Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1142/23.0T8FNC.L1-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: PER
INDEFERIMENTO LIMINAR
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL DE REGRAS PROCEDIMENTAIS
OMISSÃO DE COMUNICAÇÃO DO ENCERRAMENTO DAS NEGOCIAÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I–O processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a concluir com estes, acordo conducente à sua revitalização.

II–Existindo apenas uma projeção de que, a curtíssimo prazo, o devedor se encontrará numa situação de impossibilidade de cumprimento e sendo a situação ainda suspceptível de recuperação, verificam-se os pressupostos para recurso ao Processo Especial de Revitalização.

III–O indeferimento liminar do requerimento por força do disposto nº artº 27º, nº1, b), do CIRE, com fundamento na falta de junção dos documentos a que alude o art. 24º do mesmo diploma, após a prolação de despacho de aperfeiçoamento, convidando à respectiva junção, só deverá ter lugar no caso de ocorrer essencialidade dos documentos em causa, a qual se deve aferir pelo facto de o processo não estar legalmente em condições de poder prosseguir sem a junção dos documentos em apreço.

IV–Este terá igualmente que ser o critério a adoptar com vista a decidir se a falta de algum(ns) dos documentos a que alude o referido artigo 24º deve dar lugar à recusa de homologação do Plano por força do disposto no artº 215º do CIRE.

V–A comunicação prevista no nº 1 do artigo 17º-D do CIRE – a comunicação pelo devedor, através de carta registada, a todos os credores que não hajam subscrito a declaração de manifestação de vontade de encetarem negociações, que deu início a negociações com vista à sua revitalização -, destina-se apenas a facilitar e acelerar o início das negociações com vista a concluir, de forma célere, o acordo com vista à revitalização, uma vez que o prazo de que os credores dispõem para reclamar os seus créditos não se inicia com a aludida comunicação, mas sim com a publicação no portal Citius do despacho que nomeia o administrador judicial provisório.

VI–Tendo a credora tido intervenção nos autos logo após a nomeação do administrador judicial provisório, apresentado impugnação à lista de credores, pronunciado-se relativamente ao plano apresentado, o qual veio a ser por si votado desfavoravelmente sem qualquer declaração, tem que se concluir que a falta de envio à credora da carta a que alude o artigo 17º-D, nº1, do CIRE, não consubstancia violação não negligenciável que obste à homologação do plano.

VII–A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e essa violação só será não negligenciável quando possa afectar/prejudicar a salvaguarda de interesses, quer do devedor, quer dos credores, que sejam protegidos legalmente.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


A sociedade M.., S.A., instaurou, no dia 26 de Fevereiro de 2023, um processo especial de revitalização que foi recebido por despacho datado de 28 de Fevereiro de 2023.
O prazo para concluir as negociações foi prorrogado por um mês, tendo terminado no dia 04 de Julho de 2023.
Nesse mesmo dia, a sociedade depositou no Tribunal a versão final do plano de recuperação, sendo que o depósito foi publicado no portal CITIUS no mesmo dia.
Por requerimento datado de 10 de Julho de 2023, vieram os credores INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL DA MADEIRA, IP-RAM e A… J…, pronunciar-se nos termos do artigo 17.º-F, n.º 2, do CIRE, tendo esta última requerido a junção aos autos de um documento alegadamente correspondente ao relatório elaborado pelo A.I. nos termos do artº 155º do CIRE no âmbito do processo com o n.º 3138/22.0T8FNC, em que era requerida a ora requerente e que correu termos no mesmo Juízo onde correram os presentes autos.
Invocou que desse relatório resulta de forma inequívoca que a requerente se encontra insolvente e que o teor do mesmo é diametralmente oposto à conclusão plasmada no plano aqui apresentado.
Por requerimento datado de 14 de Julho de 2023, veio a sociedade M.., S.A., juntar aos autos uma nova versão do plano, nos termos do artigo 17.º-F, n.º 3, do CIRE, que foi publicada no portal CITIUS no dia 17 de Julho.
Por requerimento de 25 de Julho de 2023, veio A… J… requerer que a homologação do plano de recuperação seja recusada (cfr. artigo 17.º-F, n.º 3, do CIRE).
Para o efeito, alegou, em suma, que:
i–A devedora não fez acompanhar o seu requerimento inicial com os seguintes documentos (cfr. artigo 17.º-C, n.º 3, do CIRE):
a)- Relação e identificação de todas as acções e execuções que contra si estejam pendentes (cfr. artigo 24.º, n.º 1, alínea a), do CIRE);
b)- Relatórios de fiscalização e de auditoria e pareceres do órgão de fiscalização (cfr. artigo 24.º, n.º 1, alínea f), do CIRE);
c)- Declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por revisor oficial de contas, atestando que não se encontra em situação de insolvência actual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º do CIRE (cfr. artigo 17.º-A, n.º 2, do CIRE);
ii–A devedora veio juntar aos autos a declaração referida em (i), alínea c) em data posterior, conforme requerimento datado de 31 de Março de 2023 (N/REF: 5183804), faltando os restantes referidos no ponto (i);
iii–A devedora não comunicou a credora, por carta registada, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-a a participar nas negociações em curso (cfr. artigo 17.º-D, n.º 1, do CIRE);
iv–O plano não contém a declaração prevista no artigo 202.º, n.º 1, do CIRE. A saber: declaração, por parte dos sócios, que mantenham essa qualidade e respondam pessoalmente pelas suas dívidas, de que têm disponibilidade para que a devedora continue a explorar a empresa;
v–O plano não faz referência ao plano de investimentos, a conta de exploração previsional e a demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos (cfr. artigo 195.º, n.º 1, alínea d), do CIRE). A falta desta informação impossibilita à devedora tomar uma posição sobre a (…) previsão das vendas ou do volume de negócios da devedora no decurso do plano (sic.);
vi–A devedora incumpriu o disposto no artigo 17.º-D, n.º 1, do CIRE, conforme referido no requerimento datado de 15 de Junho de 2023 (N/REF. 5292256), sendo que apenas o Sr. Administrador Judicial Provisório se pronunciou sobre o incidente suscitado através do requerimento datado de 27 de Junho de 2023 (N/REF. 5310962);
vii–No âmbito do requerimento datado de 27 de Junho de 2023, veio o Sr. Administrador Judicial Provisório declarar que, no dia 26 de Junho de 2023,a devedora procedeu à elaboração de uma proposta de plano de recuperação que foi enviada para pronúncia de todos os credores, onde se inclui a credora reclamante”, até ao dia 30 de Junho de 2023, sendo que “o envio da referida proposta para todos os credores tem por finalidade possibilitar que todos os credores possam pronunciar-se sobre a proposta, sugerindo alterações, aditamentos ou correcções, dando-lhes, assim, a possibilidade de participar nas negociações e elaboração da versão final do plano de recuperação”;
viii–A… J…, por carta registrada com aviso de recepção, datada de 29 de Maio de 2023, notificou a devedora da sua intenção de participar nas negociações, nos termos do 17.º-D, n.º 9, do CIRE (cfr. prova documental junta com o requerimento datado de 15 de Junho de 2023 - N/REF. 5292256);
ix–A carta referida em (viii) foi devolvida ao destinatário;
x–O referido nos pontos (iii), (vi), (vii), (viii) e (ix) consubstancia a violação, não negligenciável, de normas procedimentais;
xi–O referido nos pontos (iv) e (v) consubstancia a violação, não negligenciável, de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação;
xii–A devedora: (i) tem dívidas no valor global de 1.400.000,00€; (ii) não tem património; (iii) não tem liquidez; (iv) não é titular de créditos ou de outros bens susceptíveis de penhora; (v) é executada em várias acções executivas pendentes;
xiii–Do referido em (xii) decorre que a devedora se encontra insolvente, razão pela qual a homologação do plano deverá ser rejeitada.
Por requerimento datado de 28 de Julho de 2023, veio a sociedade M…, S.A. pronunciar-se sobre o requerimento apresentado pela credora A… J… em 25 de Julho de 2023.
Finalizou, concluindo que não assiste razão à mesma.
O plano de recuperação foi aprovado com as seguintes maiorias:



Por requerimento datado de 14 de Agosto de 2023, veio o Sr. Administrador Judicial juntar aos autos o seu parecer sobre se o plano apresenta perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma (cfr. artigo 17.º-F, n.º 6, do CIRE).
Em sede do referido parecer, o Sr. Administrador Judicial Provisório concluiu que a devedora é uma empresa economicamente viável – veja-se que vem apresentando sempre resultados positivos e não está tecnicamente insolvente por apresentar capitais próprios positivos -, que apenas necessitava de uma reestruturação do passivo com vista a manter a sua actividade e gerar riqueza, pelo que entende que os pressupostos nos quais assenta o plano de recuperação são verificáveis, podendo a devedora manter a sua actividade e fazer face aos pagamentos previstos no plano.
Após ter sido notificado para o efeito, por requerimento datado de 28 de Agosto de 2023, veio o Sr. Administrador Judicial pronunciar-se sobre o requerimento apresentado em 25 de Julho de 2023 pela credora A… J…, concluindo que não há razão para a não homologação do plano de recuperação.
Após, foi proferida sentença, constando da mesma:
“(…)
Termos em que, o Tribunal decide homologar por sentença o plano de recuperação da sociedade M…, S.A., cujo teor se dá por reproduzido, nos termos do disposto no artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE.”
*
Inconformada, apelou a credora, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1.–O presente recurso tem por objecto a sentença que homologou o plano especial de revitalização da sociedade recorrida, assim como o despacho liminar que admitiu o processo especial de revitalização;
2.–Pretende-se com o presente recurso impugnar a decisão de direito, por se entender que ambas as decisões enfermam de nulidade e de erros de direito, tendo o tribunal a quo decidido de forma incorrectamente ao homologar o plano;
3.–Em Junho de 2022, foi também requerida a insolvência da recorrida no âmbito de um outro processo, que correu os seus termos no mesmo juízo que o tribunal a quo, e cujo processo foi tramitado sobre o n.º …/22.0T8…;
4.–No âmbito desse processo, foi elaborado relatório do administrador de insolvência, datado de 9 de Setembro de 2022, no qual concluiu que a recorrida estava, de forma inequívoca, insolvente;
5.–No PER apresentado no âmbito dos presentes autos, não resulta qualquer demonstração de Resultados e Rúbricas de Balanço dos três últimos anos de actividade, ao passo que no relatório anterior, constava essa informação;
6.–Na sentença proferida, o tribunal a quo não teceu uma única consideração sobre esse relatório, junto pela recorrente e que não foi objecto de impugnação;
7.–Não se ignora que o relatório do administrador de insolvência que o tribunal a quo se deve debruçar e ter em devida linha de conta para efeitos de homologação (ou não) do PER apresentado, é o do administrador provisório que no processo em que se discute o PER foi nomeado e não qualquer outro;
8.–Porém, in casu, há ter em devida linha de conta, entre outros, o reduzido hiato temporal que mediou entre ambos os relatórios, até porque o primeiro foi apresentado em Setembro de 2022, enquanto que o relatório produzido nos presentes autos foi depositado, após a prorrogação legalmente prevista, em Julho de 2023;
9.–Do primeiro relatório resulta, outrossim, que:
a)- Pelo menos em Agosto de 2022, não foram localizadas contas bancárias tituladas pela devedora com saldos bancários suscetíveis de apreensão de valor significativo – concretamente e à data, € 17,16, e ainda que em diligências realizadas na sede da devedora em 01/08/2022, não foram apresentados montantes em caixa resultantes da atividade até 31/07/2022;
b)- A recorrida não dispõe de património imobiliário ou mobiliário de relevo, sendo que os bens/valores à data apreendidos, pouco ultrapassavam o montante de € 5.000,00;
c)- Segundo rubricas do balanço da empresa referente ao ano económico de 2021, constava a rubrica de 261.368,21 € a título de caixa e depósitos bancários, o que não é compatível com o supra referido;
d)- A recorrida tem um passivo superior a € 1.500.000,00, o qual já se registava em período muito anterior ao da pandemia originada pelo vírus SARS Covid-19.
10.–Não se ignora que o tribunal não tem a obrigação de se pronunciar sobre todas as questões que lhe forem trazidas pelas partes, por serem inócuas ou irrelevantes para efeitos da decisão a tomar, mas deve fazê-lo quanto às que forem susceptíveis de influenciar a decisão de direito;
11.–O documento em causa era pertinente, e constituía um meio de prova relevante para a decisão a tomar, pelo que o tribunal a quo estava obrigado a tomar posição quanto a esse elemento de prova, para fundamentar a sua decisão quanto à solvabilidade da recorrida;
12.–Ao não o ter feito, cometeu uma nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 615º do CPC;
13.–Ou, se assim não se entender, incorreu de erro de julgamento quanto à matéria de facto, ante a não apreciação de um elemento factual de relevo para a boa decisão da causa;
14.–O tribunal a quo reconheceu a violação do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 24º e alínea b) do n.º 3 do artigo 17º-C, ambos do CIRE, por via da falta de junção dos relatórios de fiscalização e de auditoria e de pareceres do órgão de fiscalização e da relação de todas as acções e execuções que contra a recorrida estejam pendentes;
15.–Tendo, outrossim, concluído pela inexistência dos relatórios de fiscalização e de auditoria e de pareceres do órgão de fiscalização, à míngua de qualquer elemento de prova;
16.–Incorreu em erro de direito quanto a este último ponto, uma vez que inexistem nos autos quaisquer elementos que permitam ao tribunal a quo chegar a essa conclusão, não sendo igualmente lícito concluir desse modo através de presunção, incorrendo, nessa medida, em erro de direito;
17.–Mais decidindo pela irrelevância da violação das supra citadas normas, por não serem susceptíveis de influir no exame ou na decisão da causa e por, no seu entender, não consubstanciarem uma violação não negligenciável das regras de procedimento;
18.–Discorda a recorrente por entender a violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo é distinta da falta de cumprimento de requisitos adjectivos ou formais, não estando, esta última, abrangida pelo art. 215º do CIRE;
19.–O que significaria dizer que o PER terá invariavelmente de ser negado caso não se encontrem reunidos os pressupostos formais e adjectivos de que depende a sua admissibilidade;
20.–Até porque pouco ou nenhum faria sentido entender-se, por exemplo, que o tribunal indeferisse liminarmente um processo especial de revitalização no qual não estivessem cumpridos os requisitos formais, para também admitir que, em casos em que tal não fosse liminarmente detectada essa falha, a posterior homologação ou aprovação do plano reduziria esta necessidade e obrigação formal à inocuidade, desconsiderando-a ou dando-a por sanada pela mera razão do plano ter sido aprovado;
21.–Razão pela qual entende-se que o tribunal deveria ter decidido de outro modo, recusando a homologação do plano ante a verificação do incumprimento dos requisitos formais de que depende a sua admissibilidade, violando o disposto n.º 1 do artigo 24º ex vi da alínea b) do n.º 3 do artigo 17º-C, ambos do CIRE;
22.–Não merecendo acolhimento por parte do tribunal superior a tese da recorrente, pugna-se, ainda assim, pelo entendimento que a violação em causa deverá comportar uma violação não negligenciável das regras procedimentais;
23.–A norma que disciplina a junção da documentação em causa é, julgamos nós, de natureza imperativa, posto que delimita, desde logo, a admissibilidade do PER em termos formais, e da sua violação não pode resultar um resultado distinto, i.e., a sua homologação;
24.–Apenas poderão desconsiderar-se as violações que apenas atinjam regras de tutela particular que no limite, poderão ser afastadas com o consentimento do próprio visado;
25.–Todas as demais violações legais que se reconduzem à adopção de procedimentos ou à omissão de formalidades que a lei exclui ou determina consubstancia uma violação da lei, que, ainda que de forma activa ou passiva, comporta sempre a prática de uma nulidade processual;
26.–O que significa dizer que, tendo o tribunal a quoenquadrado as sobreditas violações como violação negligenciável, e consequentemente, homologado o plano, incorreu em erro de direito, violando o art. 215º do CIRE;
27.–É consabido que o controlo jurisdicional imposto pelo CIRE ao tribunal, aquando da submissão de um requerimento de um processo especial de revitalização traduz-se num controlo jurisdicional mínimo, sendo que o controlo efectivo e com o devido rigor far-se-á posteriormente, quer através dos credores, quer através do tribunal através do despacho de homologação ou de não homologação, designadamente, quanto à verificação da situação de insolvência ser iminente ou actual do devedor ou quanto à sua recuperabilidade.;
28.–Contudo, isso não significa dizer que o grau de controlo nessa fase incipiente seja inexistente, uma vez que a lei admite a possibilidade de rejeição do requerimento. E se existe a possibilidade de controlo, ainda que mínimo, essa apreciação liminar deve pautar-se pela verificação e existência dos requisitos formais de que depende a admissibilidade desse requerimento.
29.–O tribunal a quo, face a essa falta dos documentos legalmente exigidos pelo CIRE, devia, pois, ter procedido no sentido de proferir um despacho de aperfeiçoamento, com o intuito de a recorrida corrigir os vícios, por aplicação analógica da alínea b) do n.º 1 do artigo 27º do CIRE;
30.–Não o tendo feito, e estando em causa requisitos formais, legalmente obrigatórios e tão necessários para o prosseguimento dos trâmites posteriores, e até mesmo da própria admissibilidade do processo especial de revitalização, o tribunal a quo, e s.m.o., andou mal a decidir da forma que decidiu, posto que poderia (e deveria) ter proferido despacho de aperfeiçoamento no sentido de convidar a recorrida a juntar a documentação em falta, seja em sede de despacho liminar, seja posteriormente, previamente ao despacho de homologação do plano, realçando-se o facto da recorrente ter invocado esta questão diversas vezes, razão pela qual não pode a recorrida prevalecer-se dessa falha;
31.–Ao não o fazer, violou um poder-dever, que se lhe impunha, sendo que o convite ao aperfeiçoamento de articulados, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual, que aqui expressamente se se invoca, nos termos do n.º 1 do art. 195º do CPC;
32.–Por uma questão de cautela e ainda que não se entenda pela verificação da nulidade supra, dir-se-á que com aquela conduta, o tribunal a quo incorreu pelo menos em erro ao ter proferido despacho liminar de admissão do PER, posto que não estavam reunidos todos os pressupostos legais para o fazer, tendo violado o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 24º e alínea b) do n.º 3 do artigo 17º-C, ambos do CIRE, que inquinou todo o demais processado;
33.–O tribunal a quo também deu por verificada a violação do disposto no artigo 17.º-D, n.º 1, do CIRE, uma vez que a recorrida não remeteu qualquer carta à recorrente, nos termos daquela norma, no sentido de a convidar a participar nas negociações;
34.–Mas também a relevou por considerar que a mesma não consubstanciava uma violação não negligenciável, uma vez que a recorrente teve participação activa no processo;
35.–Não consegue a recorrida aceitar esta conclusão, na medida em que premeia o duplo infractor, permitindo que este se prevaleça da própria violação em que incorreu, enquanto penaliza a recorrente por ser diligente;
36.–Não se pode considerar que o facto da recorrente ter conhecimento do processo ou ter visto o seu crédito reconhecido para que se conclua que o vício seja sanado ou pelo facto de não ter sido prejudicado;
37.–E acrescenta-se que a violação da recorrida não se resumiu à omissão do envio da carta para participar nas negociações, posto que também impediu a recorrente de participar em quaisquer negociações, uma vez que foi enviado por esta carta a manifestar intenção de participar nas negociações, dirigida para a sua sede, que foi devolvida pelos serviços postais;
38.–Tendo, subsequentemente, a prova de envio dessa carta e a própria carta sido juntas aos autos;
39.–E nem assim a recorrida permitiu que a recorrente participasse nas negociações, sendo que a conduta da primeira, no sentido de ter remetido uma única notificação 4 dias antes do prazo máximo para apresentação do plano, no qual remete uma versão final do Plano especial de revitalização, com o intuito único de ser submetida a votação, não pode considerar-se como apto ou idóneo a permitir qualquer tipo de negociação;
40.–Por outras palavras, só houve a preocupação de remeter uma versão unilateral desse mesmo plano, sem qualquer tipo de preocupação pela opinião dos credores, dado o prazo reduzido de 4 dias para os credores se pronunciarem.
41.–Pelo que a violação não se limitou ao n.º 1 do art. 17º-D do CIRE, mas também do n.º 8, 9 e 10 da mesma norma;
42.–É, pois, certo, que quanto à aqui recorrente, foi-lhe vedada a participação nas negociações, jamais foi consultada, pelo que não existiu um verdadeiro processo de negociação, ao contrário do pressuposto e que é corolário do processo especial de revitalização;
43.–Solução diversa, no sentido de concluir pela não violação não negligenciável de regras procedimentais, chega a ser chocante, porque admite o entendimento que sucessivos atropelos à violação destas normas, in obstante serem suscitadas perante o tribunal, possam pura e simplesmente ser ignoradas ou relevadas aquando da decisão sobre a homologação do plano, votando as normas em causa à irrelevância ou vazio;
44.–A recorrente levantou esta questão, no decurso deste processo, em mais do que uma ocasião, o que significa dizer que a inércia da recorrida tem de ser objecto de censura, pois fê-lo de forma consciente e deliberada;
45.–O tribunal a quo teve conhecimento desta violação, muito antes da homologação do plano, sendo certo que recai sobre o juiz o dever de assegurar o controlo da legalidade do processo.
46.–Tendo-se também verificado a violação dos princípios da boa-fé negocial, da cooperação e da transparência, o que constitui violação do conteúdo do plano, nos termos do artº 195º, nº 1, do CIRE, como a violação do princípio da igualdade entre credores, nos termos do artigo 194.º do CIRE e dos artigos 17º-D, 207º n.º1 alínea a) e 215º n.º1, todos do CIRE;
47.–A recorrente alegou perante o tribunal a quo que o plano não continha a declaração prevista no artigo 202º n.º1 do CIRE, designadamente, a declaração por parte dos sócios, que mantenham essa qualidade e respondam pessoalmente pelas suas dívidas, de que têm disponibilidade para continuar a explorar a sociedade devedora;
48.–O tribunal a quo entendeu que a norma não era aplicável ao caso sub judice, mas apenas às sociedades em nome colectivo, em comandita simples e por acções, e às sociedades sob a forma civil;
49.–Não se vislumbra o fundamento legal para enquadrar a aplicabilidade da norma em causa apenas às sociedades elencadas na fundamentação da decisão;
50.–Concluindo-se pela obrigatoriedade de junção desse documento, e, desse modo, pela violação dos artigos 202º n.º1 ex vi 17-I/4, 207º, nº1, alínea a) e 215º, todos do CIRE;
51.–A recorrente alegou que não se vislumbrava em nenhuma das versões do plano apresentado, as exigências previstas na alínea d) do n.º 2 do art. 195º do CIRE, ou seja, nem o plano de investimentos nem a especificação dos principais pressupostos subjacentes à conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa, concluindo pela violação da alínea d) do n.º 2 do art. 195º do CIRE;
52.–O tribunal a quo entendeu que o conteúdo do plano fazia referência às exigências em causa: “(…) encontrando-se, inclusivamente, acompanhado em anexo (i) de um balanço actualizado referente o exercício de 2022, (ii) do plano de pagamentos proposto, e (iii) de uma conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos (…)”;
53.–No entender da recorrente, um plano de investimentos deverá conter uma descrição da actividade a desenvolver, os recursos necessários para o desenvolvimento dessa actividade, assim como uma análise económica e financeira da sua rentabilidade, e não se confunde, de todo, com a conta de exploração previsional nem com a demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, até porque o art. 195º do CIRE separa e diferencia esses conceitos;
54.–Tem-se, pois, por assente, que o PER é pura e simplesmente totalmente omisso quanto ao plano de investimentos;
55.–Assim como também não existe qualquer especificação fundamentada quanto aos principais pressupostos subjacentes a essas previsões, não sendo possível sindicar qualquer elemento concreto que fundamente a bondade dessas previsões ou como é que a recorrida irá alcançá-los;
56.–Sendo qualquer uma dessas violações, não negligenciáveis;
57.–Essa ausência de concretização e materialização enviesa todo o plano, pois cria incerteza e imprecisão, o que não é admissível e consiste numa violação do disposto no art. 195º do CIRE e dos princípios orientadores da Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 29/09, nomeadamente o princípio décimo;
58.–Razão pela qual entende-se que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito, violando a alínea d) do n.º 2 do art. 195º do CIRE;
59.–Foram reconhecidos cerca de € 1.400.000,00 (um milhão e quatrocentos mil euros) de obrigações vencidas, num universo de 20 credores;
60.–Do PER apresentado, não se constata a existência de qualquer património da recorrida, nem tão pouco a existência de qualquer tipo de liquidez, eventuais créditos ou direitos por parte desta;
61.–É manifesto que a situação da recorrida não é apenas de uma situação económica difícil, constituindo, antes, uma situação de patente insolvência, concretizada na impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas;
62.–A recorrida não reúne as condições para que seja homologado o plano, não se podendo ficcionar uma solvabilidade inexistente e uma recuperação absolutamente irrealista face aos dados que se conhecem e se prevêem;
63.–Relativamente ao volume de negócios no ano de 2021, a sociedade registou uma redução de 60,07% do volume de negócio e, consequentemente, resultado operacional manifestamente negativo de € 145.141,58 (cento e quarenta e cinco mil, cento e quarenta e um euros e cinquenta e oito cêntimos) não obstante a redução dos encargos gerais;
64.–Das diligências realizadas junto do Banco de Portugal pelo anterior administrador judicial, resulta que não foi possível localizar quaisquer contas bancárias tituladas pela recorrida com saldos bancários susceptíveis de apreensão de valor significativo, sendo que com uma conta apresentava um saldo no valor de € 17,16 (dezassete euros e dezasseis cêntimos) e a segunda no valor de € 122,72 (cento e vinte e dois euros e setenta e dois cêntimos);
65.–Nem tão pouco, foram apresentados montantes em caixa resultantes da atividade até 31/07/2022;
66.–Os bens/valores apreendidos no âmbito do processo com o n.º … /22.0T8…, pouco ultrapassavam o montante de € 5.000,00 (cinco mil euros);
67.–Pelo menos, desde o ano de 2011, a recorrida não consegue cumprir com as obrigações pecuniárias perante credores privilegiados, quanto mais para com os credores comuns e subordinados.
68.–Se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra efectivamente numa situação de insolvência atual, então o juiz não pode deixar de recusar oficiosamente a homologação, de forma a impedir os expedientes de dilação ou suspensão do processo de insolvência ao serviço de objetivos que não se coadunem com o pensamento legislativo;
69.–A análise dos autos impõe a conclusão que a recorrida está em situação de insolvência;
70.–Pelo que deveria o tribunal a quo ter recusado a homologação do plano;
71.–Não o tendo feito, incorreu na violação dos artigos 3º, 17-A n.º1 e 2º e 215º, todos do CIRE.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado totalmente procedente e, em consequência, revogada a sentença de homologação do plano de recuperação.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, CONCLUINDO:
1.–Quanto à alegada nulidade da sentença a mesma só ocorre quando não haja pronúncia sobre questões concretas colocadas ao tribunal, no caso, como se deixou dito, a sentença tomou posição sobre a situação da sociedade, considerando que a mesma não estava insolvente e, portanto, a sentença não é nula por falta de pronúncia, ao abrigo do art. 615º, n.º1 al. d), do Código de Processo Civil.
2.–De igual forma, a sentença não padece de erro de julgamento por não ter referido na sua fundamentação as informações vertidas no documento junto pela credora, pois ao tribunal não lhe incumbe apreciar todos os argumentos que a recorrente carreou para os autos para sustentar a sua pretensão - recusa da homologação do plano-.
3.–No caso concreto, o tribunal sindicou o cumprimento das normas aplicáveis no que concerne aos aspectos de procedimento, como também aos de conteúdo do plano, e após ponderação proferiu sentença de homologação do plano, por ter entendido não se verificar a violação/vício não negligenciável.
4.–Neste conspecto, as situações invocadas pela recorrente foram, e bem, consideradas negligenciáveis, por, por um lado, não terem influído na decisão a tomar e, por outro, por nenhum direito dos credores ter sido prejudicado.
5.–Repita-se, uma vez que a recorrente exerceu o direito de voto, qualquer invalidade praticada não pode deixar de se considerar sanada, sem olvidar, que da própria alegação da recorrente, não se vislumbra qualquer consequência da não participação nas negociações, nem tão pouco em sede do presente recurso aduz a recorrente que tal omissão tivesse influído no desfecho da aprovação do plano.
6.–No que diz respeito à alegação da falta de relatórios de fiscalização previstos no art. 24, n.º1 al. f) do CIRE, ao contrário do alegado pela recorrente o preceito não é imperativo, desde logo, porque do corpo da referida norma resulta “se forem obrigatórios ou existirem”, de onde se extraia a conclusão que os documentos só serão juntos se existirem. No caso em apreciação resultou provado que tais documentos não existiam, estando, desta forma, justificada a sua não junção.
7.–Por fim, como se deixou exposto o estatuído no artigo 202º, n.1, do CIRE não é aplicável à devedora, tendo em conta que os accionistas da mesma não respondem pessoalmente pelas dívidas da sociedade.
Terminou peticionando que seja mantida a decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
No despacho que admitiu o recurso, a Mmª Juíza a quo pronunciou-se no sentido que a sentença não enferma da nulidade invocada pela recorrente.
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Foram colhidos os Vistos dos Exmºs Adjuntos.
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II–OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela apelante, importa decidir:
i)-Questão prévia: da admissibilidade do recurso interposto do despacho liminar proferido ao abrigo do art. 17.º - C, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
ii)-Da invocada nulidade consistente na não prolação de despacho, convidando ao aperfeiçoamento da petição inicial;
iii)-Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia e
iv)-Se existem fundamentos para a não homologação do Plano de Revitalização por a devedora se encontrar já em situação de insolvência actual e por violação não negligenciável de norma procedimental.
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III–FUNDAMENTAÇÃO
a)-Questão Prévia: da admissibilidade do recurso interposto do despacho liminar proferido ao abrigo do art. 17.º - C, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
Com o recurso que interpôs da sentença que homologou o plano especial de revitalização apresentado pela recorrida M…, SA, veio a mesma interpor recurso do despacho liminar que admitiu o processo especial de revitalização”.
Está em causa o despacho proferido em 28/02/2023, com o seguinte teor:
“Nos termos do art. 17.º-C, n.º 1, 2 e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, admito o processo especial de revitalização da sociedade M…, S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede em ….
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Nos termos do art. 17.º- C, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nomeio como administrador judicial provisório o Sr. Dr. F…, com domicílio profissional na …
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Nos termos do art. 17.º- E, n.º 1 e 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas:
- A presente decisão obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra a devedora e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
- O devedor fica impedido de praticar actos de especial relevo, tal como definidos no art. 161.º, sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório.
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Notifique o senhor administrador judicial provisório nomeado.
Notifique e Publicite, nos termos do art. 17.º-C, n.º 8, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique a devedora para dar cumprimento ao disposto no art. 17.º-D, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
Conforme resulta dos autos, logo aquando da notificação do referido despacho, a ora apelante recorreu do mesmo, recurso esse que não foi admitido com a seguinte fundamentação:
«O despacho proferido limitou-se a admitir o processo especial de revitalização, nomeando o administrador judicial provisório e fixando as suas competências.
A recorrente não indica qualquer norma que permita enquadrar a admissibilidade deste recurso, seja no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, seja no Código de Processo Civil por via do art. 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
E, percorrendo qualquer um destes diplomas, resulta que tal despacho é irrecorrível, “porquanto não cabe em nenhuma das alíneas de nenhum dos números do art. 644.º do Código de Processo Civil, mesmo com as devidas adaptações e, como refere João Labareda, neste despacho, o tribunal não faz qualquer juízo de valor, é, verificados os pressupostos, um despacho vinculado, não tem vencidos e o prosseguimento do processo não acarreta nenhuma consequência definitiva (cf. Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e Jurisprudência Recente, Porto Editora, pág. 33 e 34).
Nestes termos, atento o despacho objecto do recurso apresentado, conclui-se que o presente recurso é legalmente inadmissível.»
O despacho em apreço não se limitou a decidir que o recurso não era admissível autonomamente, ou seja, que o despacho que procedeu à nomeação do administrador só podia ser impugnado no recurso que viesse a ser interposto da sentença final. Refere-se expressamente que o tribunal não faz qualquer juízo de valor, é um despacho vinculado, não tem vencidos e o prosseguimento do processo não acarreta nenhuma consequência definitiva.
É este o entendimento de Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª edição, pág. 147, citado no despacho e ainda de Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2ª edição, pág. 395, a qual refere expressamente: “Deve considera-se que o despacho de nomeação do administrador judicial provisório ou despacho de abertura não é recorrível uma vez que não há vencidos”. Neste mesmo sentido pode ver-se a Decisão Singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/01/2021, proferida pela Juíza Desembargadora Amélia Rebelo, nos autos de Reclamação nº 3466/20.9T8FNC-A.L1, ao que sabemos não publicada: “Em jeito de conclusão, porque a urgência do procedimento - marcada pelos curtos prazos do procedimento e determinada pela natureza dos interesses em confronto e pela máxima limitação do efeito stand still - não se coaduna com a possibilidade de dilações e repetições de processado passíveis de emergir da recorribilidade do despacho de admissão do PER e com o consequente, pernicioso e legalmente indesejado prolongamento do procedimento no tempo, sem prejuízo das situações em que, no âmbito do despacho de admissão, o juiz, excedendo o mero despacho tabelar, procede à concreta apreciação e aferição, pela positiva, de alguns dos requisitos legais da admissibilidade do PER – casos que justificarão admitir a sua impugnação autónoma diferida, cfr. art. 644º, nº 3 do CPC -, nas demais, em que o juiz se limita a proferir despacho tabelar de admissão do requerimento ou tão só a nomear AJP, ainda que os autos denunciem a falta de requisitos formais e materiais ou a irregularidade de alguns deles aptos a fundamentar um convite ao aperfeiçoamento e/ou ao indeferimento liminar (sem prejuízo do prévio cumprimento do contraditório ao requerente), deverá entender-se que tal despacho é irrecorrível porque é proferido no uso de um poder discricionário de optar, ou pelo seu imediato conhecimento, ou de as relegar para fase posterior do procedimento, maxime em sede de verificação dos pressupostos de homologação do plano (se for aprovado) se e enquanto se
assumirem como essenciais 28- Nesse sentido, acórdão da RP de 18.02.2016, proc. nº 3521/15.7T(VR.P1 ou como vícios não
negligenciáveis,29-Vd. acórdão da RG de 23.01.2020,proc.510/15.6T8VNF.G1ao procedimento e à decisão da causa (de homologação do plano) e que não resultem entretanto sanadas (na hipótese de se tratar de falta ou irregularidade suprível).”
Ao ter-se conformado com a referida decisão, da qual não reclamou nos termos do artº 643º do C.P.Civil, não poderá agora a apelante vir novamente interpor recurso do despacho em causa, por a isso impedir o caso julgado formado – artigo 628.º do CPC.
O trânsito em julgado fixa o momento a partir do qual a decisão passa a revestir de certeza e de segurança jurídica, como decorre dos artigos 619.º, n.º 1 (alusivo ao caso julgado material, com eficácia intraprocessual e extraprocessual)Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º” – e 620.º, n.º 1 (alusivo ao caso julgado formal)As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo” –, ambos do CPC.
Como se sabe, o caso julgado pode ser formal ou material. Aquele só tem valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida (art. 620º CPC); em contrapartida, o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é susceptível de produzir os seus efeitos para além do processo em que foi proferida a decisão transitada (art. 619º, CPC)cfr Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, III vol., pág. 383 e ss.
O caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido ou efeito jurídico pretendido pelo autor, traduz a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objecto da acção ou incidente ou sobre a relação processual, e tem como finalidade imediata evitar que, em novo processo – por referência ao caso julgado material - ou no mesmo processo – por referência ao caso julgado formal -, o juiz possa validamente apreciar e decidir, de modo diverso, o direito, situação ou posição jurídicas já concretamente definidas por anterior decisão, vinculando o juiz à decisão proferida em primeira instância ou em via de recurso.
Tendo sido decidido que o despacho que procedeu à nomeação do administrador provisório é era irrecorrível e tendo tal decisão transitado em julgado, formou-se caso julgado formal no que a tal concerne.
Pelo exposto, não se admite o recurso interposto do liminar que, nos termos do disposto no art. 17.º - C, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, procedeu à nomeação do administrador judicial provisório.
Custas pela recorrente na proporção de 1/3
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b)-Da invocada nulidade consistente na não prolação de despacho, convidando ao aperfeiçoamento da petição inicial, mediante a junção de documentos.
Invocou a apelante que o tribunal a quo, ao não ter notificado a devedora para proceder à junção relatórios de fiscalização e de auditoria e dos pareceres do órgão de fiscalização, bem como da relação das acções e execuções contra si pendentes, documentos que a mesma deveria ter juntado com a petição inicial, cometeu uma nulidade processual, nos termos do artº 195º, nº1, do CPC.
Como decorre da análise dos presentes autos, a Recorrente nunca reclamou/arguiu (de forma tempestiva) que a não prolação do despacho constituía nulidade, pelo que a mesma, a existir, sempre terá que ser considerada como sanada: com efeito, tal irregularidade (nulidade secundária) encontra-se sujeita a reclamação da parte (interessado) prejudicada(o) nos termos dos arts. 199º e 149º do CPC (aplicáveis ex vi do art. 17º do C.I.R.E.) no prazo de 10 dias a contar, pelo menos, do momento em que tomou conhecimento da mesma); ora, só tendo invocado o cometimento da referida nulidade nas alegações de recurso, mostra-se completamente excedido o prazo para, processualmente, se insurgir quanto à sua prática, ficando este Tribunal impedido de a conhecer no âmbito do presente recurso em face da manifesta intempestividade da respectiva arguição.
Como se decidiu no Ac. da RG de 23/01/2020, Juiz Desembargador Jorge Teixeira, proc. nº510/15.6T8VNF.G1, in www.dgsi.pt: “A verificação de uma irregularidade processual, que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade, terá de ser arguida segundo o seu próprio regime, não podendo, nunca – a não ser que o processo tenha de ser expedido em recurso antes do fim do prazo da respectiva arguição -, ser atacada por via de recurso”.
Por outro lado, os recursos ordinários “destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas” (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª Edição, pág. 28) e “não a conhecer de questões novas, salvo se estas forem de conhecimento oficioso e não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado” (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 566).
Com efeito, “as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos” (Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 110), os quais constituem, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo (artº 627º nº1 do CPC) sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso (cfr. neste sentido Acs. STJ de 28-4-2010, de 3-02-2011 de 12-5-2011, de 24-4-2012, de 5-5-2016, de 3-11-2016 todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Como se referiu, o objecto do recurso está limitado ao conhecimento das questões apreciadas/decididas na 1ª instância e, além dessas, às questões que o tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente, o que não é o caso.
Pelo exposto, não se conhece da nulidade invocada.
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c)- Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Sustentou a apelante que procedeu à junção do relatório do administrador da insolvência elaborado nos termos do artº 155º do CIRE no âmbito do Processo de Insolvência que correu termos relativamente à ora requerente sob o n.º 3138/22.0T8FNC no mesmo juízo onde corre o presente PER.
No âmbito desse processo, foi elaborado o aludido relatório, datado de 9 de Setembro de 2022, no qual concluiu que a recorrida estava, de forma inequívoca, insolvente. No PER apresentado no âmbito dos presentes autos, não resulta qualquer demonstração de Resultados e Rúbricas de Balanço dos três últimos anos de actividade, ao passo que no relatório anterior, constava essa informação.
Na sentença proferida, o tribunal a quo não teceu qualquer consideração sobre o referido relatório, o qual não foi objecto de impugnação e constituía um meio de prova relevante para a decisão a proferir. Ao não o ter feito, diz que o tribunal a quo cometeu nulidade por omissão de pronúncia.
Estabelece o nº 1 do artº 615º do C.P.Civil que a sentença é nula quando:
“(…)
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)”
A omissão de pronúncia está directamente relacionada com o comando fixado nº 2 do art. 608º do CPC – segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
As questões aqui referidas são as questões relacionadas com o mérito da causa, balizadas pela pretensão deduzida, pela respectiva causa de pedir e pelas excepções peremptórias invocadas.
As questões a resolver não se confundem com os argumentos aduzidos, sendo constante a jurisprudência dos nossos tribunais no sentido que aquele preceito apenas impõe que o tribunal resolva todas as questões que as partes hajam submetido a julgamento – cfr, entre muitos outros, Ac. STJ, de 16/02/1995, Cons. Ferreira da Silva, BMJ 444, págs 595 e ss.
O mesmo é defendido pela doutrina – cfr, entre outros, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. I, pág. 551, Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, 2ª vol., pág. 646 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 54.
A nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
Atento o que fica referido, torna-se claro que o alegado não consubstancia nulidade por omissão de pronúncia. Esta não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar.
Assim, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui uma qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
Como se conclui no Ac. do STJ de 10.3.2022 (relator: Catarina Serra), in dgsi.pt. “A omissão de pronúncia respeita exclusivamente a questões, sendo que esta noção abrange as pretensões que as partes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia”.
Da invocada não consideração do teor do documento junto apenas pode decorrer erro de julgamento, (error in iudicando), mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia. Ou seja, este tipo de omissão pode, eventualmente, conduzir a um erro de julgamento quanto à matéria de facto e/ou quanto às questões de direito esgrimidas nos autos e, portanto, logicamente, nessa medida, só em sede de impugnação da decisão de facto ou de dissídio jurídico perante a decisão, se pode/deve colocar a questão.
Pelo exposto, entende-se que a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia.
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d)- De Facto
Atentos os elementos que constam dos autos, encontram-se provados, com interesse para a decisão a proferir e como decidiu o tribunal a quo, os factos que constam do relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido e ainda os seguintes, resultantes dos termos dos autos:
1–O acordo de pagamento aprovado apresenta o seguinte teor:

“ (…)

VII–MEDIDA PROPOSTA
O Plano de Recuperação deve indicar claramente as alterações dele decorrente para as posições jurídicas dos credores da devedora.
Analisada a viabilidade económica da empresa e o seu equilíbrio financeiro, temos por bem propor:
I)– Redução dos créditos por perdão e moratória, nos seguintes termos:
A)- Estado
A1)- Autoridade Tributária e Aduaneira

  • A redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e vincendos, nos termos do DL 73/99 de 16/03, aceitando-se as taxas praticadas para os créditos da Segurança Social, face à renúncia dos demais credores e às garantias constituídas e/ou a constituir;
  • Nos termos previstos na legislação acima referida, concretamente o n.º 5 do artigo 196.º do CPPT, a quantia exequenda, custas e juros de mora não perdoados, serão liquidados em regime prestacional, concretamente em 150 prestações, não podendo nenhuma delas ser inferior a 10 unidades de conta;
  • A primeira prestação vence-se no mês seguinte da data da decisão de aprovação do Plano;
  • Manutenção das garantias existentes, nos termos do nº 13, do artº 199º do CPPT;
  • A extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do CPPT;
  • Os processos de execução fiscal instaurados após a apresentação do presente, serão regularizados pela Devedora na íntegra, ou ao abrigo dos artigos 196.º e 199.º do CPPT;
A2)- Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social
  • O pagamento da dívida reconhecida será regularizado no âmbito de execução fiscal, em 106 prestações mensais e sucessivas ou no prazo máximo legalmente admissível (se inferior), com o vencimento da 1.ª prestação a ocorrer no mês seguinte à data de aprovação do Plano de Recuperação;
  • As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à Segurança Social, no âmbito das quais será implementado o plano prestacional, não são extintas mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do plano de revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos autorizado;
  • Taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras
entidades públicas;
  • Manutenção das garantias existentes, nos termos do Nº 13, do artº 199º do CPPT;
  • Os processos de execução fiscal instaurados após a apresentação do presente, serão regularizados pela Devedora
na íntegra ou ao abrigo dos artigos 196.º e 199.º do CPPT;
A)–Créditos Comuns
  • Período de carência de 12 (doze) meses que será contabilizado após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação;
  • Pagamento de 60% do capital em dívida em 119 (cento e dezanove) prestações;
  • Pagamento de 40% do capital em dívida na 120ª prestação (bullet)
  • Perdão de juros vencidos e vincendos;
  • Manutenção das garantias existentes;
B1)–Créditos Comuns – Contratos de Locação Financeira e ALDs
  • Período de carência de 12 (doze) meses que será contabilizado após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação;
  • Pagamento de 60% do capital em dívida em 119 (cento e dezanove) prestações;
  • Pagamento de 40% do capital em dívida na 120ª prestação (bullet)
  • Perdão de juros vencidos e vincendos;
  • Manutenção das garantias existentes;

Cessão de Créditos:

É concedida às instituições de Crédito, Financeiras e Sociedades de Garantia Mútua Autorização irrevogável e incondicional para:
  • Negociarem, proporem a venda, alienarem ou cederem a terceiro, total ou parcialmente, os créditos (vencidos ou não vencidos) dos Bancos / Instituições Financeiras detidos sobre a DEVEDORA emergentes de qualquer facilidade de crédito contratada com os Bancos / Instituições Financeiras, bem como a transmissão das garantias e outros acessórios dos créditos, incluindo sem limitar os emergentes do Contrato de Reestruturação Financeira, de contratos de empréstimo ou de mútuo, contratos abertura de crédito, descobertos de conta de depósitos à ordem (contratados ou não contratados), contratos de locação financeira, contratos de factoring e garantias bancárias prestadas, e/ou
  • Negociarem, proporem a transmissão e transmitirem, sem restrições, a terceiro a sua posição contratual em qualquer contrato de crédito, designadamente nos elencados na anterior subalínea;
  • Autorização, expressa e sem reservas, da DEVEDORA, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1, do artigo 79.º, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, revelar, prestar ou transmitir, direta ou indiretamente, aos potenciais cessionários mencionados na alínea anterior, todas e quaisquer informações, contratos, documentos ou o conteúdo, total ou parcial, dos mesmos, independentemente do meio de transmissão, respeitantes às relações creditícias que os Bancos / Instituições Financeiras mantém com a DEVEDORA.

Credores Não Identificados no Processo:
Os créditos que não se encontrem reconhecidos e que venham a ser reconhecidos, judicialmente ou extrajudicialmente, serão liquidados nas mesmas condições da respetiva natureza do crédito;

Créditos Sob Condição
Os créditos reconhecidos sob condição, verificando-se a condição a que estão sujeitos, serão pagos nas mesmas condições da respetiva natureza do crédito.

Cláusula de regresso de melhor fortuna
Este Plano está sujeito à cláusula “salvo regresso de melhor fortuna”.

Âmbito:
As alterações dos créditos sobre a devedora introduzidas pelo plano de recuperação produzir-se-ão independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados (n.º 1 do artigo 217.º do CIRE).
Nos termos do artigo 209.º, n.º 3 do CIRE, o Plano de Recuperação acautela os créditos eventualmente controvertidos em processo de impugnação de forma que venham a ter o mesmo tratamento que os da classe em que se inserem.
O plano de liquidação fica sujeito à cláusula de “regresso de melhor fortuna”, entendendo-se por esta que uma vez cumpridos os pagamentos atrás referidos, serão satisfeitos todos os credores na medida em viram os seus créditos reduzidos, caso a empresa apresente uma situação económico-financeira que o permita.
(…)”
*
e)-Dos fundamentos invocados para a não homologação do Plano de Revitalização
O Processo Especial de Revitalização – artigos 17.º-A a 17.º-J do CIRE (redacção da Lei n.º 16/2012 de 20/04, com as alterações introduzidas pelos Decs. Lei nº 26/2015, de 06/02, nº 79/2017, de 30/06 e da Lei nº 9/2022, de 11/01) – trata-se de um processo com vista a propiciar a revitalização célere e eficaz dos devedores que se encontrem numa situação de “pré-insolvência”, ou seja, de devedores que, não tendo caído ainda numa situação de impossibilidade financeira de satisfazer a generalidade dos seus compromissos, se encontrem já numa situação económica difícil, mas que ainda seja susceptível de recuperação.
Como se refere, entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10/04/2014, Processo 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 e de 25/03/14, Processo 6148/12.1TBBRG.G1.C1, disponíveis in www.dgsi.pt, depois da reforma operada pela Lei 16/2102, de 20/4, o CIRE tem como objectivo principal a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respectiva liquidação.
No que concerne à natureza deste processo, podemos dizer que se trata de um procedimento híbrido, no sentido em que, para alcançar a sua finalidade última, a recuperação do devedor, se trata de um processo extrajudicial, mas que exige a intervenção do tribunal em três momentos chave: no seu início, na decisão da impugnação da lista provisória de créditos e no final, para tornar gerais os efeitos do acordo, para recusar a sua homologação ou para extrair as devidas consequências da não aprovação do mesmo.
O art. 17.º-F, n.º 7, do CIRE – diploma a que pertencem os artigos que se indicarão seguidamente sem qualquer outra referência - incumbe o juiz de decidir se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, (…), aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º e aferindo:
a)- Se o plano foi aprovado nos termos do n.º 5;
b)- Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, os credores inseridos na mesma categoria são tratados de forma igual e proporcional aos seus créditos;
c)- Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, as categorias votantes discordantes de credores afetados recebem um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau, e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior;
d)- Que nenhuma categoria de credores, a que alude a alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, pode, no âmbito do plano de recuperação, receber nem conservar mais do que o montante correspondente à totalidade dos seus créditos;
e)- Se a situação dos credores ao abrigo do plano é mais favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa, caso existam pedidos de não homologação de credores com este fundamento;
f)- Se aplicável, que qualquer novo financiamento necessário para executar o plano de reestruturação não prejudica injustamente os interesses dos credores;
g)- Se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma”.
De entre as normas para que remete o citado artº 17º-F, nº 7, estabelecem os artigos 194º a 196º:
“Artigo 194º
Princípio da Igualdade
1- O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2- O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
Artigo 195º
Conteúdo do Plano
1- O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência.
2- O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:
(…);
e)-A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação.
Artigo 196º
Providências com incidência no passivo
1-O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:
a)-O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula ‘salvo regresso de melhor fortuna’;
b)-O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;
c)-A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
d)-A constituição de garantias;
e)-A cessão de bens aos credores.
2– (…)”.
Por sua vez, estabelece o artigo 215º:
“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.”
Atento o disposto no artigo 216º, “o juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a)- A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano;
b)- O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar”.
Estas normas prevêem dois grupos distintos de situações que poderão levar à recusa, uma por via oficiosa (artigo 215º) e outra a requerimento do devedor ou credor que haja manifestado nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano de insolvência (artigo 216º).
Cabe ao credor que suscite a não homologação a demonstração de uma das situações referidas.
No que concerne ao que seja “violação não negligenciável das normas/regras” prevista no artº 215º, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a densificar o conceito.
Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 2ªedição, Almedina p. 473,“(…) é razoável entender que violação não negligenciável é aquela e apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação. Está implícito na norma o dever de o juiz proceder a uma ponderação - uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, visados pela norma violada com vista a decidir se, em homenagem ao primeiro, a violação pode ser negligenciada”.
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª edição, 2015, pág. 781, “normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…). Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deva contemplar”.
No entanto, não são quaisquer violações das normas procedimentais ou relativas ao conteúdo de plano que impõem a não homologação do plano, mas apenas as violações não negligenciáveis. Sucede que a lei não define o que deva considerar-se como vício negligenciável.
Nas palavras dos mesmos autores “são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido”, importando, pois, para tal “sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável” (in ob. cit., pág. 782).
Por sua vez, diz-se no Ac. da RC de 11/10/2017, relatora Desemb: Maria Catarina Gonçalves, proc. nº6/17.0T8GRD-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc:“A violação de normas procedimentais corresponde, em bom rigor, a uma irregularidade processual que se consubstancia no facto de ter sido praticado um acto que a lei não admite ou de ter sido omitido um acto ou formalidade prescrito na lei e, nessa medida, o critério para apurar se tal violação é (ou não) negligenciável deve ser semelhante ao critério adoptado no artigo 195º do CPC com vista a determinar se a irregularidade tem aptidão necessária para produzir nulidade. Dessa forma, a violação dessas normas será não negligenciável sempre que possa afectar e influir no exame ou na decisão da causa, o que, no âmbito do processo de revitalização, equivale a dizer que tal violação será não negligenciável sempre que ela seja susceptível de afectar, de forma relevante, o processo negocial e o resultado que com ele se pretende atingir: a conclusão de um acordo entre o devedor e os seus credores em resultado das negociações entre eles estabelecidas.
A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e, portanto, essa violação será não negligenciável sempre que tal se deva concluir por aplicação do critério supra mencionado (quando se revele aplicável) e, de um modo geral, sempre que ela acarrete um resultado que a lei não permite, seja porque o conteúdo do plano viola disposições legais de carácter imperativo, seja porque viola regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere. A violação dessas normas será, portanto, não negligenciável sempre que ela possa afectar/prejudicar a salvaguarda dos interesses - sejam eles do devedor ou dos credores - que sejam dignos de protecção legal”.
Serão vícios não negligenciáveis aqueles que se traduzam em violação de normas imperativas, cujo resultado seja ilegal e insusceptível de ser suprido com o consentimento dos tutelados, acarretando a produção de um resultado que a lei não autoriza.
No caso sub judice, invocou a ora recorrente que, resulta do relatório elaborado pelo Administrador da Insolvência nos autos de insolvência que foram instaurados contra a recorrida sob o nº … /22.0T8… e que correram termos no mesmo juízo onde corre o presente PER, que:
a)- Pelo menos em Agosto de 2022, não foram localizadas contas bancárias tituladas pela devedora com saldos bancários susceptíveis de apreensão de valor significativo – concretamente e à data, € 17,16 e ainda que em diligências realizadas na sede da devedora em 01/08/2022, não foram apresentados montantes em caixa resultantes da actividade até 31/07/2022;
b)- A recorrida não dispõe de património imobiliário ou mobiliário de relevo, sendo que os bens/valores à data apreendidos, pouco ultrapassavam o montante de € 5.000,00;
c)- Segundo rubricas do balanço da empresa referente ao ano económico de 2021, constava a rubrica de 261.368,21 € a título de caixa e depósitos bancários, o que não é compatível com o supra referido;
d)- A recorrida tem um passivo superior a € 1.500.000,00, o qual já se registava em período muito anterior ao da pandemia originada pelo vírus SARS Covid-19.
Nos termos do artigo 17.º-A, n.º 1, do CIRE, “O processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”.
Resulta do artigo imediatamente supra referido que o processo especial de revitalização se destina a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a concluir com estes, acordo conducente à sua revitalização. As negociações que integram o objecto do processo circunscrevem-se às realizadas no âmbito do próprio procedimento, uma vez que são estas as únicas que o devedor requer e submete ao controlo, sindicância e apreciação do tribunal.
Como se diz no Ac. do STJ citado na sentença recorrida – acórdão de 09/06/2021, proferido no Processo nº 1267/19.6T8STS.P1.S1, Relatora Conselheira: Ana Paula Boularot, in www.dgsi.pt: “O facto de o processo especial de revitalização ser um instrumento de natureza essencialmente negocial, privatística portanto, não significa que todo o seu desenvolvimento decorra à margem da intervenção do Tribunal, sem qualquer interferência do Juiz, como parece inculcar a jurisprudência em confronto, o que resulta inequivocamente do nº 1 do artigo 17º-F do CIRE, o qual prevê que aquando da conclusão das negociações, com aprovação unânime, ou não, o plano deverá ser remetido ao Tribunal «para homologação ou recusa da mesma pelo juiz», o que impõe a verificação do cabal cumprimento de todos os pressupostos materiais e formais.)”
Assim sendo e caso resulte como inequívoco que se a requerente se encontra em situação de insolvência actual, como invocou a apelante e não meramente iminente, deverá o tribunal recusar a homologação do plano aprovado.
O legislador definiu a “noção de situação económica difícil” no art. 17.º-B – e no artº 222º- B em termos de PEAP -, mas não alude especificamente ao conceito de “insolvência meramente iminente”, para além da referência que consta do nº4 do art. 3.º, segundo o qual se equipara “à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.”.
Pode concluir-se “que se já ocorre uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, então a situação de insolvência será atual; mas se existe apenas uma projeção de que, a curtíssimo prazo, o devedor se encontrará numa situação de impossibilidade de cumprimento, então a situação será de insolvência iminente: a expressão iminente é utilizada, no léxico, num contexto relativo a algo que está prestes a acontecer, implicando, pois, um juízo de prognose”cfr Ac. Rel de Lisboa de 23-03-2021, proferido no Processo nº 6468/20.1T8SNT.L1-1, Relatora: Desemb. Isabel Fonseca, igualmente in www.dgsi.pt.
Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., p. 143, referem:
“(…) a situação de insolvência iminente consubstancia uma situação de dificuldade económica especialmente agravada, a tal ponto que cria, para quem a sofra, uma contingência de rutura, que não só está prestes a acontecer como, mais do que isso, sucederá com toda a probabilidade se não interferir nenhuma ocorrência atípica, seja ela extraordinária e inesperada ou resultante de uma intervenção voluntária dirigida a paralisá-la.”
Entendeu a Mmª Juíza a quo que «decorre do teor dos balanços referentes aos exercícios de 2019, 2020 e 2021, que a devedora não se encontra numa situação de falência técnica, sendo que também o ROC da mesma declarou no âmbito dos presentes autos que a sociedade M…, S.A. “não se encontra em situação de insolvência actual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º do CIRE, sendo susceptível de recuperação” (cfr. declaração datada de 24 de Fevereiro de 2023 – requerimento datado de 31 de Março de 2023 (N/REF. 5183804)]»
Atento o disposto no artº 155º do CIRE, decretada que seja a insolvência, cabe ao administrador nomeado elaborar um relatório com o conteúdo referido nesse mesmo artigo. Nesse relatório, como se extrai do n.º 1 do art. 155º do CIRE, o administrador de insolvência deve fazer uma análise dos elementos incluídos nos documentos juntos pelo devedor/insolvente em anexo à petição inicial, em que se apresente à insolvência ou, quando se trate de processo em que é requerida a sua insolvência, que o mesmo terá de preparar para imediata entrega ao administrador da insolvência, na eventualidade de a sua insolvência vir a ser declarada (art. 29º, n.º 2 do CIRE), em que explicite a actividade ou actividades a que se tenha dedicado nos últimos três anos e os estabelecimentos de que seja titular, bem como o que o administrador de insolvência entenda serem as causas da situação em que se encontra o devedor/insolvente (al. a)); deve fazer uma análise do estado da contabilidade do devedor/insolvente e indicar a sua opinião em relação aos documentos de prestação de contas e de informação financeira juntos aos autos pelos devedor/insolvente (al. b)); assim como indicar quais as suas perspectivas sobre a manutenção da empresa do devedor/insolvente, no todo ou em parte, da conveniência de se aprovar (ou não) um plano de insolvência, e das consequências decorrentes para os credores nos diversos cenários figuráveis (respectiva al. c)).
Do relatório elaborado pelo Administrador da Insolvência no processo de insolvência que correu termos relativamente à ora requerente sob o nº 3138/22.0T8FNC e junto àqueles autos em 02/09/2022 consta em termos de Demonstração de Resultados dos anos de 2019 a 2021:

Rendimentos e Gastos 2021 2020 2019
Vendas e serviços prestados 100.091,72 € 250.643,75 € 412.399,93 €
Fornecimentos e serv. externos 91.650,29 € 157.025,87 € 274.276,44 €
Gastos com pessoal 48.592,68 € 46.232,06 € 42.999,06 €
Outros Rendimentos e Ganhos 790,88 € 579,77 € 1,44 €
Outros Gastos e Perdas 67.862,49 € 9.609,73 € 15.890,93 €
Gastos/Rever. de deprec. e amort. 29.463,40 € 29.463,53 € 29.463,40 €
RESULTADO OPERACIONAL - 136.686,20 € 8.892,33 € 49.771,54 €
Juros e gastos similares suportados 8.455,32 € 0,00 € 5.790,63 €
RESULT. ANTES IMPOSTO -145.141,58 € 8.892,33 € 43.980,91 €
Imposto s/ Rend. Exercício 0,00 € 1.256,80 € 3.290,71 €
RESULT. LÍQ EXERCÍCIO -145.141,58 € 7.635,53 € 40.690,20 €

Estes elementos constam das Informações Empresariais Simplificadas apresentadas pela requerente relativamente a cada um dos anos em causa.
Consta ainda do mesmo relatório:
“No ano de 2021, a sociedade registou uma redução de 60,07% do volume de negócios e, consequentemente, resultado operacional negativo de (-) 145.141,58 €, não obstante a redução dos encargos gerais.
(…)
Ora, de acordo com as reclamações de créditos rececionadas, pese embora alguns dos incumprimentos se reportem efetivamente ao ano de 2020/2021 e inexistindo, de facto, situações de passivo bancário que tenham sido reclamadas, a verdade é que a insolvente detém um passivo considerável junto do Estado/Fazenda Nacional (superior a 800.000,00 €), bem como junto do Instituto da Segurança Social, I.P. (superior a 100.000,00 €), com incumprimentos reiterados e verificados desde os anos de 2014 e 2011, respetivamente.
(…)
2.2.–Situação Atual:
Pela consulta do portal da Autoridade Tributária, a sociedade encontra-se ativa para efeitos fiscais, tendo sido requerida a administração pela devedora, nos termos do artigo 224.º do CIRE.
Das deslocações realizadas, já referidas supra, a sociedade encontra-se a laborar no estabelecimento comercial sito na Rua de …, tendo sido apresentados apuramentos diários da faturação, despesas correntes da sociedade e depósito bancário dos saldos de caixa do período de 01/08/2022 a 31/08/2022.
De acordo com informação disponível na Segurança Social Direta, a sociedade apresenta quatro trabalhadores ativos.
(…)
6.–Perspetivas de Solvência/Viabilidade de Apresentação Plano de Insolvência (art. º 155º nº1 al. c))
A sociedade detém um passivo significativo, com especial incidência junto da Autoridade Tributária e Instituto da Segurança Social, I.P.
Os valores em dívida junto da Autoridade Tributária remontam já ao ano de 2014, encontrando-se aprovados e em curso 208 planos prestacionais, no montante mensal total de 7.690,71€.
No que concerne à Segurança Social, o incumprimento refere-se a contribuições, quotizações e juros de mora, verificando-se desde o ano de 2011, de forma quase ininterrupta.”
Não obstante o valor bastante elevado em dívida junto da Autoridade Tributária, atento o que consta do referido relatório, encontram-se em curso planos prestacionais e os factos em causa não permitem concluir pelo preenchimento do facto índice previsto na alínea g) do nº1 do artigo 20º do CIRE – desconhece-se a data das dívidas tributárias e à Segurança Social.
Por outro lado, o relatório, por si só, não permite que se conclua que o montante constante do balanço da empresa relativo ao ano de 2021 referente à rubrica de caixa e depósitos bancários - € 261.368,21 -, não corresponda à realidade. No relatório apenas se refere que “No que respeita à rúbrica de caixa e depósitos bancários, não foram disponibilizados os balancetes e extratos contabilísticos dos anos de 2019 a Julho de 2022, para avaliar a evolução do saldo contabilístico que apresenta a 31/12/2021 no montante de 261.386,21€.
No entanto, a verdade é que pelas pesquisas realizadas junto do Banco de Portugal, não foram localizadas contas bancárias tituladas pela insolvente com saldos bancários suscetíveis de apreensão de valor significativo. De igual modo, na reunião realizada na sede da insolvente em 01/08/2022, não foram apresentados montantes em caixa resultantes da atividade do insolvente até 31/07/2022.
Assim, não se mostra justificado o saldo registado na rúbrica de caixa e depósitos bancários, no montante de 261.368,21€ a 31/12/2021, desconhecendo-se o saldo efetivo à data de declaração de insolvência”. Nada resulta no sentido que o montante em causa não existisse efectivamente.
Os elementos carreados para os autos também não permitem concluir que a sociedade se encontre impossibilitada de recorrer a crédito bancário, sendo que, atento o que consta do aludido relatório, não existem por parte da mesma dívidas a instituições bancárias.
Deste modo, os elementos referidos pela apelante não permitem concluir que a sociedade requerente já se encontre em situação de insolvência actual e não apenas iminente, pelo que, nesta parte, improcede o recurso.
Sustentou também a apelante que o tribunal a quo incorreu em erro de direito ao concluir que a não junção por parte da requerente dos relatórios de fiscalização e de auditoria e de pareceres do órgão de fiscalização não consubstancia violação não negligenciável de regras procedimentais.
Diz que a violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo é distinta da falta de cumprimento de requisitos adjectivos ou formais, esta última abrangida pelo artigo 215º do CIRE e que o tribunal a quo, face à falta dos documentos legalmente exigidos pelo CIRE devia ter proferido despacho, convidando à sua junção. Ao não o ter feito, violou o disposto na alínea f) do nº 1 do artº 24º e alínea b) do nº 3 do artº 17º-C, ambos do CIRE, não podendo o plano ser homologado.
Entendeu a Mmª Juíza a quo que: Após analisar as IES referentes aos anos de 2019, 2020 e 2021, o Tribunal verificou que, não obstante as respectivas contas terem sido aprovadas em sede de assembleia de credores – afigura-se a existência de lapso de escrita, devendo ler-se assembleia geral - não foram emitidos os pareceres dos órgãos de fiscalização (a saber: … SROC, LDA. referente as contas de 2019 e L… – SROC, LDA. referentes às contas de 2020 e 2021) nem foi emitida certificação legal de contas.
Por conseguinte, é manifesto que os referidos documentos não foram juntos, nos termos do artigo 17.º-C, n.º 3, alínea b), do CIRE, por simplesmente não existirem.
Porém, da sua inexistência não é possível extrair, sem mais, a conclusão de que a contabilidade da devedora foi incorrectamente elaborada pelo TOC.
Na verdade, a falta dos referidos pareceres é muito comum em sociedades que se encontram em situação económica difícil, decorrendo somente da circunstância de as referidas sociedades não terem meios financeiros para pagar os honorários devidos ao ROC, que, por sua vez, se recusa a emiti-los sem o respectivo pagamento.
Conclui-se, assim, que a falta cometida não influi no exame e na decisão da causa, ainda para mais tendo em conta que o próprio ROC atestou nos autos que a devedora não se encontra em situação de insolvência actual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º do CIRE (cfr. artigo 17.º-A, n.º 2, 2.ª parte, do CIRE), conforme requerimento datado de 31 de Março de 2023”.
Vejamos.
Resulta do disposto no artº 24º, nº1, aplicável ex vi do artº 17º-C, nº 1, alínea b), do CIRE, que, tendo o devedor contabilidade organizada, com requerimento inicial de PER deve proceder à junção, entre outros documentos, “(d)as contas anuais relativas aos três últimos exercícios, bem como os respectivos relatórios de gestão, de fiscalização e de auditoria, pareceres do órgão de fiscalização e documentos de certificação legal, se forem obrigatórios ou existirem, e informação sobre as alterações mais significativas do património ocorridas posteriormente à data a que se reportam as últimas contas e sobre as operações que, pela sua natureza, objecto ou dimensão extravasem da actividade corrente do devedor”.
Em termos de processo de insolvência, tem-se entendido que o indeferimento liminar do requerimento por força do disposto nº artº 27º, nº1, b), do CIRE, com fundamento na falta de junção dos documentos a que alude o citado art. 24º, após o decurso do prazo de cumprimento do despacho de aperfeiçoamento, só deverá ter lugar no caso de ocorrer essencialidade dos documentos em causa. Tal essencialidade deve medir-se pelo facto de o processo não estar legalmente em condições de poder prosseguir sem a sua junção - cfr. A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, p. 229.
Como refere a Mmª Juíza a quo, in casu, resulta das declarações de IES que a certificação legal das contas não foi emitida, pelo que não poderia ter lugar a prolação de despacho de aperfeiçoamento, convidando a requerente à junção destes documentos em concreto.
Constituirá, no entanto, a falta de junção dos mesconceconceos, fundamento para recusar a homologação do plano de revitalização aprovado pelos credores?
A requerente trata-se de uma sociedade anónima, com a nomeação de um fiscal único, estabelecendo o artigo 278º do CSC relativamente à estrutura da administração e da fiscalização das sociedades anónimas:
“A administração e a fiscalização da sociedade podem ser estruturadas segundo uma de três modalidades:
a)- Conselho de administração e conselho fiscal;
b)- Conselho de administração, compreendendo uma comissão de auditoria, e revisor oficial de contas;
c)- Conselho de administração executivo, conselho geral e de supervisão e revisor oficial de contas.
2–Nos casos previstos na lei, em vez de conselho de administração ou de conselho de administração executivo pode haver um só administrador e em vez de conselho fiscal pode haver um fiscal único.
3–Nas sociedades que se estruturem segundo a modalidade prevista na alínea a) do n.º 1, é obrigatória, nos casos previstos na lei, a existência de um revisor oficial de contas que não seja membro do conselho fiscal.
(…)”
Por sua vez, dispõe o artº 413º deste mesmo Código:
1- A fiscalização das sociedades que adoptem a modalidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 278.º compete:
a)- A um fiscal único, que deve ser revisor oficial de contas ou sociedade de revisores oficiais de contas, ou a um conselho fiscal; ou
b)- A um conselho fiscal e a um revisor oficial de contas ou uma sociedade de revisores oficiais de contas que não seja membro daquele órgão.
2- A fiscalização da sociedade nos termos previstos na alínea b) do número anterior:
a)- É obrigatória em relação a sociedades que sejam emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado e a sociedades que, não sendo totalmente dominadas por outra sociedade, que adopte este modelo, durante dois anos consecutivos, ultrapassem dois dos seguintes limites:
i)- Total do balanço: (euro) 20 000 000;
ii)- Volume de negócios líquido: (euro) 40 000 000;
iii)- Número médio de empregados durante o período: 250;
b)- É facultativa, nos restantes casos.”
Atento o volume de negócios e o número de empregados da devedora, a mesma não está obrigada a ter um conselho fiscal, podendo a sua fiscalização ser efectuada por um fiscal único. Está, no entanto, obrigada à certificação legal das suas contas, certificação essa que, como resulta do declarado pela mesma em termos de IES, não teve lugar.
O art.º 69.º, n.º 1, do C. S. Comerciais sanciona com a anulabilidade as deliberações tomadas pelos sócios com “…violação dos preceitos legais relativos à elaboração do relatório de gestão, das contas de exercício e de demais documentos de prestação de contas…”, pelo que, prima facie, as deliberações que aprovaram as contas em causa são anuláveis.
A anulabilidade é uma forma de invalidade que carece de declaração judicial, está dependente de invocação, uma vez que se considera que, não sendo tão grave como a nulidade, pode ser recuperável pelo decurso do tempo ou pela concordância superveniente de quem ficaria particularmente afectado com a subsistência do acto (cfr. art. 287º do CC).
A falta de propositura da acção de anulação de uma deliberação no prazo de 30 dias – cfr artº 59º, nº2, CSC -, por quem tem legitimidade para tal (não sendo de conhecimento oficioso), conduzirá à sanação do vício, pelo que, a deliberação anulável será dotada desde a sua constituição, de uma validade resolúvel: nasce válida, mas, através de decisão proferida em acção de anulação que tempestivamente lhe seja oposta, cessa retroactivamente a sua existência e eficácia (artigo 289º-1, CC) – cfr Pinto Furtado, “Deliberações de Sociedades Comerciais”, Coleção Teses, Almedina, pp. 706-707.
Como refere Pedro Maia, “Deliberações dos Sócios”, in Estudos de Direito das Sociedades, 4ª ed., Almedina, p. 205: “A deliberação anulável só deixará de produzir os seus efeitos caso seja anulada por decisão judicial – que tem assim, efeitos constitutivos. Até esse momento e ressalvada a hipótese de suspensão da deliberação, esta produz os efeitos para que tendia”.
Não resulta que as deliberações que aprovaram as contas tenham sido anuladas e há muito que decorreu o prazo em que podia ter sido interposta a respectiva acção, pelo que as mesmas estão em vigor e produzem os seus efeitos, não existindo elementos que permitam concluir que a contabilidade da devedora não espelhe a sua realidade financeira.
Quanto à também invocada falta de junção da relação e identificação de todas as acções e execuções pendentes contra a devedora – cfr alínea b) do nº1 do aludido artº 24º -, independentemente de o credor e respectiva acção pendente estarem ou não identificados na aludida relação/documento, sempre terá o credor que reclamar o seu crédito no prazo de 20 dias a contar da data publicação no portal Citius do despacho em que o juiz nomeia o administrador judicial provisório (art. 17ºD/2 do C.I.R.E.). Por outro lado, a omissão de cumprimento da aludida obrigação também não está consagrada em lei expressa como sendo uma «violação não negligenciável de normas procedimentais» e, como refere o tribunal a quo, o Plano de Recuperação apresentado, prevê no Capítulo VII, a extinção de “todas as acções e execuções para cobrança de dívida, com excepção das acções de execução fiscal”. Assim, entende-se que a falta desta relação também não influi no exame ou na decisão da causa.
Deste modo, conforme entendeu o tribunal a quo, a falta dos referidos documentos não consubstancia violação não negligenciável das regras procedimentais que deva determinar a não homologação do plano.
Invocou ainda a apelante que o tribunal a quo errou ao concluir que o facto de a requerente não ter remetido à credora apelante carta nos termos do disposto no artº 17.º-D, n.º 1, do CIRE, não consubstanciava uma violação não negligenciável, uma vez que a recorrente teve participação activa no processo.
Estabelece o artº 17º-D, nº1, do CIRE:
1- Logo que seja notificada do despacho a que se refere o n.º 5 do artigo anterior (o despacho que procedeu à nomeação do administrador provisório, conforme já supra referido – esclarecimento nosso), a empresa comunica, de imediato, por carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo artigo, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º, a proposta de plano e, sendo o caso, a proposta de classificação dos créditos se encontram na secretaria do tribunal para consulta”.
Entendeu a Mmª Juíza a quo que, tendo a credora suscitado a questão em análise através do seu requerimento datado de 15 de Junho de 2023 e não se tendo a devedora pronunciado “sobre o incidente, embora tenha sido regularmente notificada para o efeito (cfr. artigo 221.º Código de Processo Civil), é de presumir que a referida credora não foi efectivamente notificada nos termos do artigo 17.º-D, n.º 1, do CIRE”. Entendeu ainda que, tendo a credora tido intervenção ao longo das diversas fases do processo, é manifesto que a falta de notificação não influiu no exame e na decisão da causa, pelo que não se está perante a violação não negligenciável de uma norma procedimental.
A devedora consignou o crédito da apelante na lista de credores reconhecidos (cfr. artigo 17.º-C, alínea d), do CIRE) que juntou com o requerimento inicial e o despacho que procedeu à nomeação do administrador provisório foi proferido em 28/02/2023 e em 02/03/2023, ou seja, antes mesmo de a devedora se presumir notificada do aludido despacho – cfr artº 248º, nº1, do CPCivil aplicável ex vi do artº 17º, nº1, do CIRE -, a credora apelante juntou procuração aos autos e em 06/03 apresentou requerimento invocando a falta de junção da relação das acções e execuções pendentes contra si por pate da devedora e ainda que a declaração atestando que esta não se encontrava em situação de insolvência não se encontrava subscrita por um Revisor Oficial de Contas, mas apenas por um Técnico Oficial de Contas.
Por requerimento datado de 29 de Março de 2023, veio a credora impugnar a lista provisória de créditos (cfr. artigo 17.º-D, n.º 4, do CIRE).
No dia 26 de Junho de 2023, a proposta do plano de recuperação foi enviada pelo Administrador Judicial Provisório, via e-mail, ao Ilustre Advogado da credora para, querendo, se pronunciar sobre a proposta do plano de recuperação definitivo.
O plano de recuperação foi publicado no portal CITIUS, nos termos do artigo 17.º-F, n.º 1, do CIRE e a credora veio requerer a recusa de homologação e após depósito de nova versão do aludido plano no portal CITIUS, por requerimento datado de 25 de Julho de 2023, veio mesma requerer novamente que a homologação do plano fosse recusada (cfr. artigo 17.º-F, n.º 3, do CIRE). A apelante participou activamente no processo. O que se verificou foi que se manifestou no sentido da não homologação, quando os restantes credores votantes se manifestaram em sentido contrário.
A comunicação prevista no nº 1 do artigo 17º-D visa facilitar e acelerar o início das negociações com vista a concluir, de forma célere, um acordo com vista à revitalização do devedor, uma vez que o prazo de que os credores dispõem para reclamar os seus créditos não se inicia com a aludida comunicação, mas sim com a publicação no portal Citius do despacho que nomeia o administrador judicial provisório, como já se referiu.
Poder-se-á verificar a violação de normas procedimentais, se um credor não for convocado para os termos do processo e se não lhe for dado conhecimento da sua existência, assim, o impedindo de nele participar.
Todavia, esta não a situação verificada nos autos. A credora/apelante interveio ao longo de todo o processo, teve conhecimento do plano apresentado e expressou a sua discordância relativamente ao mesmo.
Atento tudo o que ficou referido, só nos resta concluir pelo acerto do decidido pelo tribunal a quo, ou seja, que a falta de envio à apelante da carta a que alude o artigo 17º-D, nº1, do CIRE, não consubstancia violação não negligenciável que obste à homologação do plano.
Sustentou também a apelante que não foi junta a declaração prevista no artº 202º, nº1, do CIRE, junção essa que, contrariamente ao entendimento do tribunal a quo, era obrigatória.
Estabelece o artº 202º, nº1, do CIRE, aplicável ao PER ex vi do artº 17º-F, nº 7:
“A proposta de plano de insolvência segundo o qual o devedor deva continuar a exploração da empresa é acompanhada da declaração, por parte deste, da sua disponibilidade para o efeito, sendo ele uma pessoa singular, ou, no caso de uma sociedade comercial, por parte dos sócios que mantenham essa qualidade e respondam pessoalmente pelas suas dívidas”.
A requerente é uma sociedade anónima, com o capital social de € 62.500,00, tendo cada acção o valor nominal de € 1.000.
Estabelece o artº 271º do CSC:
“Na sociedade anónima, o capital é dividido em acções e cada sócio limita a sua responsabilidade ao valor das acções que subscreveu”
Não se tratando a devedora de uma sociedade em que os sócios respondam pessoalmente pelas dívidas da mesma, não tem o plano de recuperação que ser subscrito pelos respectivos accionistas.
Assim, improcede o recurso também nesta parte.
Invocou ainda a recorrente que o plano apresentado não respeita as exigências previstas na alínea d) do nº 2 do artº 195º do CIRE, não constando do mesmo nem o plano de investimentos, nem a especificação dos principais pressupostos subjacentes à conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa. Diz que o tribunal a quo errou ao entender que as exigências estabelecidas no aludido normativo se encontravam observadas.
Dispõe o artigo 195º do CIRE, aplicável ex vi do aludido artº 17º-F, nº7:
“1- O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência”.
2- O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:
a)- A identificação da empresa, indicando o seu nome ou firma, sede, número de identificação fiscal ou número de identificação de pessoa coletiva, e do administrador da insolvência nomeado;
b)- A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor;
c)- A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através de liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade;
d)- No caso de se prever a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, e balanço pró-forma, em que os elementos do activo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respectivos valores;
e)- As formas de informação e consulta dos representantes dos trabalhadores, a posição dos trabalhadores na empresa e, se for caso disso, as consequências gerais relativamente ao emprego, designadamente despedimentos, redução temporária dos períodos normais de trabalho ou suspensão dos contratos de trabalho;
f)-O impacte expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de insolvência;
g)-A indicação dos credores que não são afetados pelo plano de insolvência, juntamente com uma descrição das razões pelas quais o plano não os afeta;
h)-Qualquer novo financiamento previsto no âmbito do plano de insolvência e as razões pelas quais esse novo financiamento é necessário para executar o plano;
i)-A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação”.
É manifesto que o Plano de Recuperação deverá ser o mais exaustivo e esclarecedor possível, de modo a permitir, por um lado, aos credores, aferirem da pertinência e vantagens das propostas apresentadas pelo devedor, por forma à obtenção da sua aprovação e por outro, ao juiz para, em momento ulterior, efectuar sobre o mesmo o seu pronunciamento positivo ou negativo – v. a propósito CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, ob cit., pág. 716.
Como defendem os mesmos autores, o significado da primeira parte do nº 2 é o “da exigência de o plano clarificar aquilo que com ele é pretendido, enquanto instrumento de tutela dos interesses dos credores, sem prejuízo da consecução de outros objetivos cujo alcance simultaneamente viabilize.
Isto compreende-se ainda pela concorrência de duas razões. Uma, ligada à circunstância de o plano, estribado no princípio da liberdade de estipulação do conteúdo a que faz referência, poder, realmente, orientar-se por vias substancialmente diversas entre si. Outra, respeitante à necessidade de garantir o cabal esclarecimento dos que são chamados a decidir quo destino do processo, de forma a poderem ponderar suficientemente as vantagens que estimam resultarem da aprovação de um plano.
É, sem dúvida, este o sentido da imposição que se faz na última parte do corpo do preceito e se esclarece na enumeração das suas várias alíneas.
Cabe também proceder à descrição das medidas necessárias à realização dos objetivos a alcançar (…).
A imposição prede-se com o regime fixado no artigo 201.º (…).
Quanto ao alcance das diversas alíneas do n.º 2, justificam-se algumas considerações.
Em primeiro lugar, a utilização do advérbio de modo “designadamente” no proémio do preceito mostra, em termos inequívocos, o carácter meramente enunciativo da enumeração.
Por outro lado, o motivo é sempre o de facultar aos credores a exata perceção da situação, para poderem atuar esclarecidamente, a que acresce a avaliação do tribunal acerca da verificação dos requisitos que legitimam a homologação da decisão.
Por assim ser, a elaboração do plano não tem de obedecer a um modelo estereotipado, comum a todas as situações.
Deve é ser preparado em termos de, conforme os casos e as circunstâncias, contemplar a análise dos diversos aspetos considerados na lei, exatamente porque se supõe que isso é necessário para permitir a cabal compreensão das respetivas propostas.
(…) em consonância com o que fica dito nas notas antecedentes, cabe advertir para a desnecessidade de o plano se reportar específica e individualmente a cada uma das menções referenciadas na enumeração legal, posto que o faça em termos globais e inteligíveis, alcançando-se, dessa forma, o fim intentado pela lei”.
A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e, portanto, essa violação será não negligenciável sempre que ela acarrete um resultado que a lei não permite, seja porque o conteúdo do plano viola disposições legais de carácter imperativo, seja porque viola regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere. A violação dessas normas será, portanto, não negligenciável, como supra se disse, sempre que ela possa prejudicar a salvaguarda dos interesses – sejam eles do devedor ou dos credores – que sejam dignos de protecção legal.
Analisando o plano apresentado, do mesmo consta a análise da situação económica-financeira da empresa, o projectado em termos de viabilidade-estratégica, as medidas concretamente propostas relativamente a cada classe de créditos e tipo de credores e o impacto expectável das alterações propostas.
Embora no apresentado em termos de plano de negócios não se identifique em que termos e com que parceiros em concreto serão estabelecidas as parcerias ali referidas, dos anexos juntos constam os balanços previsionais, o projectado em termos de activos fixos e a demonstração previsional dos fluxos de caixa.
Como diz o Sr. Administrador Judicial Provisório no parecer apresentado nos termos do nº 6 do artº 17º-F in fine:
“B\ Quanto às perspetivas de viabilidade da devedora:
Resulta dos elementos facultados pela devedora a sua situação económica irá ser invertida ao longo do período de execução do plano, permitindo à devedora apresentar resultados positivos já no exercício de 2024.
Com efeito, os rendimentos gerados pela devedora serão absorvidos pelas depreciações/amortizações (que não configuram um custo monetário mas meramente um custo contabilístico decorrente do desgaste dos ativos) e pelos juros a liquidar aos credores no âmbito da execução do plano, ou seja, a atividade da devedora permitirá com que a mesma consiga fazer face ao pagamento das despesas correntes (salários e encargos, impostos, fornecimentos e serviços externos), permitindo ainda um excedente para suportar os pagamentos previstos no plano de recuperação (bem como os juros associados aos mesmos).
A devedora também prevê um aumento sustentado e gradual no volume de negócios, de modo a permitir que sejam gerados cash-flows suficientes para cumprir o plano aprovado e desse modo evitar entrar em situação de insolvência, sem ter de recorrer a novos financiamentos ou injeções de capital por parte dos sócios.
No que concerne aos gastos, verifica-se que as rúbricas de maior expressão são os Fornecimentos e serviços externos e Gastos com Pessoal, os quais se prevê que vão aumentando ao longo do período de execução do plano, decorrentes do normal aumento dos preços ao longo do tempo devido à inflação, sendo que o custo dos juros irá gradualmente diminuindo fruto das amortizações de capital efetuadas pela insolvente”.
O plano foi aprovado pela grande maioria dos credores, tal não poderá deixar de significar que tais credores se sentiram suficientemente esclarecidos sobre a viabilidade e credibilidade do mesmo ao ponto de o votarem favoravelmente.
Considerando os elementos constantes do Plano, nomeadamente, em termos de perspectivas de investimento e de medidas a tomar com vista a viabilizar a execução daquele, entende-se que este respeita o previsto no supra referido artigo 195º, não existindo fundamento para recusar a respectiva homologação.
Nestes termos, improcede o recurso.
*

IV–DECISÃO

Em face do exposto, acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa nos seguintes termos:
- não admitir o recurso interposto do despacho liminar que, nos termos do disposto no art. 17.º - C, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, procedeu à nomeação do administrador judicial provisório e
- em julgar o recurso interposto da sentença que homologou o Plano de Revitalização improcedente, mantendo a mesma.
Custas: pela apelante.
Registe e Notifique.



Lisboa, 05/03/2024


Manuela Espadaneira Lopes
Manuel Marques
Nuno Teixeira