exemplo, Mota Pinto: o contrato está perfeito quando a resposta, contendo a aceitação, chega à esfera de acção do proponente. Isto é, quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer. Concretizando algo mais: quando a declaração […] foi levada à proximidade do destinatário de tal modo que, em circunstâncias normais, este possa conhecê-la, em conformidade com os seus usos pessoais ou os usos do tráfico (v.g., apartado, local de negócios, casa); uma enfermidade, uma ausência temporária de casa ou do estabelecimento são riscos do destinatário, e também é considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele recebida – art. 224/2 […]” (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, pág. 440).
Henrich Ewald Hörster, também a propósito do art. 224/1 do CC, diz: “Acrescente-se, ainda, que para se dar a chegada ao poder não é conceitualmente necessário que a declaração negocial chegue ao poder imediato do próprio declaratário, bastando o depósito no local indicado para o efeito em condições normais […]” (A parte geral do CC português, TGDC, Almedina, 1992, pág. 450).
Portanto, tem-se considerado que o depósito de uma carta na caixa de correio da casa do destinatário é condição suficiente para se considerar que ela chegou à esfera de acção do destinatário, que ele passou a estar em condições de a conhecer.
Assim, apesar de não haver prova de a carta ter sido recebida efectivamente pelo próprio destinatário, se ela chegou à sua esfera de acção, passando este a estar em condições de a conhecer, ela torna-se eficaz.
Neste sentido, ainda, vejam-se Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, I, Almedina, 2000, págs. 68 a 70; e Pedro Pais de Vasconcelos, TGDC, vol. I, Lex 1999, págs. 205 a 210, referindo o nº. 2 do art. 224 como reforço da orientação de fazer equivaler ao conhecimento efectivo da declaração a sua colocação à disposição e ao alcance do destinatário; e ainda o acórdão do TRC de 02/03/2011, proc. 357/09.8TBCBR.C1, com ampla invocação de doutrina e jurisprudência no mesmo sentido.
Assinale-se que a eficácia da comunicação não quereria dizer que as executadas tivessem tido efectivo conhecimento do seu conteúdo (a doutrina e os acórdãos acabados de referir dizem, por regra, o mesmo, por outras palavras); quereria apenas dizer que o seu conteúdo, independentemente de ser ou não conhecido, podia produzir os efeitos que visa.
Só que tudo isto é assim quando a carta chega ao poder do destinatário, não quando chega ao poder de terceira pessoa, sem que se saiba quem ela é. Se se puder dizer que a terceira pessoa é um empregado ou um auxiliar do destinatário, talvez se possa dizer que ele pertence à esfera de poder do destinatário e se possa então imputar-lhe o recebimento da comunicação (art. 801 do CC). Mas, sem isso, não.
Assim, por exemplo, diz Fernando A. Ferreira Pinto, Comentário ao CC, Parte geral, FD da UCP, 2014, pág. 506, “a declaração chega ao poder do destinatário quando atinge a sua esfera pessoal, ficando ao seu alcance, de modo a que, em condições normais e segundo as regras da experiência comum, o declaratário possa, por actos que dependam apenas dele próprio (e que se espera que ele pratique nessas circunstâncias), tomar conhecimento da vontade manifestada pelo declarante […].”
Nenhum dos autores citados acima (acrescente-se aos anteriores, Ana Prata no CC anotado, Almedina, 2017, págs. 276-278, que fala “na esfera do poder material do destinatário”), defende que a carta chegar a uma caixa de correio do destinatário é a mesma coisa que chegar ao poder de um terceiro sem mais nada, nem nenhum dos exemplos dados aponta nesse sentido. O autor que vai mais longe é Carlos Ferreira de Almeida, admitindo “que a chegada a empregados do destinatário, sejam ou não representantes deste, efectuada no local onde o destinatário (pessoa jurídica ou pessoa física) exerce a sua actividade, vale normalmente como chegada ao seu poder (pág. 113 da obra citada, agora na 5.ª ed., 2015).
E não se podem utilizar, como auxílio, as normas do CPC, designadamente o art. 228/2, porque o regime deste acaba por ser bem diferente e com muitas mais garantias. Basta ver que os termos com que a carta, neste caso do art. 228 do CPC, é recebida pelo terceiro, já transcritos acima, e que correspondem aos termos previstos no n.º 1 do art. 228. Por outro lado, observam-se ainda os cuidados previstos nos n.ºs 2, 3 e 4 do art. 228. E depois é ainda enviada nova carta ao citado nos termos do art. 233 do CPC.
Ora, nada disto aconteceu no caso das cartas enviadas pelo B e, depois, nas cartas enviadas pelo advogado do B. Estas diferenças, longe de permitirem a aplicação das mesmas consequências aos dois tipos de cartas, apontam exactamente em sentido contrário.
Por fim, a exequente e o seu advogado, podiam ter requerido aos CTT a prestação do serviço especial da entrega da carta ao próprio destinatário (art. 31/1 do DL 176/88, de 18/05). Neste caso, teriam uma carta entregue em mão própria ao próprio destinatário e a aplicação de pleno do art. 224 do CC. Não tendo adquirido o serviço especial em causa, não podem gozar dos benefícios do mesmo. 
Em suma, o facto de as cartas terem sido recebidas por terceiros, não implicam que elas se possam considerar eficazes em relação às executadas. Este fundamento da sentença, colocado erradamente na fundamentação da decisão da matéria de facto, está errado e deve, por isso, ser afastado. Nesta parte, pois, as executadas têm razão.
Para além disto, diga-se que as cartas de 03/02/2015 nem sequer dizem respeito à livrança exequenda – mas tratou-se certamente de uma simples troca, já que, como decorre do ‘assunto’ da carta (m) havia duas livranças. As cartas de 03/02/2015 devem dizer respeito à livrança dos 12.000€ e as cartas que se referem à livrança dos nossos autos devem estar junto com aquela outra livrança.
Entretanto, note-se desde já o seguinte: a carta da resolução dos contratos e do preenchimento da livrança, enviada para a executada L foi recebida por ela própria, como consta expressamente dado como provado no facto discriminado na al. (n).
O que se terá de ter em conta à frente.
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Consequências do afastamento do argumento da sentença recorrida.

Da (des)necessidade de apresentação a pagamento ao avalista
A livrança não tem de ser apresentada a pagamento ao avalista. Ou seja, ao contrário do que as executadas dizem, estes não têm que ser interpelados para o pagamento, como condição da exequente poder exercer os seus direitos cambiários. Neste sentido, apenas por exemplo:
- o ac. do STJ de 30/09/2003 (03A2113):
[…] Como está demonstrado o embargante deu o seu aval à subscritora da livrança ora em execução, respondendo por isso, da mesma forma que a pessoa afiançada (art. 77 e 32 da LU).
Por sua vez, o subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (art. 78 da LU) o que significa que é o devedor principal e não uma obrigação de regresso.
Portanto, o avalista, respondendo nos mesmos termos que o subscritor, também não é um obrigado de regresso.
Assim, embora a lei imponha ao portador o dever de apresentar o título a pagamento e ao protesto por falta de pagamento, sob pena de caducidade dos seus direitos contra as garantes, essa caducidade não se aplica ao aceitante (devedor principal, em relação ao qual o portador tem, não acção de regresso, mas acção directa), como expressamente declara o art. 53 da LU.
E assim, se é dispensada a apresentação a pagamento e o protesto quanto ao subscritor de uma livrança, equiparado ao aceitante, da mesma forma é dispensada aquela apresentação e protesto em relação ao avalista do subscritor, visto que responde nos mesmos termos que ele.
É, pois, irrelevante a falta de apresentação a pagamento ou a protesto, no caso concreto.”
O ac. do STJ de 14/01/2010 (960/07.0TBMTA-A.L1.S1 – só sumário):
“I- O portador de uma letra pagável em dia fixo deve apresentá-la a pagamento no dia em que ela é pagável ou num dos dois dias úteis seguintes (art. 38.º da LULL), sendo que se não a apresentar, tratando-se duma letra com a cláusula «sem despesas», perde o direito de regresso contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante.
II- Assim, uma letra ou tem a cláusula «sem despesas» ou não tem: se não tem, impõe-se o protesto; se tem, releva a apresentação a pagamento.
III- A este regime escapa a acção contra o aceitante ou contra o subscritor, na medida em que este último é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (art. 78.º da LULL).
IV- Uma vez que, nos termos do art. 32.º da LULL, o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, a falta de apresentação a pagamento ou a falta de protesto não beliscam a relação cambiária entre o portador e o avalista, quer do aceitante –nas letras –, quer do subscritor – nas livranças.”
Ac. do STJ de 01/10/2009 (381/09.0YFLSB)
“Mas há ainda outro argumento, e decisivo, no sentido de que a falta de apresentação a pagamento de uma letra ou livrança não acarreta para o portador a perda do seu direito de acção contra o aceitante, que é o facto de o art. 53 da LULL exceptuar do regime de perda dos direitos de acção do portador do título, mesmo tratando-se de letras à vista ou no caso da cláusula «sem despesas», os direitos contra o aceitante, como salientava o insigne Prof. Gabriel Pinto Coelho (7).
Neste sentido, pode ver-se, v. g., o Acórdão da Relação do Porto de 9 de Dezembro de 2004, onde se sentenciou no sentido de que «a falta de apresentação a pagamento da livrança não implica a perda dos direitos do portador em relação ao aceitante e, nessa medida, também em relação ao avalista deste» ( Col. Jur. 2004, V, pg. 193) e outro, da mesma Relação, de 2 de Julho de 1992 ( Col. Jur. 1992, III, 300).”
Ac. do STJ de 29/10/2009 (2366/07.2TBBRR-A.S1)
“1.-A falta de apresentação a pagamento de uma livrança apenas tem como consequência inutilizar o direito de regresso, mas não determina a decadência («decadenza») dos direitos contra o devedor principal – o emitente – ou o seu avalista.
2.-A livrança, mesmo que não apresentada a pagamento na data respectiva, não perde a qualidade de título cambiário exequível contra o emitente e seus avalistas.”
*

Da (des)necessidade de protesto por falta de pagamento para poder accionar o avalista
Outra alternativa de encarar as objecções das executadas, relativa à falta de interpelação, teria a ver com a necessidade de protesto.
Mas a verdade é que a desnecessidade de protesto por falta de pagamento para poder accionar o avalista é, por outro lado, posição que tem sido resolvida, maioritariamente, pela jurisprudência em sentido negativo, com recurso ao disposto nos arts. 32 e 53 da LULL, por força do art. 77 da LULL, contra parte da doutrina, mas sem prejuízo desta parte aceitar que em dados casos, como o dos sócios, partes no acordo de preenchimento do título, que avalizam livranças em branco subscritas pelas sociedades, a garantia funciona independentemente de protesto: Evaristo Mendes, http://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo_Mendes_Aval_eprotesto_Revisitaco.htm ponto 5.
Assim, para além da citada na sentença recorrida, vejam-se ainda, entre muitos outros:
- o ac. do STJ de 09/09/2008 (08A1999):
“O citado art. 53 exceptua o aceitante, expressamente, da necessidade de protesto, mas na excepção está abrangido o avalista do aceitante (Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 202; Abel Pereira Delgado, Obra citada, 7ª ed., pág. 286; R.L.J. Ano 71- 324; Ac. S.T.J. de 01/10/1998, Bol. 480-482).”
- o ac. do STJ de 23/04/2009 (08B3905):
De acordo com o disposto no art. 53 da LULL, aplicável às livranças nos termos prescritos pelo art. 77 da mesma Lei, o portador de uma letra perde “os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante” se deixar passar o prazo “para (…) fazer o protesto (…) por falta de pagamento”.
Este STJ tem entendido que, da conjugação daquele artigo 53 com o art. 32, I, sempre da LULL, segundo o qual o avalista do subscritor responde “da mesma maneira” que ele, decorre a desnecessidade de protesto para o accionar, tal como seria desnecessário para accionar o subscritor. Vejam-se, por exemplo, os acórdãos de 20/11/2002, 11/04/2004 ou 09/09/2008, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 03A3412, 04B3453 e 08A1999, e a jurisprudência neles citada.
É esta jurisprudência que aqui se reitera. Apesar das diferenças que separam o aval da fiança, decorrentes em particular da sua autonomia quanto à relação garantida (cfr. artigo 32, II, da LULL), certo é que a responsabilidade do avalista do aceitante se define, nas diversas dimensões relevantes, por aquela que incide sobre o aceitante.”
- ac. do STJ de 10/09/2009 (380/09.2YFLSB):
“3. Não é condição do exercício dos direitos do portador de livrança contra o avalista do subscritor o protesto prévio. (vejam-se, […], os recentes acs. deste Supremo de 09/09/2008 in CJIII/08, pag.30 e de 23/04/2009, já atrás citado).”
- o ac. do TRL de 07/02/2008, proc. 10143/2007-2
“[…]

Questão diversa da, também, contemplada no art. 53 da LULL, a saber, a da apresentação a pagamento, ou a protesto, “depois de expirados os prazos fixados…” para o efeito.
E que implica para o portador a perda “dos seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante”.
Excepção que, na sequência do que se veio de expender quanto à medida e natureza da obrigação do avalista, abrange o avalista do aceitante/subscritor.
[…]

Correspondendo aquele ao que será a orientação dominante na doutrina e na jurisprudência. (Assim, na doutrina, Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial”, Vol. III, Títulos de Crédito, FDL, 1992, pág. 201-204; Pereira Coelho, in “Lições de Direito Comercial”, vol. 2º, fas. 5º, págs. 19 e seguintes; Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, Vol. III – Letra de Câmbio – U. C., 1975, págs. 211-212, e Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, Livraria Petrony, 1980, págs. 161-162 e 229. Na jurisprudência, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11-11-2004, proc. 04B3453, desta Relação, de 15-05-2007, proc. 3860/2007-7, e da Relação do Porto, de 27-02-2007, proc. 0720506, todos em www.dgsi.pt. Podendo citar-se, em sentido diverso, Paulo Sendin e Evaristo Mendes, In “A Natureza do Aval e a Questão da Necessidade ou Não de Protesto Para Accionar o Avalista do Aceitante”, Almedina, 1991; e Nuno Madeira Rodrigues, In “Das Letras: Aval e Protesto”, Almedina, 2002.)
Como efeito, nos termos do já citado art. 32, §1º da LULL, “O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.”
E “o subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra” – vd. art. 78 da LULL – ou seja, está obrigada a pagá-la na data do seu vencimento, cfr. art. 28 do mesmo diploma.
Sendo que “A recusa de aceite ou de pagamento deve ser comprovada por um acto formal (protesto por falta de aceite ou falta de pagamento)”, vd art. 44, § 1º, da LULL.
Ora, nos termos do art. 53, da LULL., “Depois de expirados os prazos fixados: (…) para se fazer o protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento; o portador perdeu os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra outros co-obrigados, à excepção do aceitante”.
Sem qualquer menção ao avalista.
No domínio do Código Comercial de 1888, e como dão nota Paulo Sendin e Evaristo Mendes, (op. cit. pág. 47) a doutrina e a jurisprudência estavam de acordo quanto à desnecessidade do protesto para o portador ter direito de acção contra o avalista do aceitante.
E, como ensina Oliveira Ascensão, (op. cit. 202) “Não se pode ver na LU a intenção de alterar este estado de coisas, como resulta da observação das doutrinas estrangeiras, sendo que a desnecessidade de protesto é aceite na Alemanha (Hueck/Canaris, Wertpapieret, §13, I, 1º,; Jaggi/Druey/von Greyerz, Wertpapierer recht, § 28, I, 2 e 3.) e também, dominantemente, em Itália.”.
O avalista responde na medida objectiva da obrigação do avalizado, nos termos e quantidade em que este seria responsável.
Pois que “sendo responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada“, como visto já, “A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.” (art. 32, § 2º, da LULL).
Assim, como prossegue aquele autor, “Se mesmo que a obrigação não subsistisse contra o avalizado a obrigação do avalista se mantém, por maioria de razão se mantém quando não subsiste contra terceiros, em consequência de não ter havido protesto, mas subsiste contra o aceitante”.
O avalista assume uma responsabilidade directa. Não sendo aceitante/subscritor responde no lugar destes. Não tem uma expectativa de que o protesto seja realizado, porque a sua obrigação envolve já tudo aquilo porque o aceitante/subscritor podia responder.
A declaração formal de que não houve pagamento resulta, nesta caso, irrelevante.”
E ainda, o ac. do TRL de 06/12/2012 (7771/04.3YYLSB-A.L1-2), do TRP de 17/05/2012 (4622/11.6YYPRT-A.P1), do TRP de 09/01/2012 (2492/11.3YYPRT-A.P1 - que lembra a existência de acórdãos do TC a aceitar a constitucionalidade desta interpretação), do TRP de 22/11/2011 (3354/11.0YYPRT-A.P1), do TRC de 23/02/2010 (254/09.7TBTMR-A.C1) e do TRG de 27/02/2012 (5345/06.3TBBRG-B.G1)
*

Da necessidade de o credor comunicar ao pré-avalista (avalista de uma livrança em branco) o vencimento da obrigação do subscritor da livrança, se quiser que a obrigação de garantia daquele cubra a totalidade do seu crédito
No ac. do TRL de 20/01/2011 (1847/08.5TBBRR-A.L1-6) diz-se:
“É […] necessária interpelação prévia do avalista quando […] o título [é] entregue em branco ao credor (para este lhe apor a data de pagamento e a quantia prometida pagar, em termos deixados ao seu critério), pois só assim o avalista tem conhecimento do montante exacto e da data em que se vence a garantia prestada.”
Aderindo a este acórdão, veja-se o ac. do TRL de 08/11/2012, 5930/10.9TCLRS-A.L1-6, que nada adianta de novo, pois que a única fundamentação é a dupla remissão para aquele acórdão. Para além disso, este acórdão entende que era o embargante que tinha de fazer a prova de não ter sido interpelado o avalista, o que está errado, pois que, por um lado, quem tem um dever é quem tem de provar que o cumpriu (art. 342/2 do CC), e, por outro, está a pôr, sem qualquer fundamento, a cargo do embargante a prova normalmente impossível de um facto negativo.
Já o ac. do TRP de 03/04/2014, 1033/10.4TBLSD-A.P2, fundamenta o dever “no princípio da boa fé e [n]o dever de actuação em conformidade com ele” (art. 762/2 do CC) que “impõem ao exequente a obrigação de informar aos avalistas dos títulos, simultaneamente partes no pacto de preenchimento, os montantes em dívida, as datas de vencimento e em que termos os títulos serão preenchidos em caso de não pagamento” mas isto apenas para tirar a conclusão de que, “na ausência de prazo no pacto de preenchimento”, “a falta de interpelação pelo credor/exequente, implica que a obrigação apenas se considera vencida com a citação”, pelo que “releva[] somente para efeitos de contagem dos juros moratórios.” Este acórdão diz que este entendimento apesar de ser minoritário começa a ser perfilhado por parte jurisprudência e para o comprovar cita os dois acórdãos do TRL já referidos (embora não aceite a parte da fundamentação do último quanto ao ónus da prova).
Contra, o ac. do TRL de 10/02/2009, 9001/2008-1, diz que “as comunicações do tomador escritas ao subscritor e aos avalistas deste em como as livranças foram acabadas de preencher, indicando o montante, a data de vencimento, e informando que estão patentes para pagamento, são actuações de mera informação e cortesia, de relacionamento institucional entre B e cliente e não correspondem a qualquer exigência da legislação cambiária.” Por outro lado, considera que, nestes casos, se está perante uma livrança à vista, o que não é correcto: uma livrança em branco, com um acordo de preenchimento, não é uma livrança apenas incompleta quanto à data [neste sentido, Evaristo Mendes, Aval prestado…, ponto 4: pelos acordos ou pactos de preenchimento sabe-se que o documento não pretende ser imediatamente pagável à vista (embora, tendo em conta o art. 76, pudesse aparecer como tal) e ac. do TRP de 21/02/2016, 175/14.1T8LOU-A.P1 (embora para a letra): IV. Uma letra em branco não é uma letra à vista.]
No ac. do TRP de 16/06/2016, proc. 1187/06.4TBVNG-A (publicado em https://outrosacordaostrp.com), diz-se: I. O credor tem o ónus de comunicar ao pré-avalista (avalista de uma livrança em branco) o vencimento da obrigação do subscritor da livrança, se quiser que a obrigação de garantia daquele cubra a totalidade do seu crédito. II. Se o não fizer - e é ele que tem o ónus da provar que o fez - o avalista não responde pelos juros vencidos desde o vencimento da obrigação até ao momento em que foi citado para a execução.
Posto isto (e seguindo-se este último acórdão),
Do aval e do pré-aval
Depois de todas as anotações doutrinárias que foram feitas ao ac. do STJ de 11/12/2012, AUJ 4/2003, é hoje muito claro que são situações muito diferentes aquela que resulta da aposição de um aval a uma livrança já completamente preenchida, em que o avalista sabe por qual quantia é que está a dar o aval e a data do vencimento da livrança, e aquela que resulta da aposição de uma assinatura para aval numa livrança ainda por preencher quanto à quantia e à data de vencimento.
Na primeira situação há uma livrança e um aval e o avalista sabe por quanto é que está obrigado e quando é que a livrança se vencerá. Na segunda há um documento que se destina a ser uma livrança, ou uma livrança em branco que ainda não vale como livrança (não produzirá efeito como livrança, diz o art. 76 da LULL), e um pré-aval, não sabendo o avalista se e por quanto responde nem quando se vencerá a obrigação, para além de correr o risco de o documento para livrança vir a ser preenchido contrariamente aos acordos realizados (art. 10 da LULL).
Neste sentido, Carolina Cunha, Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência, DSR 9, Março de 2013, págs. 91 a 114, que se baseia na posição que pouco tempo antes tinha assumido na tese de doutoramento, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, Filipe Cassiano dos Santos, Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11/12/2012, RLJ 142, Maio/Junho de 2013, e Januário Gomes, O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving – AUJ 4/2013, proc. 5903/09», CDP 43, Agosto de 2013, Evaristo Mendes, Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas, e perda da qualidade de sócio, http://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo_Mendes_Aval_prestado_por_socios_de_SQ_Apontamento_(final)eu.htm, e, por último, Sara Aleixo, O aval cambiário dos sócios em títulos em branco. A paradoxa solução do AUJ n.º 4/2013, RDS, 2016/3, pág. 611-641, todos com inúmeras referências doutrinárias no mesmo sentido, entre elas aos professores Oliveira Ascensão e Pinto Coelho.
Nos termos do Prof. Evaristo Mendes, por último, veja-se:
[4] A subscrição-emissão pela sociedade de uma livrança em branco – isto é, sem algum dos requisitos essenciais indicados no artigo 75 da LULL, designadamente o montante da promessa de pagamento - a favor de um seu financiador não cria imediatamente um título cambiário, sujeito ao regime geral desta Lei (art. 76) e, em especial, independente, desprendido quer da relação subjacente quer do pacto de preenchimento a que alude o artigo 10 da LULL. Na verdade, o título – enquanto título de crédito, com as características que a Lei lhe confere - apenas existirá se e quando apresentar os requisitos essenciais do artigo 75: designadamente, quando dele constar uma promessa de pagar perfeitamente identificada, com a indicação do valor devido, o tempo e o lugar do pagamento, etc. Até lá, temos meros documentos de livrança com pactos de preenchimento, susceptíveis de serem legitimamente transformados pelo seu portador em verdadeiras livranças ao abrigo de tais pactos, se se verificarem os pressupostos neles contidos.
Isto posto,
Do conteúdo da obrigação do pré-avalista e do ónus de lhe ser dado conhecimento do vencimento da obrigação
Se a obrigação do subscritor da livrança em branco é uma obrigação que não é de termo certo (como é caso dos autos, porque está dependente de um eventual incumprimento), aquele que avaliza a livrança não pode saber em que data é que ela se vencerá porque está dependente de um acontecimento a que é estranho. Para que a possa pagar no momento do vencimento, sem incorrer no agravamento da dívida, tem que saber a data em que ela se vence. Pelo que se justifica que se ponha a cargo do credor o ónus de se lhe dar conhecimento dessa data. Note-se que não se trata de exigir a interpelação do pré-avalista, mas sim de lhe dar conhecimento do vencimento da livrança que já ocorreu e operou os seus efeitos na esfera do subscritor, abrindo caminho para o seu reflexo, por relação (a determinação dita per relationem), no âmbito da obrigação daquele que, com o preenchimento da letra, passa então a ser avalista (parafraseou-se, adaptando, a lição do Professor Januário Gomes, Assunção fidejussória de dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina, 2000, nºs. 139 e 140, págs. 941 a 951, e conclusões 235 a 237).
Trata-se, assim, de  exigir ao credor que dê conhecimento ao pré--avalista do vencimento da obrigação do subscritor, sob pena de este ser ineficaz quanto ao avalista e de por isso não lhe poder exigir a cobertura da garantia para todo o crédito.
Continuando a parafrasear Januário Gomes, diga-se que ao assinar o aval na livrança em branco quanto ao vencimento, o pré-avalista aceita, ex-ante, poder ter de cumprir, na data do vencimento, a prestação que, então, for devida e, a partir daí, as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (art. 32/I da LULL). A assunção do risco tem esse limite. Assim sendo, se não for informado pelo credor do vencimento da obrigação, isto é, se não for colocado em condições de poder cumprir nos mesmos termos em que o pode fazer o subscritor, daí não poderá resultar um aumento do risco do pré-avalista. Ou seja: o pré-avalista, quando for, mais tarde, intimado para cumprir, não estará vinculado a mais do que aquilo que estaria se fosse esse o momento do vencimento da obrigação.
É este o regime que Januário Gomes explica para a fiança, apesar de, por força do art. 634 do CC, também aí se poder dizer que o credor não tem de dar conhecimento ao fiador do vencimento da obrigação para que o fiador responda também pela mora. Daí que Antunes Varela e Pires de Lima digam que não é necessário a interpelação do fiador. Só que, como lembra Januário Gomes isso só pode ser assim em relação às obrigações de termo certo, não em relação às outras.
Ora, o regime deve ser o mesmo para o pré-aval de uma obrigação que não tem termo certo conhecido, pois que a obrigação do pré-avalista é também uma obrigação que se vai medir pela do outro obrigado. Nesta parte não há diferenças entre o pré-avalista e o fiador de uma fiança de uma obrigação sem termo certo.
A consequência da não observância desse ónus, pelo credor, é a de ele não poder fazer responder o avalista pelo agravamento da dívida a partir do vencimento dela. É como se o vencimento da obrigação só tivesse ocorrido, do ponto de vista do avalista, a partir da citação para a execução, se esse tiver sido o primeiro momento em que teve conhecimento do vencimento da obrigação do subscritor.
Em suma: o tomador da livrança em branco não tem o dever de informar o pré-avalista de que vai preencher a livrança mas, se quiser que o avalista cubra o crédito total representado pela livrança preenchida, tem o ónus de lhe comunicar o preenchimento da livrança com o consequente vencimento da obrigação e daí que também não se possa falar de uma actuação de cortesia.
*

Posto isto, e aplicando ao caso dos autos: não se trata de, ao contrário do defendido pelas executadas, de a exequente ter de lhes apresentar a livrança a pagamento ou de as interpelar antes de a preencher, sob pena de violação do que consta do pacto de preenchimento subscrito com a prestação do aval, tanto mais que do pacto de preenchimento transcrito nos factos provados, nada consta quanto a isso; também não se trata de a exequente ter que demonstrar, antes de requerer a execução ou depois, o valor em divida, pois que é às executadas que caberá alegar e provar que o valor em dívida não é o que consta do titulo executivo.
Trata-se apenas de, depois do vencimento e do preenchimento da livrança, não antes, a exequente ter de lhes dar conhecimento desse vencimento para que as executadas lho pudessem pagar, evitando o agravamento da dívida por força dos juros de mora, ou a penhora de bens sem antes lhes ter sido dada a possibilidade de pagar.
Assim sendo, é irrelevante que não se tenha provado que as cartas a dar conhecimento da situação de incumprimento chegaram ao poder das executadas. Já é relevante que a exequente não tenha provado que a carta a dar conhecimento do preenchimento chegou ao poder da executada N. É relevante no sentido de que, então, só com a citação para a execução é que se começam a vencer juros de mora em relação a ela. Já quanto à executada, L, como se assinalou supra, a carta chegou ao seu poder, pelo que é irrelevante tudo o que ela veio dizer em contrário. Em relação a esta, por isso, os embargos improcedem totalmente.    
*

Erro de julgamento
As executadas ainda dizem (com alguma síntese deste tribunal de recurso):
17.Considerou o tribunal a quo que, ainda que não tivesse havido interpelação das executadas, a consequência seria que a obrigação só se consideraria vencida com a citação, ao abrigo do disposto no artigo 610/2-b do CPC, o que apenas teria implicações ao nível da contagem dos juros moratórios;
18.Porém, o art. 610 do CPC aplica-se somente às acções declarativas. No caso das acções executivas, rege o art. 713 do CPC, segundo o qual “A execução principia pelas diligências, a requerer pela exequente, destinadas a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título executivo”.
19.Precisamente porque elas têm como pressuposto à sua instauração a exigibilidade (com o vencimento) da dívida exequenda, ou seja, que, na data da propositura da execução, o devedor já está, pelo menos, em mora no cumprimento da obrigação (certa e líquida) e não que ele passa a estar em mora com a citação na execução;
20.Pelo que, não tendo existido interpelação prévia das executadas para o preenchimento da livrança dos autos, tinha a exequente a obrigação de, pelo menos, promover as diligências necessárias à sua efectiva interpelação, por forma a tornar a dívida exequenda “exigível”, do ponto de vista do direito substantivo:

Decidindo:
Como decorre do decidido na parte anterior, a obrigação cambiária da executada N – em relação à outra executada já nada disto interessa - venceu-se com o preenchimento da livrança. E tornou-se imediatamente exequível. Esse vencimento e exequibilidade só se tornam eficazes em relação a ela em momento posterior, mas tal não impede que já se tenham verificado. A única consequência é, pois, de, até à citação, a dívida, certa e exequível, não vencer juros de mora quanto a ela.
*

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente apenas quanto à data de início do cálculo dos juros vencidos sobre a quantia titulada pela livrança em relação à executada N, que passa a ser a data em que esta executada foi citada para a execução e não antes.
Custas do recurso quanto à executada L por esta.
Custas do recurso e dos embargos quanto à executada N: por ela e pela exequente, na proporção do decaimento (que diz respeito apenas aos juros vencidos anteriores à citação para a execução).



Lisboa, 14/09/2017



Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira