Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
214/18.7PDAMD.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ALTERAÇÃO DOS FACTOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPUTAÇÃO GENÉRICA DE FACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância. Porém, o que é susceptível de gerar a nulidade da sentença é a condenação por factos diferentes dos descritos na acusação ou na pronúncia e não a menção no decurso da audiência de julgamento, por assistentes, testemunhas ou outros intervenientes processuais, de factualidade não compreendida naquelas peças.
- Se os comportamentos imputados ao arguido não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido, bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado, estamos perante uma descrição vaga e imprecisa.
- Esta indefinição temporal e circunstancial, que vem já da peça acusatória do Ministério Público, impede o efectivo e eficaz contraditório obliterando o seu direito de defesa constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que as imputações genéricas, sem qualquer especificação das condutas em que se traduzem, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, devendo ter-se como não escritas.
- Essencial se mostra a descrição minimamente concreta e circunstanciada dos comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, pois só estes poderão ser subsumidos na previsão legal, uma vez que para que o facto atinja o limiar da dignidade penal se exige ainda que a conduta lesiva se revista de algum relevo, assim se conferindo expressão aos princípios da proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, de acordo com os quais o direito penal só deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social.
- Porque assim é, o agarrar dos braços da ofendida pelo arguido, nos exactos termos em que provado ficou, também não reveste dignidade penal, desde logo para o enquadramento como crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos com o NUIPC 214/18.7PDAMD, do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 1, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido D.  condenado, por sentença de 20/05/2019, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, “nº 1 e 2”, do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova assente em plano individual de readaptação social, com obrigatoriedade de cumprimento do programa para agressores de violência doméstica.
Mais foi condenado na pena acessória de proibição de contacto com a vítima/assistente I. , por qualquer meio, “o que inclui o afastamento a menos de 500 metros da residência e do seu local de trabalho/faculdade, pelo período de 2 (anos) anos – sic - e 3 (três) meses.”
Foi ainda condenado no pagamento à demandante I. , da quantia de 1.500,00 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.
2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1 - Os factos dados como provados, designadamente, os pontos referenciados na fundamentação da sentença recorrida, não integram maus tratos, e, consequentemente, não podem ser integradores do tipo de crime de violência doméstica.
2 - Aliás, não podemos correr o risco de considerar qualquer disputa, desacordo ou desentendimento entre um casal, como uma situação de violência doméstica.
3 - Os factos integradores da violência doméstica têm que ser classificados como maus tratos, sendo que as relações são todas distintas e têm que ser interpretadas na sua conjuntura e na vivência do casal.
4 - Sendo certo que, nos elementos objectivos do tipo de crime de violência doméstica, devem, obrigatoriamente, constar situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
5- Daqui sobressai o que cremos essencial para a caracterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução - a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.
6 - Ora, no caso em apreço, não resulta da matéria de facto provada, a qual resume-se, apenas, a imputações genéricas que, os actos de agressividade verbal imputados ao arguido e praticados na pessoa da ofendida, possam integrar a previsão da norma do artº 152º do Cód. Penal, por não representarem um potencial de agressão que supere a protecção oferecida pelo crime de injúria simples e de ameaça agravada p. e p., respectivamente, nos artºs 181º e 153º e 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal.
7 - Desde logo, porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos psíquicos,
8 - Conclui-se, por isso, que os factos provados e constantes das alíneas 4, 5, 6 e 7 não são susceptíveis de preencher o tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado, quando muito e in limine ser ponderado um crime de injúrias.
9 - Aliás, em conformidade com as considerações supra tecidas, pode concluir-se que nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou à liberdade de determinação de outrem, constituem um crime de violência doméstica, apenas pelo facto de ocorrerem no seio de uma relação conjugal ou equiparada.
10- Dos relatos levados a feito pelas testemunhas, com base nos quais a Mma Juíza a quo assentou a sua fundamentação, não resulta, nem pode resultar, a conclusão de que os factos provados integram uma situação de violência doméstica, pois não resultaram provados quaisquer actos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima, ou do desejo de prevalência e de dominação sobre a mesma, e, logo, susceptíveis de serem classificados como maus tratos.
11 - De realçar, ainda, que a sentença peca de nulidade porquanto, surge no momento do interrogatório à assistente uma alteração substancial dos factos que é detectada pela meritíssima juíza e por bastas vezes indicada à assistente, uma vez que a mesma se refere a situações que não constam nem da queixa nem da acusação particular.
12 - No caso em apreço, dúvidas não restam de que o próprio tribunal considerou que os factos relatados pela ofendida eram diversos dos que estavam na acusação, tendo repetido várias vezes que a ofendida não havida dito isso às autoridades policiais. Pelo que, ao ter permitido a continuidade do julgamento sem ser dado a conhecer tal circunstância ao arguido e não lhe ter sido permitido apresentar a sua defesa no que se refere a tais factos, inquina a sentença em crise de nulidade, o que se requer.
13 - Deste modo, não se verificam os pressupostos ou requisitos da prática, em autoria material, por parte do Arguido, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art.º 152º do Cód. Penal.
14- Como tal, e para além da alteração da apontada matéria de facto dada como provada, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por douta sentença que absolva o Arguido do crime de que vem condenado.
3. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pelo não provimento.
4. Resposta à motivação de recurso apresentou também a assistente I. , em que conclui pela manutenção da decisão recorrida.
5. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pela assistente em que mantém a posição anteriormente explicitada.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Nulidade da sentença por ter ocorrido alteração substancial dos factos sem comunicação ao arguido.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.
2. A Decisão Recorrida
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
2.1.1. O arguido manteve uma relação de namoro com I. , durante cerca de um ano e meio, o qual terminou no Verão de 2017 e reiniciou-se em Março de 2018.
2.1.2. No decurso da relação entre ambos, bem como após o terminus da mesma, o arguido infligiu maus-tratos à assistente, nomeadamente, dizia à mesma, pelo menos uma vez por semana, que “demente, filha de uma grande puta, criancinha do caralho, atrasada mental, andas com outros homens”.
2.1.3. No decurso da relação o arguido, motivado por ciúmes, acedia ao telemóvel da assistente, de modo a saber com quem a mesma contactava, bem como comparecia nos locais que a mesma frequentava, sem que a mesma soubesse, de modo a verificar com quem a mesma falava.
2.1.4. No início da relação entre ambos, em data não concretamente apurada, o arguido colocou a mão no braço da ofendida, apertando com força.
2.1.5. No dia 23-03-2018, depois do almoço, o arguido deslocou-se à residência da assistente, sita no Largo …, Amadora e iniciou uma discussão com a mesma, por esta ter frequentado, na noite anterior, um estabelecimento de diversão nocturna, na sequência da qual agarrou a assistente pelos braços e empurrou uma cadeira, na qual ela estava sentada.
2.1.6. Em consequência de tais agressões, a assistente sofreu dores e lesões nas zonas atingidas.
2.1.7. Ao bater na assistente, com quem mantinha uma relação de namoro, e ao injuriá-la, apesar de saber que ela era sua namorada e como tal tinha o especial dever de a tratar com dignidade, dentro da residência familiar, o arguido agiu com o propósito de molestar a saúde física e psíquica da assistente, de afectar a sua liberdade de decisão, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, não se coibindo de o fazer no interior da residência da assistente, o que conseguiu, ao actuar da forma acima descrita.
2.1.8. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas criminalmente.
2.1.9. Devido ao comportamento do arguido a assistente ficou fragilizada e perdeu a sua auto-estima.
2.1.10. Devido aos factos supra descritos a assistente teve e ainda hoje sente medo do arguido.
2.1.11. Devido aos factos supra descritos a assistente era uma pessoa nervosa e ansiosa.
2.1.12. A assistente é solteira, não tem filhos e mora com a mãe.
2.1.13. É estudante.
2.1.14. Mora em casa da mãe.
2.1.15. Devido à conduta do arguido a assistente foi seguida em vinte consultas de psicologia.
2.1.16. Com estas consultas a mãe da ofendida, AS, despendeu a quantia de €1.200 (mil e duzentos euros).
2.1.17. O arguido é solteiro, não tem filhos e mora com a mãe.
2.1.18. É estudante do 1º ano do curso de marketing.
2.1.19. Mora em casa da mãe.
2.1.20. ão tem carro.
2.1.21. Tem o 12º ano de escolaridade.
2.1.22 . Não tem antecedentes criminais.
Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição)
2.2.1. O arguido chamasse a assistente de “otária de merda”.
2.2.2. Em data não concretamente apurada, mas no verão de 2016, o arguido abordou a assistente a caminho da estação de comboios de Alhandra e agarrou-a e impediu-a de prosseguir o seu trajecto.
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O Tribunal formou a sua convicção na análise crítica do conjunta da prova produzida, a qual, apreciada de acordo com as regras da experiência e o normal suceder das coisas, foi suficiente para, para além da dúvida razoável, dar por assente os factos, nomeadamente:
- Nas declarações do arguido o qual descreveu as suas condições económicas e sociais.
Quanto aos factos o arguido negou a prática dos mesmos.
Assim começa por afirmar que nunca agrediu a assistente.
Em relação aos insultos referiu que os mesmos eram mútuos, sendo que mesmo assim nunca a apelidou de “filha da puta”.
Admitiu que era ciumento, mas que mesmo assim não a controlava, sendo que só lhe viu o telemóvel uma vez, e com autorização da assistente.
Quanto aos factos ocorridos a 23.03. disse que não empurrou a cadeira onde a assistente estava sentada, tendo-se limitado a apoiar na cadeira para se levantar.
Por fim, referiu que mesmo antes destes factos a assistente já tinha acompanhamento psicológico.
- Nas declarações da assistente I. , que, apesar de naturalmente envolvida nos factos, relatou de modo emotivo, mas coerente, claro, lógico e objectivo, os mesmos, descrevendo, de forma circunstanciada, as agressões, pressões e ameaças de que foi alvo por parte do arguido, bem como o estado psíquico em que a mesma ficou em consequência das mesmas. O seu depoimento foi de tal forma convicto e seguro que mereceu total credibilidade.
Assim, a ofendida contou o modo como era a relação com o arguido quando estavam juntos explicando o comportamento do mesmo e o teor das palavras que proferia.
Começou por referir que o arguido exercia muito controlo e manipulação sobre ela, não a deixando ter vida social, nem falar com outros rapazes, sendo que lhe via o telemóvel e aparecia nas festas em que ela estava.
Esclareceu que quando discutiam era frequente o arguido a empurrar e agarrar pelos braços.
Referiu que no dia 23.03. o arguido a empurrou e segurou pelos braços, tendo empurrado a cadeira onde ela estava sentada, sendo que ela apenas não caiu porque se levantou de imediato.
Disse que antes destes factos já não ia à psicóloga há algum tempo.
Esclareceu que depois destes episódios tinha medo de sair à rua e que o arguido aparecesse.
- No depoimento da testemunha AS, mãe da assistente.
Esta testemunha referiu que nunca presenciou qualquer discussão ou agressão, sabendo apenas o que a filha lhe contava.
Disse que leu umas mensagens em que o arguido se desculpava pelo seu comportamento e em que fazia ameaças veladas.
Após o episódio de 23.03. disse que a filha ficou triste e com medo, ficando perturbada psicologicamente, motivo porque passou a ser seguida em consultas da especialidade.
Disse que a filha apesar de já ter andado num psicólogo, não foi a qualquer consulta em 2017 e princípio de 2018, só tendo retomado as consultas após estes factos.
- No depoimento da testemunha CA. .
Esta testemunha relatou que o arguido controlava a assistente tendo contado os episódios por si presenciados.
Disse que a assistente ficou com medo do arguido e que necessitou de acompanhamento psicológico.
- No depoimento da testemunha C..
Esta testemunha não presenciou discussões nem agressões entre os dois.
No entanto referiu que viu mensagens enviadas pelo arguido em que o mesmo controlava e ameaçava a assistente.
Descreveu ainda quais as alterações comportamentais que a assistente teve devido a estes factos.
- No depoimento da testemunha AR. , psicóloga.
Esta testemunha referiu que seguiu a assistente em 2015 a 2016, e que retomou em Março de 2018, devido a um episódio de violência.
Disse que devido a este episódio a assistente foi a 20 consultas, tendo descrito o estado em que a mesma se encontrava.
- No depoimento da testemunha IF. , colega de trabalho da mãe da assistente.
Esta testemunha presenciou alguns telefonemas da assistente à mãe, em que esta dizia àquela para ter calma.
Em concreto falou uma vez com a assistente e disse para a mesma se acalmar.
- No depoimento da testemunha EC. , pai do arguido.
Esta testemunha descreveu qual o caracter e personalidade do arguido.
- No depoimento da testemunha MC. , mãe do arguido.
Esta testemunha referiu que daquilo que viu na relação do arguido com a assistente, ele não a tratava mal.
Descreveu qual o caracter e personalidade do arguido admitindo que o mesmo era ciumento.
- No depoimento da testemunha FC. .
Esta testemunha descreveu qual o caracter e personalidade do arguido.
- No depoimento da testemunha CF .
Esta testemunha descreveu qual o caracter e personalidade do arguido.
- No depoimento da testemunha LF .
Esta testemunha descreveu qual o caracter e personalidade do arguido.
- No depoimento da testemunha MH .
Esta testemunha descreveu qual o caracter e personalidade do arguido, referindo ainda que o mesmo ficava muito frustrado com as discussões com a assistente.
- O certificado de registo criminal junto aos autos foi relevante para prova da inexistência de antecedentes criminais.
- Assim, face à análise global da prova o Tribunal não teve quaisquer dúvidas em dar como provados os factos supra referidos.
Antes de mais, o arguido admitiu que a relação era toxica, que ele era ciumento e que insultava a assistente (sendo que não é o facto de esta também o insultar que justifica a conduta do arguido)
Quanto ao mais, temos as declarações claras e espontâneas da assistente, que relatou o modo como o arguido a controlava, o modo como lhe batia e as palavras que proferia quando a insultava, sendo que as suas declarações mereceram total credibilidade aos olhos do tribunal.
Quanto ao episódio ocorrido a 23.03. o tribunal baseou-se igualmente nas declarações da assistente as quais foram bastante convincentes nesta matéria.
Em relação ao estado em que a assistente ficou o tribunal baseou-se não só nas suas declarações mas também no depoimento das testemunhas de acusação como do pedido cível.
- Quanto ao elemento subjectivo o Tribunal também entende que o arguido agiu de forma livre e consciente bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida.
- Quanto aos factos dados como não provado os mesmos deveram-se a ausência de prova nesse sentido.
Apreciemos.
Nulidade da sentença por ter ocorrido alteração substancial dos factos sem comunicação ao arguido
No entender do recorrente, “surge no momento do interrogatório à assistente uma alteração substancial dos factos que é detectada pela meritíssima juíza e por bastas vezes indicada à assistente, uma vez que a mesma se refere a situações que não constam nem da queixa nem da acusação particular” sendo que “o próprio tribunal considerou que os factos relatados pela ofendida eram diversos dos que estavam na acusação, tendo repetido várias vezes que a ofendida não havida dito isso às autoridades policiais. Pelo que, ao ter permitido a continuidade do julgamento sem ser dado a conhecer tal circunstância ao arguido e não lhe ter sido permitido apresentar a sua defesa no que se refere a tais factos, inquina a sentença em crise de nulidade”.
De acordo com o estabelecido na alínea b), do nº 1, do artigo 379º, do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º, do mesmo.
Nos termos do nº 1, do artigo 358º, do CPP, “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.
A alteração não substancial dos factos constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforma o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal, sendo que a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa – cfr. Ac. do STJ de 21/03/2007, Proc. nº 07P024, disponível em www.dgsi.pt.
Quanto ao artigo 359º, do CPP, nele se consagra que “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância” – nº 1.
Analisados estes normativos, da sua simples leitura resulta límpido que o que é susceptível de gerar a nulidade da sentença é a condenação por factos diferentes dos descritos na acusação ou na pronúncia e não a menção no decurso da audiência de julgamento, por assistentes, testemunhas ou outros intervenientes processuais, de factualidade não compreendida naquelas peças.
Percorrida a acusação pública, constata-se que os factos dados como provados dela constam, com excepção daquele consubstanciado em o arguido agarrou a assistente pelos braços – ponto 2.1.5 dos factos provados – que nessa acusação não está vertido, mas encontra-se na acusação deduzida pela assistente – a fls. 153/155 – que foi recebida por despacho judicial de 13/12/2018 e de que o arguido foi notificado.
Não se verifica, pois, violação do artigo 359º, nº 1 ou sequer do artigo 358º, do CPP, ausente estando da sentença a invocada nulidade, pelo que improcede o recurso neste segmento.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento
Analisadas as conclusões da motivação de recurso apresentadas pelo arguido, constata-se que o mesmo impetra que “para além da alteração da apontada matéria de facto dada como provada, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por douta sentença que absolva o arguido do crime de que vem condenado”.
Só que, em passagem alguma das conclusões indica o recorrente quais os factos dados como provados pela decisão recorrida com os quais se não conforma.
O que diz é que os factos provados não integram o crime de violência doméstica, como se pode constatar da leitura das conclusões 1, 6, 7, 8 e 10.
Quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto nesta modalidade, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de descriminar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.
Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência – o que se verifica no caso em apreço - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens).
Analisando também a motivação (em sentido estrito) do recurso, resulta que igualmente se não indicam de forma concretizada os factos considerados incorrectamente julgados e, chamando à colação as declarações do arguido e da assistente, assim como os depoimentos de testemunhas, prestados em audiência de julgamento, não se faz a individualização das passagens que alicerçam a impugnação com indicação do início e termo desses segmentos e nem relacionado se mostra o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.
Ora, não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.
Não tendo cumprido o recorrente (nas conclusões ou sequer na motivação em sentido estrito) o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado, não pode este Tribunal da Relação conhecer do respectivo recurso nesta parte afectada e defeso estava fazer-lhe convite para aperfeiçoamento, pois trata-se de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso e esse procedimento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso – neste sentido, Ac. do STJ de 07/10/2004, Proc. nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt e Acs. do Tribunal Constitucional nºs 259/2002, de 18/06/2002 e 140/2004, de 10/03/2004, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
Não obstante, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do arguido sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Analisemos então.
O tribunal recorrido deu como assente, entre outra, a seguinte materialidade:
2.1.1 O arguido manteve uma relação de namoro com I. , durante cerca de um ano e meio, o qual terminou no Verão de 2017 e reiniciou-se em Março de 2018.
2.1.2 No decurso da relação entre ambos, bem como após o terminus da mesma, o arguido infligiu maus-tratos à assistente, nomeadamente, dizia à mesma, pelo menos uma vez por semana, que “demente, filha de uma grande puta, criancinha do caralho, atrasada mental, andas com outros homens”.
2.1.3 No decurso da relação o arguido, motivado por ciúmes, acedia ao telemóvel da assistente, de modo a saber com quem a mesma contactava, bem como comparecia nos locais que a mesma frequentava, sem que a mesma soubesse, de modo a verificar com quem a mesma falava.
2.1.4 No início da relação entre ambos, em data não concretamente apurada, o arguido colocou a mão no braço da ofendida, apertando com força.
Pois bem, como é manifesto, estes diversos comportamentos do arguido dados como provados em 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido (basta atentar que mesmo em 2.1.1 não se indica a data do início do relacionamento, ainda que aproximada), bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado, pelo que estamos perante uma descrição vaga e imprecisa.
Esta indefinição temporal e circunstancial, que vem já da peça acusatória do Ministério Público, impede o efectivo e eficaz contraditório (desde logo pela eventual demonstração de que nos dias que poderiam estar em causa a assistente I.  não se encontrava na companhia do arguido, por este estar a frequentar aulas ou qualquer outra razão configurável) obliterando o seu direito de defesa constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, elucida-nos o Ac. do STJ de 02/04/2008, Proc. nº 07P4197, consultável em www.dgsi.pt, que “como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente. Por isso, será de ter por não escrita aquela imputação genérica.”
Podendo também ler-se em Ac. do mesmo Tribunal de 02/07/2008, Proc. nº 07P3861, ainda nesse sítio, que “resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal.”
Acrescentando-se ainda que “esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.”
Entendimento que, no que concerne ao crime de violência doméstica, se mostra seguido, entre outros, pelos Acs. R. de Évora de 08/01/2013, Proc. nº 134/10.3GCABF.E1 e de 17/09/2013, Proc. nº 97/11.8PFSTB.E1; Acs. R. do Porto de 08/07/2015, Proc. nº 1133/13.9PHMTS.P1, 30/09/2015, Proc. nº 775/13.7GDGDM.P1, 15/06/2016, Proc. nº 1170/14.6TAVFR.P1 e 10/01/2018, Proc. nº 821/16.2T9GDM.P1, todos disponíveis no aludido sítio.
Com efeito, consagra-se no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge – alínea a); pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação – alínea b); a progenitor de descendente comum em 1º grau – alínea c); ou a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite – alínea d) - é punido (…).
O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime plasmado no artigo 152º, do Código Penal, será a saúde (abrangendo a saúde física, psíquica, emocional e moral), enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, sendo que este bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela dessa dignidade, projectada numa relação de afectividade ou coabitação, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos – assim, Plácido Conde Fernandes, Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305 – ou, na perspectiva de André Lamas Leite, “o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo” - A violência relacional íntima, revista Julgar, nº 12 (especial), pág. 49.
Daí que, essencial se mostra a descrição minimamente concreta e circunstanciada dos comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, pois só estes poderão ser subsumidos na previsão legal.
Porque assim é, urge concluir que os factos dados como assentes nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 se têm de considerar como não escritos.
Mas, o tribunal recorrido deu igualmente como provado que:
2.1.5 No dia 23-03-2018, depois do almoço, o arguido deslocou-se à residência da assistente, sita no Largo …, Amadora e iniciou uma discussão com a mesma, por esta ter frequentado, na noite anterior, um estabelecimento de diversão nocturna, na sequência da qual agarrou a assistente pelos braços e empurrou uma cadeira, na qual ela estava sentada.
2.1.6 Em consequência de tais agressões, a assistente sofreu dores e lesões nas zonas atingidas.
E, explicitou como formou, a propósito a sua convicção, nos seguintes termos:
- Nas declarações da assistente I. , que, apesar de naturalmente envolvida nos factos, relatou de modo emotivo, mas coerente, claro, lógico e objectivo, os mesmos, descrevendo, de forma circunstanciada, as agressões, pressões e ameaças de que foi alvo por parte do arguido, bem como o estado psíquico em que a mesma ficou em consequência das mesmas. O seu depoimento foi de tal forma convicto e seguro que mereceu total credibilidade.
(…)
- Referiu que no dia 23.03. o arguido a empurrou e segurou pelos braços, tendo empurrado a cadeira onde ela estava sentada, sendo que ela apenas não caiu porque se levantou de imediato.
(…)
Quanto ao mais, temos as declarações claras e espontâneas da assistente, que relatou o modo como o arguido a controlava, o modo como lhe batia e as palavras que proferia quando a insultava, sendo que as suas declarações mereceram total credibilidade aos olhos do tribunal.
Quanto ao episódio ocorrido a 23.03. o tribunal baseou-se igualmente nas declarações da assistente as quais foram bastante convincentes nesta matéria.
Ora, desde logo não conseguimos conceber, fazendo apelo às regras da experiência comum, como é que, relativamente ao episódio de 23 de Março de 2018, tendo ficado simplesmente provado que o arguido agarrou a assistente pelos braços e empurrou uma cadeira, na qual ela estava sentada, este comportamento lhe terá provocado dores e lesões nas zonas atingidas.
É que, o singelo acto de agarrar os braços de alguém, tendo ainda em atenção as aludidas regras da experiência, não é susceptível, só por si, de causar dores e lesões nesses membros, o que só poderá acontecer se for utilizada energia significativa, mas tal descrição não consta dos factos provados da sentença, assim como não consta da acusação pública deduzida.
E, esse comportamento – único a atender, como se deixou explicitado, por ser aquele que se mostra suficientemente concretizado – também se mostra, de acordo com a experiência da cidadã/cidadão comum, inapto a criar na assistente fragilidade e perda de auto-estima, medo do arguido, tornando-a uma pessoa nervosa e ansiosa.
Aliás, a testemunha AR. , psicóloga, referiu em audiência de julgamento que já em 2015/2016 a assistente era por si seguida e não se mostra plausível que, só por lhe agarrarem os braços, tivesse esta de frequentar vinte consultas de psicologia.
Daí que, se tenham de considerar como não provados os factos vertidos nos pontos 2.1.6, 2.1.7 e 2.1.8, 2.1.9, 2.1.10, 2.1.11 e 2.15, alterando-se a matéria de facto provada em conformidade.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido
Cumpre agora apurar se estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime por que o arguido foi condenado, atendendo à alteração fáctica mencionada.
O recorrente foi condenado, conforme consta do dispositivo da sentença, pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1 e 2, do Código Penal, sendo certo que, como resulta da fundamentação de direito, concretamente, o tribunal a quo considerou estar-se perante a previsão do artigo 152º, nº 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5, do Código Penal.
Já vimos qual o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.
Este tipo de crime exige, como elemento objectivo a prática de maus-tratos físicos ou psíquicos cometidos dentro de determinadas relações familiares ou análogas, sendo que essa exigência não pressupõe a repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral, podendo ocorrer a subsunção legal com uma única conduta, desde que a gravidade da mesma permita o enquadramento na figura dos maus-tratos. Já que não são obviamente todas as ofensas ou agressões, quer físicas, quer psíquicas, que se enquadram na previsão legal, mas apenas as que degradem a dignidade humana da vítima, com a inflicção de sofrimento cruel, bem como o aproveitamento simultâneo de uma determinada dimensão de fragilidade do outro – neste sentido, por todos, o Ac. R. de Lisboa de 12/10/2016, Proc. nº 413/15.3PFAMD.L1-3, disponível em www.dgsi.pt.
De onde, o enquadramento como violência doméstica de condutas agressivas, praticadas por uma só vez, só ocorrerá quando a gravidade intrínseca permitir o seu enquadramento na figura dos maus-tratos físicos ou psíquicos referida no nº 1 do referenciado artigo 152º, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana.
Provado está que o arguido manteve uma relação de namoro com I. , durante cerca de um ano e meio, o qual terminou no Verão de 2017 e reiniciou-se em Março de 2018 e que no dia 23 de Março de 2018 deslocou-se à residência da assistente e iniciou uma discussão com a mesma, por esta ter frequentado, na noite anterior, um estabelecimento de diversão nocturna, na sequência da qual agarrou a assistente pelos braços e empurrou uma cadeira, na qual ela estava sentada.
Pois bem, face a esta factualidade que assente se mostra, não podemos considerar preenchidos os pressupostos objectivos do tipo de crime em causa, por a conduta do arguido não consubstanciar violação da pessoa individual e da dignidade humana de I. , pelo que desse crime tem de ser absolvido.
E, podemos também acrescentar, para que o facto atinja o limiar da dignidade penal exige-se ainda que a conduta lesiva se revista de algum relevo, assim se conferindo expressão aos princípios da proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, de acordo com os quais o direito penal só deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social.
Daí que, a conduta típica para o preenchimento dos seus elementos objectivos, tenha de atingir o limiar da dignidade penal suposto na definição do tipo legal de crime.
Isto porque, “a realidade do crime (...) não resulta apenas do seu conceito, ainda que material, mas depende também da construção social daquela realidade; ele é em parte produto da sua definição social, operada em último termo pelas instâncias formais (legislador, polícia, ministério público, juiz) e mesmo informais (família, escolas, igrejas, clubes, vizinho) de controlo social. Numa palavra: a realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade “ontológica” ou “ôntica” de certos comportamentos, mas da combinação de determinadas qualidades materiais do comportamento com o processo de reacção social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes” - Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª edição, 2007, pág. 132.
Porque assim é, o agarrar dos braços de I.  pelo arguido, nos exactos termos em que provado ficou, também não reveste dignidade penal, desde logo para o enquadramento como crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
Mas, a absolvição quanto ao ilícito criminal, só por si, não obsta à condenação do arguido em indemnização civil, sendo que a assistente I.  formulou o respectivo pedido e o tribunal recorrido condenou-o no pagamento da quantia de 1.500,00 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Como se decidiu no denominado Assento do STJ nº 07/99, de 17/06/1999 “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377, nº1, do CPP, ou seja, absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana com exclusão da responsabilidade civil contratual”.
Nos termos do artigo 129º, do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
O princípio geral em matéria de responsabilidade civil extracontratual é o consignado no artigo 483º, do Código Civil, segundo o qual:
“Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Resulta do aludido preceito que constituem, em regra, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual:
-O facto ilícito;
-O dano;
-O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano;
- A culpa.
O facto ilícito é o facto voluntário – a acção ou omissão – que viola o direito de outrem ou deveres impostos por lei que vise a defesa dos interesses particulares, sem contudo conferir, correspectivamente, quaisquer direitos subjectivos.
O dano consiste na ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica e pode ter natureza patrimonial e não patrimonial.
O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano representa a imputação objectiva dos resultados danosos ao comportamento do agente, de maneira a determinar-se quais os danos verdadeiramente causados por este e nessa medida indemnizáveis - artigo 563º, do Código Civil.
Finalmente, a culpa representa a imputação subjectiva do facto ao agente e traduz uma determinada posição ou situação censurável deste perante o facto ilícito, podendo assumir a forma de negligência ou de dolo.
Ponderando a factualidade que se encontra provada é patente não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, em consequência, da obrigação de indemnizar por parte do arguido nos precisos termos expostos.
Face ao que, tem de o arguido/demandado de ser absolvido quanto ao pedido de condenação no pagamento de indemnização civil.
Cumpre, pois, conceder provimento ao recurso.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido D.  e, em consequência:
A) Julgam como não escritos os factos dados como provados nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 e como não provados os factos vertidos nos pontos 2.1.6, 2.1.7 e 2.1.8, 2.1.9, 2.1.10, 2.1.11 e 2.15, dos fundamentos de facto da decisão recorrida;
B) Revogam a decisão recorrida, na parte relativa à matéria penal e absolvem o arguido da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5, do Código Penal, por que vinha acusado;
Custas pela assistente – pois deduziu acusação subordinada à do Ministério Público e decaiu totalmente na oposição que fez ao recurso – artigo 515º, nº 1, alíneas a) e b), do CPP - fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.
C) Revogam a decisão recorrida, na parte relativa à matéria civil e absolvem o arguido/demandado do pedido de indemnização civil formulado por I. .
Custas cíveis a suportar pela demandante.

Lisboa, 26 de Novembro de 2019
Artur Vargues
Jorge Gonçalves