Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6140/2007-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
REVOGAÇÃO
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro deve considerar-se tacitamente revogado pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril no que respeita à matéria atinente à competência territorial

(SC)
Decisão Texto Integral: Agravo nº 6140/07
( 13ª Vara Cível – 3ª Secção – Processo nº 2300/07.0TVLSB ).


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.
Intentou S. […] S.A. a presente providência cautelar para apreensão do veículo com a matrícula 68-BU-... e respectivos documentos, ao abrigo do disposto no artigo 15º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, contra C.[…], residente […] em Matosinhos.

Alegou, em síntese, que celebrou um contrato de mútuo com o requerido, para a aquisição de veículo automóvel que identifica, tendo-lhe emprestado a importância de € 27.834,78.

Como condição da celebração do referido contrato e como garantia do seu bom cumprimento, foi exigido pela requerente ao requerido a constituição de reserva de propriedade a seu favor sobre o mencionado veículo.

Tal viatura foi vendida ao requerido com o encargo de reserva de propriedade, que se encontra devidamente registado.

Acontece que o R. não efectuou o pagamento de prestações relativas à restituição da quantia mutuada, acrescida dos respectivos juros e encargos acordados.

A requerente enviou carta registada com aviso de recepção, concedendo ao requerido o prazo de oito dias úteis para o pagamento da dívida, findo o qual a mora se convertia em incumprimento definitivo.

Até ao momento o requerido não pagou as prestações em dívida, nem procedeu à entrega da viatura automóvel referenciada.

Conclui pedindo, como preliminar da acção principal, e ao abrigo do disposto no art.º 15º, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, a apreensão do bem sobre o qual tem reserva de propriedade e, bem assim, dos respectivos documentos.

Foi proferida decisão, conforme fls. 31 a 34, declarando incompetente, em razão do território, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, atribuindo tal competência ao Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos e ordenando a remessa dos autos, após trânsito, a este último Tribunal, fundamentando-se na redacção introduzida pela Lei nº 14/06, de 26 de Abril, aos artsº 74º, nº 1 e 110º, nº 1, alínea a) e nº 3, 111º, nº 3, do Cod. Proc. Civil.

É desta decisão que foi interposto o competente agravo, admitido conforme despacho de fls. 39.
           
     Juntas as respectivas alegações, a fls. 55 a 67, formulou a agravante as seguintes conclusões :

1ª – O presente procedimento cautelar para apreensão de veículo foi instaurado ao abrigo do art.º 15º, do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, por se encontrar registada na Conservatória de Registo Automóvel a favor da requerente a reserva de propriedade sobre a viatura financiada.

2ª – Assim, o dispositivo legal a aplicar ao caso sub judice para aferição da competência judicial será o Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, nomeadamente o seu art.º 21º.

3ª – A regra da competência plasmada no art.º 21º, do referido diploma é especial face à regra geral de competência do art.º 74º, do Cod. Proc. Civil e, como tal, prevalece sobre esta.

4ª – O tribunal territorialmente competente para apreciar o caso sub judice é o da sede da proprietária, isto é, da recorrente, enquanto proprietária reservatária.

5ª – O Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, não estabelece regimes diferentes consoante os contratos que originam a constituição da reserva de propriedade.

6ª – Ora, a constituição da reserva de propriedade pode fundar-se em contratos de alienação e outros, como sejam o financiamento para aquisição de bens, face à evolução verificada no comércio e nos meios de aquisição de bens para consumo.

7ª – Acresce que o nº 1, do art.º 18º, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, exige é que seja proposta acção de resolução do contrato cuja reserva de propriedade é garantida, sendo perfeitamente concebível que tal contrato seja um contrato de mútuo.

8ª – Sendo certo, aliás, que o decretamento do procedimento cautelar está apenas condicionado à existência de um registo de reserva de propriedade a favor do requerente e ao não cumprimento das obrigações cuja reserva é garantida e não à apreciação da natureza da acção a instaurar futuramente.

9ª – Ademais, na data da celebração do contrato de crédito foi constituído um pacto de aforamento constante da 15ª cláusula das condições gerais do contrato, o qual estabelece como foro competente a comarca de Lisboa para a resolução de todos os litígios emergentes do contrato celebrado.

10ª – E atendendo ao disposto no art.º 100º, do Código de Processo Civil ( redacção do art.º 110º anterior à entrada em vigor da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril ) às partes “ …é permitido afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território…”.

11ª – Assim, considera a recorrente ser o referido pacto de aforamento contido na cláusula 15ª das condições gerais do contrato, junto aos autos, perfeitamente válido e eficaz, porquanto foi celebrado em momento anterior à entrada em vigor da Lei nº 14/2006.

12º - Mais, no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da irretroactividade da lei, logo, a nova Lei 14/2006, de 26 de Abril, apenas retirou aos sujeitos jurídicos a possibilidade de celebrarem pactos de aforamento, e não que os pactos anteriormente celebrados deixariam de ser válidos, pois que isso atentaria claramente contra a segurança jurídica que subjaz ao referido princípio da irretroactividade da lei, e consubstancia que estaríamos perante, não uma aplicação imediata da lei, mas a uma aplicação retroactiva da mesma, o que não se aceite nem concebe.

13ª – Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a apreensão, a sede desta se encontrar em Lisboa, bem como, estando sumariamente alegado que o requerido não cumpriu as obrigações que originaram a reserva de propriedade, sem prejuízo de se apresentarem outras provas, nomeadamente prova testemunhal, julgamos que se encontram reunidos os pressupostos da presente providência cautelar de apreensão de veículos, nos termos do art.º 15º, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, o respectivo decretamento no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. 

Foi proferido despacho de sustentação conforme fls. 71.
 
II – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.

O conhecimento do presente recurso reconduz-se à apreciação das seguintes questões de direito :

1 – Da revogação tácita do art.º 21º, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.
2 - Determinação do Tribunal territorialmente competente para a interposição e subsequente tramitação de acção de dívida fundada em contrato contendo cláusula de foro convencional, face às alterações introduzidas pela Lei nº 14/06, de 26 de Abril, nos artsº 74º, nº 1 e 110º, nº 1, alínea a), do Cod. Proc. Civil.

Passemos à sua análise :

1 – Da revogação tácita do art.º 21º, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.

A competência territorial da 13ª Vara Cível de Lisboa para o conhecimento da presente providência cautelar assenta necessariamente na vigência do art.º 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, que dispõe : “o processo de apreensão e as acções relativas a veículos apreendidos são da competência do tribunal de comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário ”.

É nosso entendimento que este preceito foi tacitamente revogado pelas alterações introduzidas no Código de Processo Civil, em matéria de competência territorial, pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril.

Esta mesma questão jurídica foi já apreciada e decidida, de forma clarividente, nos acórdãos da Relação de Lisboa de 22 de Março de 2007, processo nº 1935/2007 ( relator Salazar Casanova ) ; 29 de Maio de 2007, processo 4386/2007 ( relator António Abrantes Geraldes ) ; 29 de Maio de 2007, processo nº 4114/2007 ( relatora Isabel Salgado ), todos eles publicados in www.dgsi.pt, os quais merecem a nossa inteira concordância, e para cuja exaustiva e convincente fundamentação nos permitimos remeter.

Limitamo-nos, portanto, a deixar registadas, sinteticamente, as razões que suportam, em termos essenciais, a presente decisão:

1ª - Há lugar à revogação da lei especial pela lei geral, quando essa for a vontade inequívoca do legislador, em conformidade com o preceituado no art.º 7º, nº 3, do Cod. Civil.
2ª - Tal “ vontade inequívoca do legislador “ terá que buscar-se nas declarações e na afirmação de princípios que precederam e acompanharam o processo legislativo, extraindo-se da expressão e assunção literal dos seus propósitos, justificando-se através da identidade de razões que presidiram à modificação do quadro legal, bem como pela análise global da conjuntura social e económica que visa disciplinar, tudo levando o intérprete a concluir, com razoável segurança, pelo juízo revogatório omitido pelo legislador.
3ª - Na situação sub judice, da leitura da Resolução do Conselho de Ministros nº 100/05, de 30 de Maio, onde são expostas as circunstâncias que levaram o legislador a alterar o critério de atribuição de competência territorial[1] ; da justificação da Proposta de Lei nº 389/2005, de 24 de Novembro, apresentada pelo Governo junto da Assembleia da República, onde a lei foi aprovada, e dos Trabalhos Preparatórios, deverá forçosamente concluir-se que, inexistindo qualquer especialidade nos litígios que envolvem a aquisição de veículos automóveis, a regra resultante do artigo 21º, do diploma aprovado em 1975, manifesta-se em clara e frontal oposição com a prossecução dos efeitos queridos pelo legislador de 2006 : proporcionar a redistribuição de processos pela generalidade dos tribunais e consagrar uma tutela efectiva dos direitos do consumidor.
4ª – A própria ratio legis que presidiu, em 1975, ao critério definido pelo art.º 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, está naturalmente desactualizada, perante o hodierno panorama de verdadeira hecatombe processual que atinge os tribunais dos grandes centros, face ao crescimento exponencial dos litígios de consumo associados à aquisição de viaturas automóveis e outros bens.
5ª – A Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, expressa uma vontade inequívoca do legislador em empreender uma modificação global do regime da competência territorial em matéria de incumprimento contratual, estabelecendo um quadro geral abrangente susceptível de inverter a tendência resultante do regime que privilegiava, nestes casos[2], o interesse do credor na determinação do foro judicial que mais lhe convinha, com a consequente desprotecção efectiva dos interesses do consumidor.
6ª – Em coerência com este desígnio, não poderia o mesmo legislador[3] ter pretendido deixar de fora a regra de determinação de competência territorial ínsita art.º 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, cujos pressupostos reclamam exactamente o mesmo tratamento jurídico concedido à generalidade das situações abrangidas pela modificação legislativa.
7ª – Com efeito, não se vislumbra, quanto à providência cautelar em apreço e respectiva acção principal, qualquer fundamento específico que justifique, materialmente, a subsistência, neste particular, deste regime esparso em matéria de atribuição territorial de competência, fixado há mais de trinta anos[4].
8ª – In casu, a lei especial ( art.º 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro ) encontra-se, perfeita e indubitavelmente, abrangida pelos pressupostos que estiveram na base das alterações legislativas promovidas pela lei geral ( Lei nº 14/2006, de 26 de Abril ).
9ª – Dir-se-á, finalmente, que não faz qualquer sentido a dissociação entre a revogação da norma de competência territorial respeitante à acção principal e a concernente ao procedimento cautelar, dependente, substantiva e processualmente, da primeira.
2 - Determinação do Tribunal territorialmente competente para a interposição e subsequente tramitação de acção de dívida fundada em contrato contendo cláusula de foro convencional, face às alterações introduzidas pela Lei nº 14/06, de 26 de Abril, nos artsº 74º, nº 1 e 110º, nº 1, alínea a), do Cod. Proc. Civil.
 
Consta da cláusula 15ª do contrato celebrado entre as partes, datado de 12 de Maio de 2006 :

“ FORO:
Para resolução de eventuais litígios, de natureza declarativa ou executiva emergentes do presente contrato é  estipulado o foro da comarca de Lisboa com expressa renúncia a qualquer outro “.

A presente acção deu entrada em juízo em 15 de Maio de 2007, ou seja, quando já se encontrava em vigor a redacção introduzida pela Lei nº 14/06, de 26 de Abril, nos artsº 74º, nº 1 e 110º, nº 1, do Cod. Proc. Civil[5].

Contrariamente ao referido pela agravante, aquando da estipulação da cláusula contratual consagrando o pacto de foro convencionalem 12 de Maio de 2006 -, também já se encontrava em vigor a Lei nº 14/2006, de 26 de Abril.

Não se coloca, assim, qualquer questão respeitante à retroactividade da aplicação deste novo regime legal.

A inclusão da primeira parte do nº 1, do art.º 74º, do Cod. Proc. Civil, no elenco das situações em que a incompetência do Tribunal, em razão do território, é do conhecimento oficioso ( art.º 110º, nº 1, alínea a ) ), não permitindo às partes, no caso de acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, o afastamento, por acordo, do critério legal estabelecido ( art.º 100º, nº 1, in fine ), aplica-se directamente ao contrato sub judice, celebrado em data posterior à entrada em vigor da nova Lei.
O agravo não merece provimento.

III - DECISÃO :

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela agravante.


Lisboa, 12 de Julho de 2007.

   (Luís Espírito Santo)                             
      ( Isabel Salgado )
      ( Roque Nogueira ).

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[1] Salientando-se como objectivo fundamental o de racionalizar os meios judiciários postos à disposição dos interessados para a boa administração da justiça
[2] Encontramo-nos perante verdadeiros contratos de adesão, nos quais a liberdade de estipulação por parte do aderente encontra-se fortemente constrangida.
[3] Que se presume ter consagrado as soluções mais acertadas ( artº 9º, nº 3, do Cod. Civil ).
[4] O único argumento/fundamento em que se estriba verdadeiramente a tese oposta é o meramente formal : não há revogação porque o legislador não o disse…
[5] Dispõe o artº 6º, a Lei nº 14/06, de 26 de Abril : “ A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instaurados ou apresentados depois da sua entrada em vigor “.