Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
252/10.8TTLSB.L1-4
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – Deve ser qualificada como acidente de trabalho in itinere a queda que o sinistrado sofreu na via pública, depois de ter saído do estabelecimento onde esteve a tomar o pequeno almoço, durante cerca de 15 minutos, com o propósito de se encaminhar para o seu local de trabalho, pelo caminho que habitualmente percorria, sendo certo que se tinha deslocado desde a sua casa até ali na sua viatura automóvel, que entretanto estacionara, fazendo, para o efeito, o trajeto que normalmente adotava.
II – Essa ingestão do pequeno-almoço traduz-se numa interrupção/desvio do seu percurso ou trajeto normal, determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO

AA, casado, contribuinte fiscal n.º 000.000.000, residente na Rua (…), Lote ..., 2.º Esquerdo, ..., 0000-000 ... veio instaurar, em 02/03/2010, a presente ação declarativa de condenação emergente de acidente de trabalho com processo especial contra COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A., pessoa coletiva com o n.º 000.000.000, com sede na Avenida ..., n.º (…), 0000-000 Lisboa, pedindo, em síntese, que seja a Ré condenada a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual, a calcular com base na retribuição anual de € 19.876,39, na quantia de € 15.112,15 a título de indemnização por incapacidade temporária sofrida, e na assistência médica e medicamentosa que o sinistrado no futuro necessitar para a reabilitação da sua saúde, nos termos do art.º 10.º, al a) da Lei n.º 100/97, e art.º 23.º do Decreto-Lei  n.º 143/99, de 30-04.
*
O Autor, alega, em síntese, que, desempenhando funções subordinada e remuneradas para a sua empregadora FARMÁCIA CC UNIPESSOAL, LDA, tendo esta a sua responsabilidade infortunística laboral transferida para a Ré Seguradora, sofreu, no dia 16/12/2009, pelas 9,30 horas, um acidente no trajeto de sua casa para o local de trabalho e que se traduziu no entorse do seu joelho direito e queda na via pública, tendo o mesmo ocorrido quando tinha acabado de sair do estabelecimento de restauração onde tinha estado a tomar o pequeno-almoço.
As lesões que o sinistro lhe causou implicaram uma ITA durante 391 dias e uma IPP de, pelo menos, 10%, desde 11/01/2011, recusando-se a Companhia de Seguros a reparar as consequências de diversa índole que lhe advierem do acidente.   
*
Citada, veio a Ré Seguradora contestar, alegando em síntese que não reconhece o nexo de causalidade existente entre a participação feita pela entidade patronal e as queixas apresentadas pelo sinistrado, concluindo que não ocorreu qualquer acidente de trabalho (cfr. fls. 194).
*
Regularmente citado para o efeito veio o Instituto de Segurança Social requerer a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 12.838,21, acrescida dos respetivos juros de mora legais, desde a notificação da respetiva reclamação até integral e efetivo pagamento.
Alega para tanto ter pago ao sinistrado tal quantia, no período compreendido entre 14 de Janeiro de 2010 a 8 de Abril de 2011, em consequência do acidente de trabalho referido nos autos, a título de subsídio por doença.
*
A Ré Seguradora veio contestar, a fls. 218, o pedido de reembolso formulado pelo ISS, negando qualquer responsabilidade pela sua liquidação.
*
Foi proferido despacho saneador, no qual se considerou regularizada a instância e se procedeu à fixação da matéria de facto assente e à elaboração da base instrutória (3 artigos), conforme ressalta de fls. 224 a 228.
Foram juntos pelas partes, conjuntamente com os seus articulados, os respetivos requerimentos probatórios (fls. 183 e 194), cuja admissão ocorreu através do despacho de fls. 229.
Procedeu-se ao julgamento com observância de todas as formalidades legais, como resulta da respetiva ata, não tendo a prova aí produzida sido objeto de registo áudio (fls. 263 a 265).
A matéria de facto foi decidida por despacho proferido a fls. 266 a 268 que não suscitou quaisquer reparos pelas duas partes presentes, conforme ressalta de fls. 269.
*
Foi então proferida a fls. 270 a 278 e com data de 27/06/2012, sentença que, em síntese, decidiu o litígio nos termos seguintes:
“Com fundamento no exposto, julgo procedente por provada a presente ação e, em consequência:
1) Fixo ao sinistrado AA, a incapacidade permanente parcial (IPP) de 7% desde 11-1-2011.
2) Condeno a COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A. , no pagamento ao sinistrado, da pensão anual e vitalícia, com início em 12/01/2011, no montante de € 973,94, e no pagamento da quantia de € 115.112,15 a título de indemnização por incapacidade temporária sofrida, e a prestar ao sinistrado, a assistência médica e medicamentosa que o sinistrado no futuro necessitar para a reabilitação da sua saúde, nos termos do art.º 10.º, al a) da Lei 100/97, de 13-9, e art.º 23.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30-04.
3) Condeno a Companhia de Seguros BB, SA, no pagamento ao Instituto de Segurança Social, SA, a quantia de € 12.838, 21, a título de prestações pecuniárias pagas ao sinistrado, a título de subsídio por doença.
4) Quantias a que acrescem Juros de mora, sobre as prestações pecuniárias em atraso, à taxa anual de 4% (artigo 135.º do CPT e Portaria n.º 291/2003).
Custas a cargo da seguradora – art.º 446.º do CPC.
Fixo a remuneração ao Senhor Perito Médico do Tribunal em 0,6 UC’s, por exame.
Após trânsito, proceda ao cálculo do capital de remição, e após vão os autos ao MP.
Fixo à ação o valor de € 13.696,51.
Notifique e registe.”
*
A Ré COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A., inconformada com tal sentença, veio, a fls. 287, solicitar a retificação de um erro de escrita da parte decisória da sentença[1], interpor recurso da mesma, que foi admitido a fls. 306 e 307dos autos, como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
*
A Apelante apresentou, a fls. 287 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
(…)
*
O Autor apresentou contra-alegações dentro do prazo legal, na sequência da respetiva notificação, tendo formulado as seguintes conclusões (fls. 297 e seguintes):
(…)
*
Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS
(…)

*
III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
*
A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente acção (na sua fase conciliatória - cf. artigo 26.º, número 4 e 99.º do Código do Processo do Trabalho) ter dado entrada em tribunal em 02/03/2010, ou seja, depois da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Processo do Trabalho pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10, que segundo o seu artigo 6.º, só se aplicam às acções que se iniciem após a sua entrada em vigor, tendo tal acontecido, de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal, em 1/01/2010.
Esta ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor das reformas do Código de Processo Civil introduzidas, em 2007 e 2009, pelos Decretos-Lei n.ºs 303/2007, de 24/08 e 226/2008, de 20/11, que, em regra e de acordo com os artigos 21.º e 22.º desses diplomas legais, só se aplicam aos processos instaurados a partir de 1/1/2008 e 31/03/2009 (sem prejuízo, contudo, das ressalvas constantes do número 2 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 303/2007 e 22.º, número 1 e 23.º do Decreto-Lei 226/2008), sendo certo que as alterações trazidas pelo segundo diploma legal referenciado, por incindirem essencialmente, sobre o regime da ação executiva, pouca ou nenhuma relevância têm sobre os presentes autos.
Será, portanto, de acordo com o regime legal decorrente do anterior Código do Processo do Trabalho e da reforma do processo civil de 2007 e dos diplomas entretanto publicados e com produção de efeitos até ao dia da instauração dos presentes autos, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de apelação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais - aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, retificado pela Declaração de Retificação n.º 22/2008, de 24 de Abril e alterado pelas Lei n.º 43/2008, de 27-08, Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril com início de vigência a 13 de Maio de 2011 e Lei n.º 7/2012, de 13 Fevereiro, retificada pela Declaração de Retificação n.º 16/2012, de 26 de Março -, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.  
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos, face à data em que se verificou o acidente de trabalho - 16/12/2009 - terem todos ocorrido na vigência da LAT (ou seja, da Lei dos Acidentes do Trabalho aprovada pela Lei n.º 100/97, de 13/09 e da respectiva regulamentação inserida no Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04), dado as normas constantes do Código do Trabalho de 2009 - que entrou em vigor em 17/02/2009 -, relativas aos acidentes de trabalho (artigos 281.º e seguintes) estarem dependentes de legislação especial que só veio a encontrar a luz do direito com a Lei n.º 98/2009, de 4/09 e que, segundo os seus artigos 185.º, 186.º e 187.º, revogou o regime anterior (aquele aqui aplicável) e está em vigor desde 1/01/2010 e para eventos infortunísticos de carácter laboral ocorridos após essa data (apesar do novo regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, vertido na Lei n.º 102/2009, de 10/09, ter começado a produzir efeitos desde 1/10/2009 - cf. artigo 121.º).  

B - DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Realce-se que a Recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos dos artigos 80.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-B e 712.º do Código de Processo Civil, não tendo, por seu turno, o recorrido requerido a ampliação subordinada do recurso nos termos dos artigos 81.º do Código do Processo do Trabalho e 684.º-A do segundo diploma legal referenciado, o que implica que, sem prejuízo dos poderes oficiosos que são conferidos a este Tribunal da Relação pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil, temos de encarar a atitude processual das partes como de aceitação e conformação com os factos dados como assentes pelo tribunal da 1.ª instância.

C – OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES DE DIREITO

Se lermos as alegações de recurso e as conclusões delas extraídas, verificamos que a única questão que suscitada pela Ré traduz-se na sua discordância relativamente ao facto do tribunal da 1.ª instância ter encarado juridicamente o acidente dos autos como sendo de trabalho (muito embora, sem o reconduzir expressamente à modalidade de acidente de trajeto ou «in itinere» e sem analisar todas as implicações jurídicas geradas pelo caso concreto em julgamento).[2] 

C1 - REGIME LEGAL APLICÁVEL
 
Convirá, todavia, face à transcrita argumentação jurídica da COMNPANHIA DE SEGUROS, chamar à boca de cena o estatuído nos artigos 6.º da LAT e do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, que regulamenta a referida Lei n.º 100/97, de 13/09, rezavam o seguinte à data do sinistro dos autos[3]
       
Artigo 6.º
Conceito de acidente de trabalho
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para a entidade empregadora;
c) No local de trabalho, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos da lei;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa da entidade empregadora para tal frequência;
e) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação de contrato de trabalho em curso;
f) Fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pela entidade empregadora ou por esta consentidos.
3 - Entende-se por local de trabalho todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador.
4 - Entende-se por tempo de trabalho, além do período normal de laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
5 - Se a lesão corporal, perturbação ou doença for reconhecida a seguir a um acidente presume-se consequência deste.
6 - Se a lesão corporal, perturbação ou doença não for reconhecida a seguir a um acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.
Artigo 6.º
(Conceito de acidente de trabalho)
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho, produzindo, direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Na alínea a) do número 2 do artigo 6.º da lei estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajeto normalmente utlizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para avia pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho;
b) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e os mencionados nas alíneas a) e b) do número 4;
c) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
d) Entre o local onde por determinação da entidade empregadora presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual.
3. Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4. Estão compreendidos no artigo 6.º da lei os acidentes que se verifiquem nas seguintes circunstâncias:
a) No local do pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
b) No local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esses fins.

Será a partir do regime legal decorrente destas duas disposições legais que iremos passar a julgar o objeto do presente recurso de Apelação.   

C2 - SITUAÇÃO DOS AUTOS

O quadro legal acima transcrito, quando devidamente cruzado com a Factualidade dada como Provada e as alegações das partes, permite-nos centrar a nossa análise na (des)qualificação jurídica do acidente sofrido pelo sinistrado como acidente de trabalho na sua vertente de acidente de trajeto ou «in itinere», pois, conforme ficou demonstrado, ocorreu nas seguintes circunstâncias de tempo, modo e lugar:
«2.- Nos termos do mesmo contrato, o Autor obrigava-se a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da sociedade Farmácia CC UNIPESSOAL, LDA, com a categoria profissional de técnico de farmácia no estabelecimento comercial desta sociedade aberta ao público na Rua (…), Lote ..., Loja D, em Lisboa.
3.- Tinha o seguinte horário de trabalho, que lhe foi expressamente determinado pela sua entidade empregadora, e que o Autor sempre cumpriu: das 9,00 horas às 13,00 horas e das 15,00 horas às 19,00, distribuídas de segunda a sexta-feira.
4.- No dia 16 de Dezembro de 2009, a entidade empregadora autorizou o Autor a iniciar a sua atividade laboral a partir das 10,00 horas.
5.- O Autor, que reside na Rua (…), Lote ..., 2.º esquerdo, ... – 0000-000 ..., realizava o trajeto diário entre o local da sua residência e o seu posto de trabalho situado na Rua (…), Lote ..., Loja D, em Lisboa, bem como o trajeto inverso, fazendo para tanto uso do seu veículo automóvel.
6.- No dia 16 de Dezembro de 2009, o sinistrado efetuou o percurso entre a sua residência e o seu posto de trabalho, estacionando previamente a viatura na qual se fazia transportar na Rua (…), em Lisboa.
7.- Cerca das 9,30 horas, uma vez estacionada a viatura mencionada, na via pública e antes de atingir o local onde se encontrava instalado o seu posto de trabalho, o Autor dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado “DD“ – estabelecimento esse localizado na mencionada Rua (…), em Lisboa, e situado a cerca de 1 km em relação ao seu local de trabalho –, a fim de aí tomar o seu pequeno-almoço.
8.- Cerca das 9,45 horas, quando abandonava o mencionado estabelecimento comercial denominado “ DD“ para retomar o trajeto a pé em direção ao seu posto de trabalho, o Autor desequilibrou-se na sequência de uma entorse do seu joelho direito, após o que sofreu uma queda, prostrando parcialmente o seu corpo no solo.
9.- Aquando desta queda, o Autor ainda foi amparado pelo transeunte EE.»
 O sinistrado, que tinha de entrar ao serviço, excecionalmente, nesse dia, às 10,00 horas da manhã[4], saiu de sua casa em direção ao seu local de trabalho, tendo utilizado para o efeito, como sempre costumava fazer, o seu veículo automóvel, que estacionou, nas imediações da farmácia onde desempenhava funções[5], sendo sua intenção caminhar desde aí até ao mencionado estabelecimento.
Achamo-nos, até aqui, no quadro do percurso habitual do trabalhador entre a sua residência e as instalações da entidade empregadora onde executava as tarefas próprias de técnico de farmácia.
Importa, logo aqui, conferir alguma flexibilidade na análise do que é um trajeto normal numa grande cidade como Lisboa, em que o estacionamento (pago e não pago) é relativamente escasso e, naturalmente, variável, de dia para dia, em termos de lugares disponíveis para o efeito (havendo ainda o condutor de ponderar questões como a segurança da viatura), podendo o trabalhador ver-se obrigado a percorrer, com frequência, ruas diferentes entre o lugar que (finalmente ou não) encontrou para o seu carro e o seu local de trabalho.             
 Chegados aqui, sabemos que o Apelado, depois de arrumar o seu veículo na rua, esteve a tomar o pequeno-almoço no estabelecimento de restauração denominado de “DD”, tendo aí se demorado cerca de 15 minutos, só vindo a sofrer o acidente dos autos na via pública, quando acabara de deixar o mesmo, com vista a dirigir-se à farmácia onde prestava serviço subordinado.
O legislador, conforme resulta do número 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, enquadra ainda como acidente de trabalho aquele que ocorre quando o trajeto normal tenha sofrido «interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador», restando pois saber se a mencionada tomada da primeira refeição da manhã pode e deve ser reconduzida ou não a uma «necessidade atendível do Autor».           
A nossa resposta – ao contrário do que sustenta a Seguradora recorrente - tem de ser necessariamente afirmativa, pois o desvio ou a paragem do recorrido no citado estabelecimento de café ou snack-bar, visou a satisfação de uma necessidade humana e socialmente significativa - e, nessa medida, juridicamente relevante, para a problemática que aqui nos ocupa -, dado o pequeno-almoço constituir uma das três a cinco refeições que os portugueses comummente consomem[6] e que, em termos físicos, psicológicos e mesmo emocionais, visam a restauração e reposição das suas energias, sendo aquela que, por se seguir, normalmente, a um período mais ou menos alargado de repouso noturno (que pode variar muito de pessoa para pessoa mas que se situará em, média, em seis ou sete horas de sono), em que nada se ingere, é considerada a mais importante, por quebrar esse jejum inevitável, essa situação de carência em que o organismo se encontra.          
Não é de exigir ao trabalhador que inicie a sua jornada de trabalho sem ter tomado o seu pequeno almoço ou que o faça na rua, enquanto se desloca a pé ou de carro, de casa para o seu local de trabalho, de maneira a não prolongar o tempo normalmente levado no mesmo ou a não interromper o percurso que habitualmente empreende[7].
Também não nos parece, em nome aliás da proteção dos direitos de personalidade (cfr. artigos 26.º da Constituição da República Portuguesa, 70.º do Código Civil e 14.º e seguintes do Código do Trabalho de 2009), que seja sequer congeminável que a entidade empregadora possa impor e a Companhia de Seguros sustentar a obrigatoriedade ou, pelo menos, a conveniência, do trabalhador tomar a referida primeira refeição na sua habitação ao invés do fazer no exterior, em estabelecimento de restauração.
Logo, temos de qualificar a queda que o Autor deu, nas descritas circunstâncias, como um acidente de trabalho in itinere.      
O Autor, nas suas contra-alegações de recurso e em apoio da posição por nós aqui defendida, faz referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/10/2011, processo n.º 412/05.3TTFAR.E1, relator: João Luís Nunes, publicado em www.dgsi.pt, que, em termos de Sumário, defende o seguinte: 
I – No domínio da Lei n.º 100/97, de 13-09 (LAT) e do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30-04 (RLAT), deve qualificar-se um acidente in itinere (também designado de trajeto ou de percurso) como acidente de trabalho se ocorrer no trajeto normalmente utilizado de ida e regresso entre o local de trabalho e o local de refeição, durante o período ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador, mesmo quando esse trajeto tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
II – É de considerar como acidente de trabalho, o sofrido pelo trabalhador que, tendo um período de interrupção para almoço entre as 13.00h e 14.00h, foi almoçar a casa (que distava do local de trabalho cerca de 4.400 metros e do local do acidente cerca de 4.900 metros) e, seguidamente, foi tomar café onde habitualmente o ia tomar, e ia almoçar, tendo, para tanto, passado junto ao seu local de trabalho e, cerca das 14.00h, após tomar café, “relaxado” um pouco e percorrido cerca de 1.000 metros, quando regressava ao local de trabalho, no seu veículo automóvel, sofreu o acidente que o vitimou mortalmente.
Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/2009, Recurso n.º 224/09-4, publicado em Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, Setembro de 2009, citado por Abílio Neto em obra citada na Nota 4, página 29, Nota 32, sustenta o seguinte, ao nível do seu Sumário:
“I - Considera-se acidente de trabalho o ocorrido no trajeto normalmente utilizado e durante o período ininterrupto habitualmente gasto na ida e no regresso para e do local de trabalho e a residência habitual ou ocasional do trabalhador.
II -Não impede a qualificação como acidente de trabalho o facto de o trajeto normal ter sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, conforme decorre do disposto no art.º 6.º, n.º 3, do RLAT.
III -É de qualificar como acidente de trabalho o sofrido pelo sinistrado no percurso de regresso a casa e que se traduziu em acidente de viação ocorrido após o sinistrado ter invertido o sentido de marcha do veículo por si conduzido a fim de proceder ao respetivo abastecimento.
IV - O desvio efetuado pelo sinistrado em ordem ao abastecimento do veículo por si conduzido, pela sua muito curta extensão e pela sua previsível muito curta demora, não assumem relevância em termos de agravamento do risco da deslocação levada a cabo e de afastamento da tutela infortunístico-laboral do acidente ocorrido». (veja-se também a doutrina identificada na Nota 4).  
Logo, tem o presente recurso de Apelação, pelos motivos expostos, de ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão judicial impugnada.           

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto por COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A., nessa medida se confirmando a decisão recorrida.
     
Custas a cargo da Apelante – artigo 446.º, número 1, do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2012     

José Eduardo Sapateiro
Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
-----------------------------------------------------------------------------------------
[1] € 15.112,15  a título de indemnização por Incapacidade Temporária sofrida, ao invés do ali referenciado: € 115.112,15.
Esse pedido de correção não foi considerado pelo tribunal da 1.ª instância.
[2] Pode ler-se na sentença, a este respeito, o seguinte:
«1. Caracterização do acidente:
Dispõe o artigo n.º 1 do 6.º da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro:
É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
O conceito de acidente de trabalho é delimitado, assim, por três elementos cumulativos:
a) Espacial - o local de trabalho (conceito abrangente que integra o trajeto);
b) Temporal - o tempo de trabalho;
c) Causal - o nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença.
A caracterização do acidente como de trabalho, resultou assente, não na tentativa de conciliação, tendo sido posto em causa pela entidade seguradora, o nexo de causalidade entre o constante do teor da participação de acidente, e as queixas apresentadas pelo sinistrado, mas em sede de julgamento, conforme se extrai do facto n.º.
Com efeito, provou-se que o acidente ocorreu quando o Autor exercia a sua atividade de técnico de farmácia, por conta, sob a autoridade, direção e fiscalização da entidade patronal, “FARMÁCIA CC UNIPESSOAL, LDA”, mediante a retribuição anual de € 19.876,39 (ou seja € 1.314,26 x 14 meses + € 134,25 x 11 meses), encontrando-se a responsabilidade infortunístico laboral transferida para a Ré Companhia de Seguros BB, S.A. , pelo montante do salário anual acima referido.
Do exposto se conclui que o acidente em causa nos autos se caracteriza como acidente de trabalho, e que a Ré é responsável pela sua reparação.»
[3] Importa comparar o regime dos acidentes de trajeto ou in itinere que se acha acima reproduzido com aquele que se mostrava consagrado na Base V, número 2 da Lei n.º 2127, de 3/08/1965 e artigo 11.º do Decreto n.º 360/71, de 21/08, falando este último em «interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades imperiosas do trabalhador», que, para o Dr. Carlos Alegre, em “Acidentes ed Trabalho e Doenças Profissionais”, Regime Jurídico Anotado, 2.ª Edição, Fevereiro de 2000, Almedina, página 185, eram aquelas que se traduziam em «facto ou acontecimento que se apresentam como inevitável ou inelutável», ao passo que “necessidade atendível” do regime aplicável ao litígio dos autos, será aquela «que, de algum modo pode ser evitada ou adiada, muito embora, se não o for, seja facilmente desculpável ou aceitável, de acordo com os critérios dominantes em determinado momento, local e circunstâncias”. Cfr., também, a este respeito, Abílio Neto em “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais Anotado”, 1.ª Edição, Fevereiro de 2011, EDIFORUM, Lisboa, páginas 24  e seguintes, muito embora no seio do regime atualmente em vigor.       
[4] Ao invés das habituais 9,00 horas da manhã. 
[5] Não se nos afigura, para o efeito, que a distância de 1000 metros entre o local do estacionamento e a farmácia seja exagerada para uma cidade como Lisboa e para o dia (quarta-feira), a hora (9,30 horas), a época (Natal) e a zona (Chelas/Marvila). 
[6] Pequeno-almoço, almoço, lanche, jantar e ceia.
[7] O que, nos grandes centros urbanos, quer em termos de tempo como de trajeto, é muito relativo, por ambos os fatores poderem variar muito, isolada ou conjuntamente, em função dos engarrafamentos, acidentes de trânsito, furos de pneus e outros percalços que a vida citadina é fértil em engendrar.
Decisão Texto Integral: