Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1354/10.6TDLSB.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-Com a reforma do Código Penal operada pela lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, a descrição típica do crime de violência doméstica (autonomizado em relação ao tipo legal de maus-tratos a cônjuge, tal como estava consagrado no artº 152º, nº 2, do Código Penal) tem uma amplitude muito maior e prevê-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se “de modo reiterado ou não, podendo afirmar-se que, com esta formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
II-No entanto, se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, coacção, sequestro, etc, e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos não pode servir toda e qualquer ofensa.
III-Um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido –a saúde física, psíquica ou emocional –pondo em causa a dignidade da pessoa humana.
IV-O facto de o arguido ter atingido a assistente, com um murro, no nariz que ficou “ligeiramente negro de lado” e de a ter mordido na mão (sem lesões aparentes) constitui uma simples ofensa à integridade física que está longe de poder considerar-se uma conduta maltratante susceptível de configurar “violência domestica”. È manifesto que essa conduta do arguido, mesmo tendo em conta que a assistente estava com o filho (então com 9 dias de vida) ao colo, não tem a gravidade bastante para se poder afirmar que, com ele, foi aviltada a dignidade pessoal da recorrente e, portanto, que o seu bem-estar físico e emocional foi, intoleravelmente, lesado.
(CG)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 1354/10.6 TDLSB, corre termos pelo 4.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, R…., melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Cód. Penal.
S… requereu e foi admitida a intervir como assistente, tendo aderido à acusação pública.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, por sentença de 10.02.2012 (fls. 689 e segs.), foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, tudo visto e ponderado, julgo parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente:
- absolvo o arguido R… da prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º n.º 1 B) e 2 do Código Penal;
- declaro extinto o procedimento criminal relativamente ao crime de injúria p. e p. pelo art. 181.º n.º 1 do Código Penal por ser extemporânea a participação apresentada;
- condeno o arguido R…, pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples com dolo directo p. e p. pelos arts. 143.º n.º 1 e 14.º n.º 1 do Código Penal na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz a quantia total de € 350 (trezentos e cinquenta euros) e a que correspondem 46 (quarenta e seis) dias de prisão subsidiária”.
Inconformada, veio a assistente interpor recurso da sentença para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que sintetizou nas seguintes conclusões (transcrição integral):
1. “O presente recurso tem por objecto o douto acórdão proferido a 10 de Fevereiro de 2011, que absolveu o rguido da prática de um crime de violência doméstica p. e p. art. 152°, n°1, al.b) e 2 do Código Penal, que declarou extinto 0 procedimento criminal relativamente ao crime de injúria, p. e p. pelo art. 181°, n.º 1 do código penal e que condenou 0 arguido pela prática de um crime de ofensa a integridade física simples como dolo directo, p. e p. pelos arts. 143°, n°1 e 14°, n°1 do Código Penal na pena de 70 (setenta) dias à taxa diária de € 5 (cinco euros).
2. O douto Tribunal a quo dispunha de elementos suficientes, de facto e de direito que devidamente ponderados, impunham decisão diferente, pelo que a recorrente lamenta que o Tribunal não tenha, face à prova realizada em sede de audiência e à dita matéria considerada provada, condenado o arguido pelo crime por que vinha acusado.
3. Atenta a factualidade provada, nomeadamente que:
“Frequentemente o arguido e ofendida discutiam, tendo o arguido, por diversas vezes, chamado a ofendida de “puta”
“No dia 3 de Outubro de 2009, entre as 17 horas e as 18 horas, o arguido e a ofendida discutiram enquanto estavam no quarto da habitação juntamente com o filho.”
“Nessa discussão o arguido gritou com a ofendida, tendo-lhe dado um murro no nariz, que ficou ligeiramente negro de lado e mordeu-lhe a mão.”
“A ofendida chamou pelo pai, tendo os seus pais entrado no quarto quando o arguido se encontrava em cima da cama e a ofendida sentada na mesma com o filho ao colo, estando estes dois últimos a chorar.”
“O arguido, então começou a bater no berço partindo-lhe as rodas, tendo saído após a situação.”, nada mais restaria ao Tribunal a quo senão condenar o arguido pela prática do crime de violência doméstica, p. e. p. pelo art. 152°, n° 1, al. b) e n° 2 do Código Penal.

4. Relativamente à violência verbal o Tribunal considerou “o depoimento da testemunha M.I., vizinha do lado da casa onde arguido e assistente residiram e que declarou ouvir as discussões, em que o arguido falava alto e ouvia o mesmo chamar vários nomes à ofendida, nomeadamente “puta” (referiu outros nomes concretos que não constam da acusação). Esta testemunha prestou depoimento isento e credível, na medida em que relevou conhecimento directo dos factos e não demonstrou qualquer interesse pessoal na causa.”
 
5. Do depoimento se conclui com clareza que as discussões se sucediam e era o arguido quem gritava e chamava nomes à ofendida, a saber “puta”, “vaca”, “vai para o caralho”, “mato-te”, sendo que mal se entende que 0 Tribunal a quo não tenha dado como provado que o arguido as proferiu, conforme consta das alíneas v) e ac) dos factos não provados.

6. Errou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, nomeadamente ao suscitar a alteração da qualificação jurídica dos factos para um mero crime de ofensa à integridade física simples (143°, n°1 Código Penal) e um crime de injúria (art.181°, n°1 do Código Penal).

7. A lei n° 59/2007 de 4 de Setembro que procedeu à 23.ª alteração ao Código Penal veio aditar a este Diploma o art. 152° relativo à violência doméstica, prescindindo o mesmo tipo de ilícito criminal de qualquer reiteração dos maus tratos, bastando-se com uma única conduta para integrar a mesma no conceito de violência doméstica.

8. Aliás, a existir alteração da qualificação jurídica a mesma nunca poderia ser para um crime de ofensas à integridade física simples por força do disposto no art. 132.°, n.° 2 do mesmo diploma, aplicável, "in casu", "ex vi" art. 145.°, n.° 2 do Código Penal, pelo que ao alterar a qualificação jurídica descurou este aspecto essencial, porquanto não teve em conta a relação existente entre 0 arguido e a ofendida.

9. Assim, o Tribunal a quo na sentença ora recorrida incorreu em erro de julgamento, fazendo uma incorrecta aplicação do direito.

10. São na verdade as palavras do arguido, registadas em mensagens escritas que enviou à ofendida, que corroboram o depoimento das testemunhas F.P. e M.F., nomeadamente pai e mãe da ofendida, 0 que demonstra, sob uma análise crítica que podia ter sido feita, a veracidade daqueles depoimentos.

11. As ditas mensagens mostram claramente que o arguido assumiu por escrito aquilo que negou durante toda a audiência de julgamento...que era capaz de agredir e de praticar “actos animais”!, contrariando desde logo a sua tentativa de em sede de audiência se apresentar, nas suas próprias palavras, como “uma pessoa bastante atenciosa”...( sistema de gravação digital 20120113161809_246812_64579 ao minuto 14:31:32 a 15:01:00 no dia 14-10- 2011)  

12. Relativamente às restantes testemunhas, entende-se que o Tribunal a quo deveria ter feito um juízo de valoração mais crítico atentas as especificidades deste tipo de crime ao invés de se ter detido em considerações genéricas, desvalorizando até a gravidade das alegadas condutas

13. Não se entende também a menção à isenção das testemunhas arroladas oficiosamente pelo Tribunal porquanto, para além de serem todas elas amigas do arguido, são colegas com quem ele convive diariamente desde pelo menos 2007 e foi ele quem as contactou para fornecer os dados das mesmas ao Tribunal a fim de serem chamadas a depor, pelo que, fazendo jus a apreciação que foi feita pela Meritíssima Juiz, estes depoimentos também não terão qualquer relevância.

14. Relativamente ao facto de não ter sido dado como provada a presença da PSP na residência da ofendida e arguido, o certo é que a testemunha M.I., foi peremptória em afirmar que embora não tenha assistido a essa situação, a mesma lhe foi relatada pela vizinha que efectivamente chamou a PSP, porquanto, segundo aquela lhe confidenciou, já não aguentava mais, sendo que o próprio arguido admite que a PSP realmente foi a casa da ofendida e do arguido, apresentando contudo uma explicação perfeitamente descabida face, aqui sim, as regras da experiência comum!

15. No que diz respeito aos restantes factos considerados como não provados, foram acontecimentos vividos entre o casal, a maioria dentro da sua habitação, sem que haja testemunhas físicas, pelo que a prova dos mesmos só se pode fazer pela confissão do arguido, que no caso não existiu, e/ou pela ponderação do depoimento da ofendida conjugado com a valoração dos depoimentos das demais testemunhas a quem ela se dirigiu à procura de ajuda.

16. Parece-nos que face à matéria provada e aquela que devia ter sido considerada como provada, porque sustentada em depoimentos valorados em sede de audiência de julgamento, a decisão tinha de ser outra, nomeadamente a condenação do arguido pelo crime de que vinha acusado, nomeadamente pelo crime de violência doméstica p. e p. art. 152°, n°1, al.b) e 2 do Código Penal.

17. Assim, ao decidir como decidiu, o douto despacho violou, salvo o devido respeito, 0 disposto no art. 152°, n°1, al.b) e 2 do Código Penal.
                                                             *
Na 1.ª instância, o digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta à motivação do recurso interposto, definindo o seguinte quadro conclusivo:
1. R... foi julgado, acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, al. b) e 2, do C. Penal, tendo sido absolvido da prática de tal crime e condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 5,00, depois de efectuada e comunicada a competente alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do disposto no art. 358º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal.
2. Dessa sentença interpôs recurso a assistente S... alegando que o Tribunal a quo dispunha de elementos suficientes, de facto e de direito que, devidamente ponderados, face à prova realizada em sede de julgamento e aos factos considerados provados, impunham a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado, ou, assim se não entendendo, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada e não simples, nos termos do disposto no art. 145º, nºs 1, al. a) e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. b), do C. Penal.
3. A sentença recorrida foi lida e depositada no dia 10 de Fevereiro de 2012, conforme resulta de fls. 707 e 708 dos autos.
4. Nos termos dos nºs 1, al. b) e 4 do art. 411º do Código de Processo Penal o prazo para recorrer da sentença é de 20 ou 30 dias, consoante se recorra de direito ou de facto, contados a partir da data do seu depósito na secretaria.
5. O recurso da recorrente deu entrada na secretaria deste Tribunal às 00h09 do dia 16 de Março de 2012, conforme resulta do registo de entrada do fax, do cabeçalho de fls. 710 dos autos, ou seja, já depois de expirados os 3 dias úteis em que tal acto podia ser praticado com multa, nos termos do art. 145º, nº 5, do C. Processo Civil.
6. A recorrente não alegou justo impedimento para a interposição do recurso fora do prazo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 104º, nº 1, do C. Processo Penal e 145º, nº 4 e 146º, do C. Processo Civil.
7. Como resulta do disposto no art. 145º, nºs 1, 2 e 3, do C. Processo Civil, o prazo de interposição de recurso é um prazo peremptório, o que significa que o seu decurso extingue o direito de recorrer.
8. Por outro lado, o art. 411º, nº 4, do C. Processo Penal faz depender o prazo de 30 dias aí previsto de o recurso ter por objecto a reapreciação da prova gravada, o que no nosso processo penal apenas pode ter lugar quando o recorrente pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do art. 412º, do C. Processo Penal, pois é neste caso que, no entender do legislador, se justifica um prazo mais alargado para preparar e elaborar o recurso tendo em conta, nomeadamente, a necessidade de dispor e aceder à gravação da prova.
9. Ora, em nenhuma parte do recurso afirma a recorrente pretender impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto. Aliás, a recorrente começa logo por alegar que “…não põe em causa a matéria que resultou assente e que consta da sentença de que se recorre.”
10. Logo, o que pretende a recorrente é que, tendo em conta os factos dados como provados, contrariamente ao decidido, devia o arguido ter sido condenado pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado ou de ofensa à integridade física qualificada e não pela prática do crime de ofensa à integridade física simples de que acabou por ser condenado.
11. Tal fundamento do recurso reporta-se à qualificação jurídica dos factos dados como provados e, consequentemente, trata-se de matéria de direito e não de facto.
12. Assim sendo, entendemos que se deve concluir pela intempestividade do recurso e, consequentemente, pela sua rejeição, de harmonia com o preceituado nos artigos 411º nºs 1, al. b), 3 e 4, 414º nº 2 e 420º nº 1, al. b), todos do C. Processo Penal.
13. O crime de violência doméstica, decorrente da Revisão de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 04.09) e da previsão actualmente do art. 152º, nº 1, do C. Penal, pune "Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:", o que sucederá quando tal suceder "a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge".
14. A par deste ilícito, continua a ser previsto o crime de ofensa à integridade física simples da previsão do art. 143º, nº 1, com uma pena de prisão até 3 anos ou uma pena de multa, assim como o crime de ofensas à integridade física qualificada do art. 145º, nº 1, al. a), ambos do C. Penal, com uma pena de prisão até 4 anos, bem como os crimes de homicídio e de homicídio qualificado da previsão, respectivamente dos arts. 131º e 132º do C. Penal, com as penas de prisão de 8 a 16 anos ou de 12 a 25 anos.
15. A qualificação, quer do crime de ofensa à integridade física quer do crime de homicídio, dá-se quando, respectivamente, as ofensas à integridade física ou a morte "forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente" (arts. 145º, nº 1 e 132º, nº 1), o que poderá suceder quando ocorra uma das "circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º" (art. 145º, nº 2), sendo uma delas, a da previsão da sua al. b), ou seja, quando o agente "Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha uma relação análoga à dos cônjuges, ainda, ainda que sem coabitação, ...".
16. Atenta a descrição típica do crime de violência doméstica em confronto com os crimes de ofensa à integridade física, que  são os que nos interessam no presente caso, desde o simples até ao qualificado, bem como a distinta moldura penal de tais ilícitos, os mesmos encontram-se entre si numa relação de concurso aparente.
17. Por razões de política criminal só se justifica uma punição mais grave se se tratarem de condutas que exprimam um lastro de danosidade social mais intensa ou comportem a tutela de um bem jurídico distinto, mas sempre com relevância jurídico-penal.
18. No crime de violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos aí referenciados (com consagração constitucional nos arts. 24º, nº 1 e 25º, nº 1, da C.R.P.), mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.
19. Tal resulta de uma nova consciência da gravidade que tais comportamentos violentos, muitos deles ocorridos "intra-muros", têm na ruptura do relacionamento em sociedade, mormente quando as mulheres são as suas vítimas.
20. Quanto ao que se entende por violência há que atentar na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres onde, no seu art. 1º, considera violência contra as mulheres, "qualquer acto de violência dirigido contra as mulheres que produz ou é passível de produzir danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças desses actos, coacção ou privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada".
21. De acordo com a jurisprudência anterior a 2007 "Só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do art. 152º do Código Penal" (Ac. STJ de 14.11.1997 (CJ (S) III/235); um só comportamento do agente que "se revista de uma gravidade tal que seja suficiente para justificar a dissolução do vínculo conjugal, por comprometer a possibilidade devida em comum" [Ac. R. E. de 23.11.1999, CJ V/283); "se revelar de uma certa gravidade ou traduzir, da parte do agente, crueldade, insensibilidade ou até vingança" (Ac. R. E. 25.01.2005, CJ I/260); ou então se se tratar de "uma conduta complexa que revista gravidade e traduza, v. g. crueldade ou insensibilidade" (Ac. R. Porto de 12.05.2004, Rec. 6422/03-4.ª secção).
22. Assim, no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do art. 152º, do C. Penal, a acção típica aí enquadrada tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.
23. Por sua vez, quanto à qualificação do crime de ofensa à integridade física, é exigido que o agente tenha actuado com especial censurabilidade ou perversidade, revelando-se a primeira nas condutas “em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas”, e a segunda naquelas “em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas” (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 29).
24. No presente caso, muito embora a conduta do arguido seja violadora da integridade física e psíquica da recorrente, então sua companheira, tendo em conta os factos dados como provados na douta sentença recorrida e que a recorrente não contesta, não traduz a prática de actos de maus tratos integradores de um crime de violência doméstica, nem é reveladora de especial censurabilidade ou perversidade exigidos para a consumação do crime de ofensa à integridade física qualificada, como pretende a recorrente.
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Admitido o recurso (após deferimento de reclamação da decisão de não admissão do recurso) e já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, além de secundar o entendimento do magistrado do Ministério Público na 1.ª instância sobre o mérito do mesmo (recurso), reafirma a suscitada questão da sua tempestividade, por não ser absolutamente clara a posição da recorrente.                                                                                                                                                                                                                                                                        *
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente
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Colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II – Fundamentação
O recorrente tem de enunciar especificamente os fundamentos do recurso, ou seja, dizer por que discorda da decisão que impugna.
Essa enunciação deve culminar com a formulação de conclusões que, sendo (devendo ser) uma síntese das razões do(s) pedido(s), têm de se conter nos limites dos fundamentos invocados.
É geralmente aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[i] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Está, assim, evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente. Importância que, neste caso, é ainda mais patente, pois não está definitivamente decidida a questão da tempestividade do recurso.
Com efeito, a decisão que admita um recurso (tal como a que lhe fixa o regime de subida e o efeito) não faz caso julgado e não vincula o tribunal superior (n.º 3 do art.º 414.º).
Por outro lado, apesar de deferida a reclamação deduzida contra a não admissão do recurso, há que ter em consideração que, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 405.º do Cód. Proc. Penal, a decisão sobre a reclamação só é definitiva quando confirma o despacho de indeferimento (do requerimento de interposição de recurso). De contrário, não vincula o tribunal de recurso.
Acresce que, na decisão da reclamação, o Ex.mo Senhor Desembargador Vice-Presidente desta Relação deixou em aberto a possibilidade de o recurso vir a ser rejeitado se o relator, em cumprimento do disposto no art. 417.º do Cód. Proc. Penal, viesse a entender que há formalidades que foram preteridas e que essa omissão justifica uma tal decisão.
Nada obsta, pois, a que se conheça da questão da (in)tempestividade do recurso.
É de 20 dias (que, tratando-se de sentença, via de regra, se conta a partir do respectivo depósito na Secretaria[ii]) o prazo normal de interposição de recurso em processo penal.
No entanto, esse prazo é alargado para 30 dias quando tiver por objecto “a reapreciação da prova gravada”, nos termos do n.º 4 do artigo 411.º do Cód. Proc. Penal.
A recorrente, na motivação do recurso, é manifestamente contraditória, pois começa por afirmar que “não põe em causa a matéria que resultou assente e que consta da sentença de que se recorre”, mas depois, invocando os depoimentos (gravados) de várias testemunhas (M.I, M.F. e F.), questiona a decisão sobre matéria de facto (“…o Tribunal…podia e devia, em nosso entender, ter feito constar da sentença os nomes que a Testemunha M.I. proferiu em sede de audiência, pois que os mesmos não foram proferidos numa só discussão, nem num só dia, aliás ficou claro no dito que se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal recorrido, com a seguinte identificação 20120113161809_246812_64579 ao minuto 15:56:06 a 16:15:53 do dia 21-10-2011”) e acaba a sustentar que “Do depoimento se conclui com clareza que as discussões se sucediam e era o arguido quem gritava e chamava nomes à ofendida, a saber “puta”, “vaca”, “vai para o caralho”, “mato-te”, sendo que mal se entende que o Tribunal a quo não tenha dado como provado que o arguido as proferiu, conforme consta das alíneas v) e ac) dos factos não provados” (conclusão 5.ª).
Haverá, assim, de concluir-se que a recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto e pretende a reapreciação da prova gravada, pelo que, em princípio, beneficia do referido alargamento do prazo de interposição de recurso.
Sendo esse prazo de 30 dias, o seu termo final ocorreu no dia 12.03.2012 e, como alega o Ministério Público na sua resposta, o último dos três dias úteis imediatamente subsequentes (em que é, ainda, possível praticar o acto, ficando a sua eficácia dependente do pagamento de uma multa) foi o dia 15.03.2012. Tendo o requerimento de interposição e a respectiva motivação do recurso (enviado ao tribunal por telecópia) chegado à secretaria do tribunal recorrido às 12H:09 do dia 16.03.2012, a questão está em saber se deve atender-se à hora que vigora nos Açores (de onde foram expedidos) onde, como se sabe, é uma hora mais cedo que a hora do território continental.
Ora, do artigo 150.º do Cód. Proc. Civil (aplicável ex vi do artigo 4.º do Cód. Proc. Penal) resulta bem claro que o que vale como momento da prática do acto é o da sua expedição, e não o da entrada na secretaria do tribunal.
Concluimos, assim, que, tendo o acto de interposição do recurso sido praticado para além do termo do prazo legalmente previsto, foi-o, no entanto, num dos três dias úteis imediatamente subsequentes, com pagamento da multa devida.
                                                             *
São, então, as seguintes as questões a decidir:
§ se houve erro do tribunal na apreciação e valoração que fez da prova produzida;
§ se o tribunal errou no enquadramento jurídico-penal dos factos;
                                                              *                         
Importa, pois, conhecer a factualidade em que assenta a decisão recorrida, pelo que aqui se reproduzem (ipsis verbis) os factos que o tribunal a quo deu como provados e não provados:
Factos Provados:
“A) O arguido e a ofendida S... iniciaram uma relação de namoro no decurso do ano de 2008, tendo mantido co-habitação conjugal pelo menos desde Dezembro de 2008 a 3 de Outubro de 2009, vivendo em comunhão de mesa, cama e habitação, como se casados fossem, tendo desse relacionamento nascido, a 24 de Setembro de 2009, S.P.
B) O arguido e a ofendida residiam no 4.º dt.º do prédio n.º  da Rua D..., em Lisboa, que era propriedade dos pais da ofendida.
C) Frequentemente o arguido e a ofendida discutiam, tendo o arguido, por diversas vezes chamado a ofendida de “puta”.
D) No dia 3 de Outubro de 2009, entre as 17 horas e as 18 horas, o arguido e a ofendida discutiram enquanto estavam no quarto da habitação juntamente com o filho.
E) Nessa discussão o arguido gritou com a ofendida, tendo lhe dado um murro no nariz, que ficou ligeiramente negro de lado e mordeu-lhe a mão.
F) A ofendida chamou pelo pai, tendo os seus pais entrado no quarto quando o arguido se encontrava em cima da cama e a ofendida sentada na mesma com o filho ao colo, estando estes dois últimos a chorar.
G) O arguido, então, começou a bater no berço partindo-lhe as rodas, tendo saído após a situação.
H) O arguido e a ofendida cessaram a co-habitação nesse mesmo dia.
I) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de molestar a ofendida no respectivo corpo e saúde, bem sabendo o arguido que as expressões que proferiu a ofendiam na sua honra e consideração.
J) Não desconhecia o arguido o carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.
L) Nada constava no certificado de registo criminal do arguido a 8 de Setembro de 2011.
M) O arguido teve um percurso de vida pautado pela normatividade, crescendo num contexto familiar estruturado e afectivamente gratificante. Tem uma estrutura familiar organizada com capacidade orientadora e de lhe conferir suporte afectivo e material consistente.
N) O arguido está a iniciar o seu percurso laboral, trabalhando como terapeuta e massagista numa clínica, em Lisboa, cuja actividade é desenvolvida por conta própria, em função das solicitações. Encontra-se igualmente a frequentar o curso de Medicina Tradicional Chinesa.
O) O arguido reside, durante os dias úteis, em Lisboa e aos fins-de-semana com os pais em Alpiarça, de onde é natural.
P) O arguido aufere o rendimento médio mensal de € 300 proveniente da sua actividade laboral, contando igualmente com a ajuda económica dos pais que suportam parte das suas despesas fixas, nomeadamente as despesas da casa e as propinas.
Q) O arguido é bem considerado e estimado no meio social e familiar onde se mostra inserido.
Factos não provados:
a) O arguido, desde sempre, revelou um comportamento inconstante, no mesmo dia tanto fazia declarações de amor à ofendida, como no momento a seguir a tratava de uma forma rude, como se esta fosse um estorvo ou um aborrecimento.
b) O arguido estava sempre pronto a criticar a ofendida e o que esta fazia e a auto-elogiar-se, valorizando qualquer gesto seu ou comportamento.
c) A ofendida vivia com o arguido em clara tensão, o mínimo detalhe na gestão diária da rotina das diversas actividades pessoais de cada um, envolvia uma permanente discussão, pretendendo o arguido impor sempre as suas posições, dizendo a quem estivesse presente: “Estão a ver, eu bem digo, ela não percebe nada! O que é que acham? Tenho ou não razão?”, sobrepondo o seu tom de voz a todos.
d) Nas aulas práticas do curso de medicina tradicional chinesa que ambos frequentavam, o arguido mostrava-se várias vezes desagradado quando a ofendida executava/praticava exercícios com outros colegas do sexo masculino, por sua vez, o arguido, nas aulas prática, tecia rasgados elogios às restantes colegas da turma, o que causou uma certa repulsa à ofendida pela forma como era feito e o achincalhamento a que esta era sujeita.
e) Tais factos provocavam discussões em casa, o arguido insistentemente acusava a ofendida de ser ciumenta e possessiva, terminando as discussões várias vezes em agressões físicas à ofendida, com murros nos braços e empurrões violentos.
f) As agressões passaram a ser cada vez mais frequentes, muitas vezes a seguir a uma discussão o arguido dava fortes apertos nos braços ou murros e mordidelas na ofendida, puxando-lhe os cabelos e dando-lhe empurrões, ou então pontapés nos móveis.
g) Diversas vezes empurrou a ofendida, encostando a sua face contra o colchão, tapando-lhe a cara com a almofada, apertando-lhe o pescoço, desferindo pontapés nas suas coxas, dando-lhe socos na cabeça e braços, terminando as agressões, com afirmações do género: “Vês os que fizeste? A culpa disto tudo é tua!”.
h) Tais comportamentos continuaram após a gravidez da ofendida em Janeiro de 2009.
i) A partir de Março/Abril de 2009, as agressões à ofendida intensificaram-se.
j) Com o passar das semanas, a ofendida tinha maior sonolência devido à gravidez, passando o arguido a gritar com a ofendida nos momentos em que a mesma se ia deitar ou descansar no sofá.
l) Na organização da casa para instalar o quarto do bebé, o arguido mandava a ofendida arrastar móveis pesados, sabendo que esta não o podia fazer, fazendo pedidos constantemente à ofendida e sempre aos gritos.
m) O arguido exigia que a ofendida não descansasse quando chegava a casa, pois tinha que fazer as tarefas diárias, quando a ofendida se sentava havia discussão, discutia também porque dormia ou porque trabalhava.
n) Nas discussões constantes o arguido dizia que a ofendida não cuidava bem da sua alimentação, que ia perder a criança, que a colocava em Tribunal pois não sabia tratar do feto, e nem tinha condições para ser mãe e quase sempre que a ofendida respondia ou contra-argumentava, acabava por sofrer agressões físicas com murros e puxões de cabelo, sendo que, vezes houve em que o arguido lhe apertou o pescoço e a jogava sobre a cama ou o sofá.
o) Devido ao estado de ansiedade e tristeza em que vivia, a ofendida perdeu o apetite, o que originou discussões do arguido, que aumentavam o stress da ofendida.
p) O arguido chegou a trancar a ofendida na cozinha com o prato da comida e dizendo-lhe que só saía dali quando tivesse terminado de comer tudo. A ofendida começou a comer e passado pouco tempo o arguido abriu a porta e começou aos gritos com a ofendida, pegando no prato e atirando-o para o chão, o prato partiu-se e a comida ficou toda espalhada pelo chão.
q) O arguido conduzia depressa e por vezes a ofendida, durante a gravidez, não se sentia confortável e pedia-lhe para ir mais devagar, altura em que o arguido gritava com a ofendida dizendo que esta não confiava na sua condução e acelerava ainda mais o veículo e, em sítios onde podia, fazia peões, deixando a ofendida aterrorizada e com o coração a disparar a ofendida pedia que parasse e o arguido aos gritos fazia ainda pior.
r) No fim de Março de 2009, em dia não concretamente apurado, a ofendida teve uma perda de sangue e regressou a casa com o arguido no Metro, onde o arguido em voz audível a terceiros disse à ofendida “a culpa é tua, se perdes o meu filho mato-te, não percebes nada de nada, estás a ver o que dá a tua ansiedade”, repetindo as mesmas frases quando chegaram a casa.
s) Em Maio de 2009, em dia não concretamente apurado, quando o casal regressou a casa do IKEA, o arguido, já em casa, iniciou uma violenta discussão que terminou com o arguido a apertar o pescoço da ofendida, empurrando-a contra a parede, enquanto a ofendida gritava para ter cuidado com o bebé, protegendo a barriga.
t) No dia 24 de Maio, na sequência de uma discussão, o arguido empurrou a ofendida contra a parede do corredor da casa, dando-lhe murros nos braços, tendo os vizinhos chegado a chamar a PSP.
u) Em Junho de 2009, em dia não concretamente apurado, junto à entrada da casa de banho, a propósito de nada, o arguido desferiu um forte soco sobre a zona parietal esquerda da ofendida, que teve uma forte tontura, quase desmaiando, ficando de joelhos junto ao lavatório, onde permaneceu durante cerca de 10 minutos até conseguir recuperar, tendo o arguido abandonado a casa enquanto a ofendida ali ficou prostrada, aparecendo o arguido horas mais tarde como se nada tivesse sucedido.
v) Frequentemente o arguido insultava a ofendida chamando-lhe “filha da puta, vaca”, ameaçava-a dizendo “mato-te”, o que ocorreu na presença do filho de ambos, nascido a 24 de Setembro de 2009.
x) Na sequência dos maus-tratos a que foi sujeita a ofendida chorava constantemente, tinha sentimentos de profunda tristeza, de desvalorização e auto-culpabilização, andando constantemente enervada e ansiosa, o que muito prejudicou a sua gestação.
z) No dia 3 de Outubro de 2009 o arguido empurrou a cara da ofendida contra a cama.
aa) Nesse dia a ofendida pegou no filho para o amamentar e, enquanto esta estava a dar de mamar, o arguido começou a puxar-lhe os cabelos de um lado para o outro e deu-lhe duas dentadas no maxilar do lado esquerdo, procurando a ofendida proteger o seu filho com o braço.
ab) O arguido saltou para cima da cama, pondo-se em cima da perna da ofendida e começou a torcer o braço esquerdo da ofendida.
ac) O arguido proferiu afirmações de forma séria, acreditando a ofendida na seriedade daquelas, receando pela sua integridade física, bem sabendo o arguido que as expressões que proferiu constituíam meio idóneo para provocar medo, inquietação na visada, querendo alcançar esse resultado.
ad) O arguido humilhava a ofendida com o comportamento supra descrito, colocando a ofendida numa situação incompatível com a sua dignidade e liberdade, ciente de que, ao assim actuar, violava os particulares deveres de respeito a que se encontra sujeito mercê da especial relação que manteve com a ofendida, mãe do seu filho, e praticando os factos descritos na presença do seu filho menor.
Erro na apreciação e valoração da prova
A impugnação da decisão sobre matéria de facto pode fazer-se por duas vias: invocando os vícios da sentença enunciados no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, que são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito, ou a existência de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1.ª instância[iii].
Quando se questiona a valoração da prova efectuada pelo tribunal a quo, a apreciação (do tribunal ad quem) alarga-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento dos ónus de especificação impostos pelos citados n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
§ os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[iv]);
§ as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida[v]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
Note-se bem: não basta que as provas, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.
Como muito bem se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 30.03.2010, disponível em www.dgsi.pt/jtrc (Relator: Des. Belmiro Andrade), o recorrente tem de identificar não só “o erro in judicando que aponta à decisão recorrida, mas ainda especificar o conteúdo concreto dos meios de prova capazes de, numa valoração em conformidade com os critérios legais, impor decisão diferente da recorrida”, ou seja, “perante uma sentença devidamente fundamentada, para que seja revogada, impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais, o mesmo é dizer, ou a legalidade dos meios de prova utilizados, ou o conteúdo das declarações ou de outros meios de prova valorados pela sentença, ou a inconsistência, á luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão”.
Por outro lado, o que pode discutir-se em sede recursiva é se há algo a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação dessa convicção (“um procedimento cognoscitivo complexo que se desenvolve segundo directivas jurídicas e racionais e acaba num juízo racionalmente justificado”, nas palavras de Michele Taruffo, “La Prueba de los Hechos”, Ed. Trotta, Madrid, 2005, 69) e se pode considerar-se suficiente a fundamentação, ou se o tribunal errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência. Ou, como se refere no acórdão do STJ, de 14.03.2007, disponível em www.dgsi.pt (relator: Cons. Santos Cabral), pode-se analisar um depoimento, um esclarecimento de um perito, as declarações de um arguido ou de um ofendido e outros meios de prova e, a partir daí, controlar o raciocínio indutivo efectuado, pois já não é essencial a imediação e do que se trata é de “uma questão de verosimilhança ou plausibilidade das conclusões contidas na sentença”.
É com base na citada norma (art.º 412.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal) que se tem defendido, sem discrepâncias, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
                                                             *  
Importa conhecer a fundamentação da decisão de facto com que o tribunal estruturou a sentença recorrida:
“A convicção do tribunal, quanto aos factos por que vinha acusado o arguido e considerados provados, fundou-se na valoração e ponderação do depoimento do próprio arguido, que confirmou o relacionamento com a assistente, a co-habitação e o nascimento do filho (facto, aliás, confirmado pela assistente e grande maioria das testemunhas), referindo que começaram a ter desentendimentos, tendo igualmente admitido que, no dia 3 de Outubro de 2009 bateu com o berço do filho, tendo partido as rodas e que, nesse dia o relacionamento com a assistente terminou. No restante, o arguido negou a prática dos factos.
Relativamente ao facto de o arguido e a assistente discutirem e de que, nessas discussões o arguido chamava a ofendida de “puta”, o tribunal considerou particularmente o depoimento da testemunha M.I., vizinha do lado da casa onde o arguido e a assistente residiram e que declarou ouvir as discussões, em que o arguido falava alto e ouvia o mesmo chamar nomes à ofendida, nomeadamente “puta” (referiu igualmente outros nomes concretos que não constam da acusação). Esta testemunha prestou depoimento isento e credível, na medida em que revelou conhecimento directo dos factos e não demonstrou qualquer interesse pessoal na causa.
No que respeita ao sucedido no dia 3 de Outubro de 2009, o tribunal valorou as declarações da assistente e das testemunhas M.F. e F.P., pais da ofendida e que se encontravam na residência onde os factos em causa ocorreram. Pese embora o arguido tenha negado a prática dos factos e ainda considerando as reservas que merecem o depoimento da assistente e dos seus pais, o certo é que, do teor das mensagens escritas que o arguido enviou para a assistente precisamente a partir desse dia e nos dias subsequentes (cuja transcrição consta de fls. 113 e seguintes), resulta que, nesse dia, o arguido praticou actos dos quais se arrependeu – “(…) terei de viver com este acto (…)”, “(…) desculpa se te magoei (…)”, “(…) desculpa não sei como fui capaz de te magoar (…)”, “(…) desculpa os meus actos animais (…)”. O teor dessas mensagens dá, assim, credibilidade, nesta sede, aos depoimentos da assistente e dos pais desta.
Quanto aos factos relativos às condições pessoais e económicas do arguido, o tribunal valorou o teor do relatório social elaborado, assim como o depoimento do próprio arguido e das testemunhas C.P., G.R., ambos com contacto próximo ao arguido, e R..., pai do arguido.
No que concerne aos factos não provados o tribunal, ponderada a prova produzida e constante dos autos, considerou que a mesma não era suficiente para sustentar um juízo de certeza sobre os factos em causa.
Desde logo se salienta que, dos depoimentos das testemunhas ouvidas mais próximas do arguido e da assistente, se pode claramente concluir que a relação de ambos era instável, com desentendimentos vários entre eles (daí se considerar tal como provado). Mas também é de salientar que, quer de um lado, quer do outro, não foram evitados esforços para imputar a culpa integral à outra parte. E assim no decorrer do julgamento pelas testemunhas mais próximas da assistente – M.F. e F.P., pais da assistente – foi apresentado o arguido como uma pessoa terrível, de comportamentos aberrantes e inapropriados (chegando ao ponto de criticar o arguido por, numa festa de família ter levantado os pratos de umas amigas da assistente), discorrendo sobre pormenores que, embora a serem verdadeiros poderão levar à conclusão de que o arguido revela alguma inadequação social, certo é que nenhum interesse têm para o presente processo e em nada contribuem para a descoberta da verdade que efectivamente interessa apurar num processo penal deste teor (cite-se, a título de exemplo, o facto de o arguido abrir gavetas e armários da casa dos pais da assistente e de às refeições se servir primeiro que a assistente).
Por outro lado, a assistente foi apresentada pelas testemunhas próximas do arguido – R.L. e M.G., pais do arguido, R... e I..., irmãos do arguido – como uma pessoa caprichosa, birrenta e ciumenta, ao ponto de nem deixar o arguido praticar actos como andar de bicicleta e de manifestar ciúmes relativamente às T-shirts do arguido com imagens femininas.
Ora, como é habitual dizer-se, para destruir uma relação são precisas duas pessoas. O tribunal não acredita, de todo, que a culpa se incline, exclusivamente, para um dos lados e que um deles seja totalmente inocente ou totalmente culpado na deterioração da relação e ainda mais no actual clima de conflito existente entre arguido e assistente (bem patente, aliás, do teor do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, cuja certidão se mostra junta aos autos). Aliás, segundo as regras de experiência comum este tipo de situações cria, lamentavelmente, este tipo de crispação entre ambos os lados, chegando-se a exageros como os que se verificam nos autos. E por isso mesmo, dado o estado manifesto de animosidade e, até se pode ousar dizer, de guerra instalada, o tribunal tem necessariamente reservas quanto à credibilidade dos depoimentos prestados pelos sujeitos mais directamente envolvidos (o arguido, a assistente e os familiares de ambos), a não ser quando conjugados com outros elementos de prova mais seguros e isentos (como os referidos acima relativamente aos factos provados).
 Relativamente aos depoimentos das restantes testemunhas o tribunal dificilmente também os pode valorar com seriedade, face às manifestas contradições existentes.
É certo que o arguido e assistente frequentaram, no decurso da sua relação, o curso superior de Medicina Tradicional Chinesa, onde se conheceram. No âmbito de tal frequência o arguido e assistente conviviam com colegas e professores, que acompanharam a relação de ambos. Contudo, nos depoimentos destes existiram contradições que levantam dúvidas sobre qual das versões é, afinal, a verdadeira:
As professoras MC, AM e JA referiram todas que a assistente, na altura do relacionamento, andava abatida, chorava muito, e as duas primeiras referiram igualmente que viram a assistente marcada com nódoas negras e mordeduras. Porém os colegas P. C., L.O., YS, ZR, A.M., J.H. e IB nada mencionaram relativamente ao abatimento da assistente ou mesmo que esta apresentasse lesões, apenas referindo todos eles que, desde o início do relacionamento entre o arguido e a assistente, os mesmos se afastaram do convívio habitual entre colegas, mas sempre aparentando um relacionamento normal. De salientar que a grande maioria destas últimas testemunhas nem sequer foi indicada pelas partes e a sua inquirição foi determinada oficiosamente pelo tribunal, logo revestindo uma maior isenção.
Relativamente aos depoimentos deste conjunto de testemunhas (professoras e colegas do arguido e da assistente) e mais os depoimentos de algumas outras testemunhas, cumpre salientar mais alguns aspectos que só vêm contribuir para a existência de dúvidas sobre a veracidade da maioria dos factos constantes da acusação:
- relativamente às alegadas lesões apresentadas pela assistente ao longo do relacionamento há que ponderar o depoimento da testemunha A.P.M, a médica que acompanhou a assistente durante a gravidez (gravidez essa que ocupou a maioria do tempo do relacionamento), que afirmou com clareza que nunca viu marcas no corpo da ofendida, mas que verificou um certo afastamento do casal e que a ofendida, no final da gravidez, estava triste e abatida;
- nenhuma das professoras ou dos colegas que foram inquiridos referiu sequer algum incidente ocorrido nas aulas conforme se encontram descritos na acusação, ou seja, ninguém referiu qualquer comportamento de achincalhamento da assistente por parte do arguido nas aulas;
- a assistente falou sobre a sua relação com o arguido com as suas professoras já identificadas, assim como com a testemunha M.M., amiga dos seus pais, mas, aparentemente, não desabafou com nenhuma amiga mais próxima da sua idade e contexto social, o que seria mais natural.
Cumpre igualmente mencionar o depoimento de R.M., psicólogo que realizou um acompanhamento psicológico da assistente algo peculiar, através de telefone e quando a assistente lhe telefonava e meia dúzia de sessões presenciais quando a assistente vinha ao continente. Face à forma algo particular deste acompanhamento psicológico, o depoimento desta testemunha assume pouca relevância. Já o depoimento da testemunha SF, que efectuou um acompanhamento psicológico da assistente mais conforme os critérios clínicos, merece mais valoração. Contudo, certo é que estamos apenas perante um depoimento testemunhal e não um juízo pericial, não tendo esta testemunha relatado factos a que assistiu mas apenas factos que lhe foram relatados pela assistente, pelo que, por si só, não é suficiente para confirmar que, efectivamente, tudo se passou conforme consta da acusação.
Concluindo, perante estes elementos de prova e em face do princípio do in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção da inocência do arguido, não resta ao tribunal senão considerar como não provados a maioria dos factos constantes da acusação”.
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É bem sabido que, em situações como a sub juditio, tendem a formar-se dois campos antagónicos e as testemunhas, ainda que inconscientemente, tendem a alinhar por um dos lados e, inevitavelmente, a sua isenção e imparcialidade é afectada, o que torna a tarefa do julgador mais difícil, complexa e delicada.
Para avaliar a credibilidade de uma testemunha, é importante conhecer com precisão a sua posição e as suas relações de interesse, de amizade ou de parentesco com os sujeitos processuais para descobrir qual é a possível vantagem que procura obter com um depoimento mentiroso, ou menos verdadeiro.
Sendo na apreciação da prova que se decide a concreta aplicação do direito, é imperioso rodear esta tarefa de especiais cuidados.
Na apreciação da prova, o juiz deve, antes de mais, evitar o convencimento apriorístico.
O juiz não pode deixar-se fascinar por uma tese, uma versão, deve evitar convicções apriorísticas que levam a visões lacunares e unilaterais dos acontecimentos.
O juiz deve fazer a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, tem de avaliar as provas, não arbitrariamente ou caprichosamente, mas em harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
A liberdade[vi] do convencimento que conforma o modelo da livre apreciação, se tem que ser expressão de uma convicção pessoal, não é uma liberdade meramente intuitiva, é antes um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão.
É um facto indesmentível que, durante muitos anos e até há bem pouco tempo, a violência doméstica era um fenómeno de todos conhecido (difícil mesmo era haver quem não conhecesse casos de mulheres espancadas pelos maridos ou pelos companheiros), mas que não era encarado com a seriedade que a gravidade dessas situações impunha.  
Apesar de ser, geralmente, reconhecido que o fenómeno da violência no seio do agregado familiar atinge mais de metade das mulheres, a taxa de denúncia era baixíssima e isso acontecia porque, além do mais, as vítimas sentiam que o mais provável é que a sua denúncia acabasse em nada por não terem quem atestasse as agressões e às suas declarações não era dado o devido relevo probatório.
Como se refere no II Plano Nacional contra a Violência Doméstica, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2003 (D.R., Série I – B, de 07.07.2003), “os testemunhos das mulheres são tidos como pouco credíveis pela sociedade em geral e, por isso, muitas mulheres sentem-se prisioneiras isoladas no seu mundo de violência. Muitas vezes, de vítimas transformam-se em acusadas; poucas acreditam na possibilidade de se libertarem da perseguição dos agressores ou de que estes venham a ser punidos”. 
Existe agora uma maior sensibilidade para as questões relacionadas com o fenómeno da violência doméstica (que não se limita à violência sobre as mulheres) e essa nova atitude tem já concretizações, quer a nível legislativo, quer a nível da jurisprudência.  
Também é de todos sabido que a violência de que são vítimas as mulheres ocorre, sobretudo, no seio do agregado familiar, eclode com elevada frequência e de maneira particularmente intensa no seio da família, no designado espaço doméstico, a casa de morada da família, e por isso escapa, em larga medida, ao conhecimento público.
Daí que tenha vindo, progressivamente, a merecer aceitação geral a ideia de que, estando em causa crimes cuja prática é menos visível e é mesmo rodeada de um certo secretismo que as quatro paredes de uma casa proporciona (é o que acontece, entre outros, com os crimes sexuais e os maus tratos)[vii], os depoimentos dos ofendidos devem merecer especial relevo probatório[viii].
Mas, note-se bem, com isto não se pretende significar que se deva ter como certo que o acusado mente e a (o) ofendida(o) conta sempre a verdade, mas sim que o tribunal deve estar particularmente atento às declarações e à atitude de um e de outro, pois são eles, especialmente a (o) ofendida(o), quem fornece as bases em que vai assentar a convicção do julgador.
Há que ser cauteloso e evitar visões maniqueístas das situações: nem sempre o arguido (normalmente, o marido ou o companheiro) é o demónio e a(o) ofendida(o) o anjo, a vítima cândida, inocente e indefesa que merece todo o crédito.
Lendo a motivação da sentença, facilmente se constata que o tribunal teve esse cuidado e evitou cair nesse maniqueísmo, apesar de algumas testemunhas terem revelado falta de isenção e objectividade e, claramente, terem empolado e exagerado situações e factos para dar do arguido uma imagem que, provavelmente, não corresponde à realidade.
Por isso só pode aplaudir-se a postura de grande sensatez, cuidada ponderação e juízo crítico tida pela Sra. Juíza do tribunal a quo na apreciação e na valoração da prova.
Aliás, a recorrente acaba por reconhecer isso mesmo, pois limita a um único ponto a sua divergência em relação à decisão sobre matéria de facto.
Concretamente, entende a recorrente que o tribunal devia ter dado como provado que, nas sucessivas discussões que tinha com o arguido, este lhe chamava, também, “vaca” e lhe dizia “vai para o caralho” e “mato-te”, baseando-se, para tanto, no depoimento da testemunha M.I., que foi considerado credível.
Também a prova testemunhal está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova. Mas, como é afirmação corrente, apreciar livremente as provas não é apreciá-las arbitrariamente e, muito menos, apreciá-las de modo a chegar à decisão que ao tribunal parecer justa.
Sendo, porventura, aquela que maior importância assume como instrumento essencial de reconstituição dos factos (embora no processo penal não tanto como no processo civil, em que, frequentemente é a única prova existente), à prova testemunhal são apontadas duas importantes fragilidades: a sua falibilidade e a precariedade.
O juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração e se pode considerar credível uma testemunha e, apenas, com base no seu depoimento dar como provado determinado facto, não tem que lhe dar crédito total e bastar-se com esse depoimento em relação a outros factos, como parece ter acontecido neste caso (“no que concerne aos factos não provados o tribunal, ponderada a prova produzida e constante dos autos, considerou que a mesma não era suficiente para sustentar um juízo de certeza sobre os factos em causa”).
O modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efectuado pelo ”tribunal a quo”, ao não coincidir com a perspectiva da recorrente nos termos em que esta as analisa, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer erro de julgamento.
Por isso afigura-se-nos que não se impõe qualquer alteração da decisão sobre matéria de facto.

O alegado erro na valoração jurídico-penal dos factos provados
Sustenta a recorrente que, estando provado que:
§ frequentemente, discutia com o arguido e este, por diversas vezes, chamou-lhe “puta”;
§ no dia 3 de Outubro de 2009, mais uma vez, discutiram enquanto estavam no quarto da habitação juntamente com o filho;
§ nessa discussão, o arguido gritou-lhe e deu-lhe um murro no nariz, que ficou ligeiramente negro de lado e mordeu-lhe a mão;
§ nessa ocasião estava com o filho ao colo;
§ o arguido, então, começou a bater no berço partindo-lhe as rodas, tendo saído após a situação,
nada mais restaria ao Tribunal a quo senão condenar o arguido pela prática do crime de violência doméstica, p. e. p. pelo art. 152°, n° 1, al. b) e n° 2 do Código Penal”, já que “a lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro que procedeu à 23.ª alteração ao Código Penal veio aditar a este Diploma o art. 152° relativo à violência doméstica, prescindindo o mesmo tipo de ilícito criminal de qualquer reiteração dos maus tratos, bastando-se com uma única conduta para integrar a mesma no conceito de violência doméstica”.
Mas, que assim não fosse, “a existir alteração da qualificação jurídica a mesma nunca poderia ser para um crime de ofensas à integridade física simples por força do disposto no art. 132.°, n.° 2 do mesmo diploma, aplicável, "in casu", "ex vi" art. 145.°, n.° 2 do Código Penal, pelo que ao alterar a qualificação jurídica descurou este aspecto essencial, porquanto não teve em conta a relação existente entre 0 arguido e a ofendida”.
A este propósito, na sentença discreteou-se assim: “o arguido está acusado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º n.ºs 1 b) e 2 do Código Penal. Comete este crime quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais a outra pessoa com quem tenha mantido relação análoga à dos cônjuges.
Dos factos provados não resulta que a conduta do arguido integre os elementos típicos deste crime, na medida em que, face à diminuta gravidade e consequências das ofensas, não poderão as mesmas integrar o conceito de maus-tratos físicos. A conduta do arguido integra, sim a prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143.º n.º 1 do Código Penal e também a prática de um crime de injúria p. e p. pelo art. 181.º n.º 1 do Código Penal”.
Na revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de violência doméstica em relação ao tipo legal de maus-tratos a cônjuge, tal como este estava configurado no art.º 152.º, n.º 2, do Código Penal: alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes da violência doméstica, passou a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias.
Significa isto que o facto concreto era punível pela lei anterior e continua a sê-lo pela lei nova, podendo, então, falar-se aqui em “continuidade normativo-típica das leis”, já que, tendo-se modificado os elementos do tipo legal, manteve-se a incriminação do mesmo facto, ainda que as consequências possam ser diversas.
O crime de violência doméstica (anteriormente, com o nomen juris de maus tratos, tipificado no art.º 153.º do Cód. Penal de 1982 e depois, com a revisão de 1995, no art.º 152.º), não só tem suscitado alguns problemas de interpretação como tem sido posta em causa a sua manutenção como crime especial relativamente às ofensas corporais, pelo menos no que respeita aos maus tratos conjugais[ix].
A questão que maior controvérsia suscitava, na doutrina como na jurisprudência, era, precisamente, saber se para a verificação do crime bastava uma acção isolada ou exigia-se habitualidade.
Prevalecia o entendimento de que “maus tratos” tinha de ser uma realidade diversa das ofensas corporais (simples ou qualificadas). Se assim não fosse, estaríamos perante uma incompreensível duplicação de tipificações criminais.
Na verdade, a verificação do crime, não exigindo habitualidade da conduta, reclamava mais que uma acção isolada, pressupunha uma multiplicidade de factos, uma certa reiteração dos comportamentos agressivos do agente (cfr., entre outros, Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 334; na jurisprudência, por todos, o acórdão do STJ, de 30-10-2003, CJ/Acs.STJ, 2003, tomo 3, 208).
Tratava-se de um crime de conduta plúrima, frequente ou repetida num período de tempo limitado, pois como, então, ensinava Tereza Beleza (“Maus Tratos Conjugais: O art.º 153.º, n.º 3 do Código Penal”, edição A.A.F.D.L., 19), “a(s) situação(ões) social(is) típica(s) a que o art.º 153.º se refere é (são) de continuação, de reiteramento, activo ou omissivo”.
No entanto, como refere o Ministério Público na sua resposta, logo após a reforma do Código Penal operada pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, surgiu uma corrente jurisprudencial propugnando que, em certos casos, um único acto de agressão seria bastante para se preencher o tipo objectivo do crime de maus tratos (acórdão do STJ, de 14.11.1997, CJ/Acs. STJ, 1997, T. 3, 235).
Continuava a exigir-se que, por regra, o crime se consumava com a prática reiterada de vários actos de agressão (física ou psíquica), desde que entre eles houvesse uma certa proximidade temporal, mas admitia-se que, em casos de especial violência, reveladora de qualidades particularmente desvaliosas (crueldade, malvadez, insensibilidade, vingança, etc.) do agente, uma só actuação agressiva, desde que suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima e evidenciasse grave desrespeito da dignidade da pessoa da vítima (humilhando-a, privando-a da liberdade, forçando-a à prática de actos sexuais, etc.), tratada como objecto do exercício de um certo domínio, seria bastante para se ter como verificados os maus tratos (assim, o acórdão do STJ, de 04.02.2004, acessível em www.dgsi.pt).
Agora, com a referida reforma, a descrição típica tem uma amplitude muito maior e prevê-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se de modo reiterado ou não.
É defensável afirmar que, com essa formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
Nesse sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário…”, 465-466) e concretiza: «os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas”, ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e “os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163.º, n.º 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164.º, n.º 2, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172.º, n.º 2 ou 3, e os crimes contra a honra”.
No entanto, se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, ameaças, coacção, sequestro, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos não pode servir toda e qualquer ofensa.
Segundo Augusto Silva Dias (“Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física”, AAFDL, 2.ª edição, 2007, pág. 110), com o crime tipificado no art.º 152.º do Código Penal protege-se a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana em contextos de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, estreita relação de vida e relação laboral.
Na expressiva síntese de Taipa de Carvalho (“Comentário….” , Loc. Cit. 332), “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”, estando “na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana” a ratio do artigo 152.º do Código Penal.
Em sentido idêntico se tem pronunciado a jurisprudência, como é sublinhado no acórdão do STJ, de 02.07.2008, disponível em www.dgsi.pt (relator: Cons. Raul Borges), citando-se aí o acórdão daquele Supremo Tribunal de 30.10.2003 (CJ/Acs. STJ, 2003, T. 3) em que se manifesta o entendimento de que “o bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar»[x].
Ora, se a fórmula legal (“de modo reiterado ou não”) não permite qualquer dúvida quanto ao propósito do legislador de ultrapassar a querela doutrinal e jurisprudencial e consagrar o entendimento de que o tipo legal (de violência doméstica) não exige reiteração de acções ofensivas, também é certo que um único acto ofensivo só consusbtanciará um “mau trato” se se revelar de uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – a saúde física, psíquica ou emocional -, pondo em causa a dignidade da pessoa humana.
Como, lapidarmente, afirma Plácido Conde Fernandes (“Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305), não havendo razão para «alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral”, também se mantém válida a asserção de que “a dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa”.
É a exigência de especial gravidade da conduta maltratante que se acentua no acórdão desta Relação de Lisboa, de 07.12.2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que se transcreve o respectivo sumário:
“I - O tipo de crime de «violência doméstica» do art. 152º do C. Penal antes da reforma operada pela Lei nº 59/2007 designado como crime de «maus tratos» visa punir criminalmente os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga. Pune-se um tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
II – Com ele se visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano”.
Na busca do exacto sentido da norma incriminadora em causa, no acórdão da Relação do Porto, de 19.09.2012 (www.dgsi.pt) é posto em relevo o elemento histórico:
“I - Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 98/X, que esteve na origem da Lei n.° 59/2007, de 4/9, escreve-se: «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa».

II - Para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge”.
Na mesma linha de exigência de que o acto ofensivo singular se revista de uma certa gravidade, situa-se o acórdão do STJ, de 06.04.2006 (C J/Acs. STJ, 2006, T. 2, 166), no qual se salienta não bastarem “as meras ofensas à integridade física” e que é indispensável “que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado”.
Da factualidade provada, interessa-nos destacar o facto de o arguido, no dia 03.10.2009, ter atingido a assistente, com um murro, no nariz que ficou “ligeiramente negro de lado” (podendo, pois, deduzir-se que foi um murro deferido com pouca força) e de a ter mordido na mão (sem lesões aparentes).
Trata-se, pois, de uma simples ofensa à integridade física que está longe de poder considerar-se uma conduta maltratante susceptível de configurar “violência doméstica”.
É manifesto que essa conduta do arguido, mesmo tendo em conta que a assistente estava com o filho (então com 9 dias de vida) ao colo, não tem a gravidade bastante para se poder afirmar que, com ele, foi aviltada a dignidade pessoal da recorrente e, portanto, que o seu bem-estar físico e emocional foi, intoleravelmente, lesado.
O facto de, por várias vezes, o arguido, no decurso de discussões havidas entre eles, ter chamado “puta” à assistente pouco ou nada acrescenta à gravidade daquela conduta.
Por isso, não merece censura a decisão do tribunal recorrido de convolar a incriminação para um crime de ofensa à integridade simples, sendo patente que inexiste fundamento para se concluir que a conduta do arguido é reveladora de especial censurabilidade ou perversidade, juízo que seria indispensável para a qualificação daquele ilícito criminal.

III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Por ter decaído, pagará a recorrente as custas do processo, fixando-se em cinco UC´s a taxa de justiça devida (artigos 513.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, 1.º, n.º 2, e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais).  
 (Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).   

Lisboa, 15 de Janeiro de 2012

Neto de Moura
Alda Tomé Casimiro
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[i] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[ii] Com ressalva daqueles casos em que o arguido, o assistente ou outro sujeito processual não é notificado da sentença no acto da respectiva leitura, nomeadamente porque faltou justificadamente ao acto.
[iii] Como se pode ler no acórdão do STJ de 27.05.2010 (www.dgsi.pt/jstj), “a partir da reforma de 1998 passou assim a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, nº 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
[iv] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[v] Idem
[vi] Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol, 199 e ss.), “uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada “verdade material”.
[vii] Estudos conhecidos revelam que é a casa-família o espaço por excelência onde a violência sobre as mulheres é exercida.
A par de um certo secretismo que rodeia a prática destes ilícitos, factores como a dependência emocional e material da vítima em relação ao maltratante e sentimentos de vergonha, medo e conformismo dificultam sobremaneira a descoberta da verdade.
[viii] Cfr, entre outros, os acórdãos da Relação Porto, de 06.03.91 (C.J. 1991, Tomo II, 287), da Relação Coimbra, de 06.01.2010 (www.dgsi.pt/jtrc) e da Relação Lisboa, de 06.06.2001 (www.dgsi.pt/jtrl).
[ix] No seio da Comissão de Revisão do Código Penal (referimo-nos à revisão de 1995), o Professor Figueiredo Dias manifestou algumas reservas quanto à extensão da tutela penal (no quadro do preceito incriminador em análise, entenda-se) ao cônjuge, por ser duvidoso que ela tenha, ainda, algum suporte sociológico, chegando mesmo a ser proposta a sua eliminação.
Em sentido contrário apontava um Projecto de Lei (a que foi atribuído o n.º 58/VIII) apresentado por deputados do PCP na Assembleia da República, em que, além do mais, era proposto “o alargamento da tipificação do crime de maus tratos, por forma a contemplar situações, como a de ex-cônjuges ou de pessoas que tivessem vivido em união de facto, e ainda de pessoas que tenham em comum filhos, porque a vida demonstra que também nessas situações a motivação do crime de que são normalmente vítimas as mulheres é o menosprezo pelo sexo feminino”.
O alargamento da tipificação do crime de maus tratos veio a concretizar-se.
[x] Enfatizando a natureza complexa do bem jurídico tutelado, o acórdão da Relação de Coimbra, de 24.04.2012 (acessível em www.dgsi.pt), em que se considerou que “o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação”.