Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
784/23.8YRLSB-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS MATERIAIS
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
PRESSUPOSTOS INDEMNIZATÓRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- O lesado que seja privado de usufruir e dispor de veículo de que é proprietário em consequência de evento ilícito causado por terceiro, tem direito a ser indemnizado pela mera privação do uso, por se tratar de dano autónomo suscetível de indemnização.
2. A quantia destinada a ressarcir a indisponibilidade da fruição do bem deve ser determinada casuisticamente, em face dos circunstancialismos atinentes ao evento lesivo e por recurso à equidade nos termos previstos nos art.ºs 4º, al. a), e 566º, nº 3, do Código Civil.
3. Provado, apenas, que o lesado ficou privado do uso de uma scooter e desconhecendo-se, o fim a que a destinava, designadamente, se era o seu meio de transporte habitual ou estava destinada a outros fins, nomeadamente lúdicos e/ou de veraneio, e quais os constrangimentos concretamente sofridos em consequência da privação, afigura-se justo e adequado, o arbitramento diário de €20,00 a título de indemnização.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
R…, com residência em Rua…., Seixal, apresentou junto do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) reclamação contra “Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A.”, com sede no Largo do Calhariz, 30, em Lisboa, alegando que esta seguradora se responsabilizou pelo acidente em que foi interveniente quando conduzia motociclo de que é proprietário, que nunca disponibilizou veículo de substituição – limitou-se a disponibilizar-se para pagar €28,00 por cada dia efetivo de reparação -, e que recusou o pagamento de vários danos, entre eles, a privação do uso do veículo e danos não patrimoniais.
Terminou, pedindo, entre outros, o pagamento de €1.500,00 a título de danos não patrimoniais e pelo dano de privação de uso do motociclo, a quantia diária de €60,00, por referência a 56 dias, tudo acrescido de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data do acidente até ao pagamento das quantias em dívida.
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Não foi possível a resolução amigável do litígio.
Em 24 de outubro de 2022, R… declarou aderir ao Serviço de Mediação e Arbitragem do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros e aceitar a Arbitragem como forma de resolução do litígio em que é parte reclamada a sobredita seguradora, aceitando, ainda, como regras de processo a observar na Arbitragem, as constantes dos Regulamentos aprovadas por aquele Centro.
O reclamante aceitou estar presente em Conferência de Mediação.
A reclamada foi notificada para contestar, e fê-lo, impugnando os danos alegados pelo reclamante, invocando, ainda, a sua litigância de má fé, pedindo que lhe seja arbitrada multa.
Indicou prova.
Declarou não pretender estar presente em conferência inicial.
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Foi realizado julgamento arbitral, o qual foi objeto de gravação, após o que foi proferida a seguinte decisão:
“Face ao acima exposto, considera-se parcialmente procedente, por provada, a reclamação apresentada pelo Reclamante, R…., condenando-se a Reclamada, Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A., a liquidar ao Reclamante os seguintes valores:
. óculos – 241,70€;
. casaco – 259,95€;
. capacete com intercomunicador – 679,00€;
. privação de uso (56 dias) - 1120,00€,
num valor total de 2.300,65€, acrescido de juros de mora à taxa de 4% desde a data do acidente até pagamento deste valor”.
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Foram considerados provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:
1. No dia 24 de junho de 2021, pelas 19.48 horas, no tabuleiro da ponte 25 de Abril, sentido Lisboa – Almada, verificou-se um acidente entre a viatura ZE, propriedade do reclamante e por si conduzida, e a viatura FC, segura na reclamada.
2. Com efeito, o veículo FC encontrava-se, à data, seguro na reclamada pela apólice nº 755993640, cujo tomador é J...
3. A reclamada assumiu desde logo a responsabilidade pelo acidente em causa.
4. Tendo apurado os danos sofridos pela viatura ZE e regularizado os mesmos.
5. Em consequência do acidente, o reclamante sofreu danos em vários objetos,
6. Como sendo o casaco que usava à data, no valor de 259,95€,
7. O capacete, com intercomunicador incorporado, no valor de 679,00€,
8. E os óculos, graduados, que se encontravam no bolso do casaco, sendo o valor apurado para a substituição dos mesmos de 241,70€.
9. O reclamante esteve privado do uso do veículo entre a data do acidente, 24/06/2021, e a data da conclusão da reparação em 30/08;
10. Com exceção do dia 6 de julho, em que utilizou excecionalmente o veículo.
11. Tendo sido ressarcido pela reclamada pelos valores despendidos em deslocações nos dias 30/06 e 27/07.
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Foi considerada como não provada a seguinte factualidade:
1. O valor de 60 €/dia relativo à privação de uso do veículo ZE.
2. A desvalorização do veículo em consequência do acidente.
3. A gravidade dos danos não patrimoniais.
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O Reclamante não se conformou com aquela decisão e veio, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 29º, nº 2, do Regulamento do CIMPAS e art.º 644º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil, interpor recurso da decisão arbitral, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“I. Por ser relevante e resultar do Doc. nº 2 junto com o formulário de reclamação, deve ser aditado aos factos provados o seguinte:
“A scooter de matrícula ..-ZE-.., com 638 cc de cilindrada, foi adquirida nova por €10.900.01 em 17.09.2019, tendo à data do acidente 21 meses e menos de 11.000 Km circulados”.
II. Por ser relevante e resultar dos Docs. nº 3, 7 e 9 juntos com o formulário de reclamação, deve ser aditado aos factos provados o seguinte:
“Após o acidente e até à reparação dos danos na scooter o Recorrente pediu à recorrida, por 8 vezes, que esta lhe disponibilizasse uma scooter de substituição, pedidos esses que ou não foram respondidos, ou foram negados”.
III. Por ser relevante e resultar do Doc. nº 9 junto com o formulário de reclamação, deve ser aditado aos factos provados o seguinte:
 “A Recorrida disponibilizou-se a pagar ao Recorrente €28 por cada dia em que a scooter estivesse em reparação”.
IV. Por ser relevante e resultar das declarações de parte prestadas pelo Recorrente (Ficheiro GMT202221212-110518 – Recording, 00:06:17, melhor descrito nas alegações) deve ser aditado aos factos provados o seguinte:
“No verão de 2021, concretamente entre a data do acidente (24.06.2021) e a data da reparação da scooter (30.08.2021), o Recorrente sofreu stress e angústia por estar impedido de passear com a sua scooter, o que habitualmente fazia durante o verão”.
V. O Recorrente descreveu, nos pontos 5 e 11 do formulário de reclamação, que para alugar uma scooter de características semelhantes às suas teria de despender entre €71,90 e €96 por dia, e provou essa alegação juntando o Doc. nº 10 que integrava 3 orçamentos.
VI. À data do acidente a scooter do recorrente tinha apenas 21 meses e menos de 11.000 Km, o que tem relevância na ponderação do valor do aluguer pois será necessariamente diferente o dano causado pela privação de um veículo com 1 ano ou com 20 anos.
VII. A doutrina tem vindo a defender que a quantificação do dano de privação do uso seja feita utilizando como referência o montante necessário para alugar uma viatura com características semelhantes; neste sentido se pronuncia o Professor Luís Menezes leitão e o Professor Juiz Conselheiro António Santos Abrantes Geraldes.
VIII. Apesar de se entender como justa e adequada a proposta dos ilustres professores, não se olvida que o valor do aluguer inclui o lucro da entidade locadora, pelo que considerar, tout court, que o dano é o valor completo do aluguer poderá conduzir a uma situação de enriquecimento do lesado à custa do lesante.
IX. Ora, tendo isso em consideração o Recorrente não pediu como indemnização o valor máximo previsto nos orçamentos (ou sequer o valor mínimo), mas peticionou um valor inferior ao mínimo necessário para alugar uma scooter de cilindrada inferior à sua, o que se reputa como justo e adequado.
X. Neste sentido, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma que condene a recorrida a pagar ao Recorrente, a título de indemnização pelo dano de privação de uso €60 por dia de imobilização (total de 56 dias), acrescido de juros de mora à taxa de 4% desde a data do acidente até ao pagamento.
XI. Não obstante, caso se considerasse que o valor do dano não deverá ser quantificado da forma proposta, o que apenas se concede por cautela de patrocínio, note-se que a recorrida disponibilizou-se a pagar €28 por cada dia efetivo de reparação, pelo que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma que condene a Recorrida a pagar ao Recorrente, a título de indemnização por dano de privação de uso, pelo menos €28 por dia de imobilização (total de 56 dias), acrescido de juros de mora à taxa de 4% desde a data do acidente até ao pagamento.
XII. Relativamente aos danos não patrimoniais, o Recorrente expôs nas suas declarações de parte o stress e angústia que sofreu em virtude de ser impedido de passear com a scooter no período temporal em causa (jun-ago) que, como se sabe, é o mais propício a passeios de mota, dado que após agosto as temperaturas tendem a baixar e deixam de ser tão convidativas a passeios e convívios.
XIII. Acresce que, a responsabilidade civil por danos não patrimoniais também tem uma função punitiva e, como se viu, o grau de culpa da Recorrida é elevado, pois a sua atuação foi meramente comercial: violar a lei dá mais lucro do que cumpri-la.
XIV. Quando o comportamento dos grandes grupos económicos assenta numa racionalidade económica, independentemente da lei e dos danos que causam, e essa atuação é validada por um tribunal que atribui indemnizações insuficientes para provocar uma alteração destes comportamentos, construímos uma sociedade em que a lei não traz justiça…e nas palavras de William Scott Downey “Lei sem justiça é uma ferida sem cura”.
XV. Os danos sofridos pelo Recorrente, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, bem como a conduta da recorrente à altamente reprovável e merece censura, pelo que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma que condene a recorrida a pagar ao Recorrente, a título de indemnização por danos não patrimoniais, €1.500,00, acrescido de juros de mora à taxa de 4% desde a data do acidente até ao pagamento.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve ser feito um aditamento aos factos provados, conforme descrito supra, e deve a decisão em crise ser revogada e substituída por uma que:
(I) atribua ao Recorrente €60 diários, durante 56 dias, a título de indemnização pelo dano de privação de uso;
(II) atribua ao Recorrente €1.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, e
(III) todos os valores acrescidos de juros de mora à taxa de 4% desde a data do acidente até ao pagamento.
assim se fazendo justiça”.
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A recorrida respondeu ao recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
I. Inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, veio o Recorrente interpor recurso da douta sentença, requerendo a revogação da mesma na parte em que absolve a recorrida no pagamento de uma indemnização pelo dano privação de uso, no montante diário de €60,00 e o pagamento de €1.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, por considerar que “mal andou o Tribunal Arbitral a quo ao entender que o Recorrente não fez prova relativamente ao montante diário peticionado a título indemnização pelo dano de privação de uso e que não fez prova quanto aos danos não patrimoniais”.
II. No que respeita ao quantum indemnizatório pela privação de uso. “(…) o Reclamante não apresenta qualquer prova deste valor, que é manifestamente superior aos valores habitualmente praticados e à jurisprudência deste Tribunal”.
III. No que concerne aos “danos não patrimoniais sofridos (…) alegando ter ficado provado do seu veículo no Verão, período de eleição para utilização da sua scooter. Todavia, não fez qualquer prova deste facto, limitando-se a alega-lo (…)”.
IV. Com efeito, dispõe o art.º 342º do CC, sob a epígrafe “Ónus da prova” que: “1- Àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
V. De facto, in casu, o Reclamante, ora recorrente teria que ter provado os efectivos danos causados pela privação do uso do veículo e que os mesmos se compatibilizaram em € 60/dia, o que não fez!
VI. E o mesmo se diga, no que concerne aos alegados danos morais, cabendo – ainda assim – a posteriori ao Tribunal decidir quanto à (falta de) gravidade dos mesmos e sua repercussão numa hipotética indemnização a este título, pelo que
VII. A decisão sobre a matéria de facto, não merece qualquer censura, pois respeitou todas as regras e princípios processuais aplicáveis, designadamente o princípio da livre apreciação da prova e as regras referentes ao ónus da prova, previstas nos art.ºs 607º do CPC e 342º e 346º do Código Civil.
VIII. Aliás, no que concerne à indemnização pela privação de uso, existe jurisprudência com entendimento diverso do adoptado pela douta sentença, nomeadamente, que entende ser necessária a prova concreta dos efectivos prejuízos e danos causados por tal privação, o que, reitere-se, efectivamente, o Reclamante, ora recorrente não fez!
IX. Motivo pelo qual, salvo o devido respeito, em bom rigor e nos termos do disposto no art.º 483º, 562º, e 563º, do CC, não deveria a ora Recorrente ter sido condenada no pagamento da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo a título de privação de uso do veículo, sendo certo que a mencionada decisão não admite recurso pela ora Recorrida, porquanto a mesma não é desfavorável à ora recorrida em valor superior a metade da alçada desse Tribunal, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 629º do CPC.
X. Conforme doutamente refere a douta sentença, “no que respeita aos danos não patrimoniais peticionados, o art.º 495º do C.C. que estabelece a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, estabelece no seu nº 1 que
“Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam, a tutela do direito”.
XI. E, ainda como bem refere a douta sentença, “em momento algum, o Reclamante faz prova dessa gravidade”, tanto mais que os (parcos e) únicos esclarecimentos prestados sobre esta matéria, foram a título de declarações de parte, com as legais consequências.
XII. Em face do exposto e, face à factualidade provada, entende-se que não deverá, de forma alguma, ser atribuída indemnização a título de danos morais, sob pena de clara violação do disposto nos art.ºs 483º e 496º do C.C..
XIII. Em suma, a sentença proferida pelo Tribunal a quo não padece de qualquer vício, devendo, por isso, manter-se a decisão recorrida nos seus exactos termos.
Nestes termos e, nos melhores de direito que V. Exas. queiram suprir, deve o presente recurso ser considerado totalmente improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida, com o que se fará JUSTIÇA”.       
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Recebido o recurso neste tribunal e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art.ºs 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões a decidir são as seguintes:
A) Impugnação de facto;
B) Valor da indemnização pela privação do uso do veículo sinistrado;
C) Ressarcimento de danos não patrimoniais ao apelante.
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Da impugnação da decisão de facto
O apelante pede o aditamento do seguinte facto, com base no documento nº 2 com que instruiu a reclamação junto do centro de arbitragem:
“A scooter de matrícula ..-ZE-.., com 638 cc de cilindrada, foi adquirida nova por € 10.900.01 em 17.09.2019, tendo à data do acidente 21 meses e menos de 11.000 Km circulados”.
A matéria considerada como provada após a realização do julgamento arbitral não descreve as características do veículo pertencente ao apelante, que podem ter interesse na apreciação do recurso, nomeadamente na vertente da apreciação do dano de privação do uso, já não revelando interesse a matéria concernente ao custo de aquisição do veículo, por tratar-se de elemento que não relevará na ponderação que o tribunal terá de fazer para decidir do erro de julgamento (de direito) invocado.
Deste modo, deferindo-se parcialmente a impugnação, adita-se o seguinte facto (nº 12) à matéria de facto provada:
12- O veículo com matrícula ..-ZE-.., datada de 9/2019, tem a categoria de scooter, é da marca Suzuki, com 638 cc de cilindrada e à data do acidente tinha percorrido 11.123 Km.
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O apelante pede, ainda, o aditamento do seguinte facto:
“Após o acidente e até à reparação dos danos na scooter o Recorrente pediu à recorrida, por 8 vezes, que esta lhe disponibilizasse uma scooter de substituição, pedidos esses que ou não foram respondidos, ou foram negados”.
Estamos perante matéria que em face do objeto do recurso assinalado não releva para a apreciação das questões colocadas a este tribunal, pelo que tratando-se de matéria inútil à decisão, ainda que porventura documentada tal como afirma o apelante, não tem que dela constar, considerando, inclusivamente, o disposto no art.º 130º, do Código de Processo Civil, pelo que se indefere, nesta parte, a impugnação.
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Por referência ao documento nº 9, o recorrente pede que seja aditada à matéria de facto provada a seguinte facticidade:
“A Recorrida disponibilizou-se a pagar ao Recorrente €28 por cada dia em que a scooter estivesse em reparação”.
Considerando o teor do documento datado de 9 de agosto de 2021, dirigido pela seguradora ao ora apelante, e porque, nesta fase, não é de descartar a possibilidade de o facto em questão vir a ser ponderado no âmbito da questão sobre o valor da privação de uso do motociclo, defere-se o requerido e adita-se à matéria de facto provada a seguinte factualidade (nº 13):
13- No dia 9 de agosto de 2021 a seguradora/reclamada comunicou ao reclamante o seguinte: “Relativamente à paralisação, após a conclusão da peritagem e iniciando a reparação, pagaremos 28€ por cada dia efetivo de reparação, uma vez que não efetuamos aluguer de motociclos”.
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Finalmente, no âmbito da impugnação da matéria de facto, o apelante vem pedir que com base nas declarações que prestou no julgamento arbitral e por referência ao ficheiro GMT202221212-110518 – 00:06:17, seja julgado como provado o seguinte facto:
“No verão de 2021, concretamente entre a data do acidente (24.06.2021) e a data da reparação da scooter (30.08.2021), o Recorrente sofreu stress e angústia por estar impedido de passear com a sua scooter, o que habitualmente fazia durante o verão”.
Nos termos do disposto no art.º 466º, nº 3, do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
 Ao prestar declarações, a parte assume-se testemunha de si própria.
Por isso, a valoração das declarações de parte, e quanto a factos que lhe são favoráveis, tem de ser feita de forma especialmente cautelosa, dado o interesse que tem no desfecho da ação.
A valoração das declarações de parte tem suscitado discussão na doutrina e jurisprudência, sendo possível diferenciar três tratamentos da questão.
Segundo uma das teses formadas, as declarações de parte constituem uma forma de o juiz esclarecer, clarificar o resultado das demais provas produzidas em audiência. A título de exemplo, neste sentido e seguindo a tese defendida por Lebre de Freitas ( “Processo Civil Declarativo, Livraria Almedina, 2014, pág. 357), veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8 de julho de 2021, proferido no âmbito do processo nº 5281/19.3T8VIS.C1, cujo texto integral está acessível no sítio da internet www.dgsi.pt, e em cujo sumário se lê, que: “ O tribunal aprecia livremente as declarações de parte (salvo se houver confissão), nos termos do art.º 466º, nº 3, do NCPC; naturalmente porque a própria parte tenderá a declarar aquilo que a favorece e sustenta a posição/versão que apresentou nos autos e que, portanto, visa defender os seus interesses.
O tribunal na maioria dos casos não pode bastar-se com essas meras declarações para comprovar factos; assim, a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado de outras provas produzidas.”
Uma segunda tese defende que as declarações de parte não sendo suficientes para, de per si, sustentar a prova de factos favoráveis ao depoente, permitem quando conjugadas com outros meios de prova que as corroborem, sustentar a convicção do juiz quanto à prova de tais factos.
A título meramente exemplificativo, e naquele sentido, citam-se os seguintes acórdãos:
- Do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18/01/2018 (proferido no processo nº 294/16.0Y3BRG.G1 e acessível naquele mesmo local), em cujo sumário se lê:
“- O Código de Processo Civil de 2013 introduziu, no seu artigo 466.º, um novo e autónomo meio de prova, a figura da prova por declarações de parte, que não pode contudo ser requerida pela parte contrária, mas nada obsta a que o depoimento de parte, na parte não confessória possa ser livremente apreciado pelo julgador, desde que observada a devida cautela, pois por natureza é um depoimento interessado.
II - Da declaração da parte importa que o seu relato esteja espontaneamente contextualizado e seja coerente, quer em termos temporais, espaciais e emocionais e que seja credenciado por outros meios de prova, designadamente que as declarações da parte sejam confirmadas, por outros dados, que ainda indirectamente, demonstrem a veracidade da declaração. Caso contrário a declaração revelará força probatória de tal forma débil que não deve ser tida em conta.
III - A prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das acções serem decididas apenas com as declarações das próprias partes.”
- Do Tribunal da Relação de Lisboa (acórdão proferido em 13 de outubro de 2016, no processo nº 640/13.8TCLRS.L1.2, igualmente acessível em www.dgsi.pt), de cujo sumário consta: “A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, sendo, porém, normalmente insuficiente para valer como prova de factos favoráveis à procedência da acção desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie”.
Por último, há quem defenda que o juiz pode sustentar a sua convicção quanto à prova dos factos nas declarações de parte sem recurso a outros meios probatórios. Neste sentido, Mariana Fidalgo (in “A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80), que defende que as declarações de parte não podem ser estigmatizadas como meio de prova “(…) sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.»
A questão da autossuficiência das declarações de parte para a formulação da convicção do juiz quanto à prova de factos que lhe são favoráveis assume especial relevância nas situações em que não existam outros meios de prova diretos, nem se descortinem outros elementos indiretos capazes de sustentar as declarações. 
As declarações de parte são apreciadas em todas as situações de forma livre pelo tribunal segundo o princípio contido no nº 5, do art.º  607º, do Código de Processo Civil, mas terá, sempre, de se aferir da credibilidade do depoente em função da sua razão de ciência, da sua espontaneidade, da objetividade revelada pelo seu discurso, da capacidade de descrever os factos com assertividade e em estrita consonância com a realidade espácio-temporal, de concretizar situações, pormenores…Como assinala o acórdão da Relação do Porto de 20 de fevereiro de 2020, proferido no processo nº 9548/18.4T8PRT.P1 – no seu sumário -, mas cujo texto integral também está acessível em www.dgsi.pt:
“(…)
II - As declarações de parte apenas são admissíveis se corresponderem a prova direta (factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou sejam do seu conhecimento direto), não se convertendo automaticamente numa demonstração imediata e suficiente dos factos controvertidos, tratando-se antes de uma prova habilitada, cuja valoração está sujeita à livre apreciação do tribunal.
III - Para o efeito, será de submeter as declarações de parte, como qualquer outra prova oral, a um standard de valoração judicial, que passa pela sua credibilidade subjetiva (a), designadamente a sua razão de ciência e os seus interesses (pessoal, profissional ou qualquer outro), credibilidade objetiva (b), mormente no confronto com prova pré-constituída, e a verosimilhança da sua versão (c), tanto ao nível da coerência narrativa, como do contexto descritivo e eventual corroboração periférica.
(…).”
No caso sub iudice, o facto que o apelante pretende aditar ao acervo factual já apurado, diz respeito ao seu estado anímico decorrente de não ter podido usar a scooter após o acidente e durante o período de verão.
Trata-se dum facto que lhe é totalmente favorável, com base no qual sustenta o direito a uma indemnização por danos não patrimoniais. Sobre tal factualidade não foi produzida qualquer outra prova e o tribunal não se pode bastar e basear na simples declaração do apelante, sendo a mesma, de per si, insuscetível de firmar convicção minimamente segura quanto à veracidade do estado psíquico e mental do apelante decorrente da situação referenciada.
Deste modo, porque ao apelante cabia ter apresentado prova cabal da factualidade que pretendia ver como demonstrada e mostrando-se insuficiente aquela que apresentou e foi produzida, indefere-se, nesta parte, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
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Na sequência do exposto, tem-se como definitivamente fixado o seguinte quadro factual:
Factos Provados
1. No dia 24 de junho de 2021, pelas 19.48 horas, no tabuleiro da ponte 25 de Abril, sentido Lisboa – Almada, verificou-se um acidente entre a viatura ZE, propriedade do Reclamante e por si conduzida, e a viatura FC, segura na Reclamada.
2. Com efeito, o veículo FC encontrava-se, à data, seguro na reclamada pela apólice nº 755993640, cujo tomador é J….
3. A Reclamada assumiu desde logo a responsabilidade pelo acidente em causa.
4. Tendo apurado os danos sofridos pela viatura ZE e regularizado os mesmos.
5. Em consequência do acidente, o Reclamante sofreu danos em vários objetos,
6. Como sendo o casaco que usava à data, no valor de 259,95€,
7. O capacete, com intercomunicador incorporado, no valor de 679,00€,
8. E os óculos, graduados, que se encontravam no bolso do casaco, sendo o valor apurado para a substituição dos mesmos de 241,70€.
9. O Reclamante esteve privado do uso do veículo entre a data do acidente, 24/06/2021, e a data da conclusão da reparação em 30/08;
10. Com exceção do dia 6 de julho, em que utilizou excecionalmente o veículo.
11. Tendo sido ressarcido pela reclamada pelos valores despendidos em deslocações nos dias 30/06 e 27/07.
12- O veículo com matrícula ..-ZE-.., datada de 9/2019, tem a categoria de scooter, é da marca Suzuki, com 638 cc de cilindrada e à data do acidente tinha percorrido 11.123 Km.
13- No dia 9 de agosto de 2021 a seguradora/reclamada comunicou ao reclamante o seguinte: “Relativamente à paralisação, após a conclusão da peritagem e iniciando a reparação, pagaremos 28€ por cada dia efetivo de reparação, uma vez que não efetuamos aluguer de motociclos.
**
Foi considerada como não provada a seguinte factualidade:
1. O valor de 60€/dia relativo à privação de uso do veículo ZE.
2. A desvalorização do veículo em consequência do acidente.
3. A gravidade dos danos não patrimoniais.
Fundamentação de Direito
Em primeiro lugar, de forma sucinta e sem necessidade de fundamentação exaustiva, cabe decidir pela improcedência do recurso no que diz respeito ao pedido de fixação de indemnização por danos não patrimoniais, por ter sido julgada improcedente a impugnação relativa à decisão de facto e, consequentemente, não ter resultado como provada a matéria que sustentava aquele pedido, improcedendo, pois, nesta parte, o pedido de alteração da decisão arbitral.
A segunda questão colocada perante este tribunal prende-se com o valor fixado pela decisão arbitral a título de indemnização pelo dano de privação de uso (€20,00 diários), pretendendo o apelante que tal valor seja fixado em €60,00 por dia de imobilização, no total de 56 dias, acrescido de juros de mora à taxa de 4% desde a data do acidente até ao pagamento.
Não se discute, assim, se é devida indemnização pela mera privação ilícita de um bem – no caso, a privação do uso do motociclo decorrente dos danos causados por embate imputável ao segurado da apelada -, pois não obstante a apelada questione nas contra-alegações e conclusões recursivas a possibilidade de tal dano ser indemnizável enquanto dano autónomo, fá-lo, reconhecendo que lhe está vedada a interposição de recurso da decisão, sendo pois, irrelevante o que diz a tal respeito na resposta ao recurso.
Diremos, não obstante, que a indemnização pela simples privação de uso de veículo automóvel é hoje pacificamente aceite.
Perfilhando este entendimento, diz António Santos Abrantes Geraldes[1], que “se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. Fazer depender a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis directamente à privação é solução que pode justificar-se quando o lesado pretenda uma quantia suplementar correspondente aos “benefícios que deixou de obter”, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do art.º 564º, nº 1, ou às despesas acrescidas que o evento determinou; já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao “prejuízo causado”, isto é, aos danos emergentes”.  
Nestas circunstâncias, a avaliação do prejuízo patrimonial e a atribuição de compensação terá de ser efetuada com base nas circunstâncias factuais concretamente apuradas e por recurso às regras da equidade, de forma a obter-se uma decisão justa, rematando aquele autor o seu estudo, concluindo:
“a) Provando-se a existência de prejuízos efectivos decorrentes da imobilização de um veículo, designadamente por causa de actividades que deixaram de ser exercidas,
de receitas que deixaram de ser auferidas ou de despesas acrescidas, terá o lesado o direito de indemnização de acordo com a aplicação directa da teoria da diferença, considerando não apenas os danos emergentes como ainda os lucros cessantes;
b) Tratando-se de veículo automóvel de pessoa singular ou de empresa utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples previsão do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo tenha sido substituído por outro de reserva;
c) Mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado;
d) Em qualquer das situações, sem prejuízo do recurso à equidade ou mesmo à condenação genérica, a quantificação tanto dos danos emergentes como dos lucros cessantes será feita tomando em consideração todas as circunstâncias que rodearam o evento, nomeadamente a natureza, o valor ou a utilidade do veículo, os reflexos negativos na esfera do lesado ou aumento das despesas ou a redução das receitas;
e) Em todos os casos serão sempre ponderados os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável agiram na resolução do caso”.
Em termos jurisprudenciais, e a título meramente exemplificativo do seguimento que hodiernamente vem merecendo esta solução, vejam-se os seguintes acórdãos:
- Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 5/07/2007 (C.J. - Supremo Tribunal de Justiça, ano XV, Tomo 2, pág. 153), onde se decidiu que «…a privação de uso de um veículo automóvel durante certo lapso de tempo, em consequência dos danos sofridos em acidente de trânsito, constitui, só por si, um dano indemnizável (…).
O dono do veículo, ao ser-lhe tornada impossível a utilização desse veículo durante o período em causa, sofre uma lesão no seu património, uma vez que deste faz parte o direito de utilização das coisas próprias. E essa lesão é avaliável em dinheiro, uma vez que a utilização de um veículo automóvel no comércio implica o dispêndio de uma quantia em dinheiro. A medida do dano é, assim, definida, pelo valor que tem no comércio a utilização desse veículo durante o período em que o dono está dele privado.
O dano produzido atinge, neste caso, a propriedade - direito que tem como manifestações, entre outras, a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela; possibilidade e capacidade que são retiradas ao proprietário durante o tempo em que, por via do dano produzido, está privado do veículo. E a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como lhe aprouver tem, claramente, valor económico, e não apenas quando outro veículo é alugado para substituir o danificado».
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/09/2021 (processo Nº 6250/18.6T8GMR.G1.S1., acessível em www.dgsi. pt): “(…) constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
Na verdade, o lesante deve reparar todos os prejuízos causados ao lesado que merecerem a tutela do direito de modo a colocá-lo na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão, querendo significar, no que ao caso sub iudice respeita, que o período de privação do uso do veículo sinistrado, que não seja imputável ao lesado, deve ser suportado por quem deu causa ao acidente.
O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo sinistrado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos estabelecidos no art.º 1305º do Código Civil, cabendo, assim, pela violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
Este entendimento vem sendo sufragado pela Doutrina e pelos nossos Tribunais superiores.
A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
(…)
Face aos art.ºs 562º, a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente, pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no art.º 1305º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender(…).
Neste mesmo sentido damos nota da orientação doutrinária, entre muitos outros, Menezes Leitão, in, Direito das Obrigações, volume I, página 317, Cadernos de Direito Privado, anotação de Júlio Gomes, n.º 3.
Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/07/2018, proferido no processo nº 664/15.T8VFX.L1-6 (acessível em www.dgsi.pt), em cujo sumário podemos ler que: “A mera privação do uso do veículo configura um dano patrimonial específico e autónomo que atinge o direito de propriedade, por retirar ao proprietário lesado a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela quando e como melhor lhe aprouver.
II - A lesão patrimonial decorrente da perda dessa possibilidade de utilização do veículo é passível de avaliação pecuniária, devendo recorrer-se à equidade na falta de prova de danos efectivos causados pela privação do uso do veículo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/09/2021 (processo nº 1022/20.0/8LRA.C1, acessível em www.dgsi.pt): “(…) 4. Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos. 5. Sendo exclusiva a responsabilidade do obrigado à indemnização, o termo final da contabilização do dano da privação do uso corresponde ao momento em que é disponibilizada a indemnização devida (acrescido do tempo necessário para a efectivação do conserto do mesmo, quando não seja caso de perda total).”   
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15/06/2021 (processo 2125/18.7T8VNF.G2, acessível em www.dgsi.pt): “ I A mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem, e esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. (…). III Para o computo da indemnização por não uso, deve recorrer-se à equidade, na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo –art.º 566º, nº. 3, do C.C.”.
Retomando o caso dos autos e com interesse para a discussão, ficou provado o seguinte:
- No dia 24 de junho de 2021, pelas 19.48 horas, no tabuleiro da ponte 25 de Abril, sentido Lisboa – Almada, verificou-se um acidente entre a viatura ZE, propriedade do apelante e por si conduzida, e a viatura FC, segura na apelada que assumiu desde logo a responsabilidade pelo acidente;
- O veículo com matrícula ..-ZE-.., datada de 9/2019, tem a categoria de scooter, é da marca Suzuki, com 638 cc de cilindrada e à data do acidente tinha percorrido 11.123 Km;
- O apelante esteve privado do uso do veículo entre a data do acidente, 24/06/2021, e a data da conclusão da reparação em 30/08 - com exceção do dia 6 de julho, em que utilizou excecionalmente o veículo -;
- No dia 9 de agosto de 2021 a seguradora comunicou ao ora apelante o seguinte: “Relativamente à paralisação, após a conclusão da peritagem e iniciando a reparação, pagaremos 28€ por cada dia efetivo de reparação, uma vez que não efetuamos aluguer de motociclos”.
O acervo factual apurado permite-nos, assim, concluir, pela imobilização do veículo do apelante após a data do sinistro; pela existência de nexo causal entre a conduta ilícita de terceiro e a referida imobilização (a seguradora assumiu a responsabilidade pela produção do acidente); e que a seguradora se propôs pagar € 28,00 diários durante o período em que o veículo estivesse a ser reparado.
A avaliação monetária do dano autónomo de privação de uso de veículo é uma questão sensível, porquanto, inexistindo prova de danos efetivos decorrentes da paralisação do veículo, não é viável recorrer aos critérios contidos no art.º 566º, nºs 1, e 2, do Código Civil.
É o caso dos autos.
Nestes casos, impõe-se, então, o recurso à equidade, nos termos previstos nos art.ºs 4º, al. a), e nº 3, do art.º 566º, do Código Civil, dispondo este último preceito legal que, “Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
Em anotação ao art.º 4º do Código Civil, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[2], que “Quando se considera a equidade como fonte (mediata) de direito não se quer com isso atribuir força vinculativa à decisão (equitativa) concreta (…). O que passa a ter força especial são as razões de conveniência, de oportunidade, principalmente de justiça concreta, em que a equidade se funda. E o que fundamentalmente interessa é a ideia de que o julgador não está, nesses casos, subordinado aos critérios normativos fixados na lei”.
A equidade pode, assim, ser considerada como a “Justiça do caso concreto”.[3]
“A resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-se à resolução dos casos segundo o direito estrito. Pode haver regras e haver equidade quando o juiz estiver autorizado a afastar-se da solução legal e a decidir de harmonia com as circunstâncias do caso singular. (…), a norma é uma régua rígida, que abstrai das circunstâncias por ela não consideradas relevantes. Já a equidade é uma régua maleável. Ela está em condições de tomar em conta circunstâncias do caso, como a força ou a fraqueza das partes, as incidências sobre o seu estado de fortuna, etc., que a regra despreza, para chegar a uma solução que se adapta melhor ao caso concreto – mesmo que se afaste da solução normal, estabelecida por lei.
(…) na equidade (…) não há por natureza aplicação da regra, antes há uma criação para o caso singular”[4]
Por seu turno, o Professor Castanheira Neves salienta que, "quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. (…) A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da juridicidade. (…) é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto".[5]
Deste modo, a decisão por apelo a juízos de equidade deriva da ponderação casuística, à luz das regras da lógica, do bom senso prático, da experiência e da justa medida das coisas.
E essenciais, são, pois, os factos concretamente apurados, que devidamente ponderados, ditarão então a solução justa do caso concreto.
No caso, porém, não abundam.
Efetivamente, está apenas provado que o embate que causou estragos no veículo da apelante – scooter com 638 cc de cilindrada - é imputável exclusivamente a conduta ilícita do condutor do veículo seguro na apelada e que aquele esteve privado do uso do veículo entre a data do acidente, 24/06/2021, e a data da conclusão da reparação em 30/08,  com exceção do dia 6 de julho, em que utilizou o veículo.
Desconhece-se, por um lado, o fim que o apelante dava ao veículo: se era o seu meio de transporte habitual para o trabalho e/ou para qualquer outro tipo de deslocação que tivesse de efetuar no seu dia a dia, se era destinado apenas para fins lúdicos, de veraneio…; por outro, os constrangimentos que o apelante sofreu como consequência da privação do uso do motociclo.
Trata-se de questões cujas respostas revestiriam utilidade no ajuizamento sobre a indemnização a arbitrar, mas que não encontram eco na matéria de facto a considerar.
Também não se provou o valor de aluguer de veículo com idênticas características ao do apelante, nomeadamente, aquele que o mesmo havia indicado, não tendo este impugnado a decisão relativa à matéria de facto relativamente a tal facticidade.
Não é de menosprezar, como valor meramente referencial aquele que a seguradora propôs atribuir por cada dia de paralisação do veículo, mas ressalvando sempre a circunstância de que o dito valor foi proposto para o período temporal circunscrito ao da reparação efetiva da viatura, sempre inferior ao período total de imobilização, se ponderarmos a necessidade de realização de perícia, orçamentação e início efetivo da reparação, pelo que daquela proposta não se pode extrair a disponibilidade da seguradora para pagar o dito valor com referência ao período total da imobilização do veículo.
Destarte, ponderados os parcos factos apurados, o referido valor meramente referencial e o que a propósito dele deixámos dito, e tendo por referência os valores fixados pela nossa jurisprudência (invoca-se, aqui, em particular, a decisão proferida no âmbito do Processo Nº 13683/21.9T8LSB.L, por nós proferido no p. p. dia 6 de outubro de 2022 – publicado no site do ITIJ – no âmbito da qual, e relativamente a veículo que era usado para fins comerciais – serviço de TVDE – se fixou o valor indemnizatório diário de € 20,00), aceita-se como justo, adequado e proporcional o valor fixado pela decisão arbitral.

Decisão
Em face do exposto, acordam as juízas da 8ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e em manter a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante (art.º 527º, nº 1, do CPC).
Notifique.

Lisboa, 13 de abril de 2023
Cristina Lourenço (Relatora)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira (1ª Adjunta)
Ana Paula Nunes Duarte Olivença (2ª Adjunta)
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[1] “Temas da Responsabilidade Civil, I Volume Indemnização do Dano da Privação Do Uso”, 2ª Edição, Almedina, pág. 49.
[2] “Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, págs. 54-55.
[3] José de Oliveira Ascensão, “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, 3ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 497.
[4] José de Oliveira Ascensão, ob. citada, pág. 497.
[5] In, “Questão de Facto- Questão de Direito”, pág. 351.