Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
52139/19.2YIPRT.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Até à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12.9, que aditou ao n.º 4 do art.º 4.º do ETAF uma alínea e), que determinou a exclusão do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal da “apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”, é da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de uma ação de cobrança de créditos emergentes da contagem de um contador (contador totalitário) instalado no âmbito de um contrato de fornecimento de água para consumo humano através da rede pública.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 20.5.2019 Adc – Águas de Cascais, S.A., apresentou no Balcão Nacional de Injunções requerimento de injunção contra Administração do Condomínio (…).
A requerente alegou o seguinte:
1-A Requerente (Rte) e o Requerido (Rdo) celebraram o contrato n.º 1999030193004 (com Imp. Selo pago), por força do qual a primeira pode faturar ao segundo o serv. de fornecimento de água prestado pela Rte ao prédio da Avenida (…), Estoril, correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio, ao abrigo do supra indicado contrato. Fornecida a água e verificada aquela diferença, foram emitidas e enviadas pela Rte as faturas infra ao Rdo, que estão vencidas e por pagar, desde as suas datas de vencimento:
N.º Doc. 201810993856
Data Emis.: 13-12-2018
Data Venc.: 08-01-2019
Valor EUR 559,25
2-O Rdo não pagou as faturas e entrou em mora (arts. 805º, nº2, a) e 806º, do CC) e sendo um crédito de empresa comercial, a Rte tem direito a juros de mora à taxa de 7% (Aviso n.º 8266/2014, de 16/07/2014, publicado no DR, 2ª Série, da Direção-Geral do Tesouro e Finanças), consoante os períodos de mora a que sejam aplicáveis, desde a data de venc. das faturas até integral pagamento.
3- O Rdo deve pagar à Rte 559,25 € de capital, 14,16 € de juros de mora vencidos calculados até 20/05/2019, juros vincendos até integral pagamento, 153,75 € (c/IVA) de despesas de cobrança, e o valor da taxa de justiça paga.
Por não ter sido possível notificar a requerida, o processo foi distribuído como ação especial para cumprimento de obrigações Dec.-Lei n.º 269/98 (limite alçada 1.ª instância).
Em 29.11.2019 foi proferido o seguinte despacho:
“AdC- Águas de Cascais, SA, empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água ao concelho de Cascais, intentou a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra a Administração do Condomínio (…), Monte Estoril, pedindo o pagamento de facturas relativas a contador totalizador ou padrão.
Cumpre, agora, apreciar e decidir se este Tribunal é materialmente competente para conhecer da acção, conhecimento este que pode/deve ser oficiosamente efectuado pelo Tribunal.
A competência do Tribunal, enquanto pressuposto processual, afere-se pela natureza da relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, isto é, do confronto entre a causa de pedir invocada e a pretensão deduzida.
Assim, a competência do Tribunal (mormente em razão da matéria) apenas terá de ser analisada à luz da pretensão do autor e nos precisos moldes alegados.
A competência material dos Tribunais Judiciais é determinada, não só pelo critério da atribuição positiva, mas também pelo critério de competência residual, isto é, também lhe cabe apreciar todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Por seu turno, compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – artigos 212º nº 3 da CRP e 1º nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
No caso dos autos, tendo presente a relação contratual estabelecida, e sendo o contador totalizador uma unidade de contagem (instrumento de medição) instalada, por iniciativa e no interesse da entidade fornecedora da água, em local onde se encontram instalados vários contadores diferenciais (neste caso num condomínio) e destinam-se a detectar perdas ou a medir consumos não detectados pelos contadores diferenciais instalados em cada uma das fracções.
Resulta do disposto no artº 66º nº3 do DL 194/2009 de 20 de Agosto que “Em prédios em propriedade horizontal devem ser instalados instrumentos de medição em número e com o diâmetro estritamente necessários aos consumos nas zonas comuns ou, em alternativa e por opção da entidade gestora, nomeadamente por existir reservatório predial, podem ser instalados contadores totalizadores, sem que neste caso o acréscimo de custos possa ser imputado aos proprietários” - sublinhado nosso.
Tal contador não tem como função medir o consumo de água (e não o mede), medindo apenas a quantidade global de água que entra no prédio, sendo a cobrança de água, nestas circunstâncias, imposta pela fornecedora de água ao consumidor final, sendo que os conflitos a dirimir resultantes da instalação de um contador destas características devem ser dirimidos pela jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do disposto no artº 4º nº1 do ETAF, nas suas diversas alíneas, mas em especial na sua alínea d).
Como se refere no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25-06-2013 (Processo nº 033/13, relatado por Rosendo José, integralmente disponível em www.dgsi.pt), “ Compete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar o «preço fixo» e consumos por um contador «totalizador» que precede os contadores das fracções e das partes comuns de um condomínio, por estarem em causa tarifas, taxas e encargos com exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário” – no mesmo sentido se decidiu, ainda, nos Acórdãos do Tribunal de Conflitos nº038/13 de 18.02.2013, relatado pelo Sr. Cons. Paulo Sá; nº 039/13 de 05.11.2013, relatado pelo Sr. Cons. Rui Botelho e nº 045/13 de 29.01.2014, relatado pelo Sr. Cons. Costa Reis.
Entende-se, pois, que a ordem administrativa e fiscal é a competente para conhecer da presente acção, o que importa a exclusão da competência (residual) deste Tribunal.
Neste entendimento, ao abrigo das normas legais citadas e, ainda, do disposto nos artigos 96º, 97º, 98º, 99º, 278º nº 1 al. a), 576º nºs 1 e 2 e 577º al. a), todos do CPC, verifica-se a incompetência absoluta deste Tribunal Judicial, em razão da matéria, que constitui excepção dilatória de que se pode, inclusivamente, conhecer ex officio, e que determina a absolvição dos RR. da instância.
Por todo o exposto, julgo verificada a excepção dilatória da incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, para preparar e proferir decisão nos presentes autos e, consequentemente, absolvo o R. da instância.
Custas pelo A.”
A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
a) A ora Recorrente não concorda com a sentença recorrida, proferida pelo tribunal “a quo”;
b) Uma vez que considera, que, subjacente à questão em controvérsia, nos autos, não há uma relação jurídica administrativo-tributária;
c) Tendo sido definido pela Autora, ora Recorrente, o objecto do litígio suscitado nos autos, relacionado com a sua pretensão formulada, de pagamento pela Ré, ora Recorrida, dos serviços de fornecimento de água efectuados pela primeira, enquanto prestador, à segunda;
d) Fornecimento de água, esse, traduzido em consumo constituído pela diferença entre o valor da medição por parte do contador totalizador e o valor da medição do conjunto dos contadores divisionários/diferenciais instalados no prédio da Ré, ora Recorrida;
e) E portanto, estar-se perante um objecto do litígio emergente de relação de consumo relativa à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água) e respectiva cobrança coerciva;
f) Referindo-se, assim, o objecto do litígio a relação contratual não atingida por uma regulação de direito público;
g) Por se entender que a matéria de incumprimento de contrato de fornecimento de água não se insere numa relação jurídica administrativo-tributária;
h) Antes resulta numa relação de direito privado, submetida aos Tribunais Comuns;
i) Ainda que a entidade fornecedora seja uma entidade concessionária;
j) Da análise da causa de pedir apresentada pela Autora, ora Recorrente, verifica-se que a situação de vida levada a juízo não se refere a uma relação especial do tipo Estado versus Cidadão, em que o primeiro esteja imbuído dos seus poderes de autoridade, mas antes a uma relação contratual estabelecida entre as partes, não sendo relevante a concessão aludida;
k) De facto, em concreto, nos autos, não estamos perante matéria tributária;
l) Nos autos não se discute uma «questão fiscal»;
m) Na verdade, o litígio dos autos não se situa no quadro ou no âmbito de relação jurídica tributária;
n) Visto que o litígio insere-se estritamente nas relações contratuais, entre a Autora/Recorrente, prestadora dos serviços de abastecimento de água e a Ré/Recorrida, sua cliente, e utilizadora;
o) Nos autos, a Autora, ora Recorrente, na sua qualidade de empresa privada concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais, pede/exige o pagamento, não efectuado, pela Ré, ora Recorrida, de quantia devida por fornecimento de água, a que estava obrigada, por força da relação contratual estabelecida;
p) E ao abrigo da qual foi instalado contador totalizador (vulgo contador padrão) no prédio da Ré/Recorrida;
q) Ora, atenta à matéria que está em causa, e o que a mesma Autora pretende obter da Ré, a competência para a sua discussão e julgamento reside nos tribunais comuns;
r) Restringindo-se o litígio em causa à cobrança de um crédito por água fornecida e não paga à empresa concessionária do serviço municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais;
s) Tem de se considerar processualmente correcto, por adequado, a distribuição dos autos nos tribunais comuns;
t) Estando em causa a competência para conhecer matéria relativa à validade da relação contratual entre Autora e Ré e a sua execução e o seu cumprimento;
u) Relação contratual consubstanciando uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado;
v) Uma vez que a relação em causa não se destina a quaisquer fins de “interesse público”;
w) A jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação são os tribunais comuns;
x) Pelo que, deve considerar-se que o Juiz “a quo” fundou a sua decisão numa inexistente relação jurídica administrativa-tributária;
y) Para além do mais, e acima de tudo, por via da 12.ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), levada a cabo pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, entrou em vigor, no passado dia 12 de Novembro de 2019, a (nova) alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do mesmo Estatuto, a qual estipula que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”;
z) Ora, no caso dos autos estamos perante um litígio emergente de relação de consumo atinente à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água), com base no previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (com respectivas alterações subsequentes) e respectiva cobrança coerciva (inicialmente através de injunção e subsequentemente, com carácter judicial);
aa) Por outro lado, o Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/10/2019 (portanto, proferido pouco tempo antes da entrada em vigor da supra indicada alteração do ETAF), referente ao Processo de Apelação 124980/18.4YIPRT.L1, em que foi recorrente a ora Recorrente/Autora, chamava já a atenção para a publicação do diploma com a mencionada alteração do ETAF, considerando-a um relevante elemento de interpretação sistémica, nomeadamente, quando o legislador claramente enuncia a sua intenção interpretativa;
bb) Tal Acórdão vem considerar que “a relação contratual estabelecida entre uma concessionária de serviço de fornecimento de água e drenagem de águas residuais e uma entidade privada não tem a natureza de contrato administrativo, não está sujeita às regras da contratação pública, nem tem por objeto questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo que não se enquadra na previsão doa artigo 4.º do ETAF, na redacção do DL 214-G/2015, estando sujeita à jurisdição dos tribunais comuns.”;
cc) Ora, atento o supra exposto, verifica-se que a sentença ora recorrida, omite/não aborda questão essencial que devia abordar, isto é, a questão da entrada em vigor da supra mencionada alteração do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, que introduz uma nova alínea - a alínea e) – a qual passa a ser decisiva para a análise da matéria da competência do tribunal para conhecer e decidir dos autos;
dd) Tal omissão é causa de nulidade da sentença, de acordo com o previsto no n.º 1, alínea d), primeira parte, do artigo 615.º do CPC;
ee) Tendo levado a entendimento do Tribunal “a quo” que não foi o correcto e adequado, sendo inaceitável;
ff) Resultando tal entendimento, claramente, de um erro de apreciação e de aplicação do Direito ao caso vertente;
gg)E levando o Tribunal “a quo”, considerar-se incompetente materialmente para apreciar o litígio dos autos;
hh) Decretando a verificação da excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal “a quo” para a causa;
ii) Assim, sendo, pelas razões supra indicadas, é de concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio dos autos é a jurisdição dos tribunais comuns, os tribunais judiciais;
jj) Pelo que não podia devia, como fez o Tribunal “a quo”, considerar-se incompetente materialmente para apreciar o litígio dos autos;
kk) Nem decretar a verificação da excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal “a quo” para a causa;
ll) Assim, pelo supra exposto, deverá o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada.
A apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão objeto deste recurso é a competência material para julgar o presente litígio, respeitante a um crédito emergente de um contador (contador totalitário) instalado no âmbito de um contrato de fornecimento de água para consumo humano através da rede pública.
O factualismo a levar em consideração está espelhado no Relatório supra.
O Direito
A organização judiciária portuguesa comporta diversas ordens de tribunais, enunciadas no art.º 209.º da CRP, cada uma com a sua jurisdição própria.
À ordem dos tribunais judiciais cabe, em regra, a jurisdição em matéria cível e criminal, além de todas as áreas não atribuídas a outras ordens de tribunais (art.º 211.º n.º 1 da CRP; art.º 40.º n.º 1 da LOSJ; art.º 64.º do CPC, art.º 8.º do CPP).
Segundo a CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (art.º 212.º n.º 3).
O âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais está concretizado no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, com as alterações publicitadas.
No art.º 1.º do ETAF define-se, como objeto da jurisdição administrativa e fiscal, os “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.
Em causa estão, em regra, litígios emergentes de relações reguladas por normas de direito administrativo, em que intervém pelo menos uma entidade pública ou equiparada, munida de autoridade ou prerrogativas de superioridade, a fim de satisfazer o interesse público.
Abrange-se, como decorre do art.º 4.º do ETAF, a fiscalização da legalidade de normas, atos jurídicos e administrativos emanados ou praticados por órgãos da Administração Pública, órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas ou quaisquer outras entidades no exercício de poderes públicos; atos pré-contratuais e contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público e seus agentes; relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal; impugnações judiciais de decisões da administração pública que apliquem coimas, em matéria de urbanismo e tributação.
A lei exclui, expressamente, do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa, decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal, ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição (n.ºs 3 e 4 do art.º 4.º do ETAF).
Notar-se-á que a reserva material de jurisdição dos tribunais administrativos e tributários referida no art.º 212.º da CRP (dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais) não é absoluta, isto é, não significa que só os tribunais administrativos e fiscais possam julgar questões de direito administrativo e de direito fiscal, nem que os tribunais administrativos e fiscais só possam julgar questões dessa natureza. Assim, a própria Constituição atribui ao Tribunal Constitucional e ao Tribunal de Contas o julgamento de determinadas questões emergentes de relações administrativas – como sucede, por exemplo, com a competência para julgar questões eleitorais e para declarar, em certas hipóteses, a ilegalidade de normas, incluindo as administrativas (que pertencem ao Tribunal Constitucional), e com a competência para apreciar a legalidade das contas das entidades públicas (cujo julgamento pertence ao Tribunal de Contas); por outro lado, o ETAF atribui aos tribunais administrativos competência para apreciar litígios que têm por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, seus órgãos ou agentes, independentemente de se saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada, ou seja, independentemente da natureza pública ou privada do direito substantivo que venha a reger o litígio (por exemplo, a colisão, na via pública, entre um veículo pertencente ao Estado e um veículo particular) – vide as alíneas f), g) e h) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF. Igualmente, é solução tradicional no direito português a atribuição aos tribunais judiciais da competência para julgar o recurso das decisões arbitrais que fixem a indemnização nos processos de expropriação litigiosa por utilidade pública (artigos 38.º, n.ºs 1 e 3, e 91.º, n.º 7, do Código das Expropriações). E os tribunais judiciais também julgam impugnações de decisões de autoridades administrativas que aplicam coimas, em processos de contraordenação.
Exposto isto, cabe apreciar a questão da determinação da ordem jurisdicional a quem cabe julgar o litígio ora trazido a tribunal. Sendo certo que haverá que apreciar essa questão à luz dos contornos do litígio tal como são apresentados pelo autor (por todos, acórdão do Tribunal de Conflitos, n.º 027/14, de 25.9.2014, in www.dgsi.pt).
A autora, concessionária de um serviço público, que tem por objeto o abastecimento de água à população de um determinado município, vem aos autos reclamar uma quantia correspondente à prestação desse serviço. Essa quantia corresponde à contagem do contador totalizador instalado num prédio constituído em propriedade horizontal, mais precisamente, incide, segundo a A., sobre a diferença entre o consumo medido pelo contador totalizador e o consumo registado pelos diversos contadores divisionários, correspondentes às diversas frações autónomas do condomínio.
Ora, é sabido que o fornecimento de água à população e o respetivo saneamento constituem matéria de interesse público.
A Lei n.º 46/77, de 8.7 vedava às empresas do setor privado as atividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, através de redes fixas, assim como o saneamento básico (art.º 4.º alíneas c) e d)).
Só em 1993, através do Dec.-Lei n.º 372/93, de 29.10, se admitiu que tais atividades pudessem contar com a participação de capitais privados, eventualmente em regime de concessão, mas em sociedades dominadas por capitais públicos.
Finalmente, a Lei n.º 88-A/97, de 25.7, veio admitir a captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de efluentes, em ambos os casos através de redes fixas, por entidades privadas, mas apenas em regime de concessão.
Sendo que os municípios se encontram incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n.º 159/99, de 14.9, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal.
Essa incumbência pode ser efetivada de forma direta, através das unidades orgânicas do município (serviços municipais ou municipalizados), ou por meio de empresarialização dos sistemas municipais prestadores desses serviços, ou pela exploração através de associações de utentes, ou pela entrega da gestão ao setor privado, através de concessão.
Não se trata, como é bem de ver, de atividade que seja deixada ao livre alvedrio dos cidadãos e das empresas.
Pelo contrário, é sujeita à orientação e fiscalização da autoridade pública, norteada por normas imperativas, de direito público.
O principal diploma que rege esta matéria é o Dec.-Lei n.º 194/2009, de 20.8, com as alterações publicitadas, que tem por objeto o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos.
Conforme consta no respetivo preâmbulo, o diploma visa definir “um regime comum, uniforme e harmonizado aplicável a todos os serviços municipais, independentemente do modelo de gestão adoptado, sendo igualmente densificadas as normas específicas a cada modelo de gestão”, “assegurar uma correcta protecção e informação do utilizador destes serviços, evitando possíveis abusos decorrentes dos direitos de exclusivo, por um lado, no que se refere à garantia e ao controlo da qualidade dos serviços públicos prestados e, por outro, no que respeita à supervisão e controlo dos preços praticados, que se revela essencial por se estar perante situações de monopólio”, “assegurar, quando aplicável, condições de igualdade e transparência no acesso à actividade e no respectivo exercício, bem como nas relações contratuais”, e articular o regime com o Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 18/2008, de 29.01 e com o regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pela Lei n.º 53-F/2006, de 29.12, seja concretizando alguns aspetos desses regimes, seja introduzindo especificidades noutros.
No respetivo art.º 3.º se proclama que a exploração e gestão dos sistemas municipais, tal como referidas no n.º 1 do artigo anterior, consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público.”
Nesse diploma se enunciam os poderes, deveres e direitos da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, das entidades titulares dos serviços, das entidades gestoras dos serviços e dos utilizadores dos serviços, a que se segue um corpo de normas contraordenacionais, visando o cumprimento das regras decorrentes (artigos 72.º e 73.º).
Note-se que a definição dos preços dos serviços não depende do livre jogo das regras do mercado, mas aqueles são rigidamente fixados, com base no disposto nos regulamentos tarifários, controlados pela Entidade Reguladora (cfr. artigos 11.º-A e 11.º-B do Dec-Lei), ou assentam, conforme os casos, nos valores base fixados nos contratos de gestão delegada (artigos 23.º, 24.º) ou de concessão (artigos 40.º, 43.º, 45.º).
Os níveis mínimos de qualidade dos serviços a serem percecionados pelos utilizadores são definidos por regulamento emitido pela entidade reguladora, a qual também fixa as compensações que forem devidas em caso de incumprimento (art.º 12.º).
As regras de prestação do serviço aos utilizadores constam do regulamento de serviço, aprovado pela entidade titular (art.º 62.º n.º 1), o qual deverá conter, no mínimo, os elementos constantes de portaria a aprovar pelo membro do Governo responsável pela área do ambiente (art.º 62.º n.º 1). Essa portaria é atualmente a Portaria n.º 34/2011, de 13.01. do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território.
O conteúdo dos contratos de fornecimento e de recolha está definido no art.º 63.º do diploma.
A existência e o regime dos instrumentos de medição consta do art.º 66.º do diploma e o regime atinente às medições e faturação consta no art.º 67.º.
No art.º 68.º regula-se as reclamações dos utilizadores, no art.º 69.º a ligação dos imóveis edificados aos sistemas de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais, no art.º 70.º a inspeção aos sistemas prediais, no art.º 71.º deveres destinados a salvaguardar a integridade dos sistemas prediais e públicos.
A natureza coletiva do bem aqui em causa (fornecimento de água para consumo público em rede fixa) e o consequente interesse público da regulação da sua exploração, traduzido na apertada regulamentação por normas que inegavelmente têm a natureza de direito público-administrativo, têm levado o Tribunal de Conflitos a consistentemente apontar a jurisdição administrativa como a competente para conhecer de causas atinentes à cobrança de dívidas dos utilizadores por entidades exploradoras desse serviço público.
Por todos, veja-se o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 19.01.2017, processo 014/16, onde se enuncia uma longa lista de acórdãos daquele tribunal e se reitera essa jurisprudência. O acórdão mais recente do Tribunal de Conflitos que encontrámos sobre a matéria, o acórdão n.º 21/19, de 07.11.2019, mantém a jurisprudência tradicional (publicado, tal como todos os restantes indicados neste acórdão, em www.dgsi.pt).
Esta reiteração jurisprudencial do Tribunal de Conflitos não é despicienda, atentos os cruciais valores da segurança e da previsibilidade a que o julgador deve estar atento, conforme decorre do disposto no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil.
De todo o modo, e porque essa jurisprudência incidiu, aparentemente, sobre casos a que não eram aplicáveis as últimas versões do ETAF, aprofundemos um pouco mais a nossa análise.
Na versão original do ETAF, litígios como o destes autos poderiam caber, além de na cláusula geral prevista no art.º 1.º, na previsão da alínea f) do n.º 1 do art.º 4.º, onde se lia:
“Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
O enquadramento na referida alínea f) manteve-se com a alteração na sua redação que foi introduzida pela Lei n.º 107-D/2003, de 31.12:
“Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
Com a entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 241-G/2015, de 02.10, o art.º 4.º do ETAF sofreu nova alteração e a previsão das antigas alíneas e) e f) metamorfosearam-se na atual alínea e), que tem a seguinte redação:
“Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
Nesta alínea tem-se em vista litígios entre entidades outorgantes de contratos administrativos, isto é, contratos como tal classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial (cfr. art.º 200.º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 4/2015, de 07.01: “1 - Os órgãos da Administração Pública podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado. 2 - São contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial”).
O Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 18/2008, de 29.01, com as alterações publicitadas, não se mostra vocacionado para regular a contratação entre, como é o caso destes autos, concessionários de serviços públicos e particulares utilizadores desses serviços. Reporta-se, isso sim, à contratação entre as entidades adjudicantes ou contraentes públicos e seus cocontratantes, nomeadamente no âmbito de empreitadas de obras públicas, concessões de obras públicas e de serviços públicos (cfr. artigos 2.º, 3.º, 278.º, 280.º, 343.º, 407.º do CCP).
Assim, a al. e) do art.º 4.º do ETAF, na redação atual, não albergará a situação destes autos. O presente litígio integra-se, pois, na cláusula geral/residual prevista na al. o) do art.º 4.º do ETAF (“[r]elações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”).
Em sentido diverso se entendeu no acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.2019, processo 124980/18.4YIPRT.L1, citado pela apelante.
Neste acórdão propendeu-se, face à atual redação do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, para a exclusão da jurisdição dos tribunais administrativos de um procedimento de injunção intentado por uma concessionária do fornecimento de águas contra uma entidade privada com quem havia sido contratada a prestação do serviço, para haver o pagamento de faturas a ele respeitantes.
Entendeu-se que assim era por se estar perante uma relação jurídica regida por normas de direito privado, dando-se relevo, para esse efeito, ao regime da Lei n.º 23/96, de 26.7 (Lei dos Serviços Públicos Essenciais).
Conforme supra exposto, cremos que a relação jurídica em causa sofre a influência do interesse público do bem a que diz respeito, bem patente no regime jurídico de direito público que rege a matéria, de que é peça nuclear o Dec.-Lei n.º 194/2009, de 20.8, já analisado.
De todo o modo, no mencionado acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.2019, considerou-se que uma situação idêntica à destes autos, atinente a um contador totalizador, seria da competência dos tribunais administrativos, por respeitar a uma relação jurídica regulada por normas de direito público tributário. Corroborou-se, aí, o juízo formulado no acórdão desta Relação, de 12.10.2017, processo 55099/16.8 YIPRT.L1, segundo o qual, citando-se o respetivo sumário, “[c]ompete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar consumos por um contador «totalizador» que precede os contadores “divisionários”, no âmbito do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito publico tributário.
É certo que, entretanto, como se refere no dito acórdão desta Relação, de 10.10.2019, e a apelante menciona, surgiu o aditamento de uma alínea e) ao n.º 4 do art.º 4.º do ETAF, operado pela Lei n.º 114/2019, de 12.9, alínea essa que tem a seguinte redação:
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
(…)
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, que esteve na origem da Lei n.º 114/2019, consta o seguinte:
A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.
Entre os serviços públicos essenciais inclui-se, naturalmente, o serviço de fornecimento de água (al. a) do n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 23/96, de 26.7).
Dir-se-á, pois, que as ações de cobrança do preço dos consumos de água abastecida através da rede pública passaram a estar excluídas do âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos.
Porém, essa alteração legislativa apenas entrou em vigor em 11 de novembro de 2019 (art.º 6.º da Lei n.º 114/2019).
E a competência dos tribunais fixa-se à data da propositura da ação, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (art.º 5.º n.º 1 do ETAF e art.º 38.º da LOSJ).
Assim, a aludida alteração do ETAF não atinge esta ação, que foi proposta em 20 de maio de 2019.
Por todas estas razões, mantém-se a decisão recorrida.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 19.11.2020
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins