Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1155/20.3T8CSC-C.L1-8
Relator: ELEONORA VIEGAS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ACÇÃO DE DIVÓRCIO PENDENTE
INSTRUMENTALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Na pendência da acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, o pedido de atribuição provisória do uso exclusivo da casa de morada de família deve ser requerido na própria acção de divórcio, nos termos do n.º 7 do art. 931.º do CPC, se não for objecto de acordo das partes na tentativa de conciliação ou oficiosamente fixado.
II. Entre o procedimento cautelar comum para tutela de direitos de personalidade do Requerente, como o direito à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio, e a acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge por apenso à qual foi instaurado, não se verifica a relação de dependência e instrumentalidade que é matricial ao procedimento cautelar, de acordo com o art. 364.º do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
N (…), intentou um procedimento cautelar contra K (…), por apenso ao processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge em que ambos são partes, pedindo que sejam decretadas as seguintes medidas cautelares:
 a) condenação da Requerida a abster-se de abrir a porta e de se introduzir, sem a autorização do Requerente, nas suas casas de morada de família, sitas na Rua (…) e bem assim na Rua (…);
b) condenação da Requerida a entregar ao Requerente as chaves das suas casas de morada de família, sitas na Rua (…) e bem assim na Rua (…);
c) atribuir-se em exclusivo o uso das casas de morada de família ao cônjuge marido.
Foi oficiosamente suscitada a questão da admissibilidade da providência cautelar requerida, por se entender que os dois primeiros pedidos eram necessariamente dependentes do último e que quando, como é o caso, esteja pendente uma acção de divórcio, a atribuição do uso da casa de morada de família deve correr como incidente na própria acção (art. 931.º, n.º7 do CPC), o que torna o procedimento cautelar desnecessário e, por isso, inadmissível.
O Requerente pronunciou-se, sustentando não estar em causa a atribuição do uso da casa de morada de família e sim a tutela da sua privacidade e a inviolabilidade do seu domicílio, após o que foi proferido despacho de indeferimento liminar da petição apresentada, com a seguinte fundamentação:
“No que respeita ao terceiro dos pedidos formulados - Atribuir-se em exclusivo o uso das casas de morada de família ao cônjuge marido – mantém-se a posição já expressa no despacho antecedente. Com efeito, tal pedido, podendo corresponder ao próprio da acção a que respeita o art. 990º do CPC, pode também ser formulado com vista à prolação de decisão provisória, de natureza cautelar, no âmbito do processo de divorcio, e ao abrigo do disposto no art. 931º/7, do CPC.
(…)
Ora, encontrando-se pendente processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, instaurado pela aqui Requerida contra o Requerente, a possibilidade de, no âmbito do mesmo, se fazer uso do referido meio processual – que visa, tal como aqui pretendido, a atribuição provisória, de natureza cautelar, do uso da casa de morada de família – torna desnecessário, e como tal inadmissível, o recurso a procedimento cautelar para esse mesmo efeito.
Quanto aos demais pedidos formulados, consistem estes – como claramente resulta do seu teor – em medidas visando impedir que a Requerida use as casas identificadas nos autos.
Ora, como acima se referiu, corre termos (como processo principal ao qual o presente se encontra apenso) acção de divórcio entre o aqui Requerente e a Requerida, no âmbito da qual não teve ainda lugar a tentativa de conciliação e nada foi ainda acordado (ou decidido, ou sequer pedido) quanto à utilização da(s) casa(s) de morada de família.
Por outro lado, é o próprio Requerente quem, no requerimento inicial apresentado, sustenta que os dois imóveis a que respeita a providência requerida são casa de morada de família do (ainda) casal, Requerente e Requerida.
Ora, a tutela – ainda que por via cautelar – do direito que o Requerente sustenta, à intimidade da sua vida pessoal no concreto espaço das casas que identifica, e que o próprio alega serem de morada de família, não pode deixar de pressupor que, de alguma forma (por decisão, ainda que provisória, ou por acordo, ainda que eventualmente extra-judicial, e mesmo verbal) o uso de tais casas lhe esteja atribuído, o que não resulta de qualquer elemento constante dos autos e não é sequer alegado.
A esse propósito, apenas alega o Requerente que a Requerida saiu de casa (não identificando de qual das duas que refere serem casa de morada de família), o que sempre se revelaria insuficiente para se aferir de qualquer eventual acordo – não alegado – quanto ao uso de cada uma das casas em apreço.
A factualidade alegada sempre seria (ainda que viesse a ser indiciariamente julgada provada) insuficiente para a – também indiciária – demonstração do direito cuja efectividade o Requerente visa assegurar com a providência requerida, e que constitui pressuposto do respectivo decretamento (cfr. art. 362º/1, do CPC).
Nos termos do art. 590º/1 do CPC, “(…) a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente (…)”.
É este o caso, pelos motivos acima expostos. 
Nestes termos, e de harmonia com as disposições legais acima citadas, decide-se indeferir liminarmente a petição apresentada, por manifesta improcedência do pedido (art. 590º/1 do Código de Processo Civil). (…)”

Inconformado com esta decisão dela apelou o Requerente, formulando as seguintes conclusões:
1 - Veio, em 29 de Junho de 2020, apresentar providência cautelar não especificada contra K (…), alegando que Recorrente e a Recorrida, residiram juntos quer em Lisboa na Rua (…), quer na Rua (…).
2 - E cessado a coabitação, desde o dia 7 de Abril de 2020 data em que a Recorrida saiu da casa de morada de família.
3 - Tendo nesse dia chamado a GNR da Merceana, para, alegadamente a protegerem enquanto esta saía de casa. (Cfr. Documento nº 1 junto com a petição).
4 - E assim, a Recorrida, veio então a colocar os seus haveres em caixotes e depois no carro da sua amiga Joana (…).
5 - O Recorrente, ficou assim a residir na sua casa na Rua (…), conjuntamente com os seus filhos menores, sendo muitas vezes acompanhado pelos seus pais, que o ajudam nas tarefas domésticas e a tomar conta das crianças que ficaram ao seu cuidado.
6 - A Recorrida, voltou à morada na Aldeia (…), uma semana depois em 14 de Abril de 2020, uma vez que tinha combinado com o Recorrente visitar os filhos menores do casal, e nesse dia, por via pretender introduzir à força, amigas dentro de casa do Participante, este viu-se na contingência de chamar a GNR. Tendo sido elaborado auto de participação junto como documento nº2, com a petição inicial.
7 - A Recorrida veio ao exterior da casa do ora Recorrente sucessivamente em várias datas, tendo em quase todas as ocasiões, chamado ao local guardas da GNR, conferir a título de exemplo o documento nº3 junto com a petição inicial.
8 - Durante todo este período, e nos autos da GNR, a identificou o seu domicílio como sendo a Rua (…). Conferir o teor do auto junto como documento nº 3.
9 - Num claro reconhecimento que já não residia com o ora Recorrente.
10 - Sucede porém que, no dia 13 de Junho pelas 9:30 o Recorrente encontrava-se em casa na Rua (…);
11 - Quando se apercebeu que a Recorrida sem mais, e depois de ter retirado dessa casa todos os seus haveres, há mais de dois meses, tentou entrar na sua casa de Lisboa, usando as chaves que ainda tinha e que não devolveu.
12 - Passado pouco tempo, por volta das 11:40 chegou ao conhecimento do participante que, a Recorrida, se encontrava à porta da casa sita na Rua (…).
13 - E que se encontrava à porta da supra referida casa, acompanhada de elementos da corporação dos Bombeiros Voluntários da Merceana, prontos a efectuar o arrombamento da porta da casa.
11 - Ao tomar conhecimento de tal facto, ligou de imediato o Recorrente para a GNR de Merceana, referindo que se opunha frontalmente à supra referida abertura de porta; uma vez que se tratava do seu domicílio, e a Recorrida já não residia com o ora queixoso há mais de dois meses.
12 - Tomou o ora Recorrente conhecimento que a Recorrida havia requerido uma abertura de porta e levado consigo uma certidão do Registo Predial da casa. Na qual consta que era casada com o Recorrente à data da aquisição do imóvel sito na Aldeia (…).
13 - E assim, alegadamente com autorização do Guarda Luís (…), os elementos da Associação Humanitária Bombeiros Voluntários da Merceana, arrombaram a porta em causa, tendo permitido que a Recorrida entrasse dentro da casa do Recorrente.
14 - E assim arrombaram a porta da casa sita na Rua (…).
15 - Permitindo a entrada na casa à Recorrida, na casa onde já não residia há meses e onde residia exclusivamente o Recorrente.
16 - A Recorrida, solicitou a abertura da porta de casa, alegando não conseguir entrar dentro de casa. Cfr. Documento nº 4, junto à petição inicial.
17 - Em tal documento a Recorrida declarou que residia em (…) e não na Aldeia (…), sendo que a Recorrida sabia e não podia ignorar, que desde que saiu de casa em 7 de Abril de 2020, o Recorrente manteve-se a residir na casa de morada de família.
18 - A Recorrida sabia e não podia ignorar, que o Recorrente residia na casa com os filhos do casal, e bem assim, em alguns períodos com os seus pais.
19 - A Recorrida sabia e não podia ignorar que ao abrir a porta, sem autorização e sem conhecimento do Recorrente estava a invadir o seu domicílio e a devassar a sua privacidade e a da sua família.
20 - A Recorrida sabia e não podia ignorar que existem litígios entre o casal, quer na forma de processos de divórcio, regulação de poder paternal e bem assim processos crime.
21 - E bem sabia que ao, promover o arrombamento da porta, estava efectivamente a lesar os interesses alheios;
22 - Agindo assim em completo desrespeito pela inviolabilidade do domicilio do ora Recorrente.
23 - Certo é que, tomando conhecimento da invasão de domicílio perpetrada, não mais o Recorrente e a sua família, se sentiram seguros na casa de morada de família. Tendo sido forçados a procurar um novo local de residência, onde se sintam seguros e onde tenham a sua privacidade devidamente acautelada.
24 - O Recorrente, em função dos factos acima referidos, não mais se sente seguro na sua própria casa!
25 - Sendo que a Recorrida, apesar de não residir na casa de morada de família não se coibiu de usar a chave e abrir a porta do domicílio do Recorrente, sem ser autorizada para esse efeito;
26 - O Recorrente e a sua família, não têm de viver permanentemente na inquietação de ter a Recorrida a entrar pela casa, sem pedir licença;
27 - Devassando assim a sua privacidade e inutilizando o seu direito à privacidade e inviolabilidade do respectivo domicílio.
28 - TENDO ASSIM APRESENTADO COMO PEDIDO DO PROCEDIMENTO CAUTELAR:
“Atento o acima exposto, vem o ora Requerente (…) e que a Requerida, seja condenada a, sob a pena da prática do crime de violação de domicílio, se abster de invadir o domicílio do Requerente, atribuindo-se, provisoriamente, o uso das duas casas de morada de família exclusivamente ao cônjuge marido, aqui Requerente.
E assim condene a Requerente, a:
− Se abster de, abrir a porta e de se introduzir sem a autorização do Requerente, nas suas casas de morada de família, sitas na Rua (…) e bem assim na Rua (…).
 − Entregar ao Requerente as chaves das suas casas de morada de família, sitas na Rua (…) e bem assim na Rua (…).
− Atribuir-se em exclusivo o uso das casas de morada de família ao cônjuge marido. “
29 - Tendo junto os documentos acima referidos e arrolado testemunhas e requerido depoimento de parte da Requerida.
30 - Contudo, em 02 de Julho de 2020, foi o ora recorrente notificado para se pronunciar sobre a eventual inadmissibilidade legal do seu pedido, nos termos seguintes:
«Vem o Requerente instaurar procedimento cautelar não especificado, pedindo que se condene a Requerente a:
− Se abster de, abrir a porta e de se introduzir sem a autorização do Requerente, nas suas casas de morada de família, sitas na Rua (…) e bem assim na Rua (…).
- Entregar ao Requerente as chaves das suas casas de morada de família, sitas na Rua (…) e bem assim na Rua (…).
− Atribuir-se em exclusivo o uso das casas de morada de família ao cônjuge marido.
Do teor de tais pedidos e dos motivos invocados para os fundamentar, resulta serem os dois primeiros necessariamente dependentes do último, por consistirem em mecanismos que visam meramente assegurar o respeito por decisão que venha a atribuir ao Requerente, como pretendido por este, o uso daquelas que refere serem casas de morada de família.
Sucede que, para tal efeito principal visado, quando esteja pendente (como é o caso) acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, prevê expressamente a Lei (art. 931º/7, do CPC) procedimento próprio, a correr como incidente na própria acção de divórcio, o que se crê afastar a possibilidade de se recorrer, para tal fim, à tutela de procedimento cautelar não especificado.
Considerando o acima exposto, e com vista à prolação de decisão sobre a admissibilidade da providência cautelar requerida, notifique antes do mais o Recorrente para que, querendo, e ao abrigo do disposto no art. 3º/3, do CPC, se pronuncie;”
31 - Notificado do despacho acima referido, veio o ora Recorrente em 10 de Julho de 2020, exercer o respectivo contraditório, nos termos seguintes:
“Salvo o devido respeito, não se conforma o ora requerente com tal entendimento.
Na realidade a providência cautelar em causa não se confunde, nem depende da prévia atribuição de casa de morada de família.
Demonstrando-se que entre os cônjuges que residiam juntos, cessou a coabitação há meses.
E encontrando-se documentada aliás a data de tal cessação.
O cônjuge que se mantém a residir na casa de morada de família tem direito a ver tutelado o respectivo direito à privacidade, como direito fundamental.
Sendo que até à decisão de um hipotético processo de atribuição de morada de família, o Requerente tem de ter assegurado que enquanto resida num determinado local como legítimo detentor, a respectiva privacidade não se veja devassada.
E a inviolabilidade do seu domicílio, devidamente tutelada.
Nos termos do artigo 190º do Código Penal: «Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.»
O portador do bem jurídico tutelado pelo crime de violação de domicílio é aquele a quem assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação, seja qual for o seu fundamento jurídico, desde que aquela posição tenha sido adquirida de forma conforme ao direito.
«A entrada pela arguida, onde não reside, na casa de morada de família do ofendido, contitular com aquela do direito de propriedade do imóvel, sem o consentimento deste e mudando a fechadura da porta, integra o crime de violação de domicílio do artº 190º 1 CP.» Conferir Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 25-03-2015, no processo 270/12.1GAILH.P1, disponível em www.dgsi.pt
O bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade na sua habitação, não a atribuição da casa de morada de família!
Pode tratar-se de um local de alojamento temporário, periódico ou intermitente. Assim, são exemplos de habitação um quarto de hotel (acórdão do TRE, de 15.4.1986, in BMJ, 358, 625) ou um quarto arrendado a um hóspede numa casa particular (acórdão do STJ, de 2.6.1993, in BMJ, 428, 257). (...)
Condição essencial é a de que o espaço físico seja efectivamente ocupado pelo ofendido, nele fazendo a sua vida e nele tendo os seus pertences. (...)” – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 513.
Além disso, “é irrelevante a natureza jurídica do título de ocupação do espaço físico, podendo consistir num direito real ou obrigacional ou numa situação de direito público.” Por exemplo, cometem o crime o arrendatário de um andar que invade os aposentos ocupados pelas subarrendatárias, contra a vontade destas (acórdão do TRL, de 15.2.1989, in CJ, XIV, I, 152) ou o agente que invade a casa da ofendida, mesmo que ela aí habite por mera tolerância (acórdão do TRG, de 3.5.2004, in CJ, XXIX, 3, 289).” -  Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 513.
E mais ainda! “A tutela de bens e direitos de personalidade, ainda que conflitue com direitos e liberdades fundamentais do ofensor, pode ser actuada através de procedimento cautelar cível”. Conferir o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-10-2010 processo nº 201018645/10.9T2SNT.L1-2 http://www.dgsi.pt
“O facto de o bem ou direito de personalidade gozar de tutela penal não obstaculiza a que para ele se requeira tutela cautela cível.” «idem»
Nada impede que uma providência cautelar inibitória repressiva - i.e., que vise cessar a efectiva violação do direito acautelado, seja solicitada como instrumental relativamente à acção principal que uma finalidade reparatória, quer dizer, que tenha por objecto, além do direito acautelado, a indemnização do dano suportado pelo titular do direito com a violação dele pelo demandado. «ibidem»
32 - Concluindo pela admissibilidade do procedimento cautelar.
33 - Contudo, em 15 de julho de 2020, a Ex.ma Srª Juiz de direito, veio a proferir sentença, indeferindo liminarmente a petição apresentada, com os fundamentos seguintes:
“Ora, como acima se referiu, corre termos (como processo principal ao qual o presente se encontra apenso) acção de divórcio entre o aqui Requerente e a Requerida, no âmbito da qual não teve ainda lugar a tentativa de conciliação e nada foi ainda acordado (ou decidido, ou sequer pedido) quanto à utilização da(s) casa(s) de morada de família. Por outro lado, é o próprio Requerente quem, no requerimento inicial apresentado, sustenta que os dois imóveis a que respeita a providência requerida são casa de morada de família do (ainda) casal, Requerente e Requerida. Ora, a tutela – ainda que por via cautelar – do direito que o Requerente sustenta, à intimidade da sua vida pessoal no concreto espaço das casas que identifica, e que o próprio alega serem de morada de família, não pode deixar de pressupor que, de alguma forma (por decisão, ainda que provisória, ou por acordo, ainda que eventualmente extra-judicial, e mesmo verbal) o uso de tais casas lhe esteja atribuído, o que não resulta de qualquer elemento constante dos autos e não é sequer alegado. A esse propósito, apenas alega o Requerente que a Requerida saiu de casa (não identificando de qual das duas que refere serem casa de morada de família), o que sempre se revelaria insuficiente para se aferir de qualquer eventual acordo – não alegado – quanto ao uso de cada uma das casas em apreço. A factualidade alegada sempre seria (ainda que viesse a ser indiciariamente julgada provada) insuficiente para a – também indiciária – demonstração do direito cuja efectividade o Requerente visa assegurar com a providência requerida, e que constitui pressuposto do respectivo decretamento (cfr. art. 362º/1, do CPC). Nos termos do art. 590º/1 do CPC, “(…) a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente (…)”. É este o caso, pelos motivos acima expostos. Nestes termos, e de harmonia com as disposições legais acima citadas, decide-se indeferir liminarmente a petição apresentada, por manifesta improcedência do pedido (art. 590º/1 do Código de Processo Civil). Custas pelo Requerente (art. 527º, nºs 1, 1ª parte).
34 – Ora, tal decisão assenta em pressupostos de facto e de direito, que não correspondem ao alegado nos autos, e à Lei e Jurisprudência dominante aplicáveis ao caso;
35 - DA ALEGAÇÃO DE SER AINDA A CASA DE MORADA DE FAMÍLIA DA RECORRIDA
36 - Vem a sentença a quo, considerar que o ora Recorrente alegou serem as moradas partilhadas pelo casal, ainda casa de morada de família;
37 - Contudo, em momento algum foi alegado pelo ora Recorrente que as moradas referidas e relativamente às quais requer que seja decretada a providência cautelar, seja ainda a casa de morada de família;
38 - Aliás bem pelo contrário, alegou terem sido as moradas acima referidas, utilizadas como casa de família;
39 - Tendo alegado que a Recorrida, saiu da casa de morada de família, em circunstâncias demonstrativas que havia abandonado a casa comum do casal, para passar a residir noutro local;
40 - Designadamente, no artigo 4º «E tendo alegado sentir receio do ora Recorrente, chamou a GNR, justamente militares do destacamento da Merceana, para, alegadamente a protegerem enquanto esta saía de casa». Cfr. Documento nº 1 junto.
41 - E bem assim nos artigos 5º, 6º, 7º, 12º, 18º, 20º, 29º, 35º, 37º, 38º, 39º, 40º, foram alegados factos e afirmações que são bem demonstrativas que a partir da data de saída da casa de morada de família, cessou por completo a coabitação entre Recorrente e Recorrida.
42 - Tendo comunicado que passou a residir noutro local, quer ao Recorrente quer às forças de autoridade!
43 - Tendo referido que a Recorrida, quando abandonou a casa de morada de família retirou os seus haveres da casa sita na Aldeia (…) e bem assim da casa de Lisboa, sita na Rua (…).
44 - Ora, conforme resulta claro dos factos alegados, da petição inicial resulta clara a alegação que Recorrente e Recorrida, já não residiam juntos à data da invasão de domicilio feita pela Recorrida!
45 - Que a Recorrida saiu de casa em circunstâncias reveladoras da cessação da coabitação conjugal.
46 - E mais ainda, a própria se identificou como residente em Alcabideche, Cascais, e não em qualquer das casas de morada de família do casal.
47 - QUANTO À NECESSIDADE DE ALEGAÇÃO UM ACORDO SOBRE A UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
48 - Vem a sentença recorrida considerar que inexistindo qualquer referência a um acordo relativo à utilização de casa de morada de família;
49 - Não deve o ora Recorrente ter direito à tutela jurídica, relativo ao seu direito de privacidade àquela, ou aquelas que foram a casa de morada de família;
50 - Contudo, salvo o devido respeito, não se conforma o ora Recorrente com tal considerando, na realidade:
«A entrada pela arguida, onde não reside, na casa de morada de família do ofendido, contitular com aquela do direito de propriedade do imóvel, sem o consentimento deste e mudando a fechadura da porta, integra o crime de violação de domicílio do artº 190º 1 CP.» Acórdão da Relação do Porto 270/12.1GAILH.P1
51 - E bem assim conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, acórdão proferido no processo 24/08.0TRPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt
I - A qualificação de determinado espaço como domicílio implica a residência, isto é, a prática de actos relacionados com a vida familiar e com a esfera íntima privada, um local onde se faz a vida diária, onde se permanece, onde se vivem momentos de ócio, onde se descansa, onde se convive, onde se tomam as refeições e onde se pernoita.
II - Decorrido mais de um ano após a consumação da separação de facto, a arguida, que, anteriormente, com a concordância do assistente, se tinha deslocado à casa morada de família para dali retirar bens pessoais e bens afectos aos filhos, agora coadjuvada por uma empresa de transportes, depois de mandar partir um vidro de uma janela, determinou que alguém ali entrasse e abrisse a porta das traseiras e fez retirar e transportar diversos móveis.
III - Estes actos não são susceptíveis de serem entendidos como exercício de um direito, pois a arguida não quis voltar àquela casa para ali de novo residir, mesmo que separada de facto do marido, mas antes para tomar posse de bens comuns do casal, de que o assistente estava a fruir, procedendo a uma partilha de facto dos bens móveis.
IV - Após ocorrer a separação de facto, não deve mais falar-se em domicílio do casal ou em domicílio comum, por se ter verificado a cessação da comunhão de cama, mesa e habitação; por isso, a introdução na casa morada de família do cônjuge que a havia abandonado, levada a efeito sem consentimento ou contra a vontade daquele que ali continuou a residir, mesmo que a este último não tenha sido atribuída a casa morada de família, viola a sua intimidade.
V - Violando o domicílio do assistente, a arguida constituiu-se autora do crime p. e p. pelo art. 190.º, n.º 1, agravado pelo seu n.º 3, por ter existido escalamento [(art. 202.º, al. e)], do CP, pelo qual deve ser pronunciada.»
52 - Assim sendo, e considerando que:
 “Após ocorrer a separação de facto, não deve mais falar-se em domicílio do casal ou em domicílio comum, por se ter verificado a cessação da comunhão de cama, mesa e habitação; por isso, a introdução na casa morada de família do cônjuge que a havia abandonado, levada a efeito sem consentimento ou contra a vontade daquele que ali continuou a residir, mesmo que a este último não tenha sido atribuída a casa morada de família, é ilícita.”
53 - É assim irrelevante, para a determinação da ilicitude e garantir a tutela do direito, que haja havido algum acordo, ou que haja sido atribuída a casa de morada de família ao ora Recorrente.
54 - E assim sendo, deve a providência cautelar ser apreciada, apesar de inexistir a alegação de acordo sobre a utilização da casa que foi utilizada como casa de morada de família quando Recorrente e Recorrida coabitavam.
55 - DA ALEGADA NÃO IDENTIFICAÇÃO DE QUAL DAS DUAS QUE REFERE SEREM CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
56 - O ora recorrente referiu que, Recorrente e Recorrida residiram nas moradas indicadas na petição da providência cautelar, até á data em que a Recorrida saiu de casa e retirou os seus haveres de ambas as casas.
57 - Tendo passado a identificar-se como residindo em Alcabideche, Cascais, designadamente nos autos policiais juntos aos autos, subscritos pela própria. Tendo esta referido ao Recorrente que passaria a residir em Cascais, a partir de Abril de 2020.
58 - É evidente que resulta do alegado na providência cautelar que, a Recorrida, passou a deixar de residir em qualquer das moradas que eram utilizados como casa de morada de família. E passou a residir em Cascais;
59 - Sendo a tutela da providência cautelar perfeitamente identificada como abrangendo os imóveis que correspondiam à casa de morada de família. Pelo que, o objecto do pedido foi devidamente identificado!
60 - O ORA RECORRENTE, TEM DIREITO A TUTELA EFECTIVA E A TER DEVIDAMENTE TUTELADO O SEU DIREITO À PRIVACIDADE E RESERVA DA VIDA PRIVADA GARANTIDAS PELA PROTEÇÃO DO SEU DOMICÍLIO.
61 - E a inviolabilidade do seu domicílio, devidamente tutelada.
62 - Nos termos do artigo 190º do Código Penal: «Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.»
63 - O portador do bem jurídico tutelado pelo crime de violação de domicílio é aquele a quem assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação, seja qual for o seu fundamento jurídico, desde que aquela posição tenha sido adquirida de forma conforme ao direito.
64 - «A entrada pela arguida, onde não reside, na casa de morada de família do ofendido, contitular com aquela do direito de propriedade do imóvel, sem o consentimento deste e mudando a fechadura da porta, integra o crime de violação de domicílio do artº 190º 1 CP.» Conferir Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 25-03-2015, no processo 270/12.1GAILH.P1, disponível em www.dgsi.pt.
65 - O bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade na sua habitação, não a atribuição da casa de morada de família!
66 – “Condição essencial é a de que o espaço físico seja efectivamente ocupado pelo ofendido, nele fazendo a sua vida e nele tendo os seus pertences. (...)” – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 513.
67 - Além disso, “é irrelevante a natureza jurídica do título de ocupação do espaço físico, podendo consistir num direito real ou obrigacional ou numa situação de direito público.”
68 – “A tutela de bens e direitos de personalidade, ainda que conflitue com direitos e liberdades fundamentais do ofensor, pode ser actuada através de procedimento cautelar cível.” Conferir o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-10-2010 processo nº 201018645/10.9T2SNT.L1-2 http://www.dgsi.pt
69 – “O facto de o bem ou direito de personalidade gozar de tutela penal não obstacula a que para ele se requeira tutela cautela cível.” Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-10-2010 processo nº 201018645/10.9T2SNT.L1-2 http://www.dgsi.pt
70 – “Nada impede que uma providência cautelar inibitória repressiva - i.e., que vise cessar a efectiva violação do direito acautelado, seja solicitada como instrumental relativamente à acção principal que uma finalidade reparatória, quer dizer, que tenha por objecto, além do direito acautelado, a indemnização do dano suportado pelo titular do direito com a violação dele pelo demandado. “Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-10-2010 processo nº 201018645/10.9T2SNT.L1-2 http://www.dgsi.pt.
71 - De facto, e em síntese, esta providência cautelar é absolutamente independente da providência a que alude o artigo 927º do CPC, tanto mais que uma tutela um direito que não é tutelado pela outra, sendo certo, aliás, que o decretamento da providência ora requerida não impede ou invalida que no âmbito de processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, o direito de uso e habitação da casa de morada de família, venha a ser atribuído ao outro cônjuge, aqui Recorrida.
72 - O que se pretende é acautelar o direito à privacidade e intimidade do aqui Recorrente.
A Requerida foi citada, não tendo apresentado contra-alegações.
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II. Questões a decidir
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Código de Processo Civil, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que, no caso, a única questão a decidir é se deve manter-se o indeferimento liminar do procedimento cautelar.
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III. Fundamentação
Os factos relevantes para apreciação do presente recurso constam do relatório.
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III.2. Do mérito do recurso
Na pendência e por apenso à acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, o Requerente veio pedir que a Requerida seja condenada a entregar-lhe as chaves das duas casas do casal e a abster-se de abrir a porta ou de aí se introduzir sem a sua autorização, e que lhe seja atribuído, em exclusivo, o uso daquelas duas casas que identifica como de morada de família.
Casa de morada de família é aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges e unidos de facto (art. 10.º, n.º3 da Lei n.º83/19, de 3.09; e conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do Código Civil – neste sentido o Ac. do TRC de 20.06.2017, 1747/14.0T8LRA.C1) devendo a sua utilização no período de pendência do processo de divórcio ser regulada nos termos do art. 931.º do CPC: por acordo das partes na tentativa de conciliação (n.º2) ou em qualquer altura do processo, por iniciativa do Juiz ou a requerimento de alguma das partes, se o Juiz considerar conveniente e realizando previamente as diligências que entender necessárias (n.º7).
Quanto ao pedido de atribuição, em exclusivo, do uso das casas de morada de família, mostra-se correcto o entendimento da decisão recorrida no sentido de que tal deve ser requerido na própria acção de divórcio, de acordo com o n.º 7 do art. 931.º do CPC, se não for objecto de acordo das partes na tentativa de conciliação ou oficiosamente fixado.
“A fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último.” - Ac. do STJ de 23.11.2017, proc. 1448/15.1T8VNG.P2.S2. Tendo “sempre subjacente um juízo prudencial e casuístico, enquanto baseado em critérios de oportunidade e conveniência, típicos da jurisdição voluntária” – Ac. do STJ de 13.10.2016, proc. 135/12.7TBPBL-C.C1.S1.
Alega o Requerente que não se trata de regular a atribuição do uso da casa de morada de família e que o que está em causa é a tutela do seu direito à privacidade e à inviolabilidade do seu domicílio.
Ora, como resulta expressamente da terceira providência cautelar requerida, pretendendo o Requerente que lhe seja atribuído o uso exclusivo das duas casas que identifica como de morada de família, está, de facto, em causa regular a atribuição do uso dessas casas na pendência de uma acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, à margem do incidente previsto no art. 931.º do CPC e antes sequer da tentativa de conciliação no processo de divórcio, a pretexto da tutela de direitos de personalidade do Requerente. Sem ter em conta – sem sequer alegar, na realidade – nomeadamente, as circunstâncias ou necessidades de cada um dos cônjuges e dos filhos, o regime estabelecido quanto à regulação das responsabilidades parentais, critérios a que deve atender-se na regulação, mesmo provisória, do uso da casa de morada de família por um dos cônjuges.
Quanto aos pedidos de que a Requerida seja condenada a entregar ao Requerente as chaves das suas casas de morada de família e a abster-se de abrir a porta ou de aí se introduzir sem a sua autorização, a decisão recorrida considerou que se tratam de medidas que visam impedir o seu uso pela e que a tutela do direito à intimidade no concreto espaço das casas de morada de família pressupõe que, de alguma forma, o seu uso estivesse atribuído ao Requerente.
De acordo com o alegado no requerimento inicial, Requerente e Requerida são casados entre si e têm dois filhos, de 19 meses da idade, que ficaram com o Requerente quando a Requerida, em 7 de Abril, saiu das casas onde viviam.
O recorrente contesta que os dois imóveis a que respeita a providência sejam ainda casa de morada de família da Recorrida, uma vez que ela saiu de casa em circunstâncias demonstrativas de que havia abandonado a casa comum do casal, para passar a residir noutro local. O facto de a Requerida ter saído da casa onde morava com o Requerente e os filhos não significa que a casa de morada de família tenha deixado de o ser, em termos jurídicos, para efeitos da sua atribuição no âmbito do processo de divórcio e da regulação provisória do seu uso por um dos cônjuges na pendência do processo de divórcio.
Mas o que o Requerente invoca para pedir as providências requeridas, de entrega das chaves e abstenção de se introduzir nas casas onde ficou a viver com os filhos e onde, por vezes, os seus pais também permanecem, é a necessidade de tutela efectiva dos seus direitos à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio.
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional (v. ac. de 10.12.2008, proc. n.º 397/08, 2ª Secção) o conceito constitucional de domicílio, cuja inviolabilidade a Constituição da República Portuguesa consagra como direito fundamental no art. 34.º, é dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar, e como tal conjugado com o disposto no n.° 1 do artigo 26. ° da CRP.
A inviolabilidade do domicílio tem tutela penal, dispondo o artº 190º nº 1 do Código Penal que, “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”.
O bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade, traduzindo-se o elemento objectivo na entrada ou permanência em habitação alheia, conjugada com a falta de consentimento por parte de quem (independentemente da questão que se prende com o direito de propriedade) tem o domínio e a disposição sobre a habitação – Ac. do TRP de 25.03.2015, proc. 270/12.1GAILH.P1, citado nas alegações do recorrente.
Habitação é o espaço físico fechado onde o ofendido se aloja e pernoita. Pode tratar-se de um local de alojamento temporário, periódico ou intermitente. (…) Condição essencial é a de que o espaço físico seja efectivamente ocupado pelo ofendido, nele fazendo a sua vida e nele tendo os seus pertences. (…)” - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 513.
 Após ocorrer a separação de facto, não deve mais falar-se em domicílio do casal ou em domicílio comum, por se ter verificado a cessação da comunhão de cama, mesa e habitação; por isso, a introdução na casa morada de família do cônjuge que a havia abandonado, levada a efeito sem consentimento ou contra a vontade daquele que ali continuou a residir, mesmo que a este último não tenha sido atribuída a casa morada de família, viola a sua intimidade – Ac. do STJ de 14.07.2011, proc. 24/08.0TRPRT.S1.
O art. 70.º do Código Civil consagra uma cláusula geral de tutela da personalidade, dispondo que:
1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
Independentemente, portanto, da responsabilidade penal e civil que no caso couber, a pessoa ameaçada (e, no caso, o Requerente alega sê-lo) pode requerer o decretamento das providências cautelares adequadas para tutela dos seus direitos de personalidade, como são o direito à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio, a habitação ou habitações onde o Requerente alega viver com os filhos após a saída da mulher.
Visando dar concretização ao disposto no art. 70.º, n.º2 do CC, o CPC prevê nos arts. 878.º e ss. um processo especial para tutela da personalidade (“Pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida”).
Para além deste processo especial para específica tutela de direitos de personalidade física e moral do ser humano, o interessado pode intentar um procedimento cautelar comum, nos termos do art. 362.º e ss. do CPC, compatível com a invocação de qualquer direito, independentemente da sua natureza.
No caso foi instaurado um procedimento cautelar comum para tutela do direito do Requerente à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio, na pendência e por apenso à acção de divórcio.
 De acordo com o disposto no art. 364.º, n.º1 do CPC, sem prejuízo das especificidades resultantes dos casos em que seja decretada a inversão do contencioso, é matricial ao procedimento cautelar a relação de dependência e de instrumentalidade relativamente a alguma acção ou execução que vise o reconhecimento ou a satisfação do direito em causa. Esta relação de instrumentalidade impõe que o procedimento vise a tutela antecipada ou a conservação do concreto direito cuja efectividade se pretende por via da acção principal (António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, CPC Anot., Vol. I, Almedina, 2019).
Relação que não se verifica entre este procedimento cautelar e a acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, da competência do Juízo de Família e Menores, não se mostrando meio adequado para a tutela cautelar dos direitos invocados pelo Requerente à privacidade e inviolabilidade do seu domicílio.
A falta de um adequado nexo de instrumentalidade entre o procedimento e a acção de divórcio levará à improcedência da pretensão cautelar (op. cit, p. 423). Pelo que deve ser confirmada a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a petição apresentada.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar o recurso improcedente, confirmando, pelos fundamentos expostos, a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
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Lisboa, 24 de Setembro de 2020
Eleonora Viegas (relatora)
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães