Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1585/16.5PBCSC-A.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: SEGREDO DE TELECOMUNICAÇÕES
INTERCEPÇÃO
TRANSMISSÃO ELECTRÓNICA DE DADOS
LOCALIZAÇÃO CELULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–O regime dos artigos 187º a 189º, do CPP, aplica-se aos “dados sobre a localização celular”, obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto o consagrado na Lei nº 32/2008, de 17/07, tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas.
II–Na densificação do conceito de suspeito aceita-se que pode ele não ser determinado - que se não conheça a sua identificação completa – não pode, porém, dispensar-se a existência de dados factuais tendentes a essa identificação, com recurso aos quais possa ser identificável e tal desiderato não se satisfaz pela circunstância de dezenas ou mesmo centenas de pessoas terem efectuado comunicações telefónicas em três áreas geográficas em período temporal próximo ao momento da prática do crime de roubo em investigação, tendo feito activar a mesma antena, quer no que respeita ao emissor, quer ao receptor.
III–No decurso do inquérito deve o Juiz de Instrução Criminal indeferir o requerimento do Ministério Público em que impetra se ordenasse às operadoras de telemóveis a remessa para os autos, relativamente a dia concretizado, no período entre as 08:45 horas e as 09:15 horas, de “listagem – em suporte digital e formato Excel – com: identificação dos cartões telefónicos que tenham recebido ou realizado chamadas de voz ou texto de ou para cartões presentes na mesma célula em questão e a seguir identificada – nº chamador e nº chamado activados na mesma célula; identificação dos IMEI em que esses cartões operavam na altura; identificação dos titulares desses cartões ou códigos de carregamento Multibanco dos mesmos. Quanto às antenas que se identificam a Fls. 16 e vs. dos presentes autos”, tendo em atenção o estabelecido nos artigos 1º, nº 1, 2º, nº 1, alínea g), 4º, 9º, nº 3, alínea a), da Lei nº 32/2008, de 17/07, 1º, alínea e), do CPP, 26º, nº 1 e 34º, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


1.–Nos autos de inquérito com o nº 1585/16.5PBCSC, a correr termos na 3ª secção do DIAP da Comarca de Lisboa Oeste – Cascais - Instância Central – 2ª Secção de Instrução Criminal – J1, foi proferido despacho pela Mmª Juíza de Instrução Criminal, aos 31/10/2016, que indeferiu o requerimento do Ministério Público em que se impetrava se ordenasse às operadoras de telemóveis a remessa para os autos, relativamente ao dia 01/10/2016, no período entre as 08:45 horas e as 09:15 horas, de “listagem – em suporte digital e formato Excel – com: identificação dos cartões telefónicos que tenham recebido ou realizado chamadas de voz ou texto de ou para cartões presentes na mesma célula em questão e a seguir identificada – nº chamador e nº chamado activados na mesma célula; identificação dos IMEI em que esses cartões operavam na altura; identificação dos titulares desses cartões ou códigos de carregamento Multibanco dos mesmos. Quanto às antenas que se identificam a Fls. 16 e vs. dos presentes autos”.

2.–O Ministério Público não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1.
Visam os presentes autos apurar os factos ocorridos no dia 1 de Outubro de 2016, pelas 9hl0m, na Rua MGC, em Cascais, em que três indivíduos, todos do sexo masculino, se introduziram no prédio com o n.º 111 e, junto ao R/C Esq.º, abordaram a residente e aqui ofendida, empunhando na sua direcção uma arma de fogo, dessa forma logrando subtrair à mesma a mala que trazia e na qual se encontravam diversos objectos, entre eles um telemóvel de marca APPLE, modelo IPHONE 6S, de cor branca e um fio em ouro, factos esses que se mostram susceptíveis de integrar, além do mais, em abstracto, um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo disposto no artigo 210.º, n.os 1 e 2, alínea b) do Código Penal, em conjugação com o constante no artigo 204.º, n.º 2, alínea f) do mesmo diploma legal.
2.
As diligências de investigação efectuadas permitiram apurar que a viatura automóvel utilizada pelos autores dos factos é de marca Renault, modelo Clio, de cor verde, com a matrícula 1...-2...-..., que a propriedade da mesma se encontra registada no nome de C.S. e o seguro em nome de S.F.. Ambas as identificadas constam já indiciadas pela prática de ilícitos de idêntica natureza ao em investigação nos autos, actuação essa conjunta com indivíduos do sexo masculino, sendo que um deles apresenta características coincidentes com as descrições produzidas pelas testemunhas e ofendida (v. fls. 37 a 40)
3.
Nos termos do artigo 262.º, n.º 1 Código de Processo Penal, 'o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação', devendo tal norma ser conjugada com o constante no artigo 125.º do mesmo diploma legal, no qual se estabelece que 'são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei", sendo no artigo 126.º que consta o elenco de quais os métodos proibidos de prova e o que deve ser entendido como tal.
4.
Assim, e tendo por consideração tais disposições legais e os princípios que norteiam o processo penal - idoneidade, necessidade e proporcionalidade -, bem como em face do facto de diligência se aferir pertinente, atentos os elementos probatórios recolhidos, o Ministério Público promoveu, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea g) e 9.º, ambos da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho e artigos 135.º, 182.º 187.º, 188.º e 189.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, e após enunciar os fundamentos de facto e de direito que sustentam tal pretensão, que a M.ma Juiz de Instrução ordenasse, dispensando as operadoras de telemóveis do respectivo sigilo, a remessa, relativamente ao dia 1 de Outubro de 2016, entre as 08h45m e as 9hl5m, especificamente, dos seguintes elementos:
- Listagem - em suporte digital e formato excel-com:
Identificação dos cartões telefónicos que tenham recebido ou realizado chamadas de voz ou texto de ou para cartões presentes na mesma célula em questão e a seguir identificada - n.º chamador e n.º chamado activados na mesma célula;
Identificação dos IMEI em que esses cartões operavam na altura;
Identificação dos titulares desses cartões ou códigos de carregamento multibanco dos mesmos.
5.
Na sequência de tal promoção, veio a M.ma Juiz de Instrução proferir decisão, indeferindo e concluindo que 'no caso dos autos, o MP pretendia que se ordenasse às operadoras o fornecimento de todos os cartões SIM de pessoas que, entre outras coisas, tivessem o seu telefone ligado e feito chamadas ou recebido SMS numa área que abrangeria vários locais como Fontainhas, Amoreira e Bairro Marechal Carmona, locais onde a densidade populacional é já assinalável, sejam ou não suspeitas de crime.
O que o MP requer não tem fundamento legal e esbarra no artigo 187.º, nº 4 do CPP, razão pela qual se indefere, sem mais considerações'.
É do teor desta decisão (fls. 60 a 62) que ora se recorre, por se entender que a mesma não procedeu a uma correcta apreciação do efectivamente promovido, não tendo atendido aos factos e elementos provatórios constantes dos autos e aí enunciados, considerando-se que a mesma viola os artigos 125.º, 126.º 187.º, 189.º e 262.º, todos do Código de Processo Penal e os artigos 10.º
e 7.º n.os 2 e 3, ambos da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.
6.
Em primeiro lugar, cumpre referir que a decisão de que ora se recorre não teve em consideração o efectivamente requerido pelo Ministério Público - limitado e restrito à identificação dos números de telemóvel que no dia 1 de Outubro de 2016, no período entre as 8h45m e as 9hl5m, activaram uma mesma antena e contactaram entre si - e os seguintes aspectos que se entende serem fundamento para o deferimento do requerido: a) o ilícito em causa nos autos e, designadamente, a sua gravidade, expressa na moldura abstracta aplicável; b) o locai onde os factos ocorreram, junto à residência da vítima; c) a preparação com que os autores antecederam a consumação do ilícito; d) a necessidade e pertinência dos elementos requeridos, uma vez que os autores dos factos foram vistos ao telemóvel; e) a identificação de possíveis suspeitos, dos quais não são conhecidos os seus actuais contactos telefónicos; f) a restrição do pedido efectuado e que se resumirá, certamente, a um número reduzido de elementos; g) a pertinência da diligência requerida, não se vislumbrando outro meio que permita alcançar as informações pretendidas.
7.
Em segundo lugar, sempre se dirá, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20 de Janeiro de 2015, no Processo n.º 648/14.6GCFAR-A.E1, que 'É indubitável que a localização celular constitui violação da privacidade do cidadão. A sujeição da sua autorização a um "catálogo de crimes" tem em vista concretizar um equilíbrio entre a violação dessa privacidade do cidadão e a necessidade de acautelar outros interesses relevantes.
Mas a realidade não é tão asséptica quanto o legislador a vê, pois que se não limita à ponderação entre uma precisa violação de direitos e um ganho probatório determinado. A realidade vive muito de alguma indeterminação dificilmente abarcada pelo feitor da lei. (...)
Aqui assume papel de relevo o juiz e afigura do controle dos dados arquivados e a sua futura destruição. (...)
Assim, sendo de deferir o que foi requerido, haverá que tomar as devidas cautelas de forma a evitar que "todos" os dados recepcionados pelas operadoras no período pretendido sejam juntos ao processo e tornados públicos sem controlo judiciai pois que não verificável, neste momento, a possibilidade de ocorrer violação da intimidade ou de qualquer segredo relevante.
Em função do exposto, o que pode e deve ser deferido é a transmissão de dados nos termos precisos do disposto nos artigos 10º e 7º nºs 2 e 3 da Lei n.º 32/2008, tendo sempre em vista o destino previsto no artigo 11.º da mesma lei.
[…]
Em qualquer caso, a posterior junção aos autos em papel dos dados transmitidos limitar-se-á aos dados que tenham relevo e não firam os direitos acautelados pelo artigo 16.º, n.º 3 da Lei nº 109/2009, o que implicará controlo judicial.'
8.
De facto, não poderá deixar de ser tido em consideração o estabelecido no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, na qual se institui que 'todos têm direito à liberdade e à segurança'. Ora, o alcance deste direito à segurança ocorrerá através da actuação de um eficaz e eficiente sistema judicial, com a menor compressão possível dos direitos dos cidadãos - sempre e sob o controlo da autoridade judicial -, facto esse que se traduzirá na tranquilização da comunidade e numa efectiva e real diminuição da actividade criminal mais grave.
9.
Sopesando todos os elementos e fundamentos enunciados e sublinhados, sempre terá de se concluir no sentido de que, visando o presente inquérito a investigação de ilícito de elevada gravidade, e mostrando-se preenchidos os requisitos que permitem a solicitação dos elementos tal como constam identificados na promoção que antecede a decisão ora posta em crise, e não se vislumbrando outro meio de se alcançarem as finalidades que com o mesmo se alcança, deveria ter sido proferida decisão deferindo o requerido.
10.
A decisão ora recorrida não ponderou, de forma correcta, os princípios de adequação e proporcionalidade que se mostram plenamente salvaguardados e protegidos em sede de deferimento da presente diligência e, nomeadamente, através do controlo judicial posterior, em sede de junção dos dados remetidos, restringindo-se a mesma aos efectivamente pertinentes para a investigação e destruindo-se as remanescentes.
11.
Pelo que, com o despacho judicial proferido a M.ma Juiz de Instrução violou o disposto nos artigos 125.º, 126.º, 187.º, 189.º e 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, bem como os artigos 10.º e 7.º, n.os 2 e 3 da Lei n. 32/2008, de 17 de Julho, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que determine a remessa dos elementos solicitados, nos termos requeridos na promoção que o antecede.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a decisão judicial recorrida e substituindo-a por outra que determine a remessa aos autos das informações solicitadas nos termos e para os efeitos referidos, só assim se fazendo a esperada e costumada Justiça!

3.-Inexiste resposta à motivação de recurso.

4.-Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento.

5.-Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO:

1.–Âmbito do Recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se o despacho recorrido, ao indeferir a pretensão do Ministério Público vertida no seu requerimento de fls. 52 a 57 em que pretendia se ordenasse às operadoras de telemóveis o envio para os autos, relativamente ao dia 01/10/2016, no período entre as 08:45 horas e as 09:15 horas, de listagem – em suporte digital e formato Excel – com: identificação dos cartões telefónicos que tenham recebido ou realizado chamadas de voz ou texto de ou para cartões presentes na mesma célula em questão e a seguir identificada – nº chamador e nº chamado activados na mesma célula; identificação dos IMEI em que esses cartões operavam na altura; identificação dos titulares desses cartões ou códigos de carregamento Multibanco dos mesmos, violou o estabelecido nos artigos 125º, 126º, 187º, 189º e 262º, nº 1, do CPP e nos artigos 10º e 7º, nos 2 e 3, da Lei nº 32/2008, de 17/07.

2.–Elementos relevantes para a decisão.

2.1–Aos 27/10/2016, requereu o Ministério Público à Mmª Juíza de Instrução Criminal como se transcreve:
Visam os presentes autos apurar os factos ocorridos no dia 1 de Outubro de 2016, pelas 9h10m, junto à porta do rés-do-chão esquerdo do n.º 111 da Rua MGC, em Cascais, dos quais foram vítimas A.B.e R.F., praticados por três indivíduos, do sexo masculino, que para o efeito fizeram uso de uma arma de fogo, tendo os mesmos subtraído uma mala de senhora, outro se encontravam diversos objectos, entre eles um telemóvel de marca IPHONE 6S, de cor branca e um fio em ouro. Na posse de tais objectos, os três indivíduos abandonaram o local e dirigiram-se à viatura, marca Renault, modelo Clio, onde se encontrava um quarto indivíduo a aguardar.
A factualidade descrita mostra-se susceptível de integrar, em abstracto, a prática de crime de roubo agravado, previsto e punido pelo disposto pelo artigo 210.º nº 2, alínea b) do Código Penal (em conjugação com o constante no artigo 204.º, n.º 2, alínea f) do Código Penal) e crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo disposto no artigo 86.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.
As primeiras diligências realizadas permitiram apurar que, no dia 1 de Outubro de 2016, quatro indivíduos, fazendo uso de uma viatura de marca Renault, modelo Clio, de cor verde, com a matrícula …LN, se deslocaram até à área circundante à residência dos ofendidos, sita na Rua MGC em Cascais, onde permaneceram desde, pelo menos, as 06h00m.
Que, durante algum tempo tais indivíduos permaneceram no interior da viatura, tendo sido possível apurar que a mesma permaneceu imobilizada, em frente ao portão da garagem do prédio com o n.º ..., durante período superior a uma hora, bloqueando a entrada e saída de quaisquer veículos.
Após as 07h30m, a viatura, em cujo interior permaneciam os quatro indivíduos deslocou-se pela referida artéria e nas envolventes, descendo e subindo e parando em diversos sítios, claramente a rondar o local e a identificar possíveis alvos que pudessem ser abordados e que não demostrassem qualquer resistência às suas intenções.
Entre as 08h45m e as 09h10, foi visualizado, por uma testemunha – J.R.(fls. 48/49) — um dos indivíduos que praticaram os factos a efectuar uma chamada telefónica, com toda a probabilidade para o indivíduo que conduzia o veículo e que junto ao mesmo permaneceu, a fim de facilitar uma rápida fuga, após a prática dos factos.
Pelas 09h15m, três dos indivíduos, após forçarem a fechadura, conseguiram introduzir-se no interior do prédio com o n.º 111, da Rua MGC, em Cascais. Nesse mesmo momento, quando se encontravam a sair do interior da sua residência, sita no rés-do-chão esquerdo, os dois ofendidos, de imediato foram abordados. R.F. conseguiu lutar contra um dos indivíduos e refugiar-se no interior da residência, enquanto A.B. ficou do lado de fora, tendo a mesma sido agarrada, agredida com a arma de fogo e despojada de todos os bens que tinha na sua posse. Aí, e com tais objectos, os três indivíduos fugiram na direcção da viatura onde eram aguardados pelo quarto indivíduo.
Atenta a informação referente à utilização de uma viatura automóvel, foram efectuadas diligências relativas à identificação do proprietário registado, tendo sido possível apurar que a mesma é titulada por C.S. (fls. 36) e que a mesma possui já ficha biográfica pela prática de ilícitos em co-autoria com os indivíduos que foi possível identificar (fls. 37 a 40), sendo certo que um dos identificados possui rastas no cabelo, característica essa referida pela ofendida A.B..
Foi ainda aferido do contrato de seguro existente e referente ao veículo identificado nos autos, que é titulado por S.F.(fls. 41), a qual possui também ficha biográfica (fls. 43), aí se indicado ter sido identificada pela prática de crime de roubo, juntamente com o identificado LUÍS PINA (fls. 44).
Perante o cenário descrito, mostra-se necessário e essencial recolher elementos probatórios que se encontrem na disponibilidade das operadoras de telemóveis MEO, VODAFONE e NOS, solicitação essa que é sugerida pela autoridade policial e que a mesma entende ser de crucial importância e relevância para a prossecução da investigação e apuramento dos factos (fls. 14 a 16), afirmando-se que a diligência em causa se mostra como a única possibilidade de se conseguir chegar à identificação dos autores do crime.
Na verdade, as operadoras de telecomunicações móveis registam os números de telemóvel que em determinado momento acederam, em determinado local, à "antena" que cobre esse mesmo local e existe a possibilidade de se encontrarem números de telemóvel que tenham sido utilizados pelo(s) auto(es) dos factos.
O uso dos meios de prova ora solicitados mostra-se regulamentado nos artigos 32.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa, artigos 187.º, 188.º e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro e artigo 4.º, n.º 1, alínea f) da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.
Na verdade, dispõe o artigo 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 4 do mesmo artigo, exigência reforçada pelo artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.
No caso dos autos, e porque se trata de crime de roubo agravado, o mesmo encontra-se incluído no artigo 187.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não obstando este requisito à realização da diligência de investigação.
Por seu turno, e no que concerne ao requisito constante do n.º 4 do artigo 187.º verifica-se que o mesmo também se mostra preenchido. De facto, e pese embora não constem identificados cabalmente os autores dos factos, as testemunhas conseguem proceder ao seu reconhecimento e as diligências efectuadas na sequência da identificação da matrícula do veículo automóvel utilizado na fuga permitiram identificar possíveis suspeitos de terem praticado os factos ora em investigação (cfr. fls. 36 a 44).
A isto não pode deixar de se sublinhar o facto de ter sido visualizado, pela testemunha J.R., um dos indivíduos que praticou os factos ora em investigação a efectuar uma chamada telefónica, com toda a probabilidade para o condutor do veículo de apoio, o qual permaneceu sempre próximo deste ou mesmo no seu interior.
Pese embora se possa considerar que o pedido dos elementos constitui uma ingerência no sigilo das telecomunicações, uma vez que os dados que as operadoras irão fornecer dirão respeito aos autores dos factos mas também a outros cidadãos que não tiveram qualquer participação nos factos, a verdade é que o que se pretende são dados que permitam apurar da existência de contactos telefónicos originados nas imediações do local dos factos, sendo os dados remetidos analisados e, caso não se mostrem pertinentes, serão destruídos, não havendo assim qualquer ingerência nas telecomunicações de terceiros que nada têm a ver com os factos.
A diligência a requerer tem duas funções: a de LOCALIZAÇÃO e a de IDENTIFICAÇÃO CABAL DOS AUTORES dos factos. Ou seja, o que se pretende é uma mera listagem de números/IMEI (para verificar eventuais coincidências, nomeadamente porque o contacto telefónico visualizado pela testemunha terá feito activar a mesma antena, quer no que respeita ao emissor como ao receptor da chamada telefónica), sem qualquer outra identificação quanto ao seu utilizador.
Conclui-se, pois, que a diligência requerida trará informações pertinentes aos autos e que permitirá, efectivamente, apurar a identificação cabal de, pelo menos, dois autores dos factos e, a partir desse momento, se alcançar a identidade dos restantes.
O interesse do Estado na administração da justiça prevalece sobre o direito protegido pelo sigilo das telecomunicações, justificando-se a compressão de direitos fundamentais, nomeadamente o direito à intimidade da vida privada, pelo que, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea g) e 9.º, ambos da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho e artigos 135.º, 182.º, 187.º, 188.º e 189.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal,

DEVERÁ A M.mA JUIZ DE INSTRUÇÃO DISPENSAR AS OPERADORAS DE TELEMÓVEIS DO DEVER DE SIGILO E
ORDENAR-LHES QUE REMETAM AOS AUTOS,
RELATIVAMENTE AO DIA 1 DE OUTUBRO DE 2016 E AO PERÍODO ENTRE AS 08H45M E AS 09H 15m :
- LISTAGEM — EM SUPORTE DIGITAL E FORMATO EXCEL — COM:
1)IDENTIFICAÇÃO DOS CARTÕES TELEFÓNICOS QUE TENHAM RECEBIDO OU REALIZADO CHAMADAS DE VOZ OU TEXTO DE OU PARA CARTÕES PRESENTES NA MESMA CÉLULA EM QUESTÃO E A SEGUIR IDENTIFICADA — N.º CHAMADOR E N.º CHAMADO ACTIVADOS NA MESMA CÉLULA;
2)IDENTIFICAÇÃO DOS IMEl EM QUE ESSES CARTÕES OPERAVAM NA ALTURA;
3)IDENTIFICAÇÃO DOS TITULARES DESSES CARTÕES OU CÓDIGOS DE CARREGAMENTO MULTIBANCO DOS MESMOS.
QUANTO ÀS ANTENAS QUE SE IDENTIFICAM A FLS. 16 E VS. DOS PRESENTES AUTOS.

2.2–Em 31/10/2016, foi proferida a decisão recorrida, que apresenta o seguinte teor (transcrição):

Valida-se a decisão do MP de sujeitar os autos a segredo de justiça nos termos do artigo 86º, n.º 3 do CPP.
Veio o MP, requerer que sejam oficiadas as operadoras de telemóveis, nos termos dos artigos 187º, n.º 1, 189º, n.º 2 do CPP e artigos 2o, n.º 1, alínea g) e 9o, n.º 1 da lei 32/2008 para:
Que remetam a estes autos, o suporte digital em formato Excel, listagens contendo a identificação dos cartões telefónicos que tenham recebido ou realizado chamadas de voz ou texto ou para cartões presentes na mesma célula em questão a seguir identificada — n.º de chamador e nº chamado activados na mesma célula, identificação dos IMEIS em que esses cartões operavam na altura; identificação dos titulares desses cartões ou códigos de carregamento multibanco dos mesmos quanto às antenas BTS identificadas a fls. 16 em determinadas horas e dia que identifica.
Nos termos do artigo 189º do CPP, o disposto nos artigos 187º e 188º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telemóvel designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital e à intercepção entre presentes.
De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo a obtenção e junção dos dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no artigo 187º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.
As pessoas referidas no artigo 187º, n.º 4 do CPP são os suspeitos, arguidos, pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de arguido, ou vítima de crime.
No caso dos autos, o MP pretendia que se ordenasse às operadoras o fornecimento de todos os cartões SIM de pessoas que, entre outras coisas, tivessem o seu telefone ligado e feito chamadas ou recebido sms numa área que abrangeria vários locais como Fontainhas, Amoreira e Bairro Marechal Carmona, locais onde a densidade populacional é já assinalável, sejam ou não suspeitas de um crime.
O que o MP requer não tem fundamento legal e esbarra no artigo 187º, n.º 4 do CPP, razão pela qual se indefere, sem mais considerações.

Apreciemos.

Nos presentes autos de inquérito investiga-se a prática, entre outros, de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, cominado com pena de prisão de 3 a 15 anos.

Mostra-se indiciado que no dia 01/10/2016, cerca das 09:15 horas, três indivíduos de identidade desconhecida dirigiram-se ao prédio sito no nº 111 da Av. MGC, em Cascais, nele penetraram e abordaram A.B.e R.F..

A.B. foi agredida na cabeça com parte (eventualmente a coronha) de um objecto em tudo semelhante a uma arma de fogo por um dos indivíduos, tendo-lhe sido retirados um fio de ouro, quantia em dinheiro, documentos, um telemóvel e outros bens.

Os três indivíduos e um outro, também de identidade não apurada, deslocaram-se para o local na viatura de marca “Renault”, modelo “Clio”, de cor verde e matrícula …LN, propriedade de C.S., sendo que o contrato de seguro da viatura se mostra titulado por S.F..

Depois de realizadas diversas diligências não foi possível apurar a identidade dos agentes do crime, o que levou o Ministério Público, ora recorrente, a requerer à Mmª JIC a dispensa de sigilo das operadoras de telemóvel e que ordenasse a remessa para os autos, através das operadoras móveis MEO, VODAFONE e NOS, de listagem – em suporte digital e formato Excel – com identificação dos cartões telefónicos que tenham recebido ou realizado chamadas de voz ou texto de ou para cartões presentes na mesma célula em questão – nº chamador e nº chamado activados na mesma célula; identificação dos IMEI em que esses cartões operavam na altura; identificação dos titulares desses cartões ou códigos de carregamento Multibanco dos mesmos, que entre as 08:45 horas e as 09:15 horas, do dia 1 de Outubro de 2016 utilizaram as antenas - nos autos identificadas - que abrangem as áreas geográficas de Amoreira, Fontainhas e Bairro Marechal Carmona.

Fundou o impetrado no estabelecido nos artigos 2º, nº 1, alínea g) e 9º, da Lei nº 32/2008, de 17/07 e artigos 135º, 182º, 187º, 188º e 189º, nº 2, do CPP.

É nosso entendimento, na esteira do Acórdão deste Tribunal e Secção de 03/05/2016, Proc. nº 73/16.4PFCSC-A.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, que da necessidade de harmonização entre os regimes dos artigos 187º a 189º, do CPP e o da Lei nº 32/2008, de 17/07, resulta que o daquele se aplica aos “dados sobre a localização celular”, obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto o desta tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado ou seja, arquivadas, como se extrai até do consagrado no seu artigo 1º, nº 1 –neste sentido e com abundante fundamentação se pode ler o Ac. R. de Évora de 20/01/2015, Proc. nº 648/14.6GCFAR-A.E1, consultável também no mesmo sítio.


Termos em que, cumpre apurar se o impetrado pelo Ministério Público se mostra admissível tendo em atenção as normas da aludida Lei.
O objecto da pretensão inclui-se entre os dados a conservar pelas operadoras móveis, como enunciados no artigo 4º.

E, de acordo com o artigo 9º, a transmissão desses dados pode ser requerida pelo MP, mas só pode ser autorizada pelo juiz de instrução, por despacho fundamentado, “se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.”

O que se tem de entender por “crime grave”, para efeitos da aplicação desta Lei, elucida-nos o artigo 2º, nº 1, alínea g), a saber: crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

O crime de roubo em causa nos autos integra-se na definição de crime grave, por força da definição que deste se faz no artigo 1º, alínea j), do CPP.

Mas, de acordo com a alínea a), do nº 3, do referido artigo 9º, apenas pode ser autorizada a transmissão de dados relativos ao suspeito ou arguido, sendo certo que nestes autos ainda não houve constituição de arguidos.

E, também não requereu o Ministério Público a obtenção dos dados relativamente a qualquer suspeito minimamente individualizado, o que almeja é, dentro de um número indeterminado de pessoas que nas áreas servidas pelas antenas que concretiza se encontravam no dia e período temporal indicado e que receberam ou efectuaram comunicações de voz ou texto através das redes móveis, apurar da identidade de quem possa vir a ser considerado suspeito da prática do crime.

Isto é, de acordo com a sua tese, todos esses sujeitos, em relação aos quais não existem quaisquer indícios da prática de um crime – pelo menos na sua larga maioria, visto que uma das testemunhas inquiridas referiu que visualizou um dos intervenientes nos factos em investigação efectuar uma comunicação telefónica - são suspeitos e podem ser objecto de ingerência nas respectivas telecomunicações, o que de modo algum se coaduna com a definição de suspeito constante do artigo 1º, alínea e), do CPP: “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar”.

Como se faz saber no Acórdão deste Tribunal da Relação de 17/12/2014, Proc. nº 131/14.0JBLSB-A.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, “a legitimação do acesso a esses dados pressupõe que os utilizadores dos telemóveis que naquele hiato temporal (meia hora) activaram as antenas telefónicas que abrangem o local geográfico indicado a fls. 110, 111 e 112, mediante o estabelecimento ou a recepção de uma comunicação telefónica, fossem todos de enquadrar na categoria de “suspeitos”.

Acrescentando-se ainda no mesmo aresto que “a ser deferido o requerido, qualquer cidadão que se encontre na área de abrangência daquelas antenas telefónicas e se encontre naquelas condições (haja sido interveniente numa comunicação telefónica por telemóvel) veria o registo da localização do seu número de telemóvel revelado neste processo, e veria ainda revelado no processo o registo das chamadas em que foi interveniente”.

E, com efeito, se vero é que na densificação do conceito de suspeito se aceita que pode ele não ser determinado - que se não conheça a sua identificação completa – não pode, porém, dispensar-se a existência de dados factuais tendentes a essa identificação, com recurso aos quais possa ser identificável e tal desiderato não se satisfaz pela circunstância de dezenas ou mesmo centenas de pessoas terem efectuado comunicações telefónicas em três áreas geográficas em período temporal próximo ao momento da prática do crime de roubo, tendo feito activar a mesma antena, quer no que respeita ao emissor, quer ao receptor.

Assim, o pretendido não tem cabimento nas restrições ao direito fundamental da reserva da intimidade da vida privada (tutelada no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa) assegurada, entre o mais, pela inviolabilidade dos meios de comunicação privada, com ressalva dos casos previstos na lei em matéria de processo criminal (artigo 34º, nºs 1 e 4, da CRP) tal como a Lei nº 32/2008 as delimita, sendo a interpretação normativa feita pelo recorrente violadora do princípio da legalidade, pelo que não pode ter acolhimento.

Mas, a Mmª Juíza a quo considerou ser de indeferir a pretensão do Ministério Público por inadmissível, precisamente por atingir um leque de pessoas não incluídas no catálogo fechado do nº 4, do artigo 187º, do CPP ex vi artigo 189º, nº 2, do mesmo diploma legal, normas que já vimos não serem aplicáveis no caso em apreço.

Contudo, os fundamentos para esta inadmissibilidade são os mesmos, atendendo às referidas normas da Lei nº 32/2008, que com as do CPP no essencial coincidem, mostrando-se em absoluto prejudicado apurar da necessidade ou indispensabilidade para a investigação da obtenção desse dados por, desde logo, não estar verificada a imposta delimitação subjectiva.

Pelo exposto, cumpre negar provimento ao recurso.

III–DISPOSITIVO:

Nestes termos, acordam os Juízes da ...ª Secção desta Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto e confirmar a decisão recorrida, nos termos mencionados.
Sem tributação.


Lisboa, 7 de Março de 2017


(Artur Vargues) - (Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).

(Jorge Gonçalves)