Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
413/15.3PFAMD.L1-3
Relator: ANA PARAMÉS
Descritores: PUNIÇÃO DE CASTIGOS CORPORAIS
PODER DE CORREÇÃO DE PAIS E EDUCADORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1.O castigo físico das crianças é punido pelo Código Penal, seja pelo crime de violência doméstica (art.152º do C.P.), seja pelo crime de maus tratos (art.152º -A do C.P.) ou pelo crime de ofensa à integridade física (art.143º do C.P.), em função dos factos provados.
2.O poder de correção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal donde se possa retirar tal conclusão.
3.Nos Autos não se provou existir convivência entre e o agressor e a vítima, o que afasta a incriminação pp. pelo art. 152º, nº1, al.d), do Código Penal e também a p.p art.152-A nº 1, al.a) do Código Penal, por a guarda da menor ter sido atribuída aos avós paternos, por decisão do Tribunal de Família e Menores.
4.A conduta do arguido que desfere uma pancada com um cinto dobrado nas pernas da sua filha de 7 anos de idade, provocando-lhe equimoses na coxa, no joelho e na perna, reveste a especial censurabilidade ou perversidade geradora de uma culpa agravada - art. 132º, nº 2, al. a) e al. c) do Código Penal – preenchendo os elementos típicos de um crime de ofensa à integridade física sob a forma qualificada nos termos conjugados dos arts. 143°, n°, 145°, n° 1 e n°2 e 132°, n°2, als. a) e c), todos do Código Penal.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência as Juízas, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I. Relatório:


1.Por sentença depositada a 10.05.2016 proferido no âmbito do processo acima referenciado, foi proferida a seguinte decisão:

-Absolver o arguido, P.A.P., da prática do crime de Violência Doméstica, p. p. pelo art. 152º, nº1, al.d), e nºs. 2,4 e 5, do Cód. Penal, de que vinha acusado;

-Condenar o arguido, P.A.P., pela prática de um crime de Ofensa à Integridade Física Simples, p. p. pelo art. 143º, nº1, do Cód. Penal, na pena de quatro meses de prisão;

-Suspender por um ano a execução da pena de prisão, condicionando-se tal suspensão ao cumprimento das seguintes obrigações:

.-Comprovar quinzenalmente junto da DGRS as diligências efectuadas no sentido da obtenção de emprego estável e que devem ultrapassar em muito a mera inscrição no centro de emprego e a mera apresentação periódica;

.-Frequência de acções de formação/sensibilização para o bem jurídico violado, incluindo frequência de formação parental;

.-Prestação de trezentas horas de trabalho a favor da Comunidade, preferencialmente em instituição relacionada com vítimas de violência doméstica;

.-Sujeição a consulta da especialidade, com vista ao despiste de consumos aditivos e/ou de eventual patologia que favoreça a adopção de comportamentos como aquele pelo qual o arguido ora foi condenado, e observância do tratamento e/ou acompanhamento que lhe vier eventualmente a ser prescrito.


2.Inconformado com a sentença dela recorreu o MºP a fls.279 a 315 dos autos requerendo a sua revogação, na parte em que decidiu absolver o arguido da prática do crime de violência doméstica, requerendo a condenanação do arguido por este crime, valorando-se, neste contexto, as expressões proferidas pelo arguido relativamente à paternidade da menor. Caso assim se não entenda, que se considere que os factos são susceptíveis de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, e não apenas um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo art. 143º, nº1, do Código Penal e seja o arguido condenado em conformidade. E, ainda, para o caso de se entender ser de manter a condenação do arguido pelo crime de ofensa à integridade física simples, seja o arguido condenado numa pena concreta não inferior a 18 meses de prisão, sendo que a suspensão da execução da pena não deve estar condicionada à prestação de trabalho comunitário por, deste modo, estar o tribunal «a quo» a cumular e misturar duas penas de substituição de diferente natureza, o que o Código Penal não prevê.

Para tanto alega, em síntese, que a absolvição do arguido pela prática do crime de violência doméstica resulta de erro notório na apreciação da prova e que a sentença padece, ainda, de contradição insanável da fundamentação, vícios previtos no art.410º, nº2, als. b) e c), do CPP.

Mais afirma que, a entender-se existir apenas um crime de ofensa à integridade física, este deve considerar-se qualificado, por se verificar a especial censurabilidade e perversidade, tudo conforme o disposto arts.143º, nº1, 145º, nºs.1 e 2 e 132º, nº2, als. a), c) e i) do Código Penal, que a pena concreta aplicada ao arguido mostra-se, em qualquer caso, desadequada à culpa do arguido e à gravidade dos factos, tanto mais que o arguido já possui antecedentes criminais pela prática de crime de idêntica natureza, contrariamente ao que se afirma na sentença em termos de fundamentação da pena, sendo certo, por outro lado que, a suspensão da execução da pena de prisão condicionada à prestação de 300 dias de trabalho a favor da comunidade é violadora do art. 29°, n°s. 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa e do art. 1o do Código Penal, devendo tal condição ser revogada.

3.O recurso foi admitido.
4.O arguido apresentou resposta ao recurso interposto entendendo que o mesmo não merece provimento devendo, em consequência, manter-se o acórdão recorrido nos seus precisos termos.
5.Os autos subiram a este Tribunal da Relação.  
6.Neste Tribunal da Relação, a Exm.ª Srª. Procuradora - Geral Adjunta apôs “Visto”.
7.Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.
*

II.Fundamentação:

1.Delimitação do objecto do recurso.
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso deste Tribunal, como no caso dos vícios enumerados no art.410º, nº 2, do CPP.

Assim sendo, de acordo com as conclusões da respectiva motivação o objecto do recurso do arguido prende-se com as questões seguintes, abaixo indicadas, pela ordem por que vão ser conhecidas:
a)Vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova (art.410º, nº2, als. a) e c) do CPP);
b)Enquadramento jurídico dos factos - crime de violência doméstica ou ofensa à integridade física qualificada;
c)Medida da pena concreta;
d) Da possibilidade de impor trabalho a favor da comunidade como condição da suspensão da execução da pena.

2.É o seguinte o teor da sentença recorrida, no que concerne aos factos provados aos não provados e respectiva fundamentação (transcrição).
«1.A menor M.F.P., nascida a 16.07.07, é filha do arguido e de S.T.F..
2.Por decisão judicial de 19.09.11, em processo que correu termos no Tribunal de Família e Menores do Seixal sob o nº 5…../07.9RBSXL, a guarda da menor foi entregue aos avós paternos, tendo a criança residido com os mesmos na Rua ………………., Brandoa, até há cerca de um ano.
3.Na mesma morada e até à data dos factos, pernoitava por vezes o arguido e apenas quando estava em Portugal, sendo certo que tinha então uma companheira e outra filha menor desta.
4.À época, o arguido trabalhava fora do país durante períodos de dois ou três meses, que alternava com a permanência em Portugal em intervalos de um ou de dois meses.
5.Em número não aclarado embora não inferior a duas vezes e em datas não concretamente apurada mas não posteriores a 2015, o arguido comentava com sua mãe, na presença da menor, que esta não era sua filha.
6.No dia 01.05.15, pelas 17:00, no interior da residência de ambos, o arguido chamou a menor, que se encontrava no quarto do avô, e confrontou-a com o facto de a mesma ter ido brincar para um local afastado de casa, sem conhecimento e sem autorização da avó.
7.Acto contínuo, munido de um cinto, desferiu-lhe, pelo menos, uma – e nunca mais do que duas - pancada nas pernas.
8.Em consequência, a menor sofreu dores e lesões na zona atingida, nomeadamente, equimose esverdeada no terço inferior da coxa direita, com cerca de 1cm de diâmetro médio, apresentando ainda uma área vermelha modelada na face posterior do joelho e terço superior da perna, vertical, com 4 por 0,5cm de largura, lesões que importaram, para cura, o período de cinco dias.
9.O arguido não dispunha de qualquer informação concreta que lhe permitisse concluir ou suspeitar que a criança não era sua filha mais sabendo que a mesma tinha presente que o arguido era o seu progenitor.
10.Sabia igualmente o arguido que a menor contava apenas com sete anos pelo que não se conseguiria defender.
11.Agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que, com a sua conduta, molestava a saúde física da criança e que, por isso, a mesma era proibida e punida por lei.
12.Com a descrita conduta, no dia 01.05.15, o arguido pretendia dissuadir a menor de voltar a sair de casa sem autorização e, em geral, de desobedecer à avó.
13.A criança era então desobediente e difícil de controlar.
14.O arguido estava convicto de que a menor M.F.P. tinha um comportamento desobediente, agressivo para com a avó e de que os seus pais (avós paternos da M.F.P.) não conseguiam educá-la nem manter um ambiente de habitabilidade adequado e saudável.
15.O arguido estudou até ao 6º ano e revela escassos recursos socioculturais.
16.À data, coabitava também com uma companheira e com uma filha menor.
17.Consome canabis resina com frequência não apurada, tendo sido frequente, pelo menos entre as idades de 14 e 26 anos.
18.A criança encontra-se desde há alguns meses num centro de acolhimento.
19.Nunca manteve laços fortes com o pai.
20.O arguido mantém relacionamento conflituoso e distante com o seu progenitor, de quem se queixa de lhe ter infligido maus tratos na infância.
21.Confessou os factos e censurou moderadamente a sua conduta.
22.Tem antecedentes criminais pela prática, em 14.12.94, de um crime de furto, pelo qual foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução; em 15.02.95, de um crime de furto qualificado pelo qual foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução; em 15.10.95, de um crime de introdução em local vedado ao público, pelo qual foi condenado em pena de multa; em 28.01.95, de um crime de roubo na forma tentada e de um crime de detenção de arma proibida, pelos quais foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução; em 20.02.01, de um crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual foi condenado em pena de prisão; em 09.11.06, de um crime de condução sem habilitação, pelo qual foi condenado em pena de multa; em 15.06.09, de um crime de injúria agravada e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, pelo qual foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução.
*

Factos não Provados:
1.O arguido residiu permanentemente com os seus progenitores e com a menor.
2.O arguido dizia directamente à M.F.P. que a mesma não era sua filha e fazia-o com frequência semanal.
3.No dia 01.05.15, no interior da residência em que aquela vivia com os avós paternos, o arguido desferiu várias bofetadas na menor.
4.Nas mesmas circunstâncias, desferiu-lhe com um cinto diversas vezes e imprimindo força.
5.Ao molestar o corpo da menor M.F.P. e ao dizer que esta não era sua filha, o arguido agiu com o propósito de atingir a saúde psíquica da mesma, de afectar a sua capacidade de decisão, de humilhá-la e desconsiderá-la, procedendo com desprezo pela dignidade sua pessoa, o que conseguiu.
*

Fundamentação:

De modo a clarificar o raciocínio seguido, atente-se, antes de mais, no essencial dos depoimentos prestados.

O arguido explicou toda a sua situação laboral, dando conta de que apenas permanece me Portugal por períodos de um ou dois meses, que alterna com estadias de dois ou três meses, fora do país, a trabalhar.

Quando estava em Portugal, chegou a pernoitar lá em casa, mas não sempre porque vinha com uma companheira e com a filha que teve com esta. Porém, após os factos, não voltou a ir a casa dos pais, já que foi o seu progenitor que apresentou a queixa. Sempre se deram mal, sendo que o mesmo lhe batia, em criança, e, depois dos factos, não falaram mais.

Começou por dizer que estava arrependido de ter batido na criança com o cinto mas que o fez porque a mesma era muito rebelde, respondia mal, batia na avó, não tinha regras e, nesse dia, tinha fugido de casa, para longe, para ir a um parque de diversões. Sentia-se desesperado porque já não havia autoridade sobre a criança.

Retorquiu que apenas a atingiu uma vez e com pouca força. Confrontado com as fotografias juntas a fls. 26, em que são visíveis dois distintos vergões num dos membros inferiores da criança, o arguido explicou que tinha dobrado o cinto, daí as duas marcas, e persistiu na garantia de que atingira a menor somente uma vez.

Apesar de passar pouco tempo lá em casa e de não ter uma ligação estreita com a menor, sentia-se preocupado com aquela situação já que a menor podia ser atropelada ou levada por alguém. Foi, por isso, mais severo na esperança de a criança acatar o que a avó lhe diz.

Mais esclareceu que os seus pais já não a conseguiam controlar e que ela fazia o que queria. Por outro lado, também o inquietava o estado da habitação. Juntamente, com a sua companheira, de quem tem também uma filha menor, retirou muitas vezes diversos “sacos de lixo” do interior da casa. Pois, eventualmente, devido à idade e à frágil condição de saúde da sua mãe, os pais não conseguiam manter a casa em condições para uma criança viver.
Contudo, quando tentava fazer ver aos seus pais que estavam a perder a autoridade sobre a M.F.P., a mãe dizia-lhe que a criança era dela e que o arguido devia era tomar conta da sua mais nova.
Aditou ainda que, actualmente, a M.F.P. se encontra num centro de acolhimento.

Instado, explicou que nunca teve a guarda da M.F.P.. A mãe da criança nunca teve condições para criá-la e afastou-se e, à data, o arguido também não tinha, pelo que a menor foi desde cedo entregue aos avós.
Ademais, os pais sabotavam a relação que ainda tentou, em tempos, manter, retirando-lhe as bonecas que levava à M.F.P.. Aliás, quando o seu pai apresentou a queixa na polícia que deu origem a este processo, a menor deu pulos de alegria dizendo que ele ia preso.

Questionado sobre se gostava da M.F.P., o arguido respondeu “nunca desgostei dela”.
*

M.P., progenitor do arguido, começou por responder que, nas circunstâncias em apreço, no dia 01.05.15, a sua cônjuge fizera queixa ao arguido, quando a criança chegou, de que a mesma tinha saído de casa quando a avó estava a dormir.

Confirmou que o arguido atingiu a criança com um cinto.

Instado, respondeu que nunca o vira a bater na menor e não o viu a dar-lhe bofetadas na data em questão. Mais comentou que podia ter já batido antes mas que nunca viu nem a criança se queixou.

Mais deu conta de que o arguido aparecia “por lá” quando estava no país e que nem sabe o que lá ia fazer. Esclareceu ainda que, actualmente, não tem relações com o filho.
Confirmou que a criança era um pouco rebelde e que, actualmente, se encontra num Centro de Acolhimento, onde vai visitá-la.
*

R.P., mãe do arguido, esclareceu que o último não a tratava mal a criança, que a tratava bem e até gostava da menina. Raramente saía com a mesma, porém.Instada a concretizar factos dos quais retirara tal ideia, a testemunha retorquiu que o arguido falava bem para a menina e o que ela dizia, ele fazia.

No entanto, normalmente não se metia na educação da mesma.

Mais respondeu que, efectivamente, o arguido chegou a dizer que não era pai da M.F.P., sendo que esta sabia de tudo pois ouvia-o. A isto, a menor dizia-lhe “tu és parvo, se não fosses não estava no papel”.

Interrogada ainda sobre como recebia a M.F.P. as sobreditas afirmações do arguido de que não era seu pai, a testemunha respondeu que a criança não ligava a que o pai dissesse que não era pai dela, não ligava a isso.

Nesse dia meteu-se na educação dela porque a menina fugiu à procura de brincadeira. Tinha ido brincar com umas miúdas mas não muito longe. O arguido zangou-se a preceito pois ela nunca tinha feito tal coisa.

E foi quando o pai depois lhe bateu pois tinha-a ouvido a ralhar com a M.F.P..

Mas ele não lhe batia, tendo esta sido a única vez que o fez. E fê-lo, dando cinturada nas pernas da criança. Indagada, respondeu que, ao que julga, foi só uma vez, mas já não tem bem isso presente, tendo a criança chorado. Ao mesmo tempo, o arguido dizia-lhe “tu nunca mais fazes isso à avó”.

Instada, a testemunha respondeu que não gostou disso porque, nas suas palavras, “ele tinha mãos”.

O arguido estava furioso e, se não se tivesse metido, talvez a menina tivesse levado mais.

Questionada sobre se, em sua opinião, ralhar com a criança teria chegado para dissuadi-la de novas atitudes semelhantes, a testemunha respondeu que não.

Mais disse que não viu o arguido a dar bofetadas na criança.

Às vezes, dizia ao arguido que a menina tinha feito isto ou aquilo e ele respondia “isso resolves com ela”.

A testemunha esclareceu também que a M.F.P. mal conhece a mãe, que tem, aliás, sido muito má para ela. É até a si que chama mãe, embora chame “avô” ao avô.

Questionada sobre se alguma vez a criança lhe bateu a si, a testemunha respondeu “Há quem diga que sim, mas não”.
Disse igualmente que julga que a menor gostava mais do pai que ele dela.
As vezes dizia-lhe “ o pai vem aí e ela portava-se bem”. Talvez tivesse medo do pai, e, às vezes, dizia-lhe “olha que eu chamo o pai”.
Este dizia-lhe muitas vezes “M.F.P., não fazes isso à avó”.
                                                                                  *
Apesar de os meios de prova terem sido escassos, a verdade é que as duas testemunhas ouvidas foram, no essencial, presenciais. Por outro lado, foi patente que existe animosidade do progenitor do arguido para com este. Recorde-se que deu conta de que já não mantém relações com o mesmo e que nem sabe o que o mesmo lá ia fazer.

Registou-se também que a progenitora do arguido deu conta de pormenores desfavoráveis ao mesmo e que facilmente poderia ter ocultado. O caso, por exemplo, da referência à possibilidade de o arguido ter atingido a criança com o cinto mais do que uma vez caso a mesma testemunha não tivesse então interferido, ou a confirmação de que a neta ouvia o arguido quando este dizia que aquela não era sua filha.

Neste quadro e porque, no essencial, o que as testemunhas disseram foi de encontro ao que o arguido explicou, reputa-se que as testemunhas tiveram intenção de dizer a verdade. Por conseguinte, e face à razão de ciência das mesmas, o tribunal julgou credíveis as testemunhas e fiáveis os respectivos depoimentos.

Pela mesma ordem de razões, também a versão do arguido mereceu credibilidade.

Foi, portanto, pacífico que, nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o arguido atingiu uma perna da criança com um cinto, pelo menos, uma vez. De salientar que a avó da criança respondeu, sem que a pergunta tivesse sido sugestiva, que julga que o cinto estava dobrado. O que terá referido sem interesse em favorecer o arguido já que admitiu a hipótese de o mesmo o ter feito mais do que uma vez.

Sucede que por ninguém foi dito com segurança que o arguido tivesse atingido a menor com mais do que uma cinturada. Ora, as marcas sofridas, visíveis nas fotografias de fls.26, são compatíveis com uma pancada desferida com o cinto dobrado. Por conseguinte, nem dos depoimentos prestados nem das regras da lógica ou da experiência, é possível extrair que o arguido tivesse molestado a criança com mais do que uma única pancada desferida com um cinto.

Nas fotografias, é ainda visível uma zona vermelha no joelho da perna direita da menor. Contudo, a largura dessa área não se mostra inequivocamente compatível com uma pancada desferida com um cinto. Sobretudo, quando comparada com as demais marcas visíveis. Ora, por ninguém foi dito que a criança foi atingida de outra forma.

Neste quadro e no tocante a investidas no corpo da menor, foi apenas claro que, no dia 01.05.15, o arguido desferiu numa perna da menor, pelo menos, uma pancada com um cinto.

O motivo que determinou o arguido foi, no essencial, referido em uníssono em todos os depoimentos produzidos, pelo que não se suscitaram neste domínio dúvidas relevantes.

A respeito das afirmações produzidas pelo arguido de que não era pai da criança, ficou claro, quer pelo seu depoimento quer através do relato da testemunha R.P., que as mesmas tiveram lugar e foram escutadas pela criança. Por nenhum dos depoentes foi mencionada, sequer por aproximação, o número de vezes em que tiveram lugar tais afirmações pelo que apenas se pode concluir que não foi inferior a duas já que todos utilizaram, neste jaez, o número plural.

A este nível, foi determinante o esclarecimento da progenitora do arguido. Explicou esta, em suma, como vimos, que a menor ouvia, dizia-lhe que não podia ser já que “estava escrito no papel” que o arguido era seu pai, mas que não ficava triste com isto.

Assim, inexistiu prova directa de que a criança tenha sofrido com isto ou que o arguido tivesse produzido tais comentário com o ensejo de atingir a filha. Resta, por isso, aquilatar se concorrem indícios que permitam concluir neste domínio como na Acusação, à luz das regras da lógica ou da experiência comum.

Ora, importa ter presente que a criança tinha então apenas sete anos. Face à maturidade típica de uma criança desta idade, não se reputa possível concluir que seja lógico ou que resulte das regras da experiência que a criança tenha compreendido o alcance da afirmação ou que a mesma a tivesse confundido, perturbado ou magoado. Até porque as suas referências eram então os avós, sendo pouco o tempo que passava com o arguido. Pelo que não é linear que a ideia proferida pelo arguido fosse susceptível de conduzir a criança a questionar a sua identidade ou de ser pela mesma associada a ausência de sentimentos do arguido por si.

O apontamento da criança de que estava escrito no papel que o arguido era seu pai é passível de resultar de um mecanismo interior da criança para resolver na sua mente essa questão - o que seria demonstrativo de algum transtorno -, ou pode derivar de um raciocínio mais pontual e perfunctório.

Entendemos, pois, que, os dados recolhidos não tornam inequívoco, com o grau de segurança necessário, que a afirmação em apreço tenha atingido a criança. Muito menos, que tenha sido produzida com tal intuito.

Note-se que o arguido tem escassos recursos socioculturais e que tem relações desestruturadas com o progenitor.

Mostrou-se ainda relevante na análise do contexto em que o arguido molestou o corpo da filha, que, efectivamente, era por todos assumido que a criança era desobediente. A própria progenitora do arguido mencionou que, na tentativa de controlar a criança, lhe dizia muitas vezes “vem aí o pai” e que por vezes fazia queixa da M.F.P. ao último. O que reforça a ideia transmitida pelo arguido de que temia pela segurança e pela educação da criança.

Por outro lado, apesar de R.P. se locomover com dificuldade, afigura-se que, tal não constituiria suporte para a conclusão de que o casal não estava capaz de criar a menor. Pois, sempre poderia contar com a ajuda do cônjuge. Acresce que nenhum dos progenitores do arguido tem mais de setenta anos, pelo que o factor idade também não suportaria tal conclusão. Nestes termos, é forçoso concluir que outros que não a idade ou a condição de saúde foram os motivos que determinaram a institucionalização da M.F.P.. Certamente que não terá também sido a respectiva condição económica pois que a mesma não se desviará significativamente da que existia há cinco anos quando a criança foi entregue aos avós.

Todo este quadro reforça a convicção transmitida pelo arguido de que os pais não tinham já autoridade sobre a M.F.P. e que não garantiam à mesma outras condições indispensáveis à educação de uma criança. O que o tribunal reflectiu na factualidade provada.
No tocante às consequências da conduta apurada do arguido que não foram demonstradas, importa sopesar adicionalmente que, quando instada a propósito, a progenitora do arguido respondera que rejeitava a actuação do arguido já que ele “tinha mãos”. Infere-se desta resposta que, na idiossincrasia desta família, era relativamente aceitável infligir pequenos “castigos” corporais, desde que leves, na criança com intuitos educativos.

Por outro lado, as respostas de R.P.

traçam, concludentemente, um cenário pautado pelas dificuldades em controlar a menor e que tornam verosímil alguma frustração e desespero por banda do arguido. Note-se que, tendo então o arguido trabalho e agregado familiar próprio e distinto, não constando que recebesse, por exemplo, dinheiro dos seus pais, é razoável aceitar que o mesmo se deslocasse à morada daqueles com propósitos altruístas e/ou movido por um sentimento de pertença e/ou de responsabilidade.
*

Apesar da referência a consumos de estupefacientes, de todos os elementos supra analisados, retira-se que o arguido agiu de forma coerente com aquele que era então o seu propósito e com aquela que era a sua motivação. Não se coloca, por isso, em questão, que estivesse na posse das suas faculdades, mormente mentais.
De resto, e pese embora a justificação que sufragou, retira-se do seu próprio depoimento que estava ciente da desconformidade da sua conduta relativamente à lei.
*

À primeira vista, dir-se-ia que a decisão do progenitor do arguido de apresentar queixa contra o mesmo pela “cinturada” desferida na neta revelaria, à luz das regras da experiência, que tal agressão teria sido o culminar de outras, num quadro que o avô da vítima era de tal forma insuportável que justificava tal denúncia. Não obstante, a verdade é que M.P. negou que tivesse visto outras agressões ou que delas a neta se tivesse queixado, embora mencionasse que vira nódoas negras anteriormente na criança. Tal discurso aponta para um sentimento de animosidade relativamente ao arguido. Objectivamente, seria especulação considerar que tal versão seria uma forma explicar e de suavizar, calculadamente, eventual cenário mais dantesco relatado em fase de inquérito.

Atente-se, pois, que, em todos os considerando em que assentou o raciocínio seguido, está subjacente o princípio da presunção de inocência do arguido, constitucionalmente consagrado.
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Para prova das respectivas condições socioeconómicas, valeram as declarações do arguido.

Por último, atendeu-se ao CRC junto aos autos».

3.O recorrente apresenta as seguintes conclusões:
« I.Nos presentes autos, a sentença proferida absolveu o arguido da prática do crime de Violência Doméstica, p. p. pelo art. 152°, n°, al, d), e n°s 2,4 e 5, do Cód. Penal, de que vinha acusado, condenando-o pela prática de um crime de Ofensa à Integridade Física Simples, p. p. pelo art. 143°, n°, do Cód. Penal, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, condicionando-se tal suspensão ao cumprimento de diversas obrigações, entre as quais a prestação de trezentas horas de trabalho a favor da comunidade.
II.Desde logo, parece-nos que a absolvição do arguido da prática de um crime de violência doméstica resulta de erro notório na apreciação da prova enquadrável na al. c) do art. 410°, n°2 do CPP.
III.Com efeito, na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos: “(…) Na mesma morada e até à data dos factos, pernoitava por vezes o arguido e apenas quando estava em Portugal, sendo certo que tinha então uma companheira e outra filha menor desta. À época, o arguido trabalhava fora do país durante períodos de dois ou três meses, que alternava com a permanência em Portugal em intervalos de um ou de dois meses."
IV.Nenhuma referência é feita a este aspecto da residência conjunta no elenco dos factos não provados.
V.Ora, o conceito de coabitação cujo preenchimento exige o art. 152°, n°, al. d) do Cód. Penal não se encontra legalmente definido, mas de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa5, coabitar significa "habitar em comum, partilhar o mesmo espaço de habitação".
VI.Não se compreende, de acordo com os factos considerados provados e as regras da experiência comum, como possa o Tribunal a quo ter concluído de forma simplista que arguido e vítima não coabitavam.
VII.Lê-se na sentença recorrida: "dos factos provados extrai-se que o arguido não coabitava com a menor M.F.P.. Apenas dormiria pontualmente na casa em que esta residia com os avós paternos. Destrate, afastado que está um dos elementos objectivos do tipo, é patente que a conduta do arguido não tem enquadramento no tipo criminal que lhe foi imputado."
VIII.Como claramente resulta da transcrição acima feita dos factos provados, da mesma não resulta que o arguido não coabitava com a menor. Aliás, quanto a nós, resulta precisamente o contrário: que o arguido trabalhava temporadas no estrangeiro e, quando se encontrava em Portugal, pernoitava em casa dos pais, onde se encontrava a menor (se queria por em causa teria de impugnar a matéria de facto…
IX.Perante tal factualidade assente, a conclusão de que o arguido não coabitava com a menor não. tem fundamento, havendo flagrante contradição entre os factos provados e a decisão. Sem razão
X.Pelo exposto, entende o M°P° que a sentença deveria ter considerado preenchido o crime de Violência Doméstica, p. p. pelo art. 152°, n°.1 al. d), e nºs 2, 4 e 5, do Cód. Penal, de que vinha o arguido acusado, condenando-o em conformidade.
XI.Padece ainda a sentença de contradição insanável da fundamentação, a que alude o art. 410°, n°2, al. b) do CPP na apreciação feita a respeito da relevância das afirmações proferidas pelo arguido perante a sua filha menor de que esta não seria sua filha.
XII.Na sentença dá-se como provado que o arguido o disse mais do que uma vez na presença da menor.
XIII.Tem-se como assente também que, perante tais declarações do arguido, a menor reagia concluindo que tal não poderia ser verdade porque "estava escrito no papel".
XIV.Apesar destes pontos aceites na sentença, termina a Mma. Juiz concluindo que, "inexistiu prova directa de que a criança tenha sofrido com isto ou que o arguido tivesse produzido tais comentários com o ensejo de atingir a filha".
XIV.Com o devido respeito, não alcançamos como pode o julgador chegar a esta conclusão simplista que determina a pura e simples irrelevância desta conduta assumida pelo arguido.
XV.De facto, da sentença resulta que a Mma. Juiz admite que a menor utilizou o argumento de que a sua paternidade estava escrita no papel para resolver interiormente o impacto das afirmações do arguido mas, por outro lado, conclui que a mesma não tem maturidade para compreender o alcance das mesmas, pelo que não terá sido atingida por elas.
XVI.Ora, se de facto tais palavras não a atingissem, como justificar a construção mentalmente feita pela criança no sentido de resolver a questão?
XVII.O facto de se tratar de uma criança de 7 anos de idade não determina a impossibilidade de compreensão da postura do pai perante si. Significa, antes pelo contrário, e de acordo com as regras da experiência comum, uma noção nítida de que o arguido é seu pai (porque está escrito no papel) mas que este não pretende assumir-se como tal! E essa noção só pode ser perturbadora para a criança, que necessariamente se sente rejeitada pelo pai.
XVIII.Infundada nos parece também a afirmação de que não ficou demonstrado que o arguido tivesse intenção de atingir a menor através das suas palavras.
XIX.De facto, por muito básica que possa ser a bagagem sociocultural do arguido, trata-se de um adulto de quarenta anos que completou o 6o ano de escolaridade, pelo que nos parece indefensável que não tivesse consciência de que as suas palavras necessariamente atingiriam a auto-estima e o harmonioso desenvolvimento da sua filha, tendo-se conformado com esse resultado.
XXI.Ou seja, ainda que a Mma. Juiz a quo tivesse dúvidas em considerar provado um dolo directo ou necessário, sempre teria de admitir o dolo eventual.
XXII.Em face do exposto, deverá a sentença ser nesta parte revogada, e substituída por acórdão que dê como assente que o arguido proferiu as expressões em causa com consciência de que as mesmas eram aptas a atingir a auto-estima e o equilíbrio emocional da sua filha, o que não o impediu de assim agir, devendo tal comportamento ser valorado no contexto do crime de violência doméstica.
XXIII.Ainda que não se considere preenchido o tipo de Violência Doméstica, não podemos deixar de manifestar absoluta discordância a respeito da construção adoptada na sentença recorrida que afasta a "especial censurabilidade e perversidade da conduta" do arguido concluindo que o crime de ofensa à integridade física não é qualificado.
XXIII.Também neste caso nos parece verificado o vício da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, a que se alude na al. b) do n°2 do art. 410° do CPP.

XXIV.Por um lado, a sentença dá como provado que o arguido:
a)Pouco contacto tinha com a filha, pernoitando na mesma casa que ela apenas como visita (o que justificou inclusivamente o afastamento da "coabitação" e consequentemente do crime de violência doméstica),
b)dizia perante a menor que esta não era sua filha;
c)e questionado sobre a sua relação com a mesma declarou "nunca ter desgostado dela".

XXVI.Apesar deste cenário de afastamento relativamente à filha reflectido na matéria de facto provada, a sentença recorrida acaba concluindo que a conduta do arguido no dia 1/05/2015 "obedeceu a um propósito sincero de educação e protecção da criança e a um sentimento genuíno de preocupação pela mesma" que justifica o excesso do meio empregue.
XXVII.Com o devido respeito, parece-nos evidente e insanável a contradição contida no texto da sentença.
XXVIII. Por outro lado, todos os elementos jurisprudenciais e
doutrinários citados na sentença e que fundamentam a conclusão de que não existe especial censurabilidade ou perversidade
respeitam a progenitores que efectivamente exerciam o poder
correctivo dos filhos...

XXIX.Por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.01.09 transcrito na sentença "Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estarão em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal".
XXX.Também se menciona na sentença a afirmação de Paula Ribeiro de Faria no Comentário Conimbricense do Código Penal que defende que: "de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção ".
XXXI.Ora, se nem o poder paternal sobre a menor estava atribuído ao arguido nem este era o seu encarregado de educação, como justificar a adaptação destas construções jurisprudenciais e doutrinárias ao presente caso?
XXXII.Acresce que, neste domínio (como aliás sucedeu na questão
anteriormente apreciada) a sentença recorrida incorre num equívoco: a ideia de que o arguido, por ter um baixo grau de
literacia, não representou que tinha ao seu alcance outras
possibilidades de comportamento lícito alternativo.

XXXIII.É certo que as circunstâncias agravantes operam no domínio da culpa e não da ilicitude, pelo que a agravação não é
não é automática, estando dependente de uma análise casuísta.

XXXIV.Tal não significa contudo que um agente com fraca instrução esteja absolutamente isento de especial censura, e portanto livre de cometer crimes sob a forma qualificada.
XXXV.A sentença recorrida admite que o meio empregue é susceptível que causar lesões de gravidade significativa e que
excedeu o propósito correctivo, mas surpreendentemente justifica
a actuação do arguido pela sua fraca literacia e pela experiência
familiar desequilibrada.

XXXVI.Por tudo o exposto, e além da referida contradição, entendemos que a sentença recorrida violou o disposto no art. 145°, n°s. 1 e n°2, bem como o art. 132°, n°2, ais. a), c) e i) do Código Penal.
XXXVII.Consequentemente, ainda que se admita que a actuação do arguido integra unicamente um crime de ofensa à integridade física, deverá o mesmo ser condenado pela sua prática sob a forma qualificada nos termos conjugados dos arts. 143°, n°, 145°, n°s 1 e n°2 e 132°, n°2, ais. a), c) e i), todos do Código Penal.
XXXVIII.Censura nos merece igualmente a sentença quanto à medida da pena.
XXXIX.De facto, mesmo que se admitisse que está em causa apenas um crime de ofensa à integridade física a punir no quadro da moldura penal prevista no art. 143°, n° do Código Penal (o que apenas em teoria se admite), sempre seria desadequada a pena concretamente aplicada.

XL.Senão vejamos: O tribunal a quo admite, em desfavor do arguido:
a) Que "A gravidade subjacente ao acto deverá ser analisada em sede de determinação da medida da pena no âmbito da moldura abstracta prevista para a forma simples de ofensa à integridade física".
b) Que "as necessidades de prevenção especial são igualmente algo consideráveis já que, apesar de ter censurado a sua conduta, o arguido não mostrou estar munido de novas ferramentas ou conhecimentos que lhe permitiriam agir de modo diferente - lícito -, em futuras circunstâncias idênticas".

XLI.E por tais motivos opta pela pena de prisão, o que nos parece correcto.
XLII.Contudo, em aplicação de uma moldura penal abstracta de prisão até 3 anos, decide aplicar 4 meses!
XLIII.Para tal conclusão baseia-se na circunstância de não serem conhecidos antecedentes criminais semelhantes ao arguido.
XLIV.Porém, bastará ler o certificado registo criminal do arguido -que aliás a sentença transcreve no ponto 22. dos factos provados -para perceber que, além de outras condenações por crimes de natureza diversa, o arguido foi condenado pela prática, em 2009, do crime de ofensa à integridade física qualificada.
XLV.A conclusão ínsita na sentença de que o arguido não tem antecedentes criminais semelhantes é, pois, claramente errónea e contrária à factualidade dada como provada.
XLVI.Nestes termos, a sentença recorrida apresenta também aqui contradição insanável entre os factos provados e a decisão e encontra-se em flagrante violação do disposto nos arts. 40°, n° e 143°, n° do Código Penal, sendo a condenação do arguido na pena de 4 meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples notoriamente insuficiente face sobretudo às exigências de prevenção especial que o caso requer e que a nosso ver justificam a aplicação de pena não inferior a 18 meses (correspondente ao meio da moldura penal abstracta).
XLVII.Finalmente, o princípio da legalidade exige ao M°P que, agora no exclusivo interesse do arguido, manifeste a sua oposição relativamente à decisão recorrida quanto às condições impostas no âmbito da suspensão, antes do mais, porque a mesma padece de nulidade, por notória falta de fundamentação (exigida pelo art. 374°, n°3, al. a) do CPP) visto não indicar, no dispositivo (ou em qualquer outro momento) as disposições legais em que se baseia para, concretamente, sujeitar o arguido à obrigação de prestação de trezentas horas de trabalho a favor da comunidade.
XLVIII.De facto, o Tribunal a quo invoca de forma genérica, no relatório, o art. 50°, n°2 do Código Penal, que prevê a possibilidade de a suspensão ser condicionada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, podendo ainda ser acompanhada de regime de prova.
XLIX.Nenhuma referência é feita na sentença aos arts. 51°, 52° ou 58° do Código Penal, discorrendo-se apenas de forma genérica e abstracta ao fim último da pena.
*

L.A suspensão da pena de prisão condicionada à prestação de trezentas horas de trabalho a favor da Comunidade é claramente violadora do art. 29°, n°s 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e do art. 1o do Código Penal.
LI.Com efeito, as consequências jurídicas do crime encontram-se submetidas ao princípio da legalidade e da tipicidade, que abrange a definição das penas, as condições da sua aplicação, o controlo das fontes, a proibição da retroactividade ou a proibição da analogia contra reo.
LII.A "suspensão da execução da prisão" e a "prestação de trabalho a favor da comunidade" são duas penas de substituição de diferente natureza, que o Código Penal prevê e trata nos arts 50° a 57° e arts. 58° e 59°, respectivamente.
LIII.Condicionar a suspensão da prisão a uma prestação de trabalho comunitário redundaria numa "mistura arbitrária - e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena - de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o seu sentido e os seus pressupostos próprios".5-
5 Figueiredo Dias, in Direito Penal Português As consequências jurídicas do Crime, p. 354.
LIV.Acresce que, ainda que fosse possível a fixação de tal obrigação prevista no art. 58° do Código Penal, sempre seria exigível a aplicação da fórmula de equivalência inscrita no n°3 - em que cada dia de prisão equivale a uma hora de trabalho - o que notoriamente não foi tido em conta na sentença.
LV.Face ao exposto, pugna-se pela revogação da sentença recorrida ao condicionar a suspensão da pena de prisão à prestação de trabalho comunitário.
LVI.Por tudo o exposto, deverá o Venerando Tribunal da Relação julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que decidiu absolver o arguido da prática do crime de violência doméstica, condenando-o em conformidade e valorando ainda neste contexto, as expressões pelo mesmo proferidas relativamente à paternidade da menor.
LVII.Sem conceder, e caso assim não se entenda, pugna-se pela condenação do arguido pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
LVIII.Na eventualidade de o Venerando Tribunal da Relação manter a condenação do arguido pelo crime de ofensa à integridade física simples, requer-se a revogação da sentença recorrida quanto à medida da pena aplicada, que não deverá ser inferior a 18 meses de prisão.
LIX.Pugna-se ainda pela revogação da sentença ao condicionar a suspensão da pena de prisão à prestação de trabalho comunitário.

Apreciando e decidindo das questões suscitadas.

Invoca o recorrente a existência dos vícios do art. 410º do C.P.P. e, mais concretamente, o vício de “contradição insanável da fundamentação” e de “erro notório na apreciação da prova” a que aludem, respectivamente, as als. b) e c)  do nº2, daquele. 

Os vícios do artigo 410º, nº2, do C.P.P. são de conhecimento oficioso.

Como resulta da própria letra da lei em conformidade com o decidido no Ac. do STJ. nº 07/95, em interpretação obrigatória, o conhecimento dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do CPP, só é possível, quando os mesmos resultarem, exclusivamente, do texto da decisão recorrida, por si só, ou, conjugada com as regras de experiência comum, sem recurso a elementos externos à decisão, designadamente, quaisquer excertos probatórios colhidos em audiência, ou documentos juntos aos autos.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando, de acordo com um raciocínio lógico, se tenha de concluir que a decisão não fica suficientemente esclarecida, por existir irremediável contradição entre os próprios elementos fundamentadores invocados ou quando essa fundamentação determina uma decisão precisamente oposta à que foi proferida;
A contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. A contradição e a não conciliabilidade têm, pois, de se referir aos factos, entre si ou enquanto fundamentos, mas não a uma qualquer disfunção ou distonia que se situe unicamente no plano da argumentação ou da compreensão adjuvante ou adjacente dos factos” - vide Ac. do STJ de 3/10/2007, Pº07P1779, relator Cons. Henriques Gaspar, www.dgsi.pt.

Existe o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do art. 410.º quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., pg. 340 e ss.).

Por sua vez existe erro notório na apreciação da prova configura-se quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.

Conforme jurisprudência corrente no STJ.  o erro notório é o erro grosseiro que não escapa a um observador médio. Existe erro notório na apreciação da prova, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e á lógica do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos (vide, entre muitos outros o Ac. do STJ de l6JUN99, in BMJ 488, pág. 262). Sobre esta questão concreta escreve-se no Ac. do STJ de 07JUL99, 3ª Secção, cujo sumário se encontra publicado na página da Internet, Boletim nº. 33 «O erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), do nº 2, do art. 410º do CPP não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente, e só existe quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal».

Invoca o Ministério Público, no seu recurso que a absolvição do arguido pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado nos autos resulta de um erro notório na apreciação da prova enquadrável na al. c), do art. 410°, n°2 do CPP, porquanto, face á matéria de facto dada como provada na sentença, a conclusão lógica a retirar era a de que a ofendida e o arguido, seu pai, coabitavam, não podendo o tribunal concluir, como o fez, que «(…) o arguido não coabitava com a menor M.F.P.. Apenas dormiria pontualmente na casa em que esta residia com os avós paternos» e depois concluir que, sendo a coabitação entre o arguido e a vitima um dos elementos objectivos do tipo, a conduta do arguido não tem enquadramento no tipo criminal de violência doméstica que lhe foi imputado, sob pena de incorrer o tribunal, simultaneamente, em flagrante contradição entre os factos provados e a decisão.

Ora, salvo o devido respeito, não tem o recorrente razão.

Na verdade quanto a este aspecto concreto, foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:
«2.Por decisão judicial de 19.09.11, em processo que correu termos no Tribunal de Família e Menores do Seixal sob o nº 5……../07.9RBSXL, a guarda da menor foi entregue aos avós paternos, tendo a criança residido com os mesmos na Rua …………………, Brandoa, até há cerca de um ano.
3.Na mesma morada e até à data dos factos, pernoitava por vezes o arguido e apenas quando estava em Portugal, sendo certo que tinha então uma companheira e outra filha menor desta.
4. À época, o arguido trabalhava fora do país durante períodos de dois ou três meses, que alternava com a permanência em Portugal em intervalos de um ou de dois meses».

E, em sede de matéria de facto não provada, deu-se como não provado o seguinte facto:
«O arguido residiu permanentemente com os seus progenitores e com a menor».

E na fundamentação da matéria de facto da sentença afirmou-se o seguinte :
«De modo a clarificar o raciocínio seguido, atente-se, antes de mais, no essencial dos depoimentos prestados.
O arguido explicou toda a sua situação laboral, dando conta de que apenas permanece em Portugal por períodos de um ou dois meses, que alterna com estadias de dois ou três meses, fora do país, a trabalhar.
Quando estava em Portugal, chegou a pernoitar lá em casa, mas não sempre porque vinha com uma companheira e com a filha que teve com esta. Porém, após os factos, não voltou a ir a casa dos pais, já que foi o seu progenitor que apresentou a queixa».

Ora face a esta matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação da sentença é manifesto que o tribunal não retirou de tais factos qualquer raciocínio ilógica, arbitrário ou visivelmente violadora do sentido da decisão e das regras de experiência comum nem incorreu em qualquer contradição ao concluir, em sede de fundamentação de direito e mais concretamente quanto ao enquadramento jurídico da conduta do arguido no crime de violência doméstica de que vinha acusado nos autos que «(…) Dos factos provados extrai-se que o arguido não coabitava com a menor M.F.P.. Apenas dormiria pontualmente na casa em que esta residia com os avós paternos (…)».

De resto, entendendo o recorrente que não foi esta a prova que resultou da audiência de discussão e julgamento, isto é, que o tribunal julgou mal a matéria de facto, ao dar como não provada a coabitação entre arguido e vitima, então, o fundamento recursivo de que se teria de socorrer era, não o dos invocados vícios do art.410º, nº2, als.b) e c) do CPP. mas impugnar a matéria de facto, nos termos do art.412º, nºs.3 e 4, do CPP. servindo-se, para o efeito, das concretas passagens da gravação da prova que, em seu entender, imporiam um julgamento diferente daqueles factos, o que o recorrente não fez.

Afirma, ainda, o recorrente que existe contradição insanável da fundamentação a que alude o art.410º, nº2, al.b), do CPP, por, na sentença se dar como provado que o arguido afirmou, em data não apurada e, pelo menos por duas vezes, na presença da menor, que esta não seria sua filha e simultaneamente dar-se como não provado que o arguido «tivesse agido com o ensejo de atingir a filha», porquanto, pelo menos, perante tais factos, teria o tribunal de dar como assente que o arguido actuou com dolo eventual. Contradição que se verifica, igualmente, por ter o tribunal, em sede de fundamentação, concluído inexistir prova de que a menor tenha sofrido com tais afirmações tanto mais que mentalmente terá resolvido imediatamente a questão afirmando que não podia ser, pois que estava «escrito no papel» que o arguido era seu pai.

Quanto a este particular aspecto o tribunal «a quo» deu como provado o seguinte:
«5.Em número não aclarado embora não inferior a duas vezes e em datas não concretamente apurada mas não posteriores a 2015, o arguido comentava com sua mãe, na presença da menor, que esta não era sua filha».

E deu como não provados os seguintes factos:
«2.O arguido dizia directamente à M.F.P. que a mesma não era sua filha (…)» e que  «5. Ao molestar o corpo da menor M.F.P. e ao dizer que esta não era sua filha, o arguido agiu com o propósito de atingir a saúde psíquica da mesma, de afectar a sua capacidade de decisão, de humilhá-la e desconsiderá-la, procedendo com desprezo pela dignidade sua pessoa, o que conseguiu».

Dos factos supra referidos, no que ás afirmações proferidas pelo arguido respeita, retiraram-se com segurança duas conclusões. A primeira de que tais afirmações eram feitas não directamente para a menor mas para a mãe do arguido. A segunda de que das duas vezes que o arguido proferiu tais afirmações a menor estava presente e ouviu-as.

Para além destes factos, nenhum outro facto foi dado como provado que nos permita concluir com segurança que o arguido tenha tido consciência que a menor ouvia tais afirmações e que tenha querido agir dessa forma.

Por outro lado, não resultou provado na sentença que «(…) ao dizer que esta não era sua filha, o arguido agiu com o propósito de atingir a saúde psíquica da mesma, de afectar a sua capacidade de decisão, de humilhá-la e desconsiderá-la, procedendo com desprezo pela dignidade sua pessoa, o que conseguiu».

O MºP não recorreu da matéria de facto, nos termos do art.412º, nº3, do CPP. como já supra se referiu, não sendo, por isso, possível a este tribunal sindicar a matéria de facto com base na prova gravada mas tão só através do texto da decisão recorrida.

E perante os factos da sentença não é possível retirar com a segurança necessária, designadamente, termos de raciocínio lógico e de acordo com as regras da experiência comum, que o arguido tenha agido com dolo em qualquer das modalidades consignadas no art.14º, do C.P., bem podendo ter acontecido que a sua conduta tenha sido fruto de negligência ao ter proferido tais expressões em conversa com a sua mãe mas na presença da menor.

Assim, pese embora não possamos concordar com a posição defendida na sentença de que com a maturidade típica de uma criança de 7 anos não se reputa possível concluir, nem se mostra que seja lógico ou que resulte das regras da experiência que a ofendida tenha compreendido o alcance da afirmação, ou, que a mesma a tivesse ficado confundida, perturbado ou magoado, pois que, ao contrário do afirmado na sentença recorrida, temos para nós que as afirmações proferidas pelo arguido de que a menor não era sua filha são facilmente entendidas por uma menor de 7 anos, e mesmo por uma criança de idade inferior e são de molde a afectar no seu sentimento de auto-estima, fazendo-a sentir-se rejeitada pela figura paterna,  certo é que, no caso concreto dos autos, por falta de prova de prova do elemento subjectivo do tipo, dolo, não é possível imputar a conduta ao arguido, em termos de ilícito criminal.

Deste modo, conclui-se que da sentença recorrida não transparece que o tribunal tenha retirado posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, e/ou que tenha incorrido em qualquer erro evidente, grosseiro, violador das regras mínimas da lógica quer por si quer conjugado com as regras da experiência comum, nem se vislumbra o desrespeito por prova legalmente vinculativa ou tarifada que tivesse sido desprezada, ou não investigada pelo tribunal recorrido.

O Tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada, de forma esclarecedora, enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação das declarações prestadas em audiência de acordo com critérios lógicos, da experiência comum e alicerçada nos elementos de prova que expressamente indicou, conforme tudo consta da fundamentação da matéria de facto.

Deste modo, impõe-se concluir que a decisão recorrida não padece dos apontados vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, nem de qualquer outro a vício a que aludem as als. a), b) e  c) do nº2 do art.410º, do CPP.

Enquadramento jurídico dos factos - crime de violência doméstica ou e ofensa à integridade física qualificada.

A este propósito, pronunciou-se o tribunal “a quo” nos seguintes termos:
«Vem o arguido acusado da prática de um de um crime de Violência Doméstica, p.p. pelo art. 151º, nºs 1, al.d), 2, 4 e 5, do Cód. Penal.
Resulta do art. 152º, nº1, al. d) que “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” [sublinhado nosso].

A ratio deste tipo de crime radica no propósito de protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, pelo que o seu alcance abrange os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesem esta dignidade. A razão da autonomização deste tipo é precisamente o desígnio de protecção da dignidade das pessoas no seio de um relacionamento conjugal ou análogo, ainda que não implique coabitação, ou após o mesmo.

Assim sendo, será redutor considerar que apenas se preenche com a prova de todo um conjunto de ofensas à integridade física. Mais do que a integridade física, que bem estaria já protegida com a previsão contida noutras normas, com este tipo legal pretende proteger-se a saúde. Bem jurídico que comporta naturalmente o aspecto psíquico e o bem-estar com ela relacionado.

O crime em apreço apenas pode ser cometido de forma dolosa. Isto é, só o pratica o agente que aja com conhecimento da relação que o liga à vítima e do alcance da sua conduta na saúde e bem-estar da mesma, e com vontade de agredir tais bens, seja qual for o propósito. Pelo que é punível, seja qual for a modalidade do dolo evidenciada.

Como se conclui, o preenchimento deste tipo já não exige a reiteração das condutas agressivas, marcantes de todo um contexto conjuntural da vida da vítima. Contudo, também se não preenche apenas mediante a prova de discussões ou de um conjunto de injúrias ou ofensas à integridade física, sem mais. Supõe, outrossim, a inflicção de sofrimento cruel bem como o aproveitamento simultâneo de uma determinada dimensão de fragilidade do outro.

Porém, é ainda elemento do tipo a coabitação.

Habitualmente abordada a propósito de relações matrimoniais, a coabitação é significante para, entre o mais, comunhão de residência e de mesa. Por conseguinte, em qualquer caso, será esta comunhão habitual, este convívio, esta partilha que estreita laços e confiança que caracteriza o conceito juridicamente relevante de coabitação (para desenvolvimento desta matéria, v., v.g., os Acórdãos do STJ, de 16.03.11 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.02.06, disponíveis em www.dgsi.pt).

Ora, dos factos provados extrai-se que o arguido não coabitava com a menor M.F.P.. Apenas dormiria pontualmente na casa em que esta residia com os avós paternos. Destrate, afastado que está um dos elementos objectivos do tipo, é patente que a conduta do arguido não tem enquadramento no tipo criminal que lhe foi imputado.
*

No caso dos autos, provou-se, no essencial e com relevo, que, nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, o arguido desferiu na filha menor, pelo menos, uma pancada com um cinto, sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei e tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.

Mais se apurou que, pelo menos por duas vezes, comentou, na presença da menor, que a mesma não era sua filha.

Nos termos do art. 143º, nº1, do Cód. Penal, “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

Por seu turno, estatui o art.145º, nº1, do mesmo diploma, que, se as ofensas previstas nos art°s 143º, 144º ou forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo. No nº2 esclarece-se que “são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº2 do art.132º”.

De acordo com a al.c) do art. 132º, nº2, do Cód. Penal, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstância de o agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

Na alínea d), prevê-se a hipótese qualificativa de “empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”.

Atente-se em que, por ofensa no corpo, pode entender-se todo o mau trato “através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”. Logo, integram este conceito lesões da substância corporal, como nódoas negras, feridas ou inchaços.

O objecto da acção é, claro está, o corpo humano de outra pessoa, pois as chamadas auto-lesões não são puníveis. O preenchimento legal verifica-se, assim, mediante a inflicção de qualquer ofensa, independentemente da dor ou sofrimento causados. Todavia, há-de encerrar uma mínima afectação do bem-estar, latu sensu.

Desmontando, dir-se-á que o elemento objectivo do tipo consiste, pois, em provocar um mal no corpo ou na saúde de outra pessoa.

Com efeito, hoje, diversamente do que acontecia na versão original do Código, considera-se que a integridade física compreende a integridade psíquica, verificando-se o tipo ainda que o mal provocado não se tenha dirigido ao corpo da vítima em sentido estrito, desde que aquele cause simultaneamente um efeito físico.

A motivação do agente é, em princípio irrelevante, atendendo-se apenas na determinação da medida da pena, a não ser que seja enquadrável na alínea d) do nº2 do art. 132º do Cód. Penal que prevê como circunstância indicativa de especial perversidade a futilidade do motivo respectivo-, não deixando a conduta de ser típica mesmo nos casos em que o seu autor apenas quis brincar com a vítima.

Tudo isto significa que o legislador pretendeu conferir à integridade física, i. e., ao bem-estar físico, a máxima protecção (refira-se que até um corte de cabelo indesejado pode ser subsumido ao tipo).

Na verdade, estes tipos legais reflectem um determinado valor da consciência jurídica actual, qual seja, o máximo respeito pela vida humana, sendo que a sua protecção só será eficaz se, efectivamente, se alargar o âmbito da mesma às mais pequenas ofensas à saúde ou ao corpo. Justamente porque o princípio de base é o mesmo e só com esta amplitude de protecção será compreensível.

Com esta construção, reflecte-se - e, do mesmo passo, pretende-se continuar a incutir -, a ideia de que o respeito pela vida e, logo, pela saúde, do outro há-de ser absoluto, em todas as circunstâncias (sem prejuízo de estarem previstas causas de exclusão da ilicitude e da culpa, ou se entenderem como socialmente adequados alguns comportamentos frequentes da vida actual). Trata-se, em suma, de um valor que deve estar sempre presente e que nunca deve ceder na medida em que a vida, e, por conseguinte a saúde, constituem os bens jurídicos supremos.
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Provado que o arguido desferiu na zona numa das pernas da vítima, pelo menos, uma pancada com um cinto e que lhe provocou lesões, não oferece qualquer dificuldade o preenchimento in casu do elemento objectivo do tipo do art.143º do Cód. Penal.
Não se provou, contudo, que a menor tivesse sofrido quaisquer abalos ou incómodos com a sobredita afirmação do arguido, pelo que, atalhando, relativamente a este segmento fáctico, forçoso é observar que não decorreram quaisquer consequências que permitam enquadrar tal conduta em qualquer dos tipos legais que analisamos.
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Na medida em que, conforme referido, à excepção do art. 148º, a aplicação dos restantes preceitos indicados supõem o dolo em qualquer das suas modalidades, ao menos quanto à agressão em si, importa, aqui chegados, analisar qual o tipo de culpa do arguido.
Antes de enunciar a matéria factual relevante a este nível, importa, pois, definir cada uma das modalidades que a culpa pode revestir.

Assim, conforme resulta dos art°s 14º e 15º do Cód. Penal, Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da sua conduta, há dolo se o agente actuar, conformando-se com aquela realização.

Nos termos do art.15º, “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização, [negligência consciente] - ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”- negligência inconsciente.

Analisemos agora o universo factual provado, em ordem a determinar em qual destas modalidades se inclui a conduta do arguido.

Com efeito, ficou demonstrado que o arguido quis provocar um mal no corpo da ofendida, como forma de dissuadi-la de persistir em comportamentos desobedientes que colocavam em risco a sua própria segurança. Verificado está assim ainda o elemento subjectivo do tipo da ofensa à integridade física p. p. pelo art. 143º, nº1.

Resta descortinar se a conduta reflectiu uma especial indiferença para com o direito, i. e, se foi merecedora de uma especial censurabilidade para efeitos do mencionado art. 145º do Cód. Penal, que nos remete para as diversas alíneas do art. 132º, nº2, do mesmo diploma.

Como se observa no Acórdão do Tribunal da relação de Coimbra de 10.12.08, disponível em www.dgsi.pt, “ A especial censurabilidade – e é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa – prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente”.

Tais circunstâncias - e outras similares, como se infere da letra do preceito - poderão ou não revelar um maior desvalor da acção. Para aferir deste maior desvalor (a tal especial censurabilidade), há que olhar ao contexto da prática dos factos, em ordem a descortinar se, tendo em conta os motivos do agente, a sua inserção na sociedade, a sua responsabilidade, a sua maturidade intelectual, etc., a conduta reflecte uma especial e acentuada desconformidade da sua personalidade com os valores jurídico-penalmente relevantes. Ou seja, em suma, se o arguido revelou uma tal indiferença para com o direito e os bens jurídicos em causa em particular que choque sobremaneira a consciência jurídica colectiva.

O desvalor da acção reside num “mais” consistente, no caso da alínea c) do art. 132º, nº2, e no segmento em questão, qual seja, agir sobre vítima particularmente indefesa em razão da idade.

Neste sentido, atente-se nas conclusões do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30.04.14 (disponível em www.dgsi.pt): “A qualificação dos crimes de ofensa à integridade física e de coacção não é automática, antes «deriva da verificação de um tipo de culpa agravado» o que obriga a que os elementos apurados revelem «uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta».II. Cometem o crime qualificado, por agirem em situação de especial censurabilidade, os arguidos que exerceram sobre os ofendidos, e particularmente sobre o assistente, advogado, um caudal de violência e de constrangimentos que, em conjunto, os dotaram de um poder total sobre os gestos, movimentos e acções dos ofendidos pois que, para além da expressão concreta deixada pelas lesões verificadas e das perturbações vividas em resultado do teor da agressividade demonstrada pelos arguidos, há a assinalar a preocupação de barrar a saída dos ofendidos, a persistência e intensidade das agressões desferidas, a reiteração de ameaças de vários tipos, a afronta (oposição) directa ao ato que os ofendidos pretendiam levar a cabo, a saber, a efectiva tomada de posse dos armazéns e, por fim, a falta de razoabilidade da pretensão dos arguidos, exigindo uma declaração que, como os próprios agora reconhecem, nenhuma utilidade revestia para os arguidos”.

Da abordagem jurisprudencial e doutrinária resulta, deste modo, que as circunstâncias agravantes operam no domínio da culpa e não da ilicitude, pelo que a agravação não é automática.

Ora, in casu, o meio de que o arguido lançou mão – um cinto – é efectivamente susceptível de causar lesões de gravidade significativa atendendo à tenra idade da ofendida – sete anos. Acresce que, sob o ponto de vista do propósito correctivo, se mostrou muito para além do que hoje se considera razoável.

Importa, porém, ter presente que o arguido é pessoa limitada por uma considerável iliteracia e que agiu num contexto familiar algo hostil, pouco estruturado e com laços afectivos instáveis e ambíguos.

Confrontava-se com a manifesta dificuldade dos seus pais em educar a criança que o tribunal lhes tinha entregue. Dificuldade resultante das suas próprias capacidades e do registo desobediente e perigoso da criança.

Ora, apesar de estar fora a maior parte do tempo, ter já constituído outra família, ter más relações com o seu pai e assumir não ter um laço afectivo relevante com a filha M.F.P., a verdade é que algo determinava o arguido a não desprezar esse seu espectro familiar. Pelo contrário, o arguido comparecia, quando estava no país, e recebia queixas, por parte da mãe, dos comportamentos irrequietos e desobedientes da criança. Afigura-se-nos que esta comparência associada ao carácter isolado da conduta apontam para que, ainda que de forma ambígua e mitigada, o arguido sentisse alguma responsabilidade ou sentido de dever no tocante à educação da criança. E, nesta senda, mostra-se razoável considerar que sentiria uma certa impotência e frustração. Via que o caminho educacional da criança era perturbador e não identificava quaisquer soluções para tal problema.

Foi neste contexto que, à data, o arguido se determinou, julgando, de certo modo, justificado o recurso a uma forma mais severa de castigo com vista a dissuadir a criança de adoptar condutas que punham em causa a sua própria segurança e que nenhum dos adultos seus educadores mostrava ser capaz de controlar.

Neste quadro, pese embora a aludida desproporção de meios e de sentimentos revelados, entendemos que seria redutor considerar que, face à sua conduta, globalmente considerada, s conduta do arguido é reveladora de perversidade ou é merecedora de um juízo de especial censurabilidade. Embora indubitavelmente censurável, cremos que, no contexto psicológico que era o do arguido, a conduta do mesmo obedeceu a um propósito sincero de educação e protecção da criança e a um sentimento genuíno de preocupação pela mesma.

Noutro prisma, importa ter presente que o grau de iliteracia do arguido, as dificuldades daí advenientes no tocante às suas representações acerca das possibilidades que tinha de articular com as instituições próprias para resolver o problema – v.g., com o tribunal cuja representação que fazia seria seguramente que, de forma inelutável, tinha entregue a criança aos seus pais -, e, bem assim, as referências e ferramentas que adquirira no âmbito da sua própria educação, tornaram mais difícil ao arguido optar pelo comportamento lícito alternativo. Pois que tal, em seu entender, deixava por resolver questão grave e que tinha a ver com a própria segurança da criança, sendo certo que, na sua ausência – e que, além de prolongada, era significativa porque era do próprio país -, não poderia sequer assumir qualquer controle nas desobediências da criança.

É certo que dos factos não resulta que o arguido assumia consistentemente tal poder-dever de educação. Mas também não resulta que dele se tivesse sempre demitido. Antes pelo contrário.
Num ângulo distinto, cumpre ainda observar que os maus tratos correctivos foram longamente objecto de controvérsia jurisprudencial. Alguma justificação assentava em factores culturais. Uma fraca ou inexistente censura social tornava menos observada a lei neste domínio. Por conseguinte, ainda que amplamente censurável, a conduta do arguido não consiste num acto largamente repelido pela consciência jurídica da comunidade em que o mesmo se insere.

Em sentido similar, vem-se pronunciando a jurisprudência dos nossos tribunais. Tendência de que é ilustrativo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.04.14 (disponível em www.dgsi.pt), que, tratando caso semelhante, decidiu que “Excede o poder/dever de educação-correcção dos progenitores a conduta dos pais que, com o uso de um cinto, batem no filho de 11 anos, porque encobria dos pais os maus resultados escolares e estaria a fumar.

II–Sendo, neste enquadramento, o comportamento dos pais de censurar, não merece, porém, aquele acrescido e especial juízo de reprovação, indispensável para o considerar como ofensa à integridade física qualificada”.

Observou-se nesse Aresto, a propósito, que “Estamos numa área em que é imprescindível delimitar a fronteira entre o que constitui a esfera interior da família, bem como o exercício do dever de correcção e educação, e as condutas que requerem a intervenção do Direito Penal (cujo princípio da subsidariedade reveste aqui especial acuidade, tendo em conta a gravidade das consequências no relacionamento futuro dos membros dessa família). Perante a importância e “sensibilidade” dos valores em causa, impõe-se às entidades judiciárias uma actuação especialmente distanciada e equilibrada, que evite o “empolamento” das situações ou uma distorção na apreciação e avaliação dos casos (em parte gerada pela desmesurada difusão mediática de que alguns são objecto). O que se encontra provado é uma actuação dos recorrentes, gerada por um comportamento censurável do filho – encobria dos pais os maus resultados escolares e estaria a fumar –, que impunha o exercício do poder-dever de correcção no cumprimento das responsabilidades parentais. Analisando os factos pelo prisma oposto ao dos autos, se os pais ignorassem a situação e não procurassem repreender e corrigir o filho, não estariam a cumprir devidamente o dever de assegurar o seu saudável desenvolvimento intelectual e comportamental e poderiam, por isso, também ser alvo – caso o comportamento se agravasse, por não ser corrigido – de procedimento no âmbito do Direito tutelar de menores. Os pais do menor – no recurso é reconhecido – excederam esse poder-dever de correcção/educação, agindo de forma inaceitável à luz da consciencialização ético-social dos tempos actuais, não se justificando a agressão com o cinto (embora na “região nadegal” e nas pernas, assinale-se). Sendo, neste enquadramento, o comportamento de reprovar, não merece, porém, aquele acrescido e especial juízo de reprovação indispensável para o considerar como ofensa à integridade física qualificada. Noutros termos, a actuação dos recorrentes não reveste aquela especial censurabilidade ou perversidade geradora de uma culpa agravada, de que a circunstância prevista no art. 132º, nº 2, al. a), do CP. constitui mero exemplo/padrão.

Em conclusão, os factos provados são apenas susceptíveis de integrar a prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP”.

De igual modo, decidiu-se em Aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.01.09 (disponível na mesma fonte). Convocou-se aí, a propósito, a doutrina firmada no Comentário Conimbricense ao tipo de violência doméstica pelo qual o arguido vinha acusado. Tal como aqui, também no Aresto se assumiu como discutível a natureza do direito ao castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando, como é o caso. Discorreu-se, a propósito que, “Tratando-se de direito de correcção, assumem-se como controvertidos não só a sua admissibilidade como os seus limites. Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento. Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estarão em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal”.

No citado Acórdão, reputou-se ser categoria de análise no enquadramento da conduta consistente em molestar o corpo de uma criança, o projecto educativo. Nesta esteira, na aferição do enquadramento do acto no desiderato educativo, valorou-se a adequação do comportamento ao fim educativo em confronto com a susceptibilidade de o mesmo comportamento comprometer seriamente o desenvolvimento da criança.

Mais se salientou a observação patente na decisão da Primeira Instância de que “Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados. Taipa de Carvalho, no artigo citado, refere que a " finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples " e Paula Ribeiro de Faria (também no Comentário Conimbricense do Código Penal, a páginas 214 do Tomo I) afirma que " de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção ". Do mesmo modo, este Tribunal no seu Acórdão de 10.10.95 (que se pode ver sumariado em www.dgsi.pt) entendeu que "os pais detêm o poder-dever de corrigir moderadamente os filhos.

Ora, em primeiro lugar, acompanhamos a decisão que, neste caso que convocámos, tomara a Primeira Instância, ao anotar que “ Toda esta doutrina e jurisprudência têm de ser analisadas tendo em atenção que a área dos maus tratos é uma área em constante e rápida evolução, em que a doutrina e a jurisprudência não sedimentam com facilidade, obrigadas a seguir novos caminhos, resultado de tomadas de consciência colectivas, de compromissos internacionais e de constantes alterações legislativas. Por isso, importa chamar a atenção em primeiro lugar para a constante evolução normativa na área do poder paternal”.

Com efeito, o Código Civil não consagra já qualquer direito de correcção moderada. Assim, a admitir-se o direito ao castigo, este inclui-se sempre no âmbito do poder paternal e é uma sub-espécie do poder-dever de educar.

Na perspectiva da nossa lei penal, importa afastar também a hipótese de consentimento como causa de exclusão da ilicitude, já que no caso dos autos não houve nem ficou demonstrado qualquer consentimento expresso ou tácito dos pais dos menores a que a arguida os castigasse (art. 38º nº 1 do Código Penal).

Entendemos igualmente, conforme plasmado em muitos documentos produzido no âmbito da Unicef, que, ante as práticas ainda massivas de castigos corporais no âmbito dos deveres de educação, e para mudar este estado de coisas, urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, e de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações na linguagem da violência.

Alguns Estados têm, aliás, leis que proíbem expressamente a agressão a crianças. O que se nos afigura, de iure constituendo, uma solução sensata já que o peso dessas palavras, i. e, dessa autonomização típica, por sugerir uma específica representação, transmitiria, de modo mais claro e assertivo, a mensagem de que castigos corporais não são aceitáveis, e, simultaneamente, seria mais eficaz em criar no imaginário colectivo, a ideia de que existem outras formas alternativas de educar. Este seria, pois, o primeiro passo para criar na consciência jurídica colectiva, incluindo em franjas pautadas pela iliteracia em geral, uma nova necessidade, qual seja, a de procurar informação acerca dessas “outras” formas alternativas.

Em segundo lugar, e não obstante o que vimos defendendo “de iure constituendo”, entendemos que, estando em causa uma reflexão no domínio da culpa, a ponderação a fazer deve cingir-se ao contexto psicológico do arguido e à exigibilidade de o mesmo ter actuado de outra forma. Ora, tais práticas ainda massivas e que, como vimos, não são rejeitadas unanimemente pela jurisprudência nem por toda a doutrina, jurídica ou da lavra de outras ciências sociais, sendo que resultam da transmissão geracional desses comportamentos. Até porque, criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos (v. com interesse, nesta matéria, “Direitos das Crianças e Jovens – Actas do Colóquio”, ISPA/CEJ, pags. 228 a 233, e Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto, Rés Editora, 1984, pg. 303).

Assim, entendemos que não é adequado impor ao arguido – pessoa, aliás, com escassos recursos socioculturais -, um grau de sensibilidade superior àquele que, em média, as instituições nacionais e a consciência jurídica colectiva revela sobre a matéria.
Por outro lado, não resultou dos factos provados nem é possível extrair das regras da lógica e da experiência que a conduta do arguido se tenha saldado num factor de trauma difícil de ultrapassar para esta criança. Ademais, face à idade de sete anos, cremos que, independentemente do carácter ilícito, a mensagem que o arguido pretendeu passar – e que verbalizou ao mesmo tempo que concretizou o mal no corpo da filha -, consistente em alertar a criança para que a mesma não repetisse comportamentos perigosos para si como aquele que assumira, era susceptível de ser bem interpretada pela criança. O que não se passaria se, v.g., a criança tivesse um ou dois anos. O que se mostra relevante do ponto de vista da avaliação dos danos decorrentes da conduta para a paz e integridade psíquica da menor.

A gravidade subjacente ao acto deverá, pois, ser analisada em sede de determinação da medida da pena no âmbito da moldura abstracta prevista para a forma simples de ofensa á integridade física.
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Inexistindo qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, forçoso é concluir que o arguido praticou um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo art. 143º, nº1, do Cód. Penal».

Enquadramento jurídico

Como resulta claramente das conclusões e da motivação do recurso, o recorrente funda o seu pedido de alteração de enquadramento jurídico para o crime de Violência Doméstica, p. p. pelo art. 152°, n°l, al, d), e n°s 2, 4 e 5, do Cód. Penal, no pressuposto de que viesse a proceder o invocado erro notório na apreciação da prova e, em consequência de tal erro, viesse este tribunal a concluir pela verificação do elemento de coabitação entre o arguido e a ofendida cujo preenchimento é exigido pelo art. 152°, n°l, al. d) do Código Penal.

Como acima já se referiu, essa sua pretensão não obteve provimento.

Assim, sucumbindo a alegada alteração, resulta consequentemente que o pedido formulado de enquadramento jurídico dos factos no crime Violência Doméstica, p. p. pelo art. 152°, n°, al., d), e n°s. 2,4 e 5, do Cód. Penal. Dado que os factos provados não preenchem os seus elementos constitutivos terá de ser considerado como improcedente.

Subsidiariamente entende o recorrente que ainda que se admita que a actuação do arguido integra unicamente um crime de ofensa à integridade física, deverá o mesmo ser condenado pela sua prática sob a forma qualificada, nos termos conjugados dos arts. 143°, n°, 145°, n°s. 1 e n°2 e 132°, n°2, als. a), c) e i), todos do Código Penal.

Vejamos.

Do crime de ofensa à integridade física qualificada:

Prescreve o art.° 143.° do Código Penal:
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Este tipo legal de crime traduz-se numa ofensa “à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatómico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico” (Neste sentido, “O Código Penal de 1982”, Manuel de Oliveira Leal Henriques e Manuel José Simas Santos, 1986, Vol. II, p.96).

Nos termos do art. 145.º, n.º 1, do Código Penal, o crime de ofensa à integridade física é qualificado se as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, dispondo, por seu turno, o nº2 do citado artigo que são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias, as circunstâncias previstas no nº2 do art.132º.

De acordo com a al.a), do art. 132º, nº2, do Cód. Penal, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstância de o agente ser ascendente da vítima, na al.c), praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez e na alínea i), utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso.

No caso dos autos decorre da matéria de facto provada que o arguido, deliberada e conscientemente, agrediu a vítima, sua filha, menor de 7 anos de idade com um cinto que dobrou, desferindo-lhe, pelo menos, uma pancada nas pernas e que, em consequência de tal conduta, a menor sofreu dores e lesões na zona atingida, nomeadamente, equimose esverdeada no terço inferior da coxa direita, com cerca de 1cm de diâmetro médio, apresentando ainda uma área vermelha modelada na face posterior do joelho e terço superior da perna, vertical, com 4 por 0,5cm de largura, lesões que importaram, para cura, um período de cinco dias.

Mais se provou, com interessa para a decisão, que o arguido ao actuar da forma como o fez pretendia dissuadir a menor de voltar a sair de casa sem autorização e, em geral, de desobedecer à avó, que a criança era desobediente e difícil de controlar e que o arguido estava convicto de que a menor M.F.P. tinha um comportamento agressivo para com a avó e que os seus pais (avós paternos da M.F.P.) não conseguiam educá-la nem manter um ambiente de habitabilidade adequado e saudável.

Perante esta factualidade provada a questão que se coloca, neste momento, é a de saber se o poder de correcção dos pais e educadores pode abranger a aplicação de castigos corporais.
A resposta a esta questão tem sido objecto de diversas posições na doutrina e a jurisprudência dos nossos tribunais e mesmo ao nível da psicologia comportamental.

Como se salienta in "Comentário Conimbricense ao Código Penal - parte Especial", tomo I, pág. 214 e segs., assume-se como discutível a natureza do direito ao castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando. Tratando-se de direito de correcção, assumem-se como controvertidos não só a sua admissibilidade como os seus limites. Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento.

Ao nível da psicologia comportamental tem-se verificado uma tendência generalizada no sentido de defender que a palmada não funciona como método educativo e, que, pelo contrário, causa ressentimento, dor, ou seja, causa um efeito contrário à educação. O acto de bater reforça o autoritarismo e a prepotência do mais forte sobre o mais fraco, no caso, a criança que termina ficando ressentida e com raiva. Existe suspeita de que o acto de bater pode até levar o agressor a uma compulsão à repetição, isto é, a adquirir prazer e gozo sádico em bater.

Sem prejuízo do exposto, é indiscutível que, mesmo para as teses que admitem o uso de “palmada” como incluído no poder-dever de educação, só justificam esse uso de “a mão aberta” quando se tratar de um acto complementar à educação por palavras, não permitindo, em nenhum caso, o uso de instrumentos como o cinto, o chicote, o pau que extrapolam o sentido de correcção educativa.

No nosso país os castigos corporais em crianças são proibidos, como de resto na maior parte dos países do Ocidente. Na Alemanha, por exemplo, país que proibiu expressamente a aplicação de castigos corporais, fala-se de intensidade do maltrato, na medida em que um maltrato pressupõe que o bem-estar físico não seja afectado apenas insignificantemente Comentário Conimbricense, (nota 33), p. 207, onde se refere “A ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (...). A apreciação da gravidade da lesão (...) deverá partir de critérios objectivos (duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade da tutela penal)”.  Deste modo, “uma palmadinha suave/inócua no traseiro e comportamentos similares sobre a criança não chegam a ser uma lesão física punível -ROXIN, (nota 27), p. 235-

Em Portugal o castigo físico das crianças é ilegal desde 2007, sendo punido pelo Código Penal pelo crime de violência doméstica (art.152º do C.P.) de maus tratos (art.152º -A do C.P.) e de Ofensa à integridade física.

Face ao que supra deixamos exposto e voltando ao caso concreto dos autos, é manifesto que a pretensa finalidade educativa que possa ter estado na base da actuação do arguido não exclui nem justifica de modo algum a actuação do arguido.

Perante os factos que resultaram provados da discussão da causa em audiência de julgamento, não se pode ter por justificado o comportamento do arguido, mesmo para quem defenda a possibilidade de castigos físicos leves no âmbito do poder educativo, e que o arguido agiu na sequência de conduta desobediente e de rebeldia da menor (perfeitamente natural na sua idade), pois que se trata de uma criança que, à data dos factos, acabara de completar 7 anos de idade, não se evidenciando a necessidade ou justificação da agressão física como elemento de correcção e, muito menos, uma agressão levada a cabo com um cinto.

A actuação do arguido constitui uma violação inaceitável da integridade física da menor uma demonstração intolerável de força física intencionalmente dirigida à lesão do corpo e da saúde de uma criança indefesa com apenas 7 anos de idade.

Por outro lado, considerando o modo de actuação do arguido, designadamente, que a agressão foi efectuada com um cinto dobrado, não olvidando que a menor é filha do arguido -sua descendente –  e que contava com, apenas, 7 anos de idade, tratando-se de uma criança indefesa e analisando, de igual modo, as lesões produzidas equimoses no terço interior da coxa direita e na face posterior do joelho e terço superior da perna, entendemos que a conduta do arguido integra todos os elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física sob a forma qualificada nos termos conjugados dos arts. 143°, n°, 145°, n° 1 e n°2 e 132°, n°2, als. a) e c), todos do Código Penal.

Na verdade a actuação do arguido reveste, em nosso entender, a especial censurabilidade ou perversidade geradora de uma culpa agravada, de que as circunstâncias previstas no art. 132º, nº 2, al. a) (ser descendente) e na al. c) (praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade) constituem exemplo/padrão.

Em conclusão, o arguido deverá ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física sob a forma qualificada, nos termos conjugados dos arts. 143°, n°, 145°, n°s. 1 e n°2 e 132°, n°2, als. a) e c) , todos do Código Penal.

A comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos prevista no artigo 358.º, n.º 3, do CPP, não é necessária, porquanto, no caso concreto dos autos, a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de uma infracção criminal que representa um minus relativamente à da acusação pela qual o arguido estava acusado, por um crime de maus tratos, tendo tido o arguido conhecimento de todos os elementos constitutivos de crime mais grave de todos os factos que integram a sua actuação e a possibilidade de os contraditar.

Prosseguindo, vejamos, agora, a questão da medida concreta da pena:
O crime de Ofensa à integridade física qualificada é punido, nos termos do art.145º, al.a), do Código Penal com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º
Na determinação da medida concreta da pena, há a considerar os dois grandes vectores que são a culpa e a prevenção (v.g. artigo 71°, do Código Penal). O primeiro fornece o limite máximo da pena que ao caso cabe aplicar. Nos termos do artigo 40°, daquele diploma legal, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa, sendo depois razões de prevenção - geral de integração e especial de socialização -, que condicionam a medida final e concreta da pena.

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a propósito do modelo de determinação da pena, compete "à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente" (DIAS, Figueiredo - Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril -Dezembro de 1993, pág. 186 e 187).

A pena concreta há-de pois, fixar-se entre um limite mínimo e um limite máximo adequados à culpa, tendo como referencial os mencionados fins de prevenção geral e especial.

No caso concreto a ilicitude dos factos é média, dentro do tipo de crime cometido, tendo em conta a natureza das lesões produzidas, a zona atingida, o período de doença sofrido pela menor e a circunstância de se ter provado uma única agressão com o cinto.

O dolo é directo e de média intensidade.

As necessidades de prevenção especial são elevadas tendo em conta que o arguido já tem antecedentes criminais pela prática de crimes de furto, roubo, detenção de arma proibida, de tráfico de estupefacientes e, ainda, por crime de idêntica natureza ao que está em causa nos presentes autos, condenação em 15.06.09, contrariamente ao que se afirmou na sentença recorrida.

As necessidades de prevenção geral são igualmente pronunciadas, na medida em que, este tipo de crime é frequentemente praticado e com algum sentimento de permissividade que urge combater de molde a que não fique qualquer dúvida que agressões físicas em crianças ainda que cometidas com intuito educativo não são permitidas pelo nosso sistema penal.

Tudo ponderado afigura-se-nos ajustada a pena concreta de 10 (dez) meses de prisão.

Ponderando agora a possibilidade de substituição da pena prisão fixada entende-se que dadas as elevadas necessidades de prevenção especial e geral acima expostas não se mostra adequada qualquer outra pena de substituição que não seja a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos da era.50º, do Código Penal, já que nenhuma outra é susceptível de contribuir no sentido da educação para o direito de que este concreto arguido necessita, como, de resto se concluiu na sentença recorrida e que nenhuma censura nos merece, nesta parte.

Deste modo e, por se afigurar que a simples ameaça com a pena de prisão será suficiente para assegurar as finalidades de punição, garantindo a recuperação social do arguido decide-se declarar suspensa a execução da pena de prisão, por 1 (um) ano período mínimo legal de suspensão, nos termos do nº5 do citado artigo 50º, do Código Penal.”

A suspensão da execução da pena, será, porém condicionada ao cumprimento de deveres que contribuam para ressocialização do arguido e para a consciencialização do crime cometido.

Deste modo, nos termos conjugados do art° 50º, nº2 e 52º, nº1, als. b) e c) do Código Penal a suspensão da execução da pena a aplicar ao arguido será condicionada ao cumprimento dos seguintes obrigações:
.-Comprovar quinzenalmente junto da DGRS as diligências efectuadas no sentido da obtenção de emprego estável;
.-Frequência de acções de formação/sensibilização para o bem jurídico violado, incluindo frequência de formação parental;
.-Sujeição a consulta da especialidade, com vista ao despiste de consumos aditivos e/ou de eventual patologia que favoreça a adopção de comportamentos como o que está em causa nos autos e observância do tratamento e/ou acompanhamento que lhe vier eventualmente a ser prescrito.

O cumprimento destas obrigações deve ser orientado, apoiado e fiscalizado pela DGRS, conforme expressamente previsto no nº4 do art. 51º do Cód. Penal.

Face ao ora decido quanto às obrigações que devem condicionar a suspensão da execução da pena a aplicar ao arguido e porque nelas não se decidiu pela obrigação de prestação de trabalho a favor da comunidade, contrariamente ao determinado na sentença recorrida, fica naturalmente prejudicada a apreciação que sobre esta questão foi suscitado pelo MºPº no recurso que interpôs.
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III–Decisão.
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto pelo MºPº e, em consequência:

1.Revoga-se a sentença recorrida no que concerne à qualificação jurídica dos factos, à pena concreta aplicada, bem como, à aplicação de trabalho a favor da comunidade como condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido.
 
2.Condena-se o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física sob a forma qualificada nos termos conjugados dos arts. 143°, n°, 145°, n°s 1 e n°2 e 132°, n°2, als. a) e c), todos do Código Penal, na pena concreta de 10 (dez) meses de prisão.

3.Declara-se suspensa pelo período de 1 (um) ano a execução da pena de prisão em que o arguido, ora, foi condenado, condicionando-se tal suspensão ao cumprimento das seguintes obrigações:
a) Comprovar quinzenalmente junto da DGRS as diligências efectuadas no sentido da obtenção de emprego ;
 b) Frequência de acções de formação/sensibilização para o bem jurídico violado, incluindo frequência de formação parental;
c) Sujeição a consulta da especialidade, com vista ao despiste de consumos aditivos e/ou de eventual patologia que favoreça a adopção de comportamentos como o que está em causa nos autos e observância do tratamento e/ou acompanhamento que lhe vier eventualmente a ser prescrito.

4º- Em tudo o mais decide-se manter a sentença recorrido.

Sem tributação.



Lisboa, 12-10-2016



(Processado e revisto pela relatora a 1ª signatária).
Ana Paramés
Maria da Graça Santos Silva