Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
349/23.4T8VFX-D.L1-1
Relator: ELISABETE ASSUNÇÃO
Descritores: ARGUIÇÃO DE NULIDADES
INSOLVÊNCIA CULPOSA
CULPA GRAVE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário - Elaborado pela Relatora nos termos do art.º 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil (CPC).
1 - Não se verifica a nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, al. c), do CPC, de oposição entre os fundamentos e a decisão, quando na sentença proferida se verifica existir um raciocínio lógico entre os fundamentos enunciados e a decisão tomada a final.
2 - Não se verifica a nulidade prevista na primeira parte do disposto na alínea d), do art.º 615º, n.º 1, do CPC, de omissão de pronúncia, quando o tribunal apreciou todas as questões que lhe cumpria conhecer, com interesse para a decisão de mérito a proferir.
3 - Não cumpre proceder à alteração da matéria de facto dada como provada quando a prova indicada pelos recorrentes, a ter em consideração na decisão a proferir, não corrobora a pretendida alteração de redação de um dos factos dados como provados pelo tribunal recorrido.
4 - Face ao disposto no n.º 1, do artigo 186º, do CIRE, são requisitos para que a insolvência seja qualificada como culposa; - a existência de facto ou factos reportados à atuação ou omissão, pelo devedor ou pelos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; a culpa qualificada destes, consubstanciada em dolo ou culpa grave; a existência de nexo causal entre as referidas atuações e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
5 - É praticamente uniforme na jurisprudência que, no n.º 2, do art.º 186º, do CIRE, estão em causa presunções juris et de jure, a prova de qualquer uma das situações referidas neste n.º 2 determina a qualificação da insolvência como culposa, dispensando assim a lei a prova do dolo ou culpa grave do gerente ou administrador, assim como do nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, não admitindo estas presunções prova em contrário, nos termos da parte final do art.º 350º, n.º 2, do C.C. – “Considera-se sempre culposa”.
6 - O nº 3, do art.º 186º, do CIRE, consagra presunções de culpa grave, presunções no entanto ilidíveis, presunções juris tantum, podendo assim ser ilididas mediante prova em contrário, nos termos previstos no art.º 350º, n.º2, primeira parte, do C.C. - “Presume-se unicamente”.
7 - Resulta hoje claro, face ao aditamento do advérbio “unicamente”, no n.º 3, do art.º 186º, do CIRE, que não prescindiu o legislador, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do art.º 186º, do CIRE.
8 – Competindo aos gerentes da sociedade, propostos afetados, em cumprimento dos seus deveres, assegurar-se que as contas apresentadas e aprovadas eram fidedignas da real situação da sociedade, não são fatores “desculpantes” para não o fazerem, o não terem conhecimentos técnicos para o efeito, ou não terem dado “instruções quanto aos dados a registar contabilisticamente”, tanto mais que, no caso em concreto, trata-se da omissão reiterada de um passivo num valor superior a 8.800.000,00 €, o que não exige especiais conhecimentos técnicos por parte desses gerentes para se aperceberem que o mesmo estava a ser omitido das contas e posteriormente das declarações entregues pela sociedade.
9 - O facto de os administradores da sociedade não saberem os seus deveres em nada releva, pelo contrário, trata-se de um comportamento altamente censurável.
10 - A referida omissão preenche a situação elencada na alínea h), do art.º 186º, n.º 2, do CIRE, tratando-se da prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
11 - Com referência ao art.º 186º, n.º 3, al. b), do CIRE, é assinalável a dificuldade de prova de que o incumprimento dos deveres, por parte dos administradores da insolvente, de elaboração, de sujeição a fiscalização e de depósito das contas anuais, configura causa de criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos exigidos pelo normativo enunciado.
12 - Revela-se proporcional e adequado a aplicação de períodos de inibição aos propostos afetados que têm em consideração a gravidade do comportamento dos mesmos, aplicando uma diferenciação justificada face à sua provada atividade como gerentes na empresa, a medida da culpa, a relevância desses comportamentos em conexão com a situação de insolvência verificada, as circunstâncias do caso em concreto e a moldura abstrata que é prevista pelo legislador, de um período entre dois a dez anos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

1. Relatório
Em 27.01.2023, foi requerida a insolvência de XX e YY, Lda.
A referida sociedade foi declarada insolvente por sentença datada 20.04.2023, transitada em julgado.
Em 30.06.2023, o Ministério Público apresentou requerimento pedindo, no que ora nos interessa, a abertura do incidente de qualificação de insolvência.
Alegou, em síntese, que está em causa:
- a violação do dever de apresentação voluntária à insolvência – artigo 186.º, n.º 3, a), do CIRE;
- a existência de contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor – artigo 186.º, n.º 2, h), do CIRE;
- a violação da obrigação de depositar as contas na Conservatória do Registo Comercial – artigo 186.º, n.º 3, b), do CIRE;
- a dissipação de património e o facto de ter sido feito de bens da devedora uso contrário ao interesse desta, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tem interesse directo ou indirecto; - alíneas a), d), e) e f), do n.º 2.º do art.º 186.º do CIRE;
- a exploração deficitária da insolvente em beneficio do interesse pessoal e de terceiros – artigo 186.º, n.º 2, g), do CIRE;
-  incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º - artigo 186.º, n.º 2, i), do CIRE, que, a verificarem-se, culminam na qualificação de insolvência como culposa, devendo ser declarados afetados pela qualificação os gerentes E… e N….
Em 03.07.2024, por despacho, foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, nos termos do art.º 188º, nºs 1 e 5, do CIRE e ordenada a notificação do administrador da insolvência nos termos e para os efeitos previstos no art.º 188º, n.º 6, do CIRE.
Em 04.09.2023, veio o administrador de insolvência apresentar parecer, concluindo em síntese, que: “entende o AJ que se aplica à presente insolvência o previsto nas alíneas a), b), c), d), e), h), i) do nº2 do supra citado artigo 186º do CIRE, o que determina que a insolvência seja culposa corroborando o parecer do digno procurador do MP.
“Resumidamente:
- Ocultação de bens e rendimentos da insolvente;
- Incumprimento da obrigação de elaboração das contas anuais, no prazo legal;
- Incumprimento do dever de apresentação à insolvência;
- Ocultação do exercício de atividade de carácter empresarial geradora de rendimentos, mesmo após a declaração de insolvência;
- Incumprimento do dever de colaboração do insolvente.
Nesta conformidade, e mediante o supra alegado, o AJ é de parecer que existem razões objetivas suficientes para qualificar a presente insolvência como culposa, considerando o nexo causal entre a conduta do gerente de direito e de facto da insolvente e a declaração de insolvência, devendo ser afetado por esta qualificação:
- E…;”
Por despacho datado de 14.09.2023, foi ordenada a citação, nos termos do art.º 188º, n.º 6, do CIRE, de E… e de N… e da devedora na pessoa do seu legal representante E….
Em 08.11.2023, E… e N… apresentaram oposição, pedindo que a insolvência seja julgada como fortuita.
Disseram, em síntese, que de todos os factos invocados pelo Ministério Público o mesmo carece de razão, e que o parecer do administrador da insolvência não se encontra fundamentado.
Em 10.10.2024, foi proferido despacho no qual:
- se fixou o valor do incidente;
- dispensou-se a audiência prévia;
- proferiu-se despacho saneador “stricto sensu”;
- identificou-se o objeto do litígio nos seguintes termos:
“Da qualificação da insolvência da sociedade comercial Devedora XX & YY LDA., pessoa coletiva número 501458425, como culposa;
Com afetação dos gerentes E… e N…;
Pela prática dos factos previstos nos artigos 83.º e 186.º, n.º 2.º, als. a), d),
e), f), g), h) e i), e n.º 3, als. a), e b), do CIRE:
“2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma
pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”.
- enunciaram-se os temas da prova nos seguintes termos:
“1. Transferências bancárias para sociedades de que são gerentes E… e M…
2. Falta de contabilidade organizada
3. Falta reiterada de apresentação e colaboração com o Sr. Administrador da Insolvência
4. Falta de apresentação à insolvência dentro do prazo legal, contado a partir do incumprimento generalizado das obrigações;
5. Falta de depósito de contas em prazo
6. Contributo das condutas supra identificadas para o agravamento da situação patrimonial da Insolvente, com prejuízo para os credores
7. Gerência de facto pelo pai do Requerido
8. Empréstimos à Devedor(a)(s) por empresas de que são gerentes E… e M…
9. Ausência de instruções quanto aos registos contabilísticos
10. Créditos não vencidos à data da declaração de insolvência
11. Diligências da Devedor(a)(s) junto da Autoridade Tributária, prévias à propositura, no sentido do pagamento da dívida
12. Impacto da pandemia na laboração da empresa
13. Ordem da gerência aos motoristas no sentido da não utilização de autoestradas, salvo quanto veículos que dispunham de equipamento “via verde””;
- Proferiu-se despacho sobre os requerimentos probatórios;
- Relegou-se a marcação de data para a realização do julgamento.
Por despacho de 12.05.2025, foram designadas datas para a audiência de discussão e julgamento.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento.
Em 26.05.2025, foi proferida sentença nos autos, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto:
V.1
Qualifico como culposa a insolvência da sociedade Devedora, e, em consequência:
a) Declaro afetados pela qualificação os gerentes E… e N…;
b) Decreto a inibição do gerente E… para administrar patrimónios de terceiros por 3 anos e seis meses;
c) Declaro E… inibido, por 3 anos e seis meses, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Decreto a inibição do gerente N… para administrar patrimónios de terceiros por 2 anos e seis meses;
e) Declaro N… inibido, por 2 anos e seis meses, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
f) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por E… e N…, e condeno-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos (alínea d));
g) Condeno E… e N…. na indemnização aos credores até ao montante máximo dos créditos verificados e não satisfeitos, indemnização a liquidar incidentalmente;
V.2
Improcedendo o demais peticionado.
V.3
Custas do incidente a cargo dos afetados pela qualificação E… e N… – artigo 303 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Valor: o já fixado, € 30 000,01.
Registe e notifique.”  
*
Inconformados com a decisão proferida, vieram, em 23.06.2025, N… e E… apresentar recurso de apelação, pedindo, a final, que seja dado provimento ao recurso e revogada a sentença proferida.
Apresentaram os recorrentes as seguintes conclusões:
“1.ª
O presente recurso tem por objeto a decisão do Tribunal recorrido, proferida em 26.05.2025, que qualificou a insolvência da XX & YY, Lda. como culposa.
2.ª
A sentença é nula, nos termos do art. 615º do Código de Processo Civil, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.
3.ª
No caso em apreço, a decisão sobre a matéria de facto, tal como foi julgada pelo Tribunal recorrido, apontava no sentido de os Requeridos não terem tido uma conduta dolosa ou com culpa grave, que tenha criado ou agravado a situação de insolvência da Devedora.
4.ª
O Tribunal recorrido julgou provado que os gerentes não atuaram com dolo, nem com culpa grave, quer no modo como os registos contabilísticos da Devedora foram realizados, nem na (in)tempestividade da apresentação da IES de 2021, pelo que não podia concluir, como concluiu, que a insolvência devia ser qualificada como culposa.
5.ª
Esta nulidade é sanável, com a correta aplicação do art. 186º do CIRE aos factos julgados provados e com a consequente decisão de absolvição dos Visados, como melhor se desenvolverá adiante.
6.ª
O Tribunal recorrido violou o disposto no art. 608º do Código de Processo Civil ao não se ter pronunciado sobre matéria de facto submetida à sua apreciação (a saber: (i) o trabalho do Senhor P… era validado pelo Contabilista Certificado, que, na prática, não executava o trabalho, mas supervisionava-o e era responsável pela contabilidade; (ii) com o prolongar no tempo da doença do Senhor Dr. P…, a gerência da Devedora contratou a sociedade Contarruda, Lda., para serem responsáveis pela contabilidade; (iii) os Requeridos, por falta de conhecimentos para o efeito, não analisavam criticamente as contas da Devedora, e a sua elaboração e apresentação correspondia a critérios técnicos que não dominavam) e relevante para a boa decisão da causa, pelo que a sentença é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
7.ª
Esta nulidade é sanável por constarem dos autos os elementos probatórios que permitem julgar estes factos. Caso assim não se entenda, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, deve, então, o Tribunal ad quem julgar nula a sentença recorrida, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil e remeter o processo à primeira instância, para ampliação da matéria de facto sujeita a julgamento, nos termos do art. 662º do Código de Processo Civil.
8.ª
O Tribunal recorrido veio a julgar, sob o ponto 9 da matéria de facto julgada provada, que “E… tinha intervenção prevalecente na gerência.”, quando devia ter julgado que “A gerência era exclusivamente exercida por E…”, pois assim o impunha toda a prova testemunhal produzida nos autos – V. depoimento de A…, que prestou serviços administrativos para a Devedora de 2009 a 2023, que prestou depoimento em 22.05.2025, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 9h22m e o seu fim ocorreu às 9h50m, a minutos 16:19 da gravação; depoimento de C…, que prestou serviços como motorista para a Devedora de 2008 a 2023, que prestou depoimento em 22.05.2025, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital (Webex de Santarém), disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 9h59m e o seu fim ocorreu às 10h32m, logo aos costumes disse conhecer a Empresa e o Sr. E… como patrão e ainda minutos 00:45 da gravação; depoimento da testemunha F…., que prestou serviços como motorista para a Devedora de 2000 a 2023, que prestou depoimento em 22.05.2025, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital (Webex de Vila Real), disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 10h57m e o seu fim ocorreu às 11h32m, logo aos costumes disse conhecer a Empresa e o patrão e o filho (assim os distinguido), e ainda minutos 1:35:50 e 1:40:00 da gravação; depoimento da testemunha M…, que conhece a Empresa, com relação comercial desde 2017, quando entrou em funções, até à insolvência.
Foi parceira da distribuição do grupo Pingo Doce, Jerónimo Martins, onde é diretora financeira do retalho alimentar, que prestou depoimento em 22.05.2025, da parte da tarde, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 13h45m e o seu fim ocorreu às 13h55m, minutos 5:19 da gravação; depoimento da testemunha F…, Economista que foi contratado para a apresentação do plano de recuperação a apresentar nos presentes autos, que prestou depoimento em 22.05.2025 da parte da tarde, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 13h59m e o seu fim ocorreu às 14h27m, minutos 16:42 e 22:00 da gravação; depoimento da testemunha P…, técnico de contabilidade da Devedora de 2001 a 2023, que prestou depoimento em 23.05.2025, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 9h55m e o seu fim ocorreu às 10h28m, minutos 26:48 da gravação.
9.ª
O Tribunal recorrido devia ter submetido a julgamento e julgado provado que - o trabalho do Senhor P… era validado pelo Contabilista Certificado, que, na prática, não executava o trabalho, mas supervisionava-o e era responsável pela contabilidade; - com o prolongar no tempo da a doença do Senhor Dr. P…, a gerência da Devedora contratou a sociedade Contarruda, Lda., para serem responsáveis pela contabilidade; - os Requeridos, por falta de conhecimentos para o efeito, não analisavam criticamente as contas da Devedora, e a sua elaboração e apresentação correspondia a critérios técnicos que não dominavam.
10.ª
Estes factos resultam provados da prova documental junta aos autos, máxime junto aos autos principais e da documentação junta neste incidente pelos requerimentos de 28.02.2025 e em 20.05.2025 e ainda da prova testemunhal produzida - V. depoimento da testemunha F…, Economista que foi contratado para a apresentação do plano de recuperação a apresentar nos presentes autos, que prestou depoimento em 22.05.2025 da parte da tarde, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 13h59m e o seu fim ocorreu às 14h27m, a minutos 22:42 da gravação e depoimento da testemunha P…, técnico de contabilidade da Devedora de 2001 a 2023, que prestou depoimento em 23.05.2025, tendo o seu depoimento sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu às 9h55m e o seu fim ocorreu às 10h28m, a minutos 28:29, 28:57, 30:26, 32:13, 34:11, 35:13, 43:00 e 45:25 da gravação.
11.ª
Alterando o Tribunal ad quem a matéria de facto julgada provada, nos termos supra expostos, conclui-se que a insolvência foi fortuita.
12.ª
Mas, ainda que esse Alto Tribunal não venha a alterar a decisão sobre a matéria de facto, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, sempre terá de revogar a douta decisão recorrida.
13.ª
Para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a atuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter atuado dolosamente, mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência.
14.ª
Ficou por demonstrar que o passivo de portagens e coimas tivesse que constar da IES do exercício de 2021, uma vez que o valor em causa já se encontrava vencido desde 2019, nos termos referidos pelo Tribunal recorrido.
15.ª
A decisão técnica dos contabilistas, e não dos gerentes, de não contabilizar tais valores, foi tomada em 2019, mais de três anos antes do início do presente processo de insolvência, pelo que tal decisão não pode ser tida em conta para efeitos de qualificação da insolvência, sob pena de violação do art. 186º do CIRE.
16.ª
Ficou igualmente por demonstrar que tenha ocorrido uma irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
17.ª
Tendo em atenção os factos julgados provados, fica igualmente por demonstrar, por não se ter julgado provado qualquer facto nesse sentido, que a situação de insolvência da Devedora foi criada ou agravada pelo facto de, na IES referente ao exercício de 2021, que deveria ter sido apresentada em Julho de 2022, não constar o valor em dívida de portagens e coimas.
18.ª
A apresentação tardia da IES referente ao exercício de 2021 deveu-se a um facto fortuito, julgado provado, que foi o facto de “na organização da Devedora, o responsável pelo envio dos elementos ao contabilista certificado era P…. Esteve ausente ao trabalho por doença entre maio e agosto de 2021 e entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023.” – facto provado 34.
19.ª
Em violação do art. 186º do CIRE, fica por demonstrar em que medida é que o atraso de 6 meses na apresentação da IES do exercício de 2021 causou ou agravou a situação de insolvência da Devedora, sendo certo que tal facto não tem essa suscetibilidade.
20.ª
Fica por demonstrar, não existindo um único facto provado que conduza a tal conclusão, que se a IES referente ao exercício de 2021 tivesse sido apresentada até 31 de julho de 2021, o passivo verificado seria menor (o Tribunal recorrido afirma-o, sem o demonstrar).
21.ª
Não existe, nem dolo, nem culpa grave dos Visados na apresentação tardia (em 6 meses) da IES do exercício de 2021 da Devedora, e não existe qualquer nexo causal entre esse atraso e a criação ou agravamento da situação de insolvência da Devedora.
22.ª
Caso assim não se entenda, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, deve a medida da condenação ser alterada para o mínimo previsto no art. 189º do CIRE.”
*
Foram apresentadas contra alegações pelo Ministério Público, em 01.08.2025, pedindo a final que o recurso seja julgado totalmente improcedente e mantida a sentença proferida.
Apresentou conclusões nos seguintes termos:
“1º
A sentença recorrida fundamenta-se adequadamente nos factos provados, respeita os princípios do contraditório e da defesa e aplica corretamente os preceitos legais pertinentes.

Invocam os recorrentes a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, afirmando que os factos provados não permitiriam concluir pela culpa grave dos gerentes.

Não lhes assiste razão. Como tem reiteradamente afirmado a jurisprudência, "há oposição entre os fundamentos e a decisão quando os fundamentos invocados impõem logicamente conclusão oposta àquela que se extrai da decisão" (Acórdão do STJ de 08.03.2022, Proc. 1672/18.1T8LRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

No caso vertente, o Tribunal a quo fundamentou adequadamente a culpa dos gerentes na omissão reiterada de passivo relevante (cerca de €8.800.000,00) e no incumprimento da obrigação de prestação de contas, condutas que integram as alíneas h) do n.º 2 e b) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE.
5º Os recorrentes pretendem alterar o facto provado n.º 9 ('E… tinha intervenção prevalecente na gerência') para 'a gerência era exclusivamente exercida por E…'.

Contudo, o Tribunal valorizou a prova testemunhal produzida, concluindo que ambos os gerentes exerciam funções, ainda que com prevalência de E….

A existência de gerência formal implica responsabilidade, salvo prova inequívoca de total afastamento da gestão. O que não se demonstrou no caso.

Aliás, os próprios recorrentes reconhecem que N… intervinha em matérias como abastecimentos e logística, o que afasta a exclusividade alegada.

A imputação do recorrente como pessoa afetada pela qualificação é legítima, não tendo sido afastadas as presunções legais aplicáveis.
10º
Nos termos do artigo 186.º do CIRE, a insolvência é culposa quando tiver sido criada ou agravada por conduta dolosa ou com culpa grave dos gerentes, nos três anos anteriores ao processo.
11º
A decisão baseou-se em dois fundamentos essenciais:
i) a entrega extemporânea da IES de 2021, ocorrida apenas após a citação no processo de insolvência; e
ii) a omissão, nessa IES, de um passivo fiscal superior a €8.800.000,00.
12º
Estes factos são subsumíveis às alíneas b) do n.º 3 e h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, constituindo fundamento autónomo e bastante de qualificação culposa, conforme entendimento uniforme da jurisprudência.
13º
Como refere o Supremo Tribunal de Justiça:
-“A omissão de dívidas relevantes na contabilidade e a não entrega atempada das contas legais configuram, por si, atuações culposas dos gerentes nos termos do CIRE.” (Acórdão do STJ de 08.03.2022, Proc. n.º 1672/18.1T8LRA.C1.S1— DISPONIVEL EM https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/58380e767cc91fe9802588da0048999d).
14º
A qualificação da insolvência como culposa encontra sustentação nos autos, nos termos do artigo 186.º do CIRE.
15º
A sentença recorrida demonstrou que a omissão do passivo e a entrega extemporânea das contas agravaram a situação da devedora, dificultando a atuação dos credores, designadamente a Autoridade Tributária, e a regular administração da insolvência.
16º
Para que a insolvência seja culposa, exige-se conduta com culpa qualificada e nexo causal com a situação de insolvência ou o seu agravamento e tal nexo foi demonstrado nos autos.
17º
Não assiste razão aos recorrentes quanto à desproporcionalidade das medidas decretadas.
18º
As sanções impostas respeitam os limites legais e correspondem à gravidade das condutas.
19º
A dosimetria deve atender à intensidade da culpa e aos efeitos das condutas, sendo legítimo o afastamento dos mínimos legais quando esteja em causa ocultação sistemática do passivo.
20º
No caso, a ocultação de milhões em dívida fiscal desde 2019 e a ausência de qualquer ação corretiva justificam plenamente as sanções aplicadas.”.
*
Em 06.10.2025, foi proferido despacho nos autos nos seguintes termos:
I. Admissão do recurso
23-06-2025
01-08-2025 07:54:41
Recurso admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo (artigo 14.º, n.ºs 5, e 6, al. b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas1 (CIRE)).
II. Nulidades da sentença
II.1 Oposição entre os fundamentos e a decisão
Alegam os Requeridos: “a decisão sobre a matéria de facto, tal como foi julgada pelo Tribunal recorrido, apontava no sentido de os Requeridos não terem tido uma conduta dolosa ou com culpa grave,”.
A questão de saber se a matéria de facto provada preenche o tipo do ilícito insolvencial é atinente à aplicação do direito.
II.2 Omissão de pronúncia
Alegam os Requeridos a pertinência de factualidade não abordada pelo Tribunal:
“- o trabalho do Senhor P… era validado pelo Contabilista Certificado, Senhor Dr. F…, que, na prática, não executava o trabalho, mas supervisionava-o e era responsável pela contabilidade – art. 26º da oposição do Visado E… e art. 32º da oposição do Visado N…;
- com o prolongar no tempo da a doença do Senhor Dr. P…, a gerência da Devedora compreendeu que o Senhor Dr. F… não conseguia executar as tarefas que estavam a cargo do Senhor P… e, em 30.06.2021, contratou a sociedade Contarruda, Lda. para executar o trabalho do Senhor P… e para serem responsáveis pela contabilidade – art. 28º da oposição do Visado E… e art. 34º da oposição do Visado N…;
- os Requeridos, por falta de conhecimentos para o efeito, não analisavam criticamente as contas da Devedora, pois a sua elaboração e apresentação correspondia a critérios técnicos que não dominavam – art. 35º da oposição do Visado E… e art. 41º da oposição do Visado N….”.
Abordemos os dois primeiros factos.
A questão da sucessão de contabilistas certificados não foi mencionada pelo Tribunal por irrelevante.
No âmbito em causa, bastaria o que consta do facto 34:
“34. Na organização da Devedora, o responsável pelo envio dos elementos ao contabilista certificado era P…. Esteve ausente ao trabalho por doença entre maio e agosto de 2021 e entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023.”.
Analisando a pertinência do terceiro facto.
A irregularidade contabilística apurada corresponde à omissão de € 8 813 690,06 de passivo em cobrança coerciva pela Autoridade Tributária.
Alegam os Requeridos que o praticaram de forma negligente, na modalidade inconsciente, por falta de especiais conhecimentos técnicos.
Porém, entendemos, a prática do ilícito não pressupõe especiais conhecimentos técnicos.
Notifique.
II.3
Suba o apenso ao Tribunal da Relação de Lisboa.
Notifique.”
*
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
                       
2. Objeto do recurso
Analisado o disposto nos artºs 608º, n.º 2, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, 635º, nºs 3 e 4, 639º, nºs 1 a 3 e 641º, n.º 2, al. b), todos do CPC, sem prejuízo das questões que o tribunal deve conhecer oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução a outras, este Tribunal apenas poderá conhecer das questões que constem das conclusões do recurso, que definem e delimitam o objeto do mesmo. Não está ainda o Tribunal obrigado, face ao disposto no art.º 5º, n.º 3, do citado diploma, a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar essas conclusões, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
Considerando o acima referido são as seguintes as questões a decidir no presente recurso:
- Verificação de nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão, nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. c), do CPC;
- Verificação de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. d), do CPC,
- Alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto;
- Saber se estão verificados os pressupostos da qualificação da insolvência da sociedade XX & YY, Lda. como culposa e, em caso afirmativo, se devem ser afetados, e em que medida, pela mesma, os recorrentes N… e E….

3. Fundamentos de facto
Os constantes do Relatório, que se dão por integralmente reproduzidos; os dados como provados na decisão proferida pelo tribunal a quo, nos seguintes termos, sem prejuízo da apreciação a fazer sobre a requerida alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto e ainda o facto consignado a final (sublinhado para maior destaque) aditado nos termos dos artºs 662º, n.º 1, 663º, n.º 2 e 607º , n.º 3, do CPC e que se dá como provado com base no documento IES, 2021, junto com a oposição apresentada pela devedora, em 06.03.2023.
“III.1.a Devedora
1. A Requerida Devedora sociedade comercial XX & YY LDA., pessoa coletiva número 501458425, tem sede em Vila Verde dos Francos 2580 442 Vila Verde dos Francos.
2. Tem por objeto “A indústria de transportes de mercadorias em veículos de carga no regime de aluguer.”.
3. Tem capital social de 849.038,32 Euros.
4. Ao tempo da propositura, eram sócios:
E…, quota no valor nominal de 655.573,82 euros
M… quota no valor nominal de 118.526.61 euros
N…, quota no valor nominal de 74.939,89 euros.
5. E… e M… eram cônjuges, e são pais de N….
6. A sociedade nunca teve outros sócios.
7. O exercício encerra em 31 de dezembro.
8. A Requerida obriga-se com a assinatura de um dos gerentes:
- E…, no exercício das funções desde 24/02/1984;
- N…, no exercício das funções desde 16/11/1998.
III.1.b Gerência
9. E… tinha intervenção prevalecente na gerência.
10. Os trabalhadores contatavam diretamente o Requerido N… para o abastecimento de combustível aos veículos.
III.1.c Propositura
11. Em 27-01-2023, o Ministério Público, em representação do Estado Português, Administração Tributária, instaurou a ação de insolvência.
12. A insolvência foi declarada em 20-04-2023.
III.1.d Passivo
13. Consta da sentença de declaração e graduação de créditos:
4
“V.5.a Verificação de créditos
1.
Declaro condicionalmente verificados os créditos reclamados em ações de verificação ulterior de créditos apensas:
(…)
2.
Declaro provisoriamente verificados os créditos impugnados, privilegiados laborais:
06-10-2023, REFª: 46721756, A… € 104.419,60 (ao invés dos reconhecidos sob condição, € 10.682,09) 
06-10-2023, REFª: 46719737, 25-10-2023, REFª: 46920303 A… €10.400,16 (ao invés dos reconhecidos € 1.927,91)
06-10-2023, REFª: 46713040, C… €11.925,98 (ao invés dos reconhecidos € 1.511,51)
06-10-2023, REFª: 46715424, F… €1.574,25 (ao invés dos reconhecidos € 987,05)
06-10-2023, REFª: 46713443, J… €45.461,08 (ao invés dos reconhecidos € 1.673,49)
06-10-2023, REFª: 46713720, L… €9.109,94 (ao invés dos reconhecidos € 1.689,33)
06-10-2023, REFª: 46713871, N… € 2.478,50 (ao invés dos reconhecidos € 1.421,02)
06-10-2023, REFª: 46711540, P… €20.619,28 (ao invés dos reconhecidos € 1.260,64)
06-10-2023, REFª: 46712790, P… €3.197,11 (ao invés dos reconhecidos € 1.546,84)
06-10-2023, REFª: 46713257, R… €3.147,81 (ao invés dos reconhecidos € 1.114,38)
06-10-2023, REFª: 46712445, T…€ 8.558,92 (ao invés dos reconhecidos € 1.843,70)
3.
Declaro provisoriamente garantidos por hipoteca os créditos
BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. € 2 388,51 (id. em 16 da lista do Sr. Administrador da Insolvência)
FAZENDA NACIONAL – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA € 8 785 301,81 (identificado em 12 e 13 da lista do Sr. Administrador da Insolvência)
A apreciação da cessação da provisoriedade terá lugar junto que seja o documento comprovativo do registo da declaração de insolvência sobre o bem em causa, ou levantada a apreensão, conforme o caso;
(…)
5.
No mais, homologo a relação de créditos reconhecidos do Sr. Administrador da Insolvência, datada de 22-09-2023, REFª: 46577889, que se considera reproduzida, integrando créditos no montante total de € 14 153 664,70;
6.
(…)” [destaques ora apostos].
14. Os créditos impugnados, laborais, foram declarados verificados por decisões definitivas.
III.1.e Ativo
15. O Sr. Administrador da Insolvência apresentou autos de apreensão de bens móveis, sujeitos a registo (veículos, quota da sociedade AVINOVA), e não sujeitos a registo.
16. No ano de 2021, a Devedora vendeu sucata – documentos juntos com a oposição.
17. A Devedora transferiu montantes para as sociedades especialmente relacionadas MAIS AND MORE - ARMAZENAGEM - LOGÍSTICA - TRANSPORTES, LDA. e - XXIMOBILIÁRIA - GESTÃO IMOBILIÁRIA, LDA.
18. As referidas sociedades disponibilizaram fundos à Devedora para pagamento de salários.
III.1.f Contabilidade
19. A Devedora depositou a “Prestação Contas” do exercício de 2021 em 28-02-2023 (cinco dias após a citação).
20. Na IES relativa ao exercício de 2021, entregue 27-02-2023 (quatro dias após a citação), a Requerida declara resultado líquido negativo de € 72 561,76 – documento junto à oposição da insolvência.
21. Declara ativo € 7 366 555.66, dos quais Clientes € 2 511 915,20.
22. Declara passivo € 6 704 087.60.
23. Declara passivo corrente, Estado e outros entes públicos, € 1 483 177,17, dívida ao Instituto da Segurança Social, IP.
24. Consta declarada participação social na sociedade AVINOVA.
25. A IES não reflete passivo em cobrança coerciva pela Autoridade Tributária, total de € 8 813 690,06, vencido desde 2019, emergente, designadamente, de taxas de portagem e coimas.
26. Ao tempo da audiência de julgamento da insolvência, a Devedora tinha conhecimento da existência de penhoras de saldos bancários em benefício da Autoridade Tributária iniciadas em outubro de 2020.
27. Penhoras no montante global de € 193 875,61.
28. Ao tempo da audiência de julgamento da insolvência, os 216 veículos da Requerida estavam onerados com hipotecas legais, a favor da Autoridade Tributária, pelo montante de € 134 631,20.
29. Em 03-01-2023, estavam pendentes mais de dois mil processos de execução fiscal - Doc. 2 junto pelo Ministério Público ao principal2, intitulado “Certidão Dívidas XX & YY Lda.”.
30. O passivo emergente de IUC e IVA correspondia ao montante global de € 28 050,61, vencido desde 2022 – referido Doc. 2.
31. Estava em cobrança voluntária – referido Doc. 2.
32. O demais passivo, emergente, designadamente, de taxas de portagem, correspondia ao total de € 8 813 690,06, vencido desde 2019 – referido Doc. 2.
33. Estava em cobrança coerciva – referido Doc. 2.
34. Na organização da Devedora, o responsável pelo envio dos elementos ao contabilista certificado era P…. Esteve ausente ao trabalho por doença entre maio e agosto de 2021 e entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023.
35. Os gerentes não emitiram instruções quanto aos dados a registar contabilisticamente.
III.1.g Laboração
36. Ao tempo da declaração de insolvência, a Requerida encontrava-se em laboração, com cerca de 70 funcionários.
37. A laboração cessou cerca de 21-07-2023, data da deliberação do encerramento da atividade.
38. A administração da Devedora procedeu ao despedimento coletivo dos trabalhadores – informação do Sr. Administrador da Insolvência junta ao principal, 15-09-2023.
39. A Pandemia impactou na laboração da empresa de forma não apurada.”
40. Na IES de 2021 é declarado pela devedora que as contas do exercício foram aprovadas, por unanimidade, com data de 31.03.2022, em assembleia geral regularmente convocada, estando a deliberação titulada nos termos do art.º 63º, do Código das Sociedades Comerciais.
*
Foram dados como não provados nos autos, na decisão proferida, os seguintes factos:
“a) A Devedora não facultou a consulta de elementos contabilísticos ao(à) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência.
b) Não identificou o contabilista certificado ao Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência.
c) Houve falta de apresentação e de colaboração junto do Sr. Administrador da Insolvência.
d) A gerência instruiu os motoristas no sentido da não utilização de autoestradas, salvo quanto veículos que dispunham de equipamento “via Verde”.
e) A Devedora efetuou diligências da Devedora junto da Autoridade Tributária, prévias à propositura, no sentido do pagamento da dívida. “
                       
4. Apreciação do mérito do recurso
I) Nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão.
Referem os recorrentes, nesta parte, que o tribunal recorrido “julgou provado que os gerentes não atuaram com dolo, nem com culpa grave, quer no modo como os registos contabilísticos da Devedora foram realizados, nem na (in)tempestividade da apresentação da IES de 2021, pelo que não podia concluir, como concluiu, que a insolvência devia ser qualificada como culposa.”, verificando-se a causa de nulidade da decisão prevista no art.º 615º, n.º 1, al. c), primeira parte, do CPC.
O Ministério Público pugnou pela não verificação da alegada nulidade, dizendo designadamente que: “No caso vertente, o Tribunal a quo fundamentou adequadamente a culpa dos gerentes na omissão reiterada de passivo relevante (cerca de €8.800.000,00) e no incumprimento da obrigação de prestação de contas, condutas que integram as alíneas h) do n.º 2 e b) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE.”
O tribunal a quo, pronunciou-se pela não verificação da referida nulidade.
Dispõe o art.º 615º, n.º 1, al. c), do CPC, no que ora nos interessa, que:
“É nula a sentença quando:
(…)
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão…”.
Vejamos em primeiro lugar em que consiste este vício.
Refere o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 20.05.2021, a propósito desta invocada nulidade que:
“Se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.”, Acrescenta ainda que trata-se de um: “erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real).”[1]
Está pois em causa, não um erro material ou um erro de julgamento, mas sim um erro na própria lógica e discurso do julgador que na fundamentação de decisão colige  fundamentos que conduziriam, num raciocínio lógico, a uma decisão diversa da decisão tomada a final.
Vejamos então se é esse o caso.
Referem os recorrentes oposição entre a decisão tomada relativamente à matéria de facto sobre a culpa ou dolo e a decisão final, apoiando-se na factualidade dada como provada nos factos 34 e 35.
Compulsada a matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido e nomeadamente os factos elencados, a mesma não permite sustentar o mencionado pelos recorrentes. Da mesma não resultam quaisquer factos que permitam, como dizem, afastar a culpa grave ou o dolo relativamente à questão dos registos contabilísticos (sendo que mais à frente precisaremos esta questão quanto ao disposto no n.º 2, do art.º 186º, do CIRE) ou a não apresentação tempestiva da IES de 2021.
Os factos relativos a esta matéria, dados como provados, são os seguintes:
“20. Na IES relativa ao exercício de 2021, entregue 27-02-2023 (quatro dias após a citação), a Requerida declara resultado líquido negativo de € 72 561,76 – documento junto à oposição da insolvência.
21. Declara ativo € 7 366 555.66, dos quais Clientes € 2 511 915,20.
22. Declara passivo € 6 704 087.60.
23. Declara passivo corrente, Estado e outros entes públicos, € 1 483 177,17, dívida ao Instituto da Segurança Social, IP.
24. Consta declarada participação social na sociedade AVINOVA.
25. A IES não reflete passivo em cobrança coerciva pela Autoridade Tributária, total de € 8 813 690,06, vencido desde 2019, emergente, designadamente, de taxas de portagem e coimas.
26. Ao tempo da audiência de julgamento da insolvência, a Devedora tinha conhecimento da existência de penhoras de saldos bancários em benefício da Autoridade Tributária iniciadas em outubro de 2020.
27. Penhoras no montante global de € 193 875,61.
28. Ao tempo da audiência de julgamento da insolvência, os 216 veículos da Requerida estavam onerados com hipotecas legais, a favor da Autoridade Tributária, pelo montante de € 134 631,20.
29. Em 03-01-2023, estavam pendentes mais de dois mil processos de execução fiscal - Doc. 2 junto pelo Ministério Público ao principal, intitulado “Certidão Dívidas XX & YY Lda.”.
30. O passivo emergente de IUC e IVA correspondia ao montante global de € 28 050,61, vencido desde 2022 – referido Doc. 2.
31. Estava em cobrança voluntária – referido Doc. 2.
32. O demais passivo, emergente, designadamente, de taxas de portagem, correspondia ao total de € 8 813 690,06, vencido desde 2019 – referido Doc. 2.
33. Estava em cobrança coerciva – referido Doc. 2.
34. Na organização da Devedora, o responsável pelo envio dos elementos ao contabilista certificado era P…. Esteve ausente ao trabalho por doença entre maio e agosto de 2021 e entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023.
35. Os gerentes não emitiram instruções quanto aos dados a registar contabilisticamente.”
Ora estes factos não permitem, repete-se, compulsada a decisão emitida pelo tribunal recorrido e os fundamentos da mesma, concluir como fizeram os recorrentes que o tribunal afasta aqui a culpa grave ou dolo dos recorrentes, tratando o tribunal, na matéria de facto referida e bem, de consignar factualidade objetiva, reflexiva dos acontecimentos dados como provados, não cumprindo ao tribunal, nesta parte, concluir sobre a existência de culpa grave ou dolo por parte dos propostos afetados, sendo essa matéria a tratar na fundamentação de direito.
E a fundamentação do  direito do tribunal nesse sentido é clara quando por referência aos factos dados como provados menciona que:
“A última IES, de 2021, mas datada de 27-02-2023, tem lacuna de relevo: não ostenta € 8 813 690,06 de passivo vencido desde 2019, em cobrança coerciva pela Autoridade Tributária.
Há “irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”.
Provou-se que os Requeridos não emitiram instruções no sentido da irregularidade (facto provado 35).
Porém, tal não alija as suas responsabilidades.
Com efeito, o desinteresse da gerente pelo devir societário infringe o disposto no artigo 64/1, do Código das Sociedades Comerciais.
Com efeito, impõe a norma a observância, pelos gerentes das sociedades comerciais, de deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.”.
E mais à frente que:
“Prevê o artigo 15, n 4, do Código do Registo Comercial:
“O pedido de registo de prestação de contas de sociedades e de estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada deve ser efectuado até ao 15 dia do 7 mês posterior à data do termo do exercício económico.”.
No caso, as contas relativas ao exercício de 2021, foram entregues tardiamente, em 27-02-2023, e depositadas no registo no dia seguinte (cinco dias após a citação).”
Assim, ao contrário do que os recorrentes afirmam, o tribunal conclui e com base nos factos que deu como provados, que, nomeadamente, o facto de os gerentes não terem emitido instruções sobre a referida irregularidade não afasta a sua responsabilidade, não a afastando igualmente, quer nos factos quer no direito, no que respeita à entrega tardia da declaração de IES em referência.
Não se verifica, pois, a nulidade invocada.
*
II) Nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Dizem os recorrentes nesta parte que: “O Tribunal recorrido violou o disposto no art. 608º do Código de Processo Civil ao não se ter pronunciado sobre matéria de facto submetida à sua apreciação (a saber: (i) o trabalho do Senhor P… era validado pelo Contabilista Certificado, que, na prática, não executava o trabalho, mas supervisionava-o e era responsável pela contabilidade; (ii) com o prolongar no tempo da a doença do Senhor Dr. P…, a gerência da Devedora contratou a sociedade Contarruda, Lda., para ser responsável pela contabilidade; (iii) os Requeridos, por falta de conhecimentos para o efeito, não analisavam criticamente as contas da Devedora, e a sua elaboração e apresentação correspondia a critérios técnicos que não dominavam) e relevante para a boa decisão da causa, pelo que a sentença é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.”
Também aqui o tribunal a quo se pronunciou pela não verificação da mesma nulidade, dizendo que relativamente aos dois primeiros factos não foi consignada a sucessão de contabilistas certificados por irrelevante e que no âmbito em causa bastaria o que consta do facto 34. Quanto ao último facto menciona que a irregularidade contabilística apurada corresponde à omissão de € 8 813 690,06 de passivo em cobrança coerciva pela Autoridade Tributária, entendendo o tribunal que a prática do ilícito não pressupõe especiais conhecimentos técnicos.
De acordo com o disposto no art.º 615º, n.º 1, al. d), do CPC, “A sentença é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.”
Diz por sua vez o art.º 608º, n.º 2, do CPC, que: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada às outras”.
Refere a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.11.2022, interpretando o disposto neste artigo, que:
“Como constitui communis opinio, o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já acima deixámos referido, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes.”[2]
Ou seja, o que está em causa e o que se impõe ao tribunal é a apreciação das questões, com o sentido referido, que as partes submetem à apreciação do mesmo, nos termos do disposto no art.º 608º, n.º 2, do CPC, ou aquelas que cumpra o tribunal conhecer oficiosamente e não a apreciação e conhecimento de todas as considerações, raciocínios, fundamentos, ou argumentos invocados pelas partes para sustentar a sua posição.
Feito este enquadramento, com facilidade concluímos que inexiste qualquer omissão de pronúncia por parte do tribunal neste caso.
Está em causa a qualificação da insolvência da devedora como culposa, com afetação dos propostos afetados. Ainda que consideremos os fundamentos invocados pelos requerentes e pelos oponentes face a essa requerida qualificação, facilmente concluímos que bem andou o tribunal recorrido ao não consignar diretamente a mencionada factualidade (não se discutindo aqui se a mesma está ou não provada). Relativamente às entidades que “elaboraram” a contabilidade da sociedade e à sucessão das mesmas e aos motivos da ocorrência desses factos, como refere o tribunal recorrido, não relevam para o que cumpre apurar nestes autos. No que respeita à questão da ausência de conhecimentos técnicos dos gerentes da sociedade para analisar a contabilidade, não é esse conhecimento ou não que importa apreciar, mas sim o objetivamente consignado como provado nos factos nºs 34 e 35, já acima referidos:
“34. Na organização da Devedora, o responsável pelo envio dos elementos ao contabilista certificado era P…. Esteve ausente ao trabalho por doença entre maio e agosto de 2021 e entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023.
35. Os gerentes não emitiram instruções quanto aos dados a registar contabilisticamente.”, não constituindo essa organização interna da insolvente, quanto aos elementos da sua contabilidade ou essa ausência de conhecimentos por parte dos gerentes da mesma, como veremos mais à frente, qualquer causa “desculpante” das condutas a apreciar, como parecem entender os recorrentes e não estando em causa, por não serem propostos afetados nos autos, a conduta dos contabilistas certificados da sociedade.
Importa assim concluir que também aqui não procede a pretensão dos recorrentes.
Dizem ainda os recorrentes a propósito desta questão que: “Caso assim não se entenda, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, deve, então, o Tribunal ad quem julgar nula a sentença recorrida, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil e remeter o processo à primeira instância, para ampliação da matéria de facto sujeita a julgamento, nos termos do art. 662º do Código de Processo Civil.”
Não se alcança aqui por inteiro o pretendido pelos recorrentes  e o teor concreto da  nulidade invocada, sempre se dizendo no entanto que não se verifica também aqui qualquer vício no raciocínio lógico do tribunal, ou qualquer ambiguidade ou obscuridade da decisão, ou fundamento, pelos motivos supra referidos, para determinar a baixa dos autos para ampliação da matéria de facto.
*
III) Alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Pretendem os recorrentes, nesta parte, a alteração da matéria de facto quanto ao facto 9, enunciando que a redação do mesmo deveria ser: “A gerência era exclusivamente exercida por E…”.
Dizem que assim o impunha toda a prova testemunhal produzida nos autos, enunciando de seguida os depoimentos das testemunhas que referem, fazendo ainda menções à prova gravada.
Dispõe o art.º 640º, n.º 1, do CPC, que:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de
facto impugnadas.
Importa antes de mais enquadrar o normativo em apreço.
Refere Abrantes Geraldes, na análise que faz deste artigo, que: “… podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos
de facto que considera incorretamente julgados com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes
do processo (…) que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em
parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e)     O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.”[3]
Menciona, por sua vez, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12.10.2023, que: “Incumprindo o recorrente o ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, n.º 1 do CPC (especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que impõem que sobre eles seja proferida uma decisão diferente - incluindo as exactas passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba -, e da decisão alternativa que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), e tal como aí expressamente afirmado, terá o seu recurso que ser rejeitado («sob pena de rejeição»).[4]
No que respeita à posição do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta matéria é emblemático o referido no Acórdão deste tribunal, de 29.02.2024:
“Em decisões sobre o modo de exercício dos poderes previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2. (cfr. acórdão do STJ de 02.06.2016, P. 725/12.8TBCHV.G1.S1, cuja distinção é retomada, p. ex., no acórdão do STJ de 3 de Outubro de 2019 — processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2).
Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso, já quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2 do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso. (cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 21.03.2019, P. 3683/16, de 17.12.219, P. 363/07, de 10.01.2023, P. 3160/16, e de 16.01.2024, P. 818/18).”[5]
Vejamos então se os recorrentes cumpriram os ónus referidos, ainda que na “versão menos formalista” que tem sido admitida pelo Supremo Tribunal de Justiça.[6]
Os recorrentes indicam o ponto de facto que permitem ver alterado (o facto 9) e a redação que pretendem do facto em apreço.
Preenchem pois os ónus das alíneas a) e c) do normativo citado.
Procedem igualmente à transcrição das gravações que entendem como relevantes, indicando as mesmas e os depoimentos das testemunhas em referência, preenchendo assim o ónus previsto na alínea b). do art.º 640º, do CPC.
Importa assim conhecer da requerida alteração.
Analisados os depoimentos das testemunhas indicados pelos recorrentes e sempre tendo como referência de que estamos a analisar o facto do ponto de vista da gerência de facto e não de direito da sociedade, uma vez que esta se encontra dada como provada no facto 8º e não foi posta em causa, concluímos que não resultam do depoimento das testemunhas em apreço referências, com precisão suficiente, que permitam concluir no sentido pretendido.
De facto, como resulta dos factos provados 9º e 10º a gerência de facto era prevalecentemente exercida pelo gerente E… (facto que se quer ver modificado), sendo que relativamente às questões relacionadas com o abastecimento de combustível dos veículos era contactado o gerente N… (facto intocado). Assim não resulta estranho que, confirmando esta convicção do tribunal, uma administrativa, como a testemunha A… refira que o seu “chefe” era o proposto afetado E…, o mesmo quanto à testemunha P…, técnico de contabilidade, ou que a testemunha L…, que conhece a empresa, refira que o mesmo E… era o interlocutor da empresa.
No que respeita à testemunha C…, este no entanto menciona, para além do transcrito nas alegações de recurso, que quando havia problemas de combustível que “ligava ao patrão”, referindo de seguida o “Sr. N…” mencionando inclusive que era a sua convicção que quem fazia as transferências para as questões do combustível era o “Sr. N…”.
No que respeita à testemunha F…, motorista da empresa, as indicações enunciadas reportam-se, em primeiro lugar, à indicação feita pela testemunha no que concerne às razões de ciência do seu conhecimento dos factos em apreço, mencionando ainda o mesmo, no seu depoimento, que: os propostos afetados E… e N… eram: “Patrão e filho e gerentes da empresa” e mais à frente que patrões eram “E… e filho”.
Quanto ao depoimento da testemunha F… o mesmo diz, no que concerne às passagens do depoimento indicado pelos recorrentes, também com relevância, que apenas teve contacto com a devedora após a declaração de insolvência.
Ora assim sendo, não resulta do depoimento das referidas testemunhas que apenas o proposto afetado E… fosse o gerente da empresa, mas sim, como o tribunal deu como provado, que a gerência era exercida com prevalência pelo gerente E…, sendo que o gerente N…, ainda que com uma contribuição menor, também exercia a gerência, nomeadamente no que respeita às questões relacionadas com o abastecimento dos veículos.
Mas mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que a alteração pretendida, para a decisão a proferir a final, não afastaria a afetação do enunciado N…, uma vez que, tal como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência e pela doutrina, não constitui objetivo do legislador, nas previsões do art.º 186º, nºs 1 e 2, do CIRE,  excluir os administradores de direito que não exerçam funções de facto, mas sim fazer essa extensão aos administradores de facto (cf. art.º 189º, n.º 2. al. a), do CIRE).[7]
No que concerne às referências ainda feitas pelos recorrentes nesta parte que: “O Tribunal recorrido devia ter submetido a julgamento e julgado provado que - o trabalho do Senhor P… era validado pelo Contabilista Certificado, que, na prática, não executava o trabalho, mas supervisionava-o e era responsável pela contabilidade; - com o prolongar no tempo da doença do Senhor Dr. P…, a gerência da Devedora contratou a sociedade Contarruda, Lda., para ser responsável pela contabilidade; - os Requeridos, por falta de conhecimentos para o efeito, não analisavam criticamente as contas da Devedora, e a sua elaboração e apresentação correspondia a critérios técnicos que não dominavam.”, tratam-se dos mesmos factos já apreciados supra e que pelas razões já elencadas (não são relevantes: quanto às pessoas (singulares ou coletivas) em concreto que elaboravam/supervisionavam a elaboração da contabilidade e a sucessão das mesmas e no que respeita ao último facto, factos relevantes nesta matéria foram os consignados pelo tribunal sob os factos 34 e 35), nada se impõe acrescentar.
Cumpre assim também julgar improcedente a pretensão dos recorrentes nesta parte.
*
IV) Da qualificação da insolvência como culposa.
Nos termos do art.º 185º, 1ª parte, do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.
Dispõe, por sua vez, o art.º 186º, nºs 1 e 2, al. d), que:
“1 – A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor quando não seja uma pessoa singular quando os seus administradores de direito ou de facto, tenham:
(…)
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
(…)
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à
devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Tal como refere Alexandre de Soveral Martins a propósito destes nºs 1 e 2 deste preceito legal:
“… a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor, ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo.
(…)      
Para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE contém o que se pode chamar de duplo sistema de presunções legais. (…) o nº 2 do art.º 186º contém algumas presunções legais de culpa e de causalidade (quanto à criação ou agravamento da situação de insolvência) que não admitem prova em contrário («sempre culposa»).”[8]
É também praticamente uniforme na jurisprudência que no n.º 2, do art.º 186º, do CIRE, estão em causa presunções juris et de jure, a prova de qualquer uma das situações referidas neste n.º 2, determina a qualificação da insolvência como culposa. Dispensa assim a lei a prova do dolo ou da culpa grave do gerente ou administrador, assim como do nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, não admitindo estas presunções absolutas prova em contrário, nos termos do art.º 350º, n.º 2, parte final do Código Civil (C.C.) – “Considera-se sempre culposa…”.
No que respeita ao n.º 3, do mesmo preceito o mesmo consagra presunções relativas de culpa grave, presunções ilidíveis, presunções juris tantum, podendo assim ser ilididas mediante prova em contrário, nos termos previstos no art.º 350º, n.º2, primeira parte, do C.C. - “Presume-se unicamente a existência de culpa grave…”.
Tal como enuncia Catarina Serra, a propósito da alteração do artigo, pela Lei 9/2022, de 11.01, e do aditamento do advérbio “unicamente”, o mesmo “tem o inequívoco propósito de esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpa grave e a mais nenhum.”[9] . Resulta assim hoje claro que não prescindiu o legislador, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do art.º 186º, do CIRE.
Importa, pois, concluir, em primeiro lugar, face ao disposto no n.º 1, do artigo 186º, do CIRE, que são requisitos para que a insolvência seja qualificada como culposa:
- a existência de facto ou factos reportados à atuação ou omissão, pelo devedor ou pelos seus administradores[10], nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
- a culpa qualificada destes, consubstanciada em dolo ou culpa grave;
- a existência de nexo causal entre as referidas atuações e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Quanto ao n.º 2 estabelece o mesmo, como vimos, presunções legais que não admitem prova em contrário de culpa e de causalidade (art.º 350º, n.º 2, parte final do C.C.).
Antes de mais, quanto aos propostos afetados, dúvidas não existem, face ao teor dos factos n.ºs 8, 9 e 10, da matéria de facto dada como provada na sentença proferida, que os mesmos eram os administradores da sociedade em apreço, de facto e de direito, considerando o disposto no art.º 6º, n.º 1, al. a), do CIRE.
Quanto ao período relevante para a qualificação da insolvência este reporta-se ao período temporal de 27.01.2020 a 27.01.2023 (art.º 186º, n.º 1, parte final, do CIRE).
Vejamos então em primeiro lugar a presunção estabelecida na alínea h).
Na referida alínea h) está em causa, designadamente, a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, tendo por referência a contabilidade da empresa.
Vejamos alguma jurisprudência sobre esta matéria.
Refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14.03.2023, abordando uma situação que considerou preenchedora da referida alínea, que:
“… a contabilidade – nos termos que foi organizada – não fornece uma imagem compreensível, completa e fiável da situação financeira da empresa, seja porque os termos em que foi organizada não permitem ou dificultam, de modo relevante, a exacta interpretação e compreensão da situação financeira que que ali se pretendeu retratar, seja porque induz à percepção de uma situação financeira que diverge, em termos substanciais e relevantes, da real situação da empresa.”[11].
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04.06.2024, menciona-se que:
“Tendo ficado também provado que na contabilidade da sociedade devedora relativa ao aludido período de três anos não se encontravam reflectidos a integralidade dos montantes facturados e suportados pela mesma, não permitindo tal contabilidade saber o destino de quantias que deviam ter sido recebidas e suportadas pela sociedade, encontra-se verificada a presunção prevista na alínea h) do nº 2 do mesmo artigo 186º do CIRE.”[12]
Por sua vez, no Acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 28.01.2025, foi considerada irregularidade, no sentido referido: o registo no balancete geral acumulado da sociedade devedora, respeitante ao exercício económico de determinado ano, que aquela era detentora de um determinado crédito quando afinal era devedora desse mesmo montante.
Assinala-se ainda com interesse, no mesmo Acórdão, no que respeita às referidas irregularidades, que nada impede que se ponderem os factos desencadeantes ocorridos em período anterior, cujos efeitos se repercutam na contabilidade do assinalado período de três anos, em ordem à melhor compreensão da situação económica e financeira da sociedade.[13]
Estando em causa uma sociedade comercial tem a mesma a obrigação de dispor de contabilidade organizada, nos termos do art.º 123º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).
Tal como se enuncia no Acórdão desta mesma secção, de 08.04.2025: “Contabilidade organizada corresponde à escrituração legalmente obrigatória, esta corresponde ao registo contabilístico e este à anotação dos movimentos económicos ou factos contabilisticamente relevantes em ‘livro’/conta própria de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística (SNC).”[14]
No que respeita ao nº 3, do art.º 186º, al. b), do CIRE, estão em apreciação as obrigações, por parte dos administradores de direito ou de facto da devedora, de elaborar contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória de registo comercial.
Assentes estes pressupostos, vejamos o caso em concreto.
Na espécie, ficou provado que na IES entregue pela insolvente, respeitante ao exercício de 2021 (entregue em 28.02.2023), não está refletido o passivo em cobrança coerciva pela Autoridade Tributária, num total de 8.813 690,06 €, vencido em 2019, emergente de taxas de portagem e coimas, sendo que, com relevância, importa assinalar que as contas em apreço refletidas nessa declaração, foram aprovadas, por unanimidade, em data anterior ao pedido de declaração de insolvência, mais precisamente em 31.03.2022, dentro do período relevante para a qualificação, tal como resulta do facto aditado já nesta sede.
Defendem os recorrentes que ficou por demonstrar que esse passivo tivesse de constar da IES do exercício de 2021, uma vez que o valor já se encontrava vencido desde 2019.
Não se alcança o fundamento desta afirmação.
A contabilidade deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística, sendo a manutenção da contabilidade organizada obrigatória para as sociedades comerciais, devendo seguir as regras do Sistema de Normalização Contabilística aprovado pelo Decreto Lei 158/2009, de 13.07[15] (cf. art.º 3º, n.º 1, al. a) do referido diploma).
Essa contabilidade, assim organizada, deve refletir todas as operações realizadas pelas sociedades comerciais, através do lançamento de todos os documentos de suporte nas contas a que respeitam, visando-se que essa contabilidade espelhe a real informação financeira e os resultados da empresa.
Ora um desses elementos reporta-se ao passivo da sociedade, que representa, de uma forma simplista, as obrigações financeiras de uma empresa, resultantes de uma operação ou de um acontecimento anterior.[16]
Esse passivo deve conter nomeadamente todas as quantias (obrigações) “em dívida” pela empresa,  independentemente da data do seu vencimento, não se vislumbrando aqui razões pelas quais, no caso, esse passivo, ou essa parte do passivo, deveria ter sido omitida nas contas aprovadas respeitantes ao exercício de 2021, mesmo que com vencimento em data/datas anteriores, sendo que nos termos do parágrafo 89 da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística, um passivo deve ser reconhecido no balanço quando: “for provável que um exfluxo de recursos incorporando benefícios económicos resulte da liquidação de uma obrigação presente e que a quantia pela qual a liquidação tenha lugar possa ser mensurada com fiabilidade.”, como é o caso das obrigações em apreço em dívida ao Estado.
E quanto ao facto de a decisão de não contabilizar esses valores se reportar a data anterior, nomeadamente a 2019, apenas agrava a situação, ou seja essa omissão, na interpretação das palavras dos recorrentes, reporta-se não a um exercício mas a mais exercícios, sendo ainda que, tal como se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima citado: “que nada impede que se ponderem os factos desencadeantes ocorridos em período anterior, cujos efeitos se repercutam na contabilidade do assinalado período de três anos, em ordem à melhor compreensão da situação económica e financeira da sociedade.”
Ora a referida irregularidade é claramente, ao contrário do defendido pelos recorrentes, relevante para a compreensão da real situação económico financeira da sociedade, não se fornecendo, nas contas aprovadas, que a IES reflete: “uma imagem compreensível, completa e fiável da situação financeira da empresa”, como acima mencionado.
O facto de se ter omitido nestas contas aprovadas, respeitante ao exercício de 2021, um passivo de valor tão elevado impediu o conhecimento da real situação económico-financeira da sociedade, obstando a que todos os que tenham tido acesso ou possam ter acesso a essas contas, designadamente os credores da sociedade, mas não só, também os seus investidores, os fornecedores, os trabalhadores e todos os que interagem economicamente com a empresa, tivessem conhecimento da real situação económico-financeira da sociedade e continuassem a confiar na situação económica daquela, desconhecendo o real passivo da sociedade, tanto mais que computado esse passivo,  face ao valor relevante omitido, os resultados apurados seriam claramente diversos (consignando-se um passivo de 6.704.087,60 €, sem ter em consideração o valor de passivo omitido de 8.813.690,06 € e um ativo 7.366.555,66 €).
Quanto à prova do nexo de causalidade referido, de que a situação da devedora não foi criada ou agravada pelo facto de nas contas aprovadas da sociedade respeitantes ao exercício de 2021, que a IES reflete, não constar esse passivo, já vimos que, tratando-se de uma das situações elencadas no n.º 2 do normativo o legislador não exige a verificação desse nexo, sendo que, como referimos, neste caso, a insolvência se considera “sempre culposa”, se ocorrer algumas das situações especificadas nestas alíneas, praticadas pelos administradores da insolvência, determinando, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda “inexoravelmente a atribuição de caráter culposo à insolvência.”[17]
A alegação no recurso de que os recorrentes não agiram com culpa grave ou de forma dolosa aqui igualmente não releva. Preenchidas as condutas referidas nestas alíneas a insolvência será sempre culposa.
No que respeita  ao facto de aqueles administradores não terem emitido instruções quanto aos dados a registar contabilisticamente não lhes retira a responsabilidade.
Tal, como analisa Catarina Serra, citando em parte a própria noutra obra: “Pelas funções que desempenham, os administradores das sociedades e a generalidade dos outros sujeitos relevantes estão investidos em especiais deveres de conduta, portanto, não é de todo injustificada a maior exigência quanto à conformidade legal da sua conduta. Continua a valer, com as devidas adaptações, a afirmação de que “[p]or detrás dos regimes aplicáveis aos comerciantes está sempre a convicção de que [ ] em virtude da função económica e social que desempenham, lhes deve ser exigida maior responsabilidade (o exercício do comércio pressupõe uma preparação especial e maiores cuidados)””.[18] 
Chama-se aqui a atenção do disposto nos artºs 64º e 65º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Os gerentes das sociedade, como é o caso dos propostos afetados, estão sujeitos, nos termos do art.º 64º, n.º 1, al. a), do CSC, nomeadamente, a deveres de cuidado e, dentro destes devem revelar competência técnica e conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado.
Tal como enunciam Ricardo Costa e Gabriela Figueiredo Dias: “O dever de cuidado consiste na obrigação de os administradores cumprirem com diligência as obrigações derivadas do seu ofício-função, assim como as prescrições e imposições (legais, negociais e delituais) que incidem sobre a atividade social, de acordo com o máximo interesse da sociedade e com o comportamento que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares.”[19]
Nos termos do disposto no art.º 65º, do CSC, que prevê o dever de apresentar contas, prevê-se que esse dever recai sobre os gerentes ou administradores que estiverem em função ao tempo da apresentação, sendo ainda que, conforme exigido pelo disposto no art.º 29º, do Código Comercial, “Todo o comerciante é obrigado a ter escrituração mercantil efetuada de acordo com a lei.”.
Quanto ao dever de depositar as contas, importa verificar o disposto no n.º 1, do art.º 70.º do CSC, conjugado com os artigos 3.º, n.º 1, alínea n), 15.º, n.º 1, e 42.º, todos do Código de Registo Comercial (CRC), estando as sociedades comerciais por quotas, como é o caso, obrigadas a efetuar o depósito das contas anuais na Conservatória do Registo Comercial até ao 15º dia, do 7º mês posterior ao à data do termo do exercício económico.
Tratando-se de um ato de administração da sociedade, este dever cabe aos gerentes e administradores da sociedade.
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 8/2007, de 17.01, esta é uma das obrigações integradas no IES (art.º 2º, n.º 1, al. c), sendo que a IES, como se refere no preambulo do diploma, agrega as obrigações de  entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal, o registo da prestação de contas, a prestação de informação de natureza estatística ao Instituto Nacional de Estatística (INE) e a prestação de informação relativa a dados contabilísticos anuais para fins estatísticos ao Banco de Portugal, passando as mesmas a cumprir-se integralmente com o envio eletrónico da informação contabilística sobre as empresas, realizado uma única vez (a informação empresarial simplificada – IES).
Assim sendo, competia aos gerentes da sociedade, propostos afetados, em cumprimento dos referidos deveres, certificar-se que as contas apresentadas e aprovadas e posteriormente depositadas eram fidedignas da real situação da sociedade, não sendo fator “desculpante”, para não o fazerem, nomeadamente, o não terem conhecimentos técnicos para o efeito, ou absterem-se de dar instruções à contabilidade, tanto mais que, neste caso, tratando-se da omissão reiterada de um passivo num valor superior a cerca de 8.800.000,00 € do passivo declarado da sociedade, não exige especiais conhecimentos técnicos por parte desses gerentes aperceberem-se que esse valor de passivo está a ser omitido das contas e posteriormente das declarações entregues pela sociedade, sabendo estes da existência desse passivo por liquidar, que se encontrava a ser cobrado coercivamente.
Tal como menciona Alexandre Soveral Martins a presunção da alínea h) “não é afastada pelo facto de a contabilidade estar entregue a terceiro no que diz respeito aos aspectos materiais.”[20]
Ou seja, o facto de os administradores da sociedade alegadamente não saberem os seus deveres em nada releva, pelo contrário, como vimos, tratando-se de um comportamento altamente censurável ao abrigo dos normativos legais referidos.
Importa assim considerar preenchida a alínea h) em referência.
Vejamos agora o preenchimento das condutas previstas no n.º 3, al. b) do art.º 186º, do CIRE.
Resulta da matéria de facto provada que a IES de 2021 apenas foi apresentada tardiamente, após a citação da sociedade para o processo de insolvência.
Já referimos acima que o dever de apresentar as contas recai sobre os gerentes ou administradores que estiverem em função ao tempo da apresentação e que quanto ao dever de depositar as mesmas, tratando-se de um ato de administração da sociedade, este dever cabe aos gerentes e administradores da sociedade e que com a entrada em vigor do Decreto-Lei 8/2007, de 17.01, esta é uma das obrigações integradas no IES (art.º 2º, n.º 1, al. c).
Se é certo que temos como provado que efetivamente a IES em apreço não foi entregue tempestivamente, necessitamos aqui de factos respeitantes à presunção de causalidade da criação ou agravamento da situação de insolvência, assinalando-se a dificuldade de prova relativamente à mesma, no caso desta alínea em concreto.
Como menciona Catarina Serra: “São muito raros os casos em que é possível provar que o incumprimento do dever de elaboração, de sujeição a fiscalização e, sobretudo, de depósito das contas anuais configura a causa de criação ou sequer do seu agravamento.”[21]
Na espécie, não podemos concluir, dos factos dados como provados, qualquer facto provado do qual resulte a demonstração do referido nexo de causalidade, não se acompanhando a sentença proferida nesta parte, sendo conclusiva a afirmação do tribunal nesta parte, de que: “Se tempestivamente patenteado o estado da insolvência, menor o passivo verificado”, não se corroborando essa conclusão em factos dados como provados.
Entende-se assim não estar preenchida a alínea b), do n.º 3, do art.º 186º, do CIRE.
Importa ainda referir, a propósito desta posição diversa, e da menção final feita, nas alegações, pelos recorrentes que deve este tribunal alterar “a medida de condenação dos Visados para um mínimo legalmente admissível” e nas conclusões que “deve a medida da condenação ser alterada para o mínimo previsto no art.º 189º do CIRE”, que nenhuma consequência se retira deste facto quanto às medidas de inibição, que a sentença proferida pelo tribunal a quo fixou em três anos e seis meses, quanto ao proposto afetado E…, e dois anos e seis meses, quanto ao proposto afetado N…, refletindo esta diferença, numa base adequada e proporcional, a prevalência da gerência por parte do gerente E…, a gravidade da conduta dada como provada de omissão nas contas aprovadas pela sociedade de um passivo superior a 8.800.000,00 €, valor bastante relevante, tanto mais que a sociedade declarou um ativo na mesma de valor inferior (7.366.555,66 €), o valor dos créditos em dívida e a moldura aplicável, tratando-se de uma dosimetria adequada e proporcional, num período próximo (E…) e muito próximo (N…) do período mínimo de inibição que constitui a moldura abstrata prevista nas alíneas b) e c) do n.º 2, do art.º 189º. do CIRE (dois a dez anos).
Quanto à condenação dos propostos afetados nos termos do art.º 189º, n.º 2, als. d) e e), do CIRE, os recorrentes, nesta parte, nada referem, não sendo aqui aplicável a menção genérica feita no recurso “ao mínimo previsto no art.º 189º”, e aqui apenas citando os recorrentes (nas alegações) um acórdão para fundamentar a sua posição no qual “apenas” se alude, na parte citada, ao disposto nas alíneas b) e c), do n.º 2, do art.º 189º, do CIRE, uma vez que, com referência a estas alíneas, o legislador não estabelece mínimos.
Permanecerá assim intocada esta parte da decisão, não cumprindo a este tribunal pronunciar-se sobre a mesma.
Importa assim concluir que a insolvência deve ser declarada como culposa, com a afetação dos propostos afetados E… e N…., gerentes da sociedade devedora, pelos períodos definidos pelo tribunal recorrido com referência às alíneas b) e c), do art.º 189º, n.º 2, do CIRE.
Não assiste, pois, razão aos recorrentes, improcedendo o recurso apresentado.
As custas deverão ser suportadas pelos apelantes (artºs 663º, n.º 2, 607º, n.º 6, 527º, nºs 1 e 2, 529º e 533º todos do CPC.).
           
5. Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto e consequentemente mantém-se, a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique e registe.

Lisboa, 28-10-2025,
Elisabete Assunção
Renata Linhares de Castro
Paula Cardoso
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[1] Proc. n.º 69/11.2TBPPS.C1.S1, Relator Nuno Pinto Oliveira, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Proc. n.º 602/15.0T8AGH.L1-A.S1, Relator Isaías Pádua, disponível em www.dgsi.pt
[3] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, págs. 197 e 198.
[4] Proc. n.º 605/21.6T8VCT-C.G1, Relatora Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Proc. n.º 7825/22.4T8LSB.L1.S1, Relator Ferreira Lopes, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cf. nomeadamente, o AUJ 12/2023, de 17.10.2023, publicado no DR. 220/2023, de 14.11.
[7] Cf. neste sentido, entre outros, na doutrina, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, pág. 183 e Acórdão da Relação do Porto, de 10.07.2025, Proc. n.º 1707/24.2T8STS-B.P1, Relator Pinto dos Santos, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Um Curso de Direito da Insolvência, Volume I, 4ª edição revista e atualizada, Almedina, págs. 548 e 549.
[9] Revista Julgar, 48, As alterações ao CIRE introduzidas pela Lei, n.º 9/2022, de 11.01, Almedina, pág. 20.
[10] Importando atender aqui ao disposto no art.º 6º, do CIRE.
[11] Proc. n.º 1937/21.9T8CBR-A.C1, Relatora Maria Catarina Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Proc. n.º 1207/20.0T8SNT-A.L1, Relatora Manuela Espadaneira Lopes, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Proc. n.º 7920/19.7T8VNF-A.G1.S1, Relatora Amélia Alves Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Proc. n.º 1119/24.8T8FNC-C.L1-1, Relatora Amélia Sofia Rebelo, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Diploma retificado pela Declaração de retificação n.º 67-B/2009, de 11.09.
[16] De acordo com a definição dada no parágrafo.º 49º, al. b), da Estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística, passivo é: “uma obrigação presente da entidade proveniente de acontecimentos passados, da liquidação da qual se espera que resulte um exfluxo de recursos da entidade incorporando benefícios económicos”, tratando-se, juntamente com o ativo e o capital próprio, de um dos elementos diretamente relacionados com a mensuração da posição financeira de uma entidade (Cf. Aviso n.º 15652/2009, publicado no Diário da República, 2ª Série, n.º 173, 07.09.2009).
[17] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª edição, Quid Juris, Sociedade Editora, pág. 680.
[18] Obra citada (nota 7), pág. 387.
[19] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coordenação Jorge Coutinho de Abreu, Vol. I, Almedina, pág. 772.
[20] Um Curso de Direito da Insolvência, volume I, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 511-512, nota 46. 
[21] Obra citada (nota 7), pág. 386. Também no Acórdão desta mesma secção de 25.02.2025 se refere que: “não se vislumbra em que termos a falta de elaboração e depósito das contas, por si só possa criar ou agravar a situação de insolvência.”, Proc. n.º 9461/23.9T8SNT-B.L1-1, Relatora Susana Santos Silva, disponível em www.dgsi.pt