Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
105/17.9PBBRR.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: DEVASSA DA VIDA PRIVADA
NEXO DE CAUSALIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - Constituindo o nexo de causalidade matéria de facto, não a impugnando o recorrente, para o que teria de cumprir as exigências do nº3, do art.412, CPP e, sendo manifestamente inviável a  alteração desse facto por via do vício do erro notório, porque considerando os factos provados e a fundamentação, a verificação daquele nexo de causalidade é perfeitamente compatível com as regras de experiência comum, quando estão em causa factos que atingiram a esfera íntima de uma adolescente, agora com 19 anos de idade, não há que alterar tal factualidade.
- O receio e sofrimento da vítima, em casos como o dos autos, não decorre apenas de factos consumados, sendo a simples possibilidade de terceiro poder divulgar factos íntimos da vítima motivo para sério sofrimento desta, sendo do conhecimento geral a facilidade com que podem ser divulgadas fotos através das redes sociais, o que pode ocorrer por iniciativa do próprio agente ou daqueles a quem o mesmo as enviou ou exibiu (para o efeito um terceiro pode mesmo aproveitar-se da simples exibição das fotos ou objetos via Skipe), daí que seja perfeitamente compreensível o receio e sofrimento da assistente.
- Os danos não patrimoniais costumam definir-se como prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado (a vida, a saúde, a liberdade, a beleza, etc.) e porque não atingem o património do lesado e não são suscetíveis de conversão monetária, através da exatidão de operações matemáticas, a lei remete a fixação do montante indemnizatório, por estes danos, para juízos de equidade.
- Sendo danos insuscetíveis de reparação natural, a indemnização tem nestes casos mais natureza compensatória, com uma dificuldade sempre presente que deriva do facto de ser única cada vida, cada incómodo, cada dor, cada desgosto, cada frustração, como é próprio da natureza humana, que torna cada sentimento e cada sensação uma vivência diferente em cada pessoa.
- O quantitativo indemnizatório tem de refletir toda a gravidade e seriedade dos danos, o que só será possível com um valor que tenha um significado relevante face à nossa realidade económica e não possa ser confundido de compensação simbólica, o que o valor fixado (€15.000) satisfaz, respeitando as regras de adequação e proporcionalidade.
- Uma vez que o arguido completa em breve os 21 anos de idade, estando a terminar a sua formação académica e vem colaborando na atividade económica da família (restaurante dos avós), está em posição de poder cumprir a obrigação em causa, mesmo que para o efeito tenha de recorrer a crédito que poderá ir amortizando no tempo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Singular) nº105/17.9PBBRR, da Comarca de Lisboa (Juízo Local Criminal do Barreiro - Juiz 1), foi julgado, TM , acusado de um crime de furto qualificado (arts.203, 204 nº2 e, por referência ao art.202, g, do Código Penal) e um crime de devassa da vida privada (art.192, nº1, al.b, CP).
O Tribunal, após julgamento, por sentença de 4Dez.20, decidiu condenar o arguido:
“...
i) pela prática de um crime de furto qualificado previsto e punível nos artigos 203º e 204.º nº 2 e) e 202.º f) ii) do Código Penal a pena especialmente atenuada de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, substituída pela prestação de 480 (quatrocentas e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade.
Ii) pela prática de um crime de devassa da vida privada, previsto e punível pelo artigo 192º n.1b) do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00.
iii) …
iiii) Declaro perdidas a favor do estado as chaves apreendidas nos autos, as quais deverão ser oportunamente destruídas.
II-Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e em consequência, condeno o demandando TM , no pagamento à demandante da quantia global de €15.260,00 (quinze mil duzentos e sessenta euros), acrescida de juros vencidos e vincendos, desde o trânsito em julgado da sentença até integral e efectivo pagamento.
...”.
2. Desta decisão recorreu o arguido TM , tendo apresentado motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões (que se transcrevem):
I – A primeira questão a analisar é de saber se a sentença padece de falta de fundamentação.
Entende o ora recorrente que a mesma padece de tal vicio, porquanto se dão como provados os factos indicados em 20 a 41, sem que, seja realizada a análise crítica da prova.
2 – Se por um lado o ora recorrente, confessou de forma integral e sem reserva os ilícitos criminais de que vinha acusado, a verdade é que este é condenado no pagamento da quantia global de €15.260,00 (quinze mil duzentos e sessenta euros), sendo €15.000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais e a “explicação” dada pelo Tribunal é parca, conclusiva, não se entendendo o raciocínio logico da decisão e da sua justiça.
3 – Da sentença ora recorrida consta: “… – Cfr. Sentença.
4 - A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão.
O tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido numa decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
O ‘’exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular fundamentação em matéria de facto – mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
A integração das noções de ‘’exame crítico" e de fundamentação envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razoes de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.
Os critérios e elementos de ponderação necessários para avaliar se foi adequadamente efectuado o exame crítico das provas no âmbito das exigências da lei, retira o plano da decisão do espaço de intervenção dos juízos de eleição, interpretação e aplicação de um princípio ou norma legal, subtraindo-o, consequentemente do âmbito da matéria de direito. - In acordão do STJ de 16 de Março de 2005 - Proc. n.º 20050260006623
5 – Assim, entende o recorrente que ao sindicar o acima transcrito, concluirão V. Exas. que a sentença padece do vicio de falta de fundamentação, tendo o Tribunal A Quo violado o disposto no nº1 do artº 205 da CRP, nº2 do artº 374º e nº5 do artº 97º ambos do CPP.
6 - A segunda questão a analisar é a de saber se existe ou não erro notório na apreciação da prova, para o efeito o recorrente entende que se deram factos como provados que, face ás regras de experiência comum e á logica normal da vida, os depoimentos da mãe e da demandante são contraditados pelos documentos, nomeadamente, os relatórios médicos constantes de fls.28,29, 276, 325 e 326 e das fotografias de fls.212.
7 – O tribunal a quo, considerou provado que em dia não apurado do mês de junho de 2016, o arguido entrou em posse, por modo não concretamente apurado, das chaves da residência da ofendida e, em dia também não apurado do mês de agosto de 2016, o arguido na posse daquelas chaves, dirigiu-se à residência desta e apoderou-se de bens que lá encontrou, designadamente, peças de vestuário íntimas “bikinis”, e um disco externo da ofendida.
Considerou ainda o douto tribunal por provado, que já na sua residência, o arguido acedeu ao disco externo através do seu computador portátil e acedeu a fotografias da ofendida, que transferiu para o seu telemóvel onde as guardou.
E ainda, que o arguido enquanto mantinha conversações via “SKYPE”, com JR e MC , exibiu a estes através da camara as peças de bikini da ofendida.
Assim como, que, no dia 24 de outubro de 2016, o arguido enviou do seu telemóvel para RM , seu amigo, fotografias da ofendida.
8 – Factos que o arguido confessou, tendo mostrado profundo arrependimento, apresentando um pedido formal de desculpas sentido e emocionado à assistente em sede de audiência de julgamento.
9 – O tribunal a quo, também deu como provado os factos contantes dos pontos 20 a 41 da douta sentença, para efeitos de danos não patrimoniais.
10 – Sendo estes factos relativos ao pedido de indemnização cível e sendo factos pessoais da assistente, o arguido não os podia nunca confessar.
11 – Assim, com base nos factos dados por provados nos pontos 20 a 41, fundou o tribunal A Quo a decisão de fixar o quantum indemnizatório no montante de €:15.260,00 (quinze mil duzentos e sessenta euros), acrescidos de juros vencidos e vincendos.
12 – O tribunal baseou a sua convicção, para dar como provados os pontos 20 a 41, no depoimento da assistente, corroborado com o depoimento da testemunha MF, mãe da assistente, nas fotografias constantes das fls. 28,29, 45, 212, e dos relatórios médicos das fls. 276, 325 e 326
13 – Da análise critica da prova, não esmiuçou o Tribunal A Quo, os pontos 20 a 41, sobre os elementos que levaram à sua convicção.
14 – Dos relatórios médicos, constantes das fls. 276, 325 e 326, não se pode concluir que há um nexo de causalidade directo e necessário para as alterações emocionais da Demandante, como refere o doutro tribunal no ponto 38 da douta sentença.
15 – A própria médica psicóloga, que elabora o relatório das fls. 325 e 326, Dra. Nádia Rala, emprega a expressões: “estão provavelmente relacionados”.
16 – Quis, com estas expressões, a especialista concluir, que não tem certeza para afirmar, com rigor médico/cientifico, dentro dos padrões de analise comportamental realizados, que aquelas alterações emocionais da assistente, em plena adolescência, foram causadas por causa direta dos factos praticados pelo ora Recorrente.
17 - Pelo que, a médica especialista não atribuindo, direta e necessariamente, a estas alterações emocionais sentidas pela demandante, um nexo de causalidade directo e concreto com os factos ocorridos, entende o ora Recorrente que tal relatório não poderia fundamentar a condenação quanto ao pedido cível.
18 – Aliás, o relatório foi emitido em 08 de outubro de 2020 e os factos ocorreram no período de junho a outubro de 2016, ou seja, há um lapso temporal de 4 anos.
19 – Lapso temporal esse, que fica por explicar quanto ao acompanhamento médico/psicológico da assistente, uma vez que, ambos os relatórios, foram solicitados e emitidos com o único propósito de serem apresentados em tribunal, e não há qualquer confirmação de que a assistente tenha vindo a ser e/ou precisar de acompanhamento, contrariamente ao que diz o tribunal a quo, quando da assente, por provado, o ponto 41 da douta sentença.
20 – O tribunal baseou ainda a sua convicção no relatório de fls. 276, relatando este “bullying” e “stalking” sofridos pela assistente.
21 - Contudo, o dito relatório não especifica quem foi o/a autor de bullying/Stalking, como também não concretiza o espaço temporal em que tais acontecimentos terão tido lugar, consequentemente, não podia o dito relatório ser determinante para a convicção do tribunal na
condenação do ora R. quanto aos danos não patrimoniais.
22 – Por outro lado, no nosso entender, salvo melhor opinião, o tribunal A Quo, foi ainda mais longe quando dá assente por provado o ponto 24 da douta sentença.
23 – Relevando para a convicção do tribunal, o relato da assistente, de que ficou “emocionalmente perturbada”, porque o arguido “…poderia ter usado tais fotos em sites para adultos, num esquema de obtenção de dinheiro…”.
24 – Factos estes meramente hipotéticos, fruto da imaginação da assistente e como já referenciámos, também estes não constam da douta acusação publica.
25 - Embora o arguido tenha confessado que exibiu as peças de bikini e o soutian, por Skype, ao JR e MC , não houve posterior divulgação a terceiros.
26 - E das fotos enviadas, apenas ao RM , onde a Demandante se encontra em bikini, a verdade é que estas revelam que a demandante é uma jovem desinibida, que aceita bem o seu corpo, e não se imiscui de passear de bikini na vida publica.
27 – Para além de que, essa desinibição, vem também da sua habituação à exposição e olhares alheios, pela sua atividade desportiva de prática de danças de salão, onde participa em competições, que são públicas e bastante divulgadas nas redes sociais.
28- De acordo com as regras de experiência comum verifica-se que:
- O recorrente tudo fez ás escondidas da demandante;
- Que as fotos não foram divulgadas nas redes sociais, somente a elas teve acesso um colega seu;
- Que as peças - biquini e soutian foram exibidas via Skipe, que dali não passaram;
- Que o relatório de fls. 276, não especifica quem foi o/a autor de bullying/Stalking, como igualmente não concretiza o espaço temporal em que tais acontecimentos terão tido lugar;
- Que do relatório 325 e 326, de que não se pode concluir que há um nexo de causalidade directo e necessário para as alterações emocionais da demandante;
29 - Consequentemente, não podia o dito relatório ser determinante para a convicção do tribunal para condenar o ora R. quanto aos danos não patrimoniais.
30 - Pelo que, resultando que o recorrente tudo fez ás escondidas, conjugando que as citadas fotografias não andaram nas redes socias e que as peças - biquini e soutian, foram exibidas somente via Skipe e que o relatório médico não atribui um nexo de causalidade directo e necessário para as alterações emocionais da demandante, a verdade é que não podia o Tribunal extrapolar que os actos praticados pela ora Recorrente tivessem uma dimensão gravosa tal que conduziu á condenação no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €:15.000,00 (quinze mil euros).
31 - O ora R. entende que o valor fixado, a título de danos não patrimoniais, no montante de €15.000,00 (quinze mil euros), é excessivo, porquanto não foi atendido o vertido nos artºs 494º e 496º ambos do CC.
32 - O cálculo da indemnização deve ser efectuado com base em critérios de equidade, atendendo, entre outros aspectos, á situação económica do responsável e deve ser proporcional à gravidade do dano.
33 - O ora Recorrente, tem 20 anos, é primário, estudante do ensino superior e vive com sua mãe. – Cfr. ponto 15, 16 e 18 da matéria dada como provada.
34 – A demandante tem 19 anos, é estudante do ensino superior (curso de enfermagem) e vive com sua mãe. – Cfr. ponto 25, 35 e 41 da matéria dada como provada.
35 - Do relatório médico de fls. 325-326, embora não resulte nexo de causalidade entre os actos do ora Recorrente e o resultado da avaliação psicológica realizada, consta que a instabilidade psicológica e emocional, da demandante, não é elevada e que esta tem boa capacidade de discernimento/perspicácia/apreensão súbita/compreensão interna. – In www.sbcoaching.com.br/blog/insight/.
36 – E tanto assim é que, a demandante, após os factos criminais em questão, continuou a estudar, encontrando-se no ensino superior – curso de enfermagem. – Cfr. ponto 41 da matéria dada como provada.
37 - O ora Recorrente, em sede de audiência de discussão e julgamento, apresentou um pedido formal de desculpa directamente á demandante. – Cfr. ponto 19 da matéria dada como provada.
38 - O valor fixado, a titulo de danos não patrimoniais, no montante de €:15.000,00 (quinze mil euros), corresponde a quase 24 (vinte e quatro) ordenados mínimos nacionais (635,00), atendendo á data de prolacção da sentença ora recorrida.
39 – Embora a obrigação de indemnizar danos não patrimoniais configure um sofrimento/castigo para o obrigado e que, como tal, tenha uma função punitiva, o sacrifício que o Recorrente terá, para proceder ao pagamento do quantum indemnizatório em apreço, é exageradamente alto, em virtude de ter de deixar de estudar e trabalhar, pelo menos durante dois anos, comprometendo, desta forma, o seu futuro profissional e pessoal.
40 – Tendo o Tribunal A Quo formulado um juízo de prognose favorável, aplicando o regime especial para jovens (DL 401/82), no que concerne a pena aplicada ao ora recorrente, “juízo igual” deveria ter sido realizado em relação ao quantum indemnizatório por danos não patrimoniais, fixando um valor inferior ao que consta da sentença. – Cfr. sentença.
41 - No modesto entendimento do Recorrente, foram violados os princípios da legalidade, da adequação, da proporcionalidade e das regras de experiencia comum, no que concerne ao quantum indemnizatório por danos não patrimoniais. – Cfr. artº 118º, 123º, 127º e nº1 do artº 355º todos do CPP e artºs 494º e 496º ambos do CC.
Nos termos expostos e noutros de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente ser revogada a sentença quanto ao pedido civil.
3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, após o que o Ministério Púbico e a assistente TA responderam, ambos concluindo pelo seu não provimento e a assistente interpondo recurso subordinado, requerendo, ainda, que o arguido/recorrente deposite o valor arbitrado como indemnização, para obter o efeito suspensivo do recurso.
No recurso subordinado, a assistente conclui:
A – Nos termos do CPP para obter o efeito suspensivo do recurso o Recorrente deve depositar o seu valor, nos termos do artigo 408.º, n.º2 al. a) e 647.º, n.º 1 e n.º 4 do CPC ex vi 4.º do CPP. Nos termos do artigo do artigo 404.º do CPP a Assistente tem legitimidade para interpor recurso subordinado da Sentença na parte em que não condicionou a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da quantia na qual o Demandado foi condenado e em que peticiona o aumento do valor da indemnização arbitrada, 50.º, n.º 2 e 51.º, n.º 1 al. a) do CP.
B – Nos crimes de devassa da vida privada é inadmissível a prova dos factos divulgados, enquanto nos crimes contra a honra tal prova é admitida. A tutela jurídica e sobretudo a tutela jurídico-penal da constelação de bens jurídicos – imagem e privacidade/intimidade – terá de ser diferenciada em função do lugar de cada um na sociedade, relevo público da pessoa ou dos seus actos, da sua maior ou menor exposição aos holofotes da sociedade, ideia acolhida pelo próprio legislador português nos arts. 80.º, n.º 2, do CC (reserva sobre a intimidade da vida privada) e 79.º, n.º 2 (direito à imagem).
Haverá sempre, todavia, um círculo da esfera na zona mais íntima da privacidade – que poderá ser maior ou menor consoante o grau e tipo de exposição da pessoa – que nunca será legítimo devassar e que, por isso, estará sempre ao abrigo da respectiva tutela jurídico-penal.
Enquanto a vida pode ser mais ou menos pública, mais ou menos privada, dependendo muito da personalidade de cada um e da função que exerce na sociedade – podendo haver pessoas que não tenham vida pública e outras que praticamente não tenham vida privada -, com a honra nada se passa assim. Todos têm a sua honra - opinião ou sentimento de uma pessoa sobre o seu próprio valor -, todos prezam a sua auto-estima, todos desejam ser considerados e respeitados pelos demais membros da sociedade em que se inserem, o mesmo é dizer, ter boa reputação – ideia que os outros têm sobre o valor da pessoa – ou bom nome.
C – É ajustada a quantia de €15.000,00 (quanto muito peca por defeito) atribuída a título de danos não patrimoniais, num contexto de exposição pública de imagens da vida íntima da assistente, que intencionalmente foi levada pelo arguido ao conhecimento de inúmeras pessoas, numa escola e num pequeno núcleo urbano, no propósito de devassar a vida privada daquela, designadamente a sua intimidade sexual. (Ac. do TRE de 14-02-2012).
D – A indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”, não se compadecendo com atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios. A indemnização por danos patrimoniais deve ser correcta, e a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efectivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isto, neste âmbito, já ninguém nem nada consegue! Mas – et pour cause – a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo, e não meramente simbólico.
E- Não há falta de fundamentação da Sentença, porquanto a insuficiência de fundamentação da Sentença é uma ''lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.'' Mostra-se absolutamente evidente que o recorrente não invoca o vício em causa e que o mesmo não ocorre.
Com efeito, o tribunal a quo, ao dar como provado que o arguido, intencionalmente, divulgou a terceiros fotografias que retratam cenas da vida íntima da assistente adequadas a causar na pessoa da mesma ultraje à sua honra e consideração, dá como provada factualidade praticada pelo arguido que integra, objectiva e subjectivamente, o tipo legal de crime p. e p. p. artº 192º, nº 1, alínea b) do Código Penal. Deste modo, uma vez que constam da sentença factos provados que fundamentam juridicamente a decisão de condenação, inexiste qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Sobre o erro no contradição insanável da fundamentação, pode afirmar-se que ocorre ''quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluirem-se mutuamente.'' A fundamentação constante da sentença, quer de facto, quer de direito, leva precisamente à decisão sobre os factos e sobre a integração do crime constante da pronúncia. Com efeito, a motivação da Sentença escalpeliza toda a prova produzida de forma absolutamente coerente com os factos que se vieram a considerar provados.
Por outro lado, estes mesmos factos têm como decorrência lógica (como afirmámos supra) a integração objectiva e subjectiva do tipo legal de crime em causa.
Por último, também não se vislumbra qualquer contradição entre factos provados e não provados. Deste modo, inexiste qualquer contradição na fundamentação da decisão. Nem erro notório na apreciação da prova, porque o que o Recorrente defende é que a prova devia ser apreciada de acordo com a sua tese, mas isso não representa erro na apreciação na prova. Não existe nenhum dos vícios do artigo 410.º do CPP na Sentença e o Recorrente nem impugnou especificadamente a matéria de facto, com o cumprimento do artigo 412.º, n.º 3, als. a) a c) e n.º 4 do CPP, como era seu ónus.
Nestes termos e nos Demais de Direito, requer-se a V. Ex.ª que:
- julguem não provido o recurso do Recorrente;
- julguem provido o recurso subordinado da Recorrida e que, com o seu provimento, façam depender a suspensão da execução da pena de prisão na qual o Arguido foi condenado ao pagamento efectivo da quantia em que o Arguido/Demandado estiver condenado;
- que seja por V. Exas. elevado o valor da indemnização atribuída;
- que o Recorrente seja convidado a vir prestar caução para obter o efeito suspensivo do recurso,
4. O recurso subordinado da assistente foi admitido, apenas, quanto à matéria civil.
Foi indeferido o pedido de prestação de caução e reafirmado o efeito suspensivo do recurso do arguido.
O arguido respondeu ao recurso subordinado pedindo a sua rejeição por falta de conclusões.
4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta apôs visto.
5. Realizou-se a conferência.
6. O arguido, na resposta ao recurso suborninado, pede a rejeição deste por falta de apresentação de conclusões.
De acordo com o art.412, nº1, CPP “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
No caso, o articulado em que a assistente apresenta o seu recurso subordinado é merecedor de críticas, sendo evidente que não separa de forma clara o que constitui resposta ao recurso do arguido e o que fundamenta o seu recurso subordinado.
Contudo, na parte em que o recurso subordinado foi admitido (questão civil), o articulado permite compreender a pretensão da recorrente, relativa ao quantitativo da indemnização que pretende seja aumentada.
Ora, em relação a esta questão, ao contrário do alegado pelo arguido, a assistente faz referência nas conclusões, peticionando o seu aumento (conclusão A), qualificando um valor como ajustado (conclusão C) e pedindo que o valor fixado seja elevado (parte conclusiva no final das conclusões).
Não há, assim, falta de conclusões suscetível de justificar rejeição do recurso.
O objecto dos recursos, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
Nulidade por falta de fundamentação;
Erro notório na apreciação da prova;
Quantitativo da indemnização;
*     *     *
IIº A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor (transcrição):
Discutida a causa e com relevância para a decisão final, resultaram provados os seguintes factos:
1.Em dia não apurado do mês de Junho de 2016, o arguido entrou na posse, por modo não concretamente apurado, das chaves da residência de TA , à data, sua colega de turma do 9º ano, na Escola Básica 2+3 da Quinta da Lomba.
2.Em dia não apurado do mês de Agosto de 2016, o arguido, ainda na posse daquelas chaves, formulou o propósito de se dirigir à residência de TA , para aí se apoderar de bens que encontrasse, designadamente, de peças de vestuário íntimas da mesma.
3.Assim, na prossecução daquele desígnio, o arguido deslocou-se ao prédio da residência de TA , sita na ...no Barreiro, munido das chaves que manteve sempre na sua posse.
4.Chegado à porta do prédio, o arguido tocou a campainha da residência da TA , de modo a certificar--se que ninguém ali se encontrava e, como ninguém atendesse, abriu a porta do prédio com a respectiva chave, que tinha na sua posse, e subiu à fracção correspondente à residência da TA .
5.Aí chegado, o arguido abriu a porta com a respectiva chave, que tinha na sua posse, e introduziu-se no seu interior, de onde retirou e fez seus os seguintes objectos, todos pertença de TA :
. Um disco externo, de marca “Seagate”, com a capacidade de um terabyte, com respectivo cabo de ligação USB, com o número de série NA81T2NB;
. Uma cueca de bikini, da marca “Calzedonia”, de cor preta;
. Uma cueca de bikini, da marca “Calzedonia”, de cor vermelha;
. Um par de cuecas, de marca “Yamamay”, de cor bege;
. Um soutien, sem marca visível, de cor vermelha.
6.O valor do disco externo é de 60€, e o valor global das peças de vestuário é de 100€, sendo o valor total dos objectos retirados pelo arguido, do interior da mencionada residência, é de 160€.
7.De seguida, já na sua residência, o arguido acedeu ao conteúdo do disco externo através do seu computador portátil, de marca “Acer”, e acedeu a fotografias de TA , em bikini, que transferiu para o seu telemóvel “IPhone”, com o número 96..., onde as guardou.
8.Ainda nesse mesmo dia, enquanto mantinha conversação, via “Skype”, com JR e MC , seus amigos, o arguido exibiu-lhes, pela câmara, as peças de bikini e o soutien de TA , que havia retirado da residência dela, no desconhecimento e sem o consentimento daquela.
9.De igual forma, no dia 24 de Outubro de 2016, às 11h26m, o arguido enviou, do seu telemóvel, com o número 96..., para o telemóvel, com o número 93... , pertença de RM , seu amigo, as mencionadas fotografias da TA  que estavam armazenadas no disco externo, no desconhecimento e sem o consentimento daquela.
10.No dia 19 de Outubro de 2017, o arguido mantinha na residência:
. Uma cueca de bikini, da marca “Calzedonia”, de cor preta;
. Uma cueca de bikini, da marca “Calzedonia”, de cor vermelha;
. Um par de cuecas, de marca “Yamamay”, de cor bege;
. Um soutien, sem marca visível, de cor vermelha;
. Uma chave de residência, de marca “Keylineit”;
. Uma chave de residência, de marca “Lince”;
. Um disco externo, de marca “Seagate”, com a capacidade de um terabyte, com respectivo cabo de ligação USB, com o númro de série NA81T2NB;
. Um telemóvel, de marca e modelo “IPhone A1429”, de cor preta, com o número de série 013736003452129;
. Um computador portátil, de cor preta, com respectivo cabo de alimentação, de marca e modelo “Acer, MS2391”, com o número de série NXMQKEB00650509DFA6600.
11.O arguido fez seus o disco externo, as peças de bikini e o soutien acima descritos, sabendo que os mesmos lhe não pertenciam, e sabendo, ainda que, ao actuar da forma descrita, entrando na referida residência pelo processo descrito, actuava em prejuízo, no desconhecimento e contra a vontade da legítima dona.
12.O arguido agiu com o intuito e vontade de exibir e divulgar a terceiros fotografias de TA , que sabia retratarem momentos da sua privada, no desconhecimento e sem autorização da mesma.
13.O arguido agiu sempre de forma livre, porque capaz de se determinar segundo a sua vontade, e de forma deliberada e consciente, querendo actuar da forma supra descrita.
14.Mais sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
15.O arguido é estudante do ensino superior, frequentando o Curso de Aminação e Intervenção Sociocultural.
16.Vive com a mãe.
17.Ajuda os avós no restaurante daqueles.
18.Não tem antecedentes criminais registados.
19.Apresentou, sem sede de audiência de julgamento, pedido formal de desculpas a TA .
20.No dia em que tomou conhecimento dos factos, TA ligou para a sua mãe, a chorar compulsivamente, demostrando o seu receio em estar em casa sozinha; tendo procedido à mudança da fechadura da porta de entrada.
21.Tal mudança de fechadura teve o custo de €100,00; o qual foi suportado pela mãe da assistente.
22.O disco externo de que o arguido se apoderou, continha fotografias e vídeos da assistente, desde os seus 9 anos de idade e alusivas à sua prática desportiva de competição de danças de salão.
23.Tais fotos e vídeos nunca foram recuperados pela assistente.
24.Ao ter conhecimento de que o arguido poderia ter usado tais fotos e vídeos em sites para adultos, num esquema de obtenção de dinheiro de forma fraudulenta, a assistente sentiu-se preocupada, tendo ficado emocionalmente perturbada.
25.Nos dias seguintes a ter conhecimento dos factos, a assistente não conseguia dormir sozinha no seu quarto, tendo passado a dormir na cama com a mãe.
26.Nesses momentos, chorava compulsivamente e não conseguia adormecer, ficando sempre alerta para a possibilidade de alguém entrar na habitação.
27.Nos meses seguintes, a assistente sentia repulsa ao entrar no seu quarto, onde não conseguia permanecer, nem tocar nas suas coisas.
28.Em consequência, a mãe e a avó tiveram que efectuar várias limpezas profundas ao mesmo, deitar fora toda a roupa interior e comprar nova; o que teve um custo aproximado de €150,00.
29.Efectivamente, de cada vez que a assistente tocava nas suas coisas, começava a ter ataques de pânico, pensando no arguido a tocar também nas mesmas.
30.Para além dos sentimentos de nojo, repulsa, vergonha e ansiedade, as condutas do arguido despoletaram igualmente na assistente alterações intestinais e do couro cabeludo da assistente, que passou a escamar.
31.Entre Janeiro de 2017, data em que apresentou a denuncia e o final desse ano lectivo (Maio/Junho de 2017), TA , por aconselhamento da PSP, teve que agir na escola como se não soubesse ainda do sucedido, uma vez que o arguido era seu colega de turma.
32.Tal facto causou-lhe perturbações emocionais, desconcentração e angústias, o que motivou a quebra do seu rendimento escolar e a decisão de cancelar a matricula e voltar a repetir o ano.
33.Tal decisão, porque motivada por factores externos à sua vontade, fez com que se sentisse triste e injustiçada.
34.Nas semanas seguintes a ter conhecimento dos factos, a assistente não conseguia estar e entrar sozinha em casa, tendo sempre que ligar à mãe e mantendo-se em linha com esta percorrer toda a casa para se certificar de que ninguém estava em casa.
35.Igualmente por mais de uma vez, a mãe da assistente teve que se ausentar do seu local de trabalho para vir a casa, prestar assistência à filha, por ataques de pânico que esta desenvolvia.
36.A assistente passou a ser uma jovem mais introvertida e reservada, não conseguindo manter relacionamentos baseados na confiança.
37.Passou igualmente a desenvolver comportamentos obsessivos, arrumando os objectos no seu quarto com métodos de organização próprios, por forma a conseguir verificar se alguém havia mexido neles.
38.Ao logo dos últimos três anos, a assistente, por causa directa e necessária das condutas do arguido, passou a viver triste, angustiada e desanimada.
39.Sentindo-se enganada, vexada e enxovalhada.
40.Tendo tido necessidade de acompanhamento médico, que ainda mantém.
41.Actualmente a assistente tem 19 anos de idade, encontrando-se a frequentar o curso superior de enfermagem.
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Factos Não provados:
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
1.Por causa do cancelamento da matrícula, a mãe da assistente tenha perdido um complemento da segurança social no valor mensal de €30.61.
2.Com as consultas médicas realizadas, a assistente tenha despendido a quantia de €200,00 e que venha a despender quantia idêntica no futuro.
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Motivação da Matéria de Facto:
A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada resulta da conjugação e análise crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento da prova documental constante dos autos, designadamente:
O arguido prestou declarações assumindo a prática dos factos e denotando arrependimento. Tendo prestado desculpas formalmente à assistente em sede de julgamento.
Mais tendo prestado declarações quanto às suas condições pessoais e económicas, o que fez de modo compatível com a normalidade da vida e regras de experiência comum.
Relativamente aos factos constantes de 20 a 41, a convicção do tribunal formou-se essencialmente nas declarações da assistente. A qual, pese embora tenha apenas 19 anos, prestou-as de modo muito claro, pormenorizado e espontâneo.
Dando nota de todos os sentimentos por si vivenciados e as inerentes reacções físicas. O que fez de modo absolutamente compatível com a normalidade da vida e as regras de experiência comum; sentido e emotivo.
As suas declarações foram corroboradas pelo depoimento da testemunha MF  , mãe da assistente, que de modo emocionado, mas objectivo e pormenorizado explicou o modo como os factos praticados pelo arguido afectaram a sua filha, à data uma jovem de 15 anos. Descrevendo os comportamentos que a filha passou a adoptar e que alteraram não só a dinâmica familiar quanto a personalidade e maneira de estar da filha.
Mais contextualizou as despesas que teve com a aquisição de nova roupa interior para a filha e com a mudança de fechadura.
Demostrativo da sua credibilidade e objectividade foi o facto de ter espontânea e sinceramente referido não saber explicar o motivo pelo qual lho foi retirado o complemento mensal dado pela Segurança Social e que afirmou não ter, sequer, requerido.
Motivo pelo qual se deu como não provada tal factualidade, já que não se logrou com rigor e certeza apurar quais os requisitos para ser atribuído o subsidio e para o deixar de ser.
Mais não tendo sido feita qualquer prova das despesas realizadas com o acompanhamento médico, nem qual o seu custo futuro.
Relativamente à personalidade e integração social do arguido, fundou o tribunal a sua convicção no depoimento de MS , mãe do arguido, que de forma igualmente objectiva e sincera; descreveu a personalidade do filho e o seu percurso e comportamentos no seio familiar.
Mais se analisou criticamente o auto de denuncia de fls.3 e 4, no que à data respeita, fotografias de fls.28, 29, 45, 212, fatura de fls.37, auto de busca e apreensão de fls.87 a 89 e fotografias de fls.99 a 102, auto de reconhecimento de objectos de fls.114 a 115 a 123, fotografias das chaves de fls.125 e 126, termo de entrega de fls.124 e relatório médico de fls.276 e 325 e 326.
A ausência de antecedentes assim resultou da análise do CRC de fls.327.
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IIIº 1. O recorrente TM alega que a sentença recorrida não fundamenta a decisão e não faz a devida análise crítica das provas, em relação aos factos provados nºs 20 a 41, o que se reconduz à invocação da nulidade da sentença recorrida, nos termos do art.379, nº1, al.a, do C.P.P., por violação do disposto no art.374, nº2, do C.P.P.
Este preceito legal, impõe que a decisão seja fundamentada, com o que visa permitir ao tribunal ad quem averiguar se as provas que o tribunal a quo atendeu são, ou não, permitidas por lei e garantir que os julgadores seguiram um processo lógico e racional na apreciação das provas, não resultando uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou claramente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova.
O dever de motivação emerge diretamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional- art.205, do CRP- em relação ao qual ponderam Gomes Canotilho e Vital Moreira[1] que é parte integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objeto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso.
Como acentua Marques Ferreira[2], um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz.
Essa fundamentação não tem que ser feita em relação a cada facto, nem com menção de todos os meios de prova, exigindo a lei, apenas, o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal[3].
De facto, essencial é este exame crítico, o qual deve ser feito no intuito de permitir tornar percetível a razão do sentido da decisão, por forma a que se compreenda porque decidiu o tribunal num sentido e não noutro, desse modo não se apresentando a decisão como arbitrária, ou caprichosa, mas fruto da valoração dada pelo mesmo às provas produzidas[4].
No caso, em relação aos referidos factos, como consta da fundamentação da sentença recorrida, o tribunal apoiou a sua convicção nas declarações da assistente e no depoimento da testemunha M…, mãe daquela.
Em relação a estes elementos prova, além de consignar o seu sentido, faz a devida análise crítica, referindo em relação à assistente que “… pese embora tenha apenas 19 anos, prestou-as de modo muito claro, pormenorizado e espontâneo. Dando nota de todos os sentimentos por si vivenciados e as inerentes reações físicas. O que fez de modo absolutamente compatível com a normalidade da vida e as regras de experiência comum, sentido e emotivo” e em relação à testemunha MC “… de modo emocionado, mas objetivo e pormenorizado explicou o modo como os factos praticados pelo arguido afetaram a sua filha, à data uma jovem de 15 anos. Descrevendo os comportamentos que a filha passou a adotar e que alteraram não só a dinâmica familiar quanto à personalidade e maneira de estar da filha… ”.
A fundamentação permite, assim, compreender por que decidiu o tribunal num sentido e não noutro, tendo sido dado adequado cumprimento às exigências do art.374, nº2, CPP, sendo evidente que não ocorre a invocada nulidade.
2. Alega o arguido/recorrente, sem a concretização que se exigia, que existe erro notório na apreciação da prova, o que se reconduz ao vício da al. c, do nº2, do art.410, CPP (conclusão 6ª).
Este preceito legal admite o alargamento dos fundamentos do recurso às hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Nesta parte, alega o recorrente que “… que, face ás regras de experiência comum e á logica normal da vida, os depoimentos da mãe e da demandante são contraditados pelos documentos, nomeadamente, os relatórios médicos constantes de fls.28,29, 276, 325 e 326 e das fotografias de fls.212”.
Como se referiu, o vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo[5].
Assim, ao contrário do alegado, não pode na apreciação do vício recorrer-se ao teor dos mencionados elementos de prova (documentos).
Analisado o texto da decisão, o mesmo apresenta-se lógico e conforme as regras da experiência comum, não decorrendo dele qualquer erro, muito menos notório, suscetível de integrar o vício invocado.
Alega o recorrente que não há um nexo de causalidade direto e necessário entre a sua conduta e as alterações emocionais da demandante (conclusão 14ª).
Constituindo o nexo de causalidade matéria de facto[6], a verdade é que o recorrente não a impugna, para o que teria de cumprir as exigências do nº3, do art.412, CPP.
A alteração desse facto por via do já referido vício do erro notório, é manifestamente inviável pois, considerando os factos provados e a fundamentação, a verificação daquele nexo de causalidade é perfeitamente compatível com as regras de experiência comum, quando estão em causa factos que atingiram a esfera íntima de uma adolescente, agora com 19 anos de idade.
Com referência ao ponto 24 dos factos provados alega o recorrente que se tratam de factos meramente hipotéticos, mas o receio e sofrimento da vítima em casos como o dos autos não decorre, apenas, de factos consumados, sendo a simples possibilidade de terceiro poder divulgar factos íntimos da vítima motivo para sério sofrimento desta.
Na verdade, é do conhecimento geral a facilidade com que podem ser divulgadas fotos através das redes sociais, o que pode ocorrer por iniciativa do próprio agente ou daqueles a quem o mesmo as enviou ou exibiu (para o efeito um terceiro pode mesmo aproveitar-se da simples exibição das fotos ou objetos via Skipe), daí que seja perfeitamente compreensível o receio e sofrimento da assistente.
3. Questionam os recorrentes o quantitativo indemnizatório fixado pelos danos não patrimoniais (€15.000,00), que o arguido qualifica de excessivo e a assistente de reduzido.
Na fixação daquele valor ponderou o tribunal recorrido, essencialmente:
-a idade da assistente, as concretas peças que lhe foram levadas, peças de roupa interior;
-a sua divulgação por colegas da escola e a consequente intensidade do vexame e humilhação vivenciado;
-os sentimentos que passou a nutrir face ao seu quarto, espaço primordial de privacidade, na idade da assistente à data dos factos (15 anos);
-os efeitos ao nível da sua personalidade e alterações da sua maneira de ser;
-os ataques de pânico que passou a sentir;
-a necessidade de ter que cancelar a sua matrícula e repetir o ano letivo;
-a necessidade de receber acompanhamento psicológico até à atualidade;
-as concretas condições económicas do demandando;
Como é sabido e resulta dos arts.496, nºs1 e 3 e 494, do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito, sendo o montante da indemnização fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta as circunstâncias do art.494, isto é, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Os danos não patrimoniais costumam definir-se como prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado (a vida, a saúde, a liberdade, a beleza, etc.).
Porque não atingem o património do lesado e não são suscetíveis de conversão monetária, através da exatidão de operações matemáticas, a lei remete a fixação do montante indemnizatório por estes danos para juízos de equidade.
Sendo danos insuscetíveis de reparação natural, a indemnização tem nestes casos mais natureza compensatória[7], com uma dificuldade sempre presente que deriva do facto de ser única cada vida, cada incómodo, cada dor, cada desgosto, cada frustração, como é próprio da natureza humana, que torna cada sentimento e cada sensação uma vivência diferente em cada pessoa.
No caso, os danos não patrimoniais a considerar são a tristeza (logo que teve conhecimento dos factos ligou para a sua mãe, a chorar compulsivamente), receio em estar em casa sozinha, receio e perturbação de que as fotos e vídeos pessoais desde os seus 9 anos de idade e alusivas à sua prática desportiva pudessem ser usadas em sites para adultos, perturbação do sono, não conseguia dormir sozinha no seu quarto, tendo passado a dormir na cama com a mãe, chorava compulsivamente e não conseguia adormecer, ficando sempre alerta para a possibilidade de alguém entrar na habitação, sentiu repulsa ao entrar e permanecer no seu quarto, sentiu sentimentos de nojo, repulsa, vergonha e ansiedade, teve alterações intestinais e do couro cabeludo, sofreu perturbações emocionais, desconcentração e angústias, o que motivou a quebra do seu rendimento escolar e a decisão de cancelar a matrícula e voltar a repetir o ano escolar, passou a ser uma jovem mais introvertida e reservada, não conseguindo manter relacionamentos baseados na confiança, desenvolveu comportamentos obsessivos, teve necessidade de acompanhamento médico, sentiu-se enganada, vexada e enxovalhada.
Foi muito elevado, indiscutivelmente, o sofrimento da assistente.
Por outro lado, trata-se de sofrimento prolongado no tempo (de acordo com o nº38 dos factos provados ao longo dos últimos três anos), que atingiu a assistente numa fase crucial da formação da sua personalidade (adolescência/juventude), com efeitos que se podem repercutir ao longo da sua vida (desde logo porque perdeu um ano escolar).
O quantitativo indemnizatório tem assim que refletir toda esta gravidade e seriedade dos danos, o que só será possível com um valor que tenha um significado relevante face à nossa realidade económica e não possa ser confundido de compensação simbólica, o que o valor fixado (€15.000) satisfaz, respeitando as regras de adequação e proporcionalidade.
Alega o recorrente TM que face àquele valor tem de trabalhar, pelo menos, durante dois anos, comprometendo o seu futuro profissional e pessoal.
O que se esperava do arguido, porém, era que, num juízo de autocensura, ponderasse o elevado e prolongado sofrimento da vítima, assim como os efeitos dos seus atos na vida desta.
O arguido completa em breve os 21 anos de idade, está a terminar a sua formação académica e vem colaborando na atividade económica da família (restaurante dos avós), o que o coloca em posição de poder cumprir a obrigação em causa, mesmo que para o efeito tenha de recorrer a crédito que poderá ir amortizando no tempo.
A assistente, no seu recurso subordinado, peticiona o aumento da indemnização arbitrada, mas não alega factos que revelem insuficiência do valor fixado, acabando por reconhecer que o montante atribuído é ajustado (conclusão C).
Assim, analisados os factos, entendemos que o valor arbitrado pelos danos não patrimoniais corresponde a uma adequada valoração equitativa, razão por que improcedem o recurso do arguido e o recurso subordinado da assistente.
*
IVº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em negar provimento ao recurso do arguido TM e ao recurso subordinado da assistente TA, confirmando a sentença recorrida.
Condena-se cada um dos recorrentes, em três Ucs de taxa de justiça.

Lisboa, 11 de maio de 2021
Vieira Lamim
Artur Vargues
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[1] Constituição anotada, pág.799.
[2] Jornadas de Direito Processual Penal, pág.230.
[3] Neste sentido, Ac. do S.T.J. de 3Abr.03, na C.J. Acs. do STJ ano XI, tomo 2, pág.157.
[4] Como refere o Ac. do S.T.J. de 16Mar.05 (Relator Henriques Gaspar, proc. nº662/05, da 3ª Secção, acessível em www.stj.pt) “O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
No mesmo sentido, o Ac. do S.T.J. de 1Mar.00 (B.M.J. nº495, pág.209), refere “O tribunal deve proceder ao exame crítico das provas, ou seja, deve esclarecer quais os elementos probatórios que em maior ou menor grau o elucidaram e porque o elucidaram, de modo a que se consiga compreender porque foi proferida aquela e não outra decisão”.
[5] Germano Marques da Silva, ob. cit., pág.367; Ac. do STJ de 4Dez.03, Pº nº3188/03, in verbojuridico.com/jurisprudência/stj;
[6] Neste sentido, Ac. do STJ de 02-11-2010 (2290/04 – 0TBBCL.G1. S1 Relator Cons. Sebastião Póvoas, acessível em www.dgsi.pt) “…O juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual”.
[7] O Ac. da Rel. Porto de 9Julho98 (C.J. ano XXIII, tomo 4, pág.185), refere “Mais que uma verdadeira indemnização o montante em dinheiro a arbitrar por danos não patrimoniais representa antes a possibilidade de o lesado conseguir outros prazeres que, de alguma forma, lhe façam esquecer ou mitigar o sofrimento causado pela lesão”.