Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
406/08.7JDLSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
DOLO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Quanto à atitude interior do arguido o tribunal tem de socorrer-se das máximas da experiência comum, como não podia deixar de ser, uma vez que esta não foi, perante o seu silêncio, revelada.
II-Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjetivo da infração são, em regra, objeto de prova indireta, isto é, só são suscetíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objetivos, analisados à luz das regras da experiência comum (sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 406/08.7JDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 11, foi submetido a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, o arguido SS.., filho de ZZ… e de II…, natural da China, nascido em … 1969, casado, empresário por conta própria, residente na C……………., e condenado, por sentença proferida e depositada em 12 de julho de 2018, pela prática de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a), e 256.°, n.ºs 1, alínea a), e 3, ambos do Código Penal, pelo qual estava acusado, na pena de 220 dias de multa à taxa diária de €7,00, no montante total de €1.540,00, susceptíveis de conversão em 146 dias de prisão subsidiária.

2. O arguido, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
“1- O Tribunal a quo errou ao dar como provada a existência de dolo por parte do arguido, o que consta dos factos nº 6 e nº 7 da matéria de facto dada como provada;
2- O juízo probatório do Tribunal a quo é errado por falta de fundamento.
3- O dolo pode ser provado por meio directo, seja através de confissão, prova testemunhal ou documental, das quais resulte expresso que o arguido sabia da ilicitude e se acomodou a ela.
4- Ou pode ser provado por meio indirecto, através de inferências lógicas e de regras de bom senso, face aos factos dados como provados.
5- No caso sub judice, o tribunal a quo considerou que o arguido sabia da falsidade da carta de condução chinesa (e, por conseguinte, da falsidade contaminada à portuguesa) pelo facto de considerar como provado que o arguido participou no processo de pedido da carta de condução chinesa e no processo de emissão da guia de substituição portuguesa;
6- Sucede que, no nosso entender, o Tribunal a quo errou ao não distinguir a participação no processo de obtenção da carta da produção da carta e ao não considerar como razoavelmente plausível a hipótese de a carta ter sido produzida de forma fraudulenta, mas com aparência de legalidade, à revelia do arguido.
7- O silêncio do arguido não o beneficia no sentido de que tornar mais prováveis as hipóteses que não implicam dolo, mas, por outro lado, não o prejudicam no sentido de tornar mais provável a hipótese de dolo.
8- Ademais, a plausibilidade de hipóteses em que o arguido tenha participado no processo convencido da existência de legalidade é exponencialmente aumentada pelo facto de se tratar de uma falsidade com raiz num processo sobre o qual existe um desconhecimento absoluto, não tendo sido feita qualquer produção de prova que permitisse aferir qual o processo normal de obteção de uma carta de condução na República Popular da China, que permitisse concluir pela maior ou menor razoabilidade da existência de dolo.
Termos em que, deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, ser parcialmente revogada a douta Sentença, na parte recorrida, assim se fazendo
A costumada Justiça!(fim de transcrição).

3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 460.

4. Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1. Em audiência de julgamento foram analisados os documentos carreados para os autos, não só os que constavam da acusação, assim como os que foram apresentados pelo arguido em sede de contestação. Foram ainda ouvidas as testemunhas apresentadas pelo arguido.
2. O bem jurídico que se pretende tutelar com a presente incriminação legal reconduz-se à segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, pretende-se salvaguardar a confiança pública na autenticidade e veracidade dos documentos.
3. O elemento objectivo do tipo de ilícito reconduz-se ao uso de documento que foi fabricado ou alterado indevidamente na sua essência, modificado o seu conteúdo, sendo propósito do agente causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, daí que seja considerado um crime intencional.
4. Trata-se de um crime doloso, impondo-se que o agente tenha conhecimento de que está a usar um documento falso, e apesar disso decida utilizá-lo.
5. Salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova deve ser apreciada no seu conjunto, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.º do Código do Processo Penal).
6. Todo o pedido para a formalização do pedido de troca de carta chinesa para portuguesa mostra-se devidamente instruído com os dados relativos ao arguido (mais precisamente com uma fotografia sua, um atestado médico emitido em seu nome e com os seus dados identificativos, o seu cartão de autorização de residência do SEF, carta falsa e reconhecimento consular falso).
7. Só mesmo o arguido poderia e teria interesse em obter tais documentos, apresenta-los perante a DGV, com vista a obter a emissão de carta de condução.
8. Analisando toda esta prova, e no que concerne ao elemento subjectivo inerente à conduta do arguido, o Tribunal a quo, e bem a nosso ver, concluiu pela sua verificação, de acordo com um juízo de verosimilhança, assente nas regras da experiência comum, no confronto com a demais factualidade objectiva apurada.
9. Tendo resultado apurado que a carta de condução entregue para troca na DGV era falsa, sendo certo que para obter um título de condução autêntico teria o arguido necessariamente de ter sido aprovado em exame de condução pelas autoridades do país onde a mesma teria sido emitida, o que certamente não fez, pois no quadro de normalidade que deve pautar a vida em sociedade não se afigura verosímil que uma pessoa que obtém aprovação em exame de condução venha a ser portadora de uma carta de condução falsificada.
10. Muito menos se compadece com o facto de juntar documento referente a certificação consular que, de igual modo, se veio a confirmar ser falsa.
11. Impunha-se concluir que o arguido sabia que tal documento não era verdadeiro, o que não obstou a que fizesse uso de tal carta falsificada perante um organismo público em Portugal, o que fez com o propósito de obter a vantagem decorrente da obtenção de um título de condução válido e autêntico.
12. A prova recolhida mostra-se suficiente para dar como provado, com a segurança que se impõe em matéria penal, que foi o arguido, pois apenas este tinha interesse no uso desse documento falsificado, de molde a obter a troca de uma carta de condução falsificada por uma carta autêntica emitida pelas autoridades portuguesas competentes, pelo que se concorda com a factualidade dada como provada e, nessa conformidade, com a condenação do arguido pela prática do crime de que vinha acusado.
13. Nesta conformidade, não assiste qualquer razão ao ora recorrente, pelo que nos parece ser de manter na íntegra a decisão ora recorrida nos mesmos termos em que foi proferida.
Face ao exposto, deverá o recurso interposto pelo arguido ser considerado improcedente, mantendo-se in totum a sentença ora recorrida.
Contudo, V. EXAS farão, como sempre, JUSTIÇA!" (fim de transcrição).

5. Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu “Visto” e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido (cfr. fls. 481 a 486).

6. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.

7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
A questão suscitada pelo recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de que “o Tribunal a quo considerou erroneamente dado como provado o dolo do arguido, nos pontos factos 6 e 7 da matéria de facto dada como provada, o que constitui um juízo de prova errado, por insuficiência de prova” (in fine de suas motivações).
O recorrente alude a “insuficiência de prova”, “juízo de prova errado”, “ERROS NA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA Pontos 6 e 7”, “erro probatório” e “erro do Tribunal a quo”, mas nunca explícita se entende existir na fixação da matéria de facto (provada e não provada) uma situação de erro notório na apreciação da prova, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vícios a que se referem as alínea a) a c) do n.º 2 do no artigo 410.º do CPP, norma que nunca refere, tal como nunca menciona ter havido violação do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do CPP, ou este, importando aqui também assinalar, que in casu este Tribunal de segunda instância pode apenas conhecer de facto, em sede de revista alargada, da existência de tais vícios, que, aliás, sempre são de apreciação oficiosa, mas não atento o preceituado no art. 428.° do CPP, uma vez que houve documentação da prova produzida, oralmente, na audiência em 1a instância, sendo que, em desconformidade com o disposto na al. b), do art. 431.°, do CPP, a matéria de facto foi impugnada não cumprindo o recorrente cabalmente as regras contidas no art. 412.° n.°s 3 e 4 do CPP.

2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
"2.1) Factos Provados
Discutida a causa declara-se provada a seguinte factualidade:
1. No dia 24/1/2007, o arguido preencheu e assinou o documento de troca de carta de condução Chinesa para Portuguesa junto da então DGV, serviços de Lisboa, juntamente com a carta de condução emitida pela República Popular da China em seu nome, bem como uma tradução de tal documento certificada pelo consulado de Portugal em Pequim.
2. Documentação que foi entregue junto daquela entidade administrativa.
3. Pretendia o arguido, ao apresentar tal carta, que a DGV lhe entregasse por troca uma carta de condução nacional, resultado que obteve tendo sido emitida uma carta de condução nacional em seu nome que lhe foi apreendida.
4. Constatou-se porém que a carta de condução supostamente emitida pela República Popular da China em seu nome, entregue pelo arguido, para obtenção de carta de condução nacional, era falsa.
5. Tendo sido remetido ao LPC para exame, constatou-se que o certificado de tradução da carta, também era falso.
6. O arguido sabia da falsidade de tais documentos bem como sabia que era falsa a carta de condução que lhe fora entregue pelas entidades portuguesas posto ter sido emitida com base em documentos falsos.
7. Ao usar documento autêntico fabricado com a sua colaboração, com base em documento falsos que mandou fabricar para seu o interesse, quis o arguido prejudicar, corno prejudicou, o Estado por lesar a fé pública de que gozam as cartas de condução.
8. O arguido, agiu livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9. O arguido exerce actividade de comércio por conta própria em Espanha há cerca de, pelo menos, 12 para 13 anos, auferindo rendimentos incertos.
10. É casado e tem um filho nascido em …..03.
11. É tido pelas pessoas com quem lida no seu dia-a-dia profissional como uma pessoa cumpridora.
12. Do certificado de registo criminal do arguido não se mostram averbadas quaisquer condenações.
*
2.2) Factos não Provados
Nenhuns com relevância para a causa.
*
2.3) Motivação de facto
O tribunal formou a sua convicção com base nos documentos juntos pelo arguido com a contestação, mormente o assento de nascimento do filho, nos depoimentos das testemunhas arroladas por este em sede de contestação que se reportaram à actividade comercial desenvolvida pelo arguido em Espanha, conhecimento que têm do mesmo, desde quando e a que título, tendo-o como uma pessoa trabalhadora e cumpridora, nunca tendo, pelo menos a testemunha FF que com ele priva a título profissional desde há perto de 12, 13 anos, andado com este de carro (FF, RR e PP).
Tomou-se ainda em atenção ao teor do CRC do arguido e documentação junta aos autos pela então DGV e exames periciais nos seguintes termos:
Informação de fls. 12 das autoridades chinesas referindo que a carta em nome do arguido, cuja troca foi solicitada, era falsa.
Documento da DGV de fls. 14 correspondente ao pedido de troca de carta em nome do arguido, com os dados deste e devidamente assinado.
Atestado médico em nome do arguido de fls. 15 comprovando a aptidão física do arguido para o exercício da condução auto.
Cópia de carta de condução chinesa em nome do arguido entregue nos serviços da DGV de fls. 17.
Documento de fls. 42 dando conhecimento da apreensão da carta que então fora emitida a favor do arguido.
Exame pericial confirmativo que o certificado que confirmava a autenticidade da carta era falso.
*
Com efeito se é certo que o arguido beneficia do direito ao silêncio, podendo ser, a seu pedido, julgado na ausência, e que esse direito não o pode prejudicar, também não o pode beneficiar no sentido de se ter como não provados os factos que lhe são imputados por via do gozo de tais prerrogativas.
Ora, in casu, todo o pedido de formalização do pedido de troca de carta chinesa para portuguesa mostram-se devidamente instruídos com os dados do arguido, a fotografia dele, o atestado médico mostra-se emitido em nome dele e com os seus dados identificativos, o seu cartão de autorização de residência do SEF, o pedido foi feito junto da então DGV, pedido que deu origem à emissão de uma guia de condução nacional em nome do arguido que acabou por ser apreendida, uma vez que o exame pericial e a informação das entidades chinesas confirmam a falsidade do titulo dado para troca.
O conjunto de dados acima colididos permitem concluir que a carta cuja troca foi solicitado era falsa, bem como o documento que atestava a sua autenticidade e que os dados identificativos ali apostos são todos do arguido, ora se assim é, tendo sido facultado à DGV um atestado médico, o documento do SEF, a carta de condução chinesa para troca, e o impresso de pedido de troca da carta, tendo até sido emitida a guia de substituição da carta que depois foi solicitada a sua apreensão, desconhecendo-se nos autos qualquer situação exógena a esta realidade que nos permita concluir que tal documentação foi colidida por terceiro à margem e à revelia do arguido, não se tolhe quem é que podia beneficiar com aquele pedido senão o arguido, mais do que isso quem poderia ter colidido todos aqueles dados e até ter sido alvo de exame médico que atesta a sua robustez física, e que por isso não pode deixar de se ter apresentado pessoalmente ante o clínico subscritor, senão o próprio, e por ultimo tendo sido emitida a guia de substituição também só este podia beneficiar da mesma, e que de resto lhe foi apreendida, aliás não deixa de ser no mínimo estranho que a testemunha de defesa FF que, segundo o seu testemunho, trabalha com o arguido há mais de uma década nunca tenha andado com este de carro.
Tais dados permitem quanto a nós concluir que o pedido de carta foi feito pelo arguido, ou por terceira a mando deste e que o próprio não poderia deixar de saber que a carta era falsa, porque pura e simplesmente não era portador de nenhuma carta daquele teor como documentam os autos.
Assim deu o tribunal como provados os factos imputados ao arguido." (fim de transcrição).

3. Vejamos se assiste razão ao recorrente.

Quando um qualquer recorrente alega a existência do vício do art. 410.º, n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – têm de partir necessariamente da análise do texto da decisão, devendo especificar os factos que em seu entender eram necessários para a decisão justa que devia ser proferida, que o tribunal a quo devia ter indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo. Assim os recorrentes devem procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos, os quais devem identificar, necessários (fundamentando esta necessidade invocando normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles (fundamentando).
E, de facto, nas suas motivações de recurso o arguido SS.. questiona?
“Provou-se a quem é que a carta falsa foi solicitada?
Não.
Provou-se quem entregou a carta ao arguido?
Não.
Provou-se qual o procedimento legal de obtenção de carta na República Popular da China?
Não.
Provou-se que entidades podem emitir cartas de condução na República Popular da China?
Não.
Provou-se que o processo utilizado pelo arguido ou a pessoa que emitiu a carta não correspondiam aparentemente aos processos e competências legalmente determinados na República Popular da China?
Não.
Não se provou. E podia ter-se proado, bastando ao Ministério Púbico ou ao Tribunal a quo requerer a junção de prova documental informativa ou a produção de prova testemunhal de oficial chinês em Portugal ou na República Popular da China (por videoconferência).” (fim de transcrição).

Mas, salvo melhor opinião, nenhuma daquelas questões, perante o thema decidendum, era pertinente. Cabe aqui desde já ter presente que a insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
Esta segunda opção tem a ver com a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º n.º 3 do Código de Processo Penal, com reapreciação da prova e não com a verificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que terão que ser visíveis no texto da decisão, sem recurso a quaisquer provas documentadas.
Também nada tem a ver com o vício da insuficiência o caso em que a recorrente enumera uma série de factos que foram dados como provados e que na sua ótica deviam ser dados como não provados.
O que verdadeiramente o recorrente não aceita é apreciação da prova levada a efeito pelo Tribunal. Claramente, a questão nada tem a ver com o vício do art. 410.º, mas com a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, que, como vimos em II – 1., nos está, no caso concreto, vedado apreciar.
Em face do resumidamente exposto, quando um recorrente alega este vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada – o que nem sequer foi o caso nos presentes autos – não pode almejar um outro julgamento de um outro processo, não pode subverter-se o princípio da vinculação temática do Tribunal.
Só existe o aludido vício quando os factos provados são insuficientes para justificar uma decisão de direito, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação.
Ou seja, há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido.
Situação que não aconteceu no presente caso.
Os factos dados como provados são suficientes para a conclusão de direito a que chegou o tribunal a quo, o recorrente SS.. é que com ela não concorda, pretendendo, no fundo, que o tribunal a quo tivesse feito uma valoração diferente da prova produzida em julgamento, esquecendo-se, contudo, que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade que julga – art. 127.º do CPP – e não de acordo com a apreciação que dela faz o recorrente.

Do vício do art. 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
É consabido que a contradição insanável nos termos plasmados neste normativo tanto pode existir na motivação da decisão da matéria de facto como na própria decisão da matéria de facto.
Parece claro que há contradição na fundamentação quando para a decisão de um determinado ponto de facto são invocados meios probatórios inteiramente incompatíveis entre si. Como também parece haver contradição quando a motivação num raciocínio lógico conduz ao contrário do que se decidiu.
São casos flagrantes de contradição na decisão da matéria de facto:
(i) Dar como provados dois factos totalmente incompatíveis entre si;
(ii) Dar como provado e não provado o mesmo facto.
Ora, para que este vício se verifique a contradição tem de ser insanável, isto é não ser ultrapassável pelo Tribunal de recurso com eventual recurso às regras de experiência ou elementos dos autos. Assim, o facto de se verificar uma qualquer contradição no texto da decisão não quer dizer que se esteja logo em presença do vício do art. 410.º, n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal.
Na decisão recorrida não descortinamos a existência deste vício.

Do vício do art. 410.º, n.º 2 alínea c) do Código de Processo Penal - erro notório na apreciação da prova
Neste particular cabe ter presente que a apreciação errada da prova não é logo caso de erro notório na apreciação da prova de que cuida a lei, pela singela razão de que aquela errada apreciação pode não se evidenciar no texto da decisão.
Ora, o erro notório é o erro que salta aos olhos e que, por isso, se vê logo da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras de experiência. O eventual erro na apreciação da prova, por regra, nunca emerge como erro notório na apreciação da prova. Assim, quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.º 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e não agarrar-se ao vício do erro notório. No caso concreto, nem uma coisa nem outra sucedeu, sendo que na decisão recorrida também não descortinamos a existência destoutro vício.
Quando se impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, os recorrentes no corpo motivador e depois nas conclusões devem especificar, isto é indicar devidamente, os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados (cf. n.º 3 do art. 413.º do Código de Processo Penal). Isto facilmente se compreende pela singela razão de que o Tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos de facto que os recorrentes consideram incorretamente julgados.
Passando em revista a decisão recorrida, verificamos que nos pontos 6 e 7 da matéria de facto provada, que o recorrente SS.. impugna especificadamente, foi dado por assente que “O arguido sabia da falsidade de tais documentos bem como sabia que era falsa a carta de condução que lhe fora entregue pelas entidades portuguesas posto ter sido emitida com base em documentos falsos.”, bem como que: “Ao usar documento autêntico fabricado com a sua colaboração, com base em documento falsos que mandou fabricar para seu o interesse, quis o arguido prejudicar, corno prejudicou, o Estado por lesar a fé pública de que gozam as cartas de condução.”, explicitando o Mmº Juiz a quo, ulteriormente, em sede da fundamentação da matéria de facto, detalhada e plenamente como chegou a tal convicção, nos termos que acima deixámos transcritos, com que inteiramente concordamos e subscrevemos, e que aqui, por razões de economia processual, de novo damos por integralmente reproduzida.
Com efeito, no que respeita à convicção quanto à atitude interior do arguido SS.., o tribunal a quo teve de socorrer-se das máximas da experiência comum, como não podia deixar de ser, uma vez que a atitude interior do arguido não foi, perante o seu silêncio, por este revelada.
Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjetivo da infração são, em regra, objeto de prova indireta, isto é, só são suscetíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objetivos, analisados à luz das regras da experiência comum.
E essa avaliação só pode ser feita pelo julgador, dado que a mesma resulta da conjugação de vários elementos a ponderar.
Como bem se refere no Ac. da Relação do Porto de 25 de março de 2010 (proferido no âmbito do Proc. 1052/05.2GALSD.P1, disponível in www.dgsi.pt), a propósito da verificação do elemento subjetivo da infração, “A este respeito importa, antes de mais, referir que nem sempre a prova em que o tribunal se baseia é prova directa. Não pode, contudo, deixar de ser valorada à luz da experiência comum e de forma concertada com todos os elementos de prova, designadamente no que concerne a aspectos que digam respeito ao foro íntimo das pessoas, tal como sucede com as intenções e também com a consciência da ilicitude. E, tratando-se de processos interiores, se não forem admitidos pelos próprios, só uma avaliação alicerçada em presunções judiciais, não proibidas por lei, com base nos demais factos apurados e nas circunstâncias e contexto global em que se verificam e em dados da personalidade do agente, avaliação essa permitida se feita com respeito pelas regras da experiência comum, permite retirar tais conclusões. Outrossim, não está vedado ao julgador estabelecer presunções desde que assentes em factos, sendo a este propósito que faz todo o sentido apelar às regras da experiência comum pois são elas o necessário elemento aglutinador da avaliação feita a partir dos meios de prova para fazer assentar em factos provados e adquiridos outros não imediatamente apreensíveis mas que se impõem ao juízo de um cidadão de medianas capacidades e conhecimentos de vida.” (fim de transcrição).
E, ainda, o Ac. da Relação de Évora de 28 de fevereiro de 2012 (proferido no âmbito do Proc. 468/06.1GFSTB.E1, disponível in www.dgsi.pt) “Os factos integrantes do tipo subjectivo – que se desdobra, muito sinteticamente, nas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional do dolo, correspondentes ao conhecer ou saber e ao querer o desvalor do facto – raramente se provam directamente.
Na ausência de confissão/admissão destes factos – e dificilmente se concebendo outra prova que incida directamente sobre eles – resta ao julgador a apreciação de prova indirecta, aquela que lhe permite, sempre com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto ao facto probando. E são muito frequentes os casos em que a prova é indirecta, precisamente no que respeita ao elemento subjectivo do crime. Daí a grande importância dessa prova no processo penal.
Terá aqui o julgador de retirar dos factos externos as necessárias ilações, de forma a poder ou não concluir que o agente se comportou internamente da forma como o revelou externamente. A convicção obter-se-á através de conclusões baseadas em raciocínios e não directamente verificadas, ou seja, num juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando.” (fim de transcrição).
Sublinhe-se que de acordo com o disposto no art. 127.º do CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A livre apreciação não significa, porém, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e motivável.
Dito de outro modo, a valoração da prova há-de ser uma liberdade de acordo com um dever de tal forma que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, "há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal” (in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de dezembro de 1998).
Os factos provados na decisão recorrida nos pontos 6 e 7 resultaram da análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento tendo em conta os parâmetros referidos.
Assim na formação da sua convicção, o Tribunal a quo atendeu aos meios de prova disponíveis, atentando nos dados objetivos fornecidos pela documentação dos autos e fazendo uma análise dos depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposta pelo ordenamento jurídico, fazendo o tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas.
Na fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo explicita as razões que o levam a dar como provados os factos relacionados com o elemento subjetivo da infração imputada ao arguido SS...
Razões essas, que de forma alguma contradizem as regras da lógica e da experiência, antes assentam na perceção que o julgador teve de toda a prova recolhida em audiência de julgamento.
Como doutamente expendeu o Ministério Público na sua resposta ao recurso, de facto, todo o pedido para a formalização do pedido de troca de carta chinesa para portuguesa mostra-se devidamente instruído com os dados relativos ao arguido (mais precisamente com uma fotografia sua, um atestado médico emitido em seu nome e com os seus dados identificativos, o seu cartão de autorização de residência do SEF, carta falsa e reconhecimento consular falso).
Através da entrega desses documentos junto da então DGV é que foi emitida uma guia de condução nacional em nome do arguido que acabou por ser apreendida.
Ora, só mesmo o arguido poderia e teria interesse em obter tais documentos, apresenta-los perante a DGV, com vista a obter a emissão de carta de condução.
Assim, analisando toda esta prova, e no que concerne ao elemento subjectivo inerente à conduta do arguido, o Tribunal a quo, e bem a nosso ver, concluiu pela sua verificação, de acordo com um juízo de verosimilhança, assente nas regras da experiência comum, no confronto com a demais factualidade objectiva apurada.
Ora, tendo resultado apurado que a carta de condução entregue para troca na DGV era falsa, sendo certo que para obter um título de condução autêntico teria o arguido necessariamente de ter sido aprovado em exame de condução pelas autoridades do país onde a mesma teria sido emitida, o que certamente não fez, pois no quadro de normalidade que deve pautar a vida em sociedade não se afigura verosímil que uma pessoa que obtém aprovação em exame de condução venha a ser portadora de uma carta de condução falsificada.
Muito menos se compadece com o facto de juntar documento referente a certificação consular que, de igual modo, se veio a confirmar ser falsa.
Assim, impunha-se concluir que o arguido sabia que tal documento não era verdadeiro, o que não obstou a que fizesse uso de tal carta falsificada perante um organismo público em Portugal, o que fez com o propósito de obter a vantagem decorrente da obtenção de um título de condução válido e autêntico.
Relativamente ao silêncio do arguido, tal como prescreve o Acórdão da Relação de Coimbra no âmbito do processo 430/15.3PAPNI.C1, datado de 17-05-2017: «(…) Um arguido que mantém o silêncio em audiência não pode ser prejudicado, mas, também é certo que prescinde de dar a sua visão pessoal dos factos e de esclarecer pontos de que tem um conhecimento pessoal. Assim, não pode, depois, reclamar que foi prejudicado pelo seu silêncio(…)».
Ora, a prova recolhida mostra-se suficiente para dar como provado, com a segurança que se impõe em matéria penal, que foi o arguido SS…, pois apenas este tinha interesse no uso desse documento falsificado, de molde a obter a troca de uma carta de condução falsificada por uma carta autêntica emitida pelas autoridades portuguesas competentes, pelo que se concorda com a factualidade dada como provada e, nessa conformidade, com a condenação do arguido pela prática do crime de que vinha acusado.
Termos em que, o recurso não pode lograr provimento.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido SS…, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo (art. 513.º do CPP e artigos 5.º e 8.º, n.º 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 34/2008, de 26 de fevereiro).
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por catorze páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)

Lisboa, 21 de fevereiro de 2019

Calheiros da Gama
Antero Luís